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segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Reservas Funcionais

Reservas Funcionais

Reservas Funcionais Diz a lenda que só usamos 10% do cérebro. Isto não é verdade: usamos o cérebro todo, o tempo todo – de maneiras diferentes.

Considerar que só 10% são usados poderia levar a pensar que os outros 90% servem de reserva em caso de necessidade (por exemplo, após lesões cerebrais) - o que naturalmente não pode ser verdade, já que cada parte do cérebro tem sua função.
Acredita-se, contudo, que existe uma outra forma de reserva funcional no cérebro: na forma de conexões sinápticas ricas entre os vários sistemas e suas partes, que representam caminhos alternativos para o processamento de informação, sobretudo em casos de necessidade.
Como conexões sinápticas são mantidas e modeladas dependendo do seu uso, a consequência é que um cérebro usado bastante, e de maneiras bastante variadas, terá uma maior riqueza de boas conexões disponíveis para uso alternativo.
Esses cérebros, portanto, devem ser mais resistentes aos danos decorrentes do envelhecimento, ou de doenças.
De fato, o maior fator de proteção contra a demência senil e a demência neurodegenerativa é simplesmente a educação formal: quanto mais tempo se passa na escola, menor se torna a probabilidade de um dia ter sinais da doença de Alzheimer,
por exemplo.
Um dos ganhos com a educação formal, que pode ser considerada um longo período de aprendizado intenso e sistematizado, é provavelmente a formação de uma extensa rede de conexões, muitas das quais talvez redundantes, que formam uma reserva mental, podendo ser recrutadas alternativamente em caso de necessidade.
Isso explicaria, por exemplo, por que algumas pessoas permanecem em forma e pensando com clareza ao longo de toda sua vida enquanto outras pessoas não.
reservas funcionais
Essas reservas mentais, contudo, precisam, podem, e devem ser mantidas ao longo da vida, já que as sinapses têm o poder de serem desfeitas, refeitas e fortalecidas o tempo todo de acordo com o uso ou a falta dele.
Por isso, nunca é tarde para investir em formar reservas cerebrais; e se você teve um bom começo na vida, investir na manutenção das suas reservas, e até aumentá-las, é uma boa ideia.

Reservas funcionais The Bronx Aging Study, publicado no New England Journal of Medicine e liderado pelo Dr. Joe Verghese, um neurologista, acompanhou quase 500 pessoas por mais de 20 anos, observando o que elas realmente fazem em seu cotidiano e qual é a relação entre tais escolhas e a saúde do cérebro. A pesquisa mostrou que as pessoas que participavam pelo menos quatro vezes por semana de atividades mentais estimulantes, como jogos interativos e dança, tinham uma probabilidade de 65 a 75% maior de permanecerem em boa forma do que aqueles que não realizavam essas atividades. O Dr. David Bennett, no Rush University Medical Center, chegou recentemente a uma conclusão parecida, depois de seguir mais de 2000 pessoas durante vários anos. Ao longo do tempo do estudo, 134 pessoas do grupo morreram. Nenhuma delas tinha sido diagnosticada com Alzheimer ou teve sequer um leve declínio cognitivo. Mas 36% apresentavam no cérebro os emaranhados de fibras e as placas características de Alzheimer – apenas não tinham sintomas! Essas pessoas aparentemente tinham acumulado reservas cerebrais suficientes para não mostrar sinais clínicos da doença, o que significa que mantinham boas habilidades de pensar apesar do Alzheimer já instalado.

Divisão de tarefas (especialização funcional)

Divisão de tarefas (especialização funcional)

Aprendizado O cérebro pode ser visto como um conjunto de sistemas, ou seja, de estruturas que compartilham uma
mesma função.

Um sistema cuida, por exemplo, de processar imagens visuais, colando o que faz sentido como uma pessoa ou um objeto e separando-o do resto, então associando a imagem a uma identidade e um local no espaço; outro cuida de processar sons e associá-los a significados e símbolos visuais (como conjuntos de letras do alfabeto); outro cuida de representar seus objetivos, suas metas, e de traçar estratégias para alcançá-los; outro, ainda, trata de filtrar somente aquelas informações relevantes ao objetivo do momento, dando-lhes mais destaque do que as demais, que são praticamente apagadas
em comparação.
Dado que o aprendizado depende de uso, o resultado dessa especialização funcional do cérebro, ou divisão de tarefas, é que só melhoram aqueles sistemas que são efetivamente usados com sucesso.
Se você passa todas as horas do dia lendo, ficará muito bom em atividades que envolvam a linguagem, o processamento semântico, vocabulário e geração de palavras – mas não desenvolverá suas habilidades motoras, musicais, ou de resolução de problemas, por exemplo.
Se sua vida é jogar xadrez, você se tornará muito bom em resolver problemas lógicos que envolvam análise espacial e a visualização mental de várias etapas –
como no xadrez.
É claro que as várias funções cognitivas ajudam umas às outras, mas isso tem limites.
Exercitar a memória é ótimo, mas não treina diretamente o raciocínio necessário para resolver problemas.
Ter um enorme vocabulário é muito bom para a leitura, mas não ajuda a melhorar a capacidade de concentração.
Para ter boa atenção, memória, visão espacial e raciocínio, é preciso portanto exercitar sua atenção, memória, visão espacial e raciocínio lógico. Variedade é fundamental.
E como na vida cotidiana usamos misturas de todas essas funções a cada momento, tê-las todas bem azeitadas é ótimo!

Plasticidade Cerebral

Plasticidade Cerebral

O fato de você ter uma personalidade bem definida e agir como "você" o tempo pode levá-lo a pensar que seu cérebro muda muito pouco ao longo da vida. Na verdade, muita coisa muda no cérebro ao longo da vida - e como resultado da sua própria atividade.

Essa capacidade de reorganização do cérebro conforme o uso é chamada de plasticidade cerebral. É justamente isso que lhe proporciona guardar registros da história de vida que define "você", por exemplo, ou aprender a ler ou dirigir, ou modificar a representação da sua mão esquerda no cérebro quando você se torna um exímio violinista.
Em casos mais drásticos, é também a plasticidade cerebral que torna possível a reorganização funcional por trás de reaprender a andar, a falar ou a usar a mão após derrames ou infartos cerebrais, quando parte dos neurônios morrem, e até mesmo levar uma vida bastante normal quando todo um lado do cérebro é removido na infância devido a doenças congênitas.
Como o cérebro custa caro em termos de energia e nutrientes, faz sentido que seus recursos sejam desviados para aquelas funções que são usadas de maneira bem-sucedida. Como resultado, quanto menos se usa uma função cerebral, pior ela fica – ao mesmo tempo que quanto mais se usa o cérebro em um tipo de atividade, melhor ele é capaz de realizá-la. Por isso a atividade mental rica e variada, com a prática das mais variadas funções cognitivas, é importante: para manter todos os circuitos ativos e saudáveis, prontos para o uso.

Por que o Cérebro Melhor funciona ?

Por que o Cérebro Melhor funciona?

Cérebro Se você deseja melhorar as capacidades do seu cérebro, ou simplesmente mantê-las bem, o melhor remédio é... usar o cérebro, por uma série de razões sobre as quais você poderá ler mais aqui:

A plasticidade cerebral, capacidade de modificação do cérebro de acordo com o uso, que lhe permite ser moldado pela própria atividade;
As mudanças cerebrais que acontecem durante o aprendizado, conforme os circuitos específicos utilizados com sucesso são fortalecidos e outros, que não são relevantes, são enfraquecidos, levando a uma mudança na maneira de agir, perceber, ou pensar;
A organização do cérebro em conjuntos de estruturas com funções específicas, incluindo vários tipos de memórias;
A formação de reservas cerebrais, um verdadeiro conjunto de "circuitos alternativos" que permitem que, na falta súbita de algum circuito, outros sejam recrutados para dar conta do recado.
Devido a essas propriedades do cérebro, quanto mais você usa uma habilidade específica, melhor ela fica. Como essas habilidades são várias, e complementares, não há um único exercício completo, ou suficiente, para todas as habilidades do cérebro. Portanto, quanto mais variadas são as formas como você usa seu cérebro, mais completo é o exercício para ele.
Você pode, é claro, cuidar sozinho de desenvolver essas habilidades aprendendo línguas, tricô, cálculo, lendo, jogando xadrez, memorizando números de telefone, caminhos novos ou sua agenda do dia, como preferir – inclusive jogando videogames ou jogos avulsos na internet.
Como você poderá ver na seção Bem-Estar, nós desejamos fortemente estimulá-lo a fazer tudo isso (e ainda fazer exercícios físicos!).
Programa Variado

O Cérebro Melhor lhe oferece um programa personalizado de exercícios para várias habilidades cerebrais – atenção, memória, visão espacial, linguagem e raciocínio lógico – no qual você pode desenvolver seus pontos fracos e aperfeiçoar seus pontos fortes seguindo as recomendações de um instrutor virtual, enquanto você acompanha seu progresso ao longo do tempo. A melhora cognitiva exige variedade de exercícios, o que o Cérebro Melhor lhe oferece na forma de 20 jogos originais com vários níveis de desafio e um amplo banco de dados, que garantem milhares de horas de treino variado e progressivo.
Instrutor Virtual Personalizado

Assim como academias de ginástica oferecem um personal trainer para criar um programa de exercícios sob medida para você, que leva em conta suas fraquezas e potencialidades, o Cérebro Melhor coloca à sua disposição um Instrutor virtual para ajudá-lo em seu treinamento cognitivo. O Instrutor acompanha seu uso do Cérebro Melhor (por exemplo, quantas vezes você visita o site, quais jogos usa com mais frequência, quais foram os últimos jogados), monitora seu desempenho, e sugere um programa de exercícios para sua visita, com o objetivo de melhorar o seu
desempenho geral.
O Instrutor recomenda exercícios no nível adequado para sua maior estimulação e aperfeiçoamento, levando em conta seu perfil, seus pontos fortes e fracos, seu desempenho anterior e os exercícios já concluídos - e ocasionalmente propõe desafios. O nível de dificuldade proposto pelo Instrutor aumenta conforme você faz progressos, e diminui se necessário.
O Instrutor lhe oferece alternativas: você pode escolher treinar suas fraquezas; usar os jogos que você menos vem usando; ao contrário, reforçar seus pontos fortes; fazer um treinamento variado, ou concentrar-se em apenas uma modalidade naquele dia, por exemplo. Cada vez que você consulta o Instrutor no site, o programa faz uma análise dos seus registros para determinar os exercícios mais relevantes e preparar uma sessão personalizada de treinamento. E, claro, você sempre pode optar por não seguir as instruções do seu personal trainer cerebral!
Efeitos Comprovados

O programa de exercícios oferecido pelo Cérebro Melhor foi desenvolvido e testado na França pela equipe do Dr. Bernard Croisile. Estudos realizados pela equipe, tanto na Europa quanto na América do Norte, mostram que o uso rotineiro dos exercícios oferecidos melhora significativamente a atenção, a memória, a velocidade de processamento de informações e o raciocínio, fornecendo assim benefícios cognitivos que contribuem para lhe proporcionar não só mais satisfação com suas habilidades cognitivas como também uma melhor qualidade de vida. No Brasil, o uso do programa de exercícios do Cérebro Melhor é apoiado e recomendado pela Prof. Suzana Herculano-Houzel, neurocientista pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de vários livros sobre neurociência e bem-estar.

http://www.cerebromelhor.com.br/porquefunciona.asp

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Direto de Brasília: Regulamentação da Profissão de Cientista

Direto de Brasília: Regulamentação da Profissão de Cientista  

Foi dia 13 de agosto de 2013 o Seminário organizado pelo Deputado Glauber Braga sobre a Regulamentação da Profissão de Cientista. Conseguimos o apoio de vários deputados, e o Seminário se encerrou com a decisão do Deputado Glauber Braga de elaborar uma pré-proposta para ampla discussão pela internet de modo que ele possa apresentar de fato uma proposta de projeto de lei à Câmara. Ao menos esta parte deve andar bastante rápido. Tivemos também a participação brilhante e importantíssima da Sra. Rosangela Rassy, Auditora Fiscal do Trabalho, que deu seu depoimento contundente e inequívoco: nossos jovens cientistas trabalham em condições INDIGNAS, e a necessidade de regulamentação é clara, como aconteceu com Administradores e Fisioterapeutas. Agora é nossa vez! Transcrevo abaixo minha apresentação de 20 minutos. Seguem também as gravações em áudio da minha apresentação e, nos próximos posts, as gravações do depoimento da Rosangela Rassy e dos meus comentários em resposta aos questionamentos levados pela Luana Bonone, presidente da Associação Nacional de Pós-Graduandos, e outras perguntas feitas pelos jovens cientistas que participaram da plateia do Seminário. Foi uma excelente oportunidade, acho que várias dúvidas foram esclarecidas. Por favor compartilhem!  Seminário – Regulamentação da Profissão de Cientista Câmara dos Deputados, 13 de agosto de 2013 Suzana Herculano-Houzel Universidade Federal do Rio de Janeiro  Bom dia a todos. Eu quero antes de mais nada agradecer ao Deputado Glauber Braga e à sua equipe por organizar este evento em prol da regulamentação da profissão Cientista, e eu cumprimento os deputados presentes e agradeço seu interesse por essa questão. Não represento nenhuma organização, nenhuma associação, nenhum grupo. Não vim trazer uma proposta, embora eu tenha várias, e vou ficar muito feliz de mencioná-las se a ocasião se apresentar. Minha função aqui é bastante simples, e não depende da autorização de ninguém, não depende de discussão prévia, não depende de representatividade. Minha função é expor aos senhores um FATO; alertá-los para as consequências possíveis desse fato; e lhes pedir para agir pela correção do problema, com a regulamentação da profissão Cientista. O fato é o seguinte: a maior parte da ciência no Brasil é feita por jovens que trabalham sem que seu trabalho seja reconhecido ou regulamentado como trabalho, e portanto sem direitos nem deveres trabalhistas: sem jornada regulamentada, sem férias, sem décimo terceiro, sem auxílio transporte ou insalubridade, sem qualquer proteção trabalhista, o que faz com que ser cientista no Brasil seja hoje uma péssima ideia. Já vou explicar melhor a situação. A CONSEQUÊNCIA possível da irregularidade da situação trabalhista desses jovens cientistas é qualquer um desses jovens trabalhadores - e são dezenas de milhares deles - fazer uma denúncia ao Ministério Público do Trabalho e solicitar auditoria das suas condições trabalhistas. A sra. Rosangela Rassy, auditora fiscal do Trabalho, aqui presente, pode atestar a irregularidade da situação, que já vou expor aos senhores. A pior consequência possível de uma ação trabalhista como essa seria o fechamento de laboratórios e centros de pesquisa onde trabalham irregularmente, sem qualquer reconhecimento ou direitos trabalhistas, nossos jovens cientistas, o que efetivamente paralisaria a produção científica no país. Não é uma alternativa que agrade a ninguém. Mas tudo isso pode ser evitado se os senhores tomarem a dianteira e agirem primeiro para CORrIGIR o problema. Por isso estou aqui para fazer um PEDIDO que está em poder dos senhores: criar e regulamentar a profissão Cientista, obrigando o reconhecimento dos direitos trabalhistas de nossos jovens cientistas. Regulamentar significa, entre outras coisas, impedir que um jovem trabalhe de fato produzindo conhecimento científico sem ter vínculo empregatício e direitos e deveres trabalhistas. Vou me apresentar, então. Meu nome é Suzana Herculano-Houzel, e sou neurocientista: pesquiso como o cérebro se forma e como ele funciona. Mas não posso dizer que esta é minha profissão, pois minha profissão - cientista - não existe no Brasil: não está na lista de profissões do Ministério do Trabalho. Como bem disse o Deputado Paulo Teixeira, para poder atuar como cientista, faço o que a grande maioria dos meus colegas fazem: sou empregada como PROFESSORA de nível superior, em meu caso na UFRJ. Eu literalmente faço ciência nas horas vagas entre preparar aulas, dar aulas, aplicar exames e corrigir provas. Cientista é quem faz ciência: quem usa o método científico de elaboração e teste de hipóteses sobre o mundo fundadas na observação desse mundo para gerar conhecimento sobre ele. É esse conhecimento que nos ensina sobre nós mesmos, que faz nossa civilização crescer e progredir ao invés de simplesmente ver o tempo passar, que permite que a gente não morra mais de sarampo ou pólio na infância nem de pneumonia aos 30 anos, que melhora nossa qualidade de vida. Como qualquer pessoa que gera esse tipo de conhecimento, eu sou, portanto, cientista. A maior parte da nossa ciência no Brasil, no entanto, não é feita por "cientistas"; é feita por professores universitários, como eu, e sobretudo por jovens ditos "estudantes de pós-graduação". A produção científica brasileira, como pode atestar o Sr. Guilherme Mello, representante aqui do CNPq, vem crescendo ao longo dos últimos 10 anos de mãos dadas com o número de mestres e doutores que formamos. São esses jovens o grosso da mão-de-obra trabalhadora que produz o conhecimento científico no Brasil. É o fruto do seu esforço, do seu TRABALHO, que faz a produtividade científica brasileira crescer em vários índices. Se esses jovens pararem o seu TRABALHO, a produção científica, e o crescimento científico no país, PARAM. Mas o trabalho desses jovens não é chamado de TRABALHO; é chamado de Estudo, com a justificativa, inválida, de que eles estão "investindo" na sua formação (como se eles tivessem alternativa!), ou adquirindo formação obrigatória para só então poderem atuar como profissionais. Nossos jovens cientistas são então chamados de "estudantes de pós-graduação" - o que é um erro que outros países já não cometem mais. O erro é não reconhecer seu trabalho como qualquer outro trabalho: esforço laboral que gera um produto, conhecimento científico. De fato, um jovem cientista recém-graduado não tem ainda competência para chefiar um laboratório ou liderar uma equipe de pesquisa. Mas o jovem engenheiro recém-graduado também não tem. A expertise necessária será adquirida com a prática da profissão - mas, ainda assim, um engenheiro recém-formado tem que ser contratado como Engenheiro, com direitos e deveres trabalhistas. Da mesma forma, um médico recém-formado também não tem ainda competência para fazer cirurgias sozinho - mas já é um Médico, com direitos e deveres trabalhistas. Um jornalista recém-formado não pode chefiar uma editoria, mas, para atuar como jornalista, também tem que ser contratado como jornalista profissional que é. Por que, então, o jovem cientista recém-graduado precisa passar pela humilhação de ser considerado ainda estudante, de não ter seu trabalho reconhecido como trabalho, de ter que ouvir da família e amigos "quando é que você vai cconseguir um emprego e começar a trabalhar de verdade, hein?"? Esses jovens cientistas (que eu chamo assim porque eles produzem, de fato, ciência), recém-saídos das faculdades, em geral trabalham jornadas de pelo menos 40 horas por semana em laboratórios e centros de pesquisa. É comum levarem trabalho para casa. É comum trabalharem aos fins-de-semana, pois os animais de laboratório, culturas de bactérias e outros experimentos não respeitam sábados, domingos nem feriados. Mas, como o seu trabalho não é chamado de trabalho - porque as universidades públicas, onde a maior parte da boa ciência é feita no país, não podem contratar trabalhadores sem ser por concurso público, a solução ofertada a esses jovens é a tábua de salvação da pós-graduação. Que também é a tabua de salvação para um chefe de laboratório como eu: a única maneira de ter esses cientistas em minha equipe é tê-los como alunos de pós-graduação. Eu e meus colegas não podemos simplesmente contratar profissionais com o perfil necessário à execução de nossos projetos de pesquisa. O resultado é um engessamento e um atraso enorme ao andamento da ciência no nosso país. Deixem eu descrever a trajetória típica de um jovem cientista. Durante a graduação (em biologia, biomedicina, física, química ou tantas outras áreas), ele já fazia ciência, aí sim, como aprendiz, estagiário, durante a iniciação científica, ganhando uma bolsa menor que um salário mínimo. Quando ele se forma, para trabalhar fazendo ciência como antes, ele TEM QUE se entrar para a pós-graduação. Isso significa se sujeitar a uma bolsa de mestrado de 1.500 reais mensais, fixos, pelos próximos dois anos, e sem qualquer direito trabalhista. Isso se ele tiver sorte: onde eu trabalho, temos excelentes jovens cientistas, "alunos de mestrado", trabalhando SEM BOLSA, sem qualquer forma de remuneração. Para receber a bolsa, aliás, é preciso passar por mais uma humilhação: assinar uma declaração atestando que você não tem qualquer outra fonte de renda. Ou seja: um atestado de pobreza. Enquanto isso, seus colegas recém-formados em administração, economia, engenharia, advocacia já têm empregos de verdade, ganhando salários de verdade. Ao terminar o mestrado, esse jovem cientista (que provavelmente já engrossou, com seu trabalho, o currículo do seu orientador e o número de publicações que fazem subir a produtividade científica da sua universidade), esse jovem cientista, para continuar atuando como cientista, TEM QUE continuar sendo apenas "aluno" de pós-graduação e fazer doutorado. Isso porque, sem doutorado, ele ainda não pode se candidatar a uma vaga em concursos para professor universitário, a única possibilidade real de emprego se ele quiser atuar também como cientista. (Sim, existe a possibilidade de concurso para "técnico"; mas o técnico, em nosso país, não é um cientista, e sim alguém com habilitação específica apenas para dar apoio técnico, justamente, aos cientistas - que estão nos centros de pesquisa como estudantes). Então. Esse jovem cientista tem que entrar para o doutorado, para continuar fazendo ciência e gerando conhecimento para o país, e, SE conseguir bolsa, mais uma vez terá que assinar um papel aceitando ganhar um valor mensal fixo e não negociável de 2.200 reais pelos próximos QUATRO anos, também sem qualquer direito trabalhista, sem férias regulamentadas, com horário de trabalho à mercê das vontades do seu orientador, sem auxílio transporte, sem seguro de saúde ou auxílio insalubridade muito menos fgts ou contar tempo para a aposentadoria, sem pagar impostos, sem contribuir para o INSS. Esse jovem completa então o doutorado, já com uns 27-28 anos de idade - e, para todos os fins práticos, ele nunca trabalhou. A aberração continua no chamado pós-doutorado, um limbo criado para manter ativos os jovens já mais do que qualificados para serem pesquisadores independentes, mas que não têm como ser absorvidos em concursos públicos para PROFESSOR universitário. O chamado "pós-doutorando", se tiver sorte, ganha uma BOLSA de estudos no valor de 3 mil e pouco a 5 mil reais, dependendo de ele ser bolsista da Capes, CNPq, ou, com mais sorte, da Fapesp. Este jovem a essa altura já não é mais tão jovem assim: já chegou aos 30 anos, ou passou dos 30 anos - e, para todos os fins práticos, NUNCA TRABALHOU. Se continuar tendo sorte, esse pós-doutorando conseguirá passar em um concurso público para atuar como... PROFESSOR universitário. Notem: toda a sua vida ele atuou como CIENTISTA e se preparou para ser um cientista independente. Mas, para ter emprego real pela primeira vez, ele terá que ser... Professor, o que ele até então nunca foi! A triste realidade é que um número cada vez maior de jovens cientistas abandonam essa carreira (inexistente) em busca de empregos de verdade fora da ciência, com salários de verdade e direitos trabalhistas, o que é para muitos a única maneira de conseguir sair da casa dos pais, formar uma família e ter vida independente. Ou seja: por não darmos condições de trabalho adequadas, estamos PERDENDO nossos cientistas, e ainda deixando de estimular as novas gerações a buscar a ciência. Outros países já reconheceram o problema e agiram de acordo. Infelizmente, também nisso nós brasileiros não saberemos DAR o exemplo; mas ainda podemos aspirar a SEGUIR o bom exemplo de países como a Alemanha, a Holanda, Suécia, Estados Unidos e França. Nesses países, o jovem cientista recém-graduado que continua sua formação na pós-graduação é, antes de mais nada, EMPREGADO CONTRATADO pela instituição onde atua, com todos os direitos e deveres trabalhistas como qualquer outro trabalhador. Pagam impostos, contribuem para a aposentadoria, têm jornada de trabalho regulamentada, direito a férias e licença maternidade assegurados por lei - e não à mercê das vontades de um orientador todo-poderoso, que pode ou não ser um patrão justo e correto. Aqui eu quero deixar claro o que eu NÃO estou dizendo ou pedindo. Não estou dizendo que nossos jovens cientistas devam passar a ser funcionários públicos assim que se formam. E não estou argumentando pela "profissionalização da pós-graduação", ao contrário do que alguns alegam. O que estou fazendo é ALERTAR os senhores para a necessidade de reconhecer que o trabalho de nossos jovens cientistas é trabalho de fato, e REGULAMENTAR esse trabalho como tal. Na prática, isso significa que, para continuar atuando como cientista, independentemente de cursar ou não a pós-graduação, o jovem cientista terá que ter um CONTRATO de TRABALHO, com todos seus direitos e deveres trabalhistas regulamentados. Exatamente como um jovem engenheiro, administrador, jornalista, ou empregada doméstica. É claro que será necessário um período de transição para implementar mudanças para que nossos cientistas tenham direitos trabalhistas, já que eles não podem nem devem ser contratados sem concurso pelas universidades onde atuam. Mas os mecanismos já existem para que essas mudanças sejam facilmente implementadas, e aqui eu faço, sim, uma sugestão pessoal: é possível, por exemplo, fazer contratações por fundações e institutos já existentes associados às universidades, que poderiam receber dos governos federal e estaduais, que financiam quase que inteiramente a pesquisa científica no brasil, os valores que hoje são pagos como bolsas, sem contrato de trabalho, vínculo empregatício ou direitos trabalhistas. Com a obrigatoriedade de contratação virá naturalmente a possibilidade de oferecer salários com valores competitivos, e não valores de bolsas engessados pelo governo. Surgirá também a agilidade e flexibilidade de contratação, hoje inexistentes, mas tão essenciais para o bom andamento da ciência. De novo: não represento ninguém, mas não preciso representar ninguém para dizer o que vim lhes dizer. Tenho aqui comigo 17.125 assinaturas eletrônicas de jovens cientistas ou aspirantes a cientistas brasileiros que pedem que sua profissão seja regulamentada para que eles possam ter seus direitos e deveres trabalhistas garantidos como QUALQUER outro trabalhador brasileiro tem. Em uma pesquisa que fiz dois meses atrás com mais de oito mil jovens cientistas brasileiros, mais de 90% se disseram favoráveis à regulamentação. Como sempre, algumas pessoas são contrárias, por razões diversas - e um dos argumentos que mais ouço é que "isso precisa ser mais discutido". Mas, como lhes expus, algumas coisas são FATOS, que não dependem de discussão nem de apoio de ninguém. Fato é que nossos jovens cientistas trabalham duro e produzem a maior parte do conhecimento científico do país - mas não têm o seu trabalho reconhecido como trabalho. É fundamental para a soberania de uma nação que ela valorize a produção de conhecimento científico, e isso começa por valorizar seus cientistas. Resolver fazer ciência no Brasil, hoje, é infelizmente uma PÉSSIMA decisão profissional, com pouquíssimas perspectivas. Imaginem quantos jovens nós poderemos atrair para a ciência quando ela se tornar uma alternativa profissional de fato viável e, mais ainda, de fato atraente e valorizada. Porque não é mais admissível que em pleno século XIX a ciência ainda seja feita no modelo do século 18, onde só faz ciência quem tem família rica o suficiente, com condições de se sustentar financeiramente ou viver na casa dos pais sem precisar depender do seu trabalho. Os países desenvolvidos já aprenderam que é preciso reconhecer e valorizar o trabalho de seus cientistas, e isso começa por chamar de trabalho aquilo que É trabalho. Contamos com os senhores para fazer do nosso Brasil um país que se ORGULHA de seus cientistas e que lhes dá e  reconhece o devido valor do seu trabalho.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Como ser neurocientista - Suzana Herculano-Houzel

Como ser neurocientista? Que curso fazer para ser neurocientista? Recebi esta pergunta de várias pessoas recentemente, então segue minha resposta e sugestões aqui. Primeiro: neurociência é uma especialidade de pós-graduação. Sim, sim, a UFABC já tem uma graduação em neurociência. Mas graduação, por melhor que seja, não torna ninguém neurocientista (qual é o recém-graduado que vai conseguir emprego como neurocientista???), e sobretudo não é requisito para ser neurocientista. Neurocientistas podem ser formados em biologia, psicologia, medicina, biomedicina, ou qualquer outra carreira que dê uma formação suficiente para se ingressar em uma pós-graduação em neurociência. Qual formação um aspirante a neurocientista deve escolher? Na minha opinião, é relativamente simples. Quem se imagina fazendo pesquisa clínica com pacientes TEM QUE fazer medicina. Quem se interessar apenas por comportamento e relações entre pessoas, sem se preocupar com o que tem dentro do cérebro, pode se contentar com psicologia (a psicologia no Brasil infelizmente tem um ranço terrível de psicanálise e um tradicional desdém patético pelo cérebro. Parece que isso começou a mudar para melhor, mas se você está interessado no cérebro, sugiro primeiro se informar sobre o currículo da sua futura faculdade de psicologia; há boas chances de você se formar sem aprender grandes coisas sobre o sistema nervoso!). Quem tiver interesse pela biologia do cérebro e quiser uma formação sólida em biologia celular e molecular pode cursar Biomedicina. No entanto, minha preferência continua sendo pela formação em Biologia, mesmo, por ser a mais completa, abraçando desde a ecologia até a genética molecular, e incluindo evolução, o que os outros cursos em geral não fazem (sim, eu sou bióloga). Além disso, é preciso pensar realisticamente nas alternativas de emprego que a graduação oferece. Médicos e psicólogos recém-formados têm um bom mercado de trabalho à sua frente; biólogos até que têm alguma alternativa; biomédicos... acho que podem trabalhar com análises clínicas, mas em geral resta a eles e aos biólogos somente a pós-graduação, mesmo, como alternativa de "trabalho" - enquanto o trabalho como cientista não puder ser chamado de trabalho com todas as letras. Portanto, recomendo pensar também em quanto você precisa/deseja/acha sensato ter uma alternativa imediatamente viável de emprego assim que se formar. Mas não há receita de bolo. Recomendo informar-se sobre as graduações possíveis e ver a grade de disciplinas que serão obrigatórias ou eletivas. Aos aspirantes, lembrem que é sempre possível especializar-se DEPOIS, mas ganhar a base ampla, sólida mais tarde fica mais difícil; por isso não sou fã da tal graduação em neurociência. E antes que a polícia de plantão venha me chatear: este é o MEU blog, e estas são as MINHAS opiniões. Têm opiniões contrárias? Digam-nas à vontade, e podem inclusive usar os comentários deste post! Apenas peço que se esforcem para respeitar minhas opiniões, da mesma maneira como vocês gostariam que as suas fossem respeitadas...

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Uma neurocientista no trapézio - Suzana Herculano-Houzel


Ver o mundo de cabeça para baixo enquanto eu me lançava em pleno ar não estava nos meus planos para esta visita a Sydney, mas foi só ver o anúncio das aulas de trapézio ao ar livre no Centennial Park, aqui perto, e meus planos mudaram. Seria uma ótima atividade para as crianças, enquanto eu estava no trabalho - e também uma ótima oportunidade para a Neurocientista de Plantão mais tarde, no feriado entre as festas de fim de ano!
O parque é enorme e lindo, os instrutores simpáticos e saradérrimos (aliás, como 99% dos jovens neste país, muito impressionante), o material de segurança de primeira linha. Ver os alunos da aula anterior voando de um trapézio para o outro com tudo tão arrumado e bacana tornava a coisa toda convidativa, então assim que as crianças pediram outra aula depois do Natal, meu cérebro resolveu ir brincar também, claro, ao invés de ficar só olhando do chão.
Primeira lição: aprender a jogar as pernas para o alto e se pendurar pelos joelhos no trapézio parado, pertinho do chão. Eu não tenho lá muita força nos braços, mas levantar os joelhos numa espécie de abdominal de pé não é um problema, graças a três anos de pilates - então até aí tudo bem. Ficar de cabeça para baixo nunca foi algo que eu gostasse, mas a novidade de se prender pelos joelhos e deixar os braços caírem fez qualquer desconforto passar despercebido. Subir os braços de volta e agarrar a barra parada? Tudo bem, também.
Mas logo depois da primeira tentativa no trapézio parado... "vamos lá, pessoal, agora fazer isso tudo direto no trapézio em movimento!". Espera lá, como assim??????? Não é pra dar só um pulinho primeiro, se segurando no trapézio de verdade pra se acostumar com a ideia da altura, apreciar a vista e se soltar para cair na rede, e só depois, quem sabe lá pela terceira tentativa, tentar fazer o tal do knee hang no trapézio em movimento?
Não: é na marra, mesmo, logo de cara lá no alto, com pulinho e movimento e tudo, pra valer. Instruções do professor para o córtex motor, núcleos da base e cerebelo dos aprendizes (tomem nota direitinho, rapazes!): "é tudo uma questão de tempo. Façam cada movimento somente na hora certa, quando eu disser, e vai dar tudo certo". Certo. Por via das dúvidas, deixei todas as crianças, algumas já mais experientes, passarem na minha frente - "para eu ir aprendendo por observação" era a minha desculpa oficial.
Primeiro problema: subir a escada. Na metade dos degraus alguma parte do meu cérebro deve ter lembrado das palavras "ideia de jerico", porque o coração resolveu bater a toda - um pequeno lembrete ao resto do corpo para notar que, ahn, "central, estamos prestes a subir 20 metros para pular lá do alto fazendo travessuras no caminho, é isso mesmo?", caso eu ainda não tivesse notado. "Registrado, obrigada; prosseguir assim mesmo". Certo. De qualquer forma, a injeção de adrenalina que acelera desagradavelmente o coração ajuda a deixar os músculos mais fortes. A Neurocientista de Plantão toma nota e segue adiante os últimos degraus.
Segundo problema: estender os dois braços para agarrar o trapézio, presa somente pela mão do instrutor segurando meu cinto, e então... pular. Consegui segurar o trapézio com as duas mãos, mas comecei a rir. "Como assim, "agora pula"? Você está me segurando, eu não vou conseguir pular! Você não vai só me soltar?" Mas algumas explicações adiante eu entendi: é para dar um pulinho "uns 10 cm à frente". E então...

Vento, vento, pés no ar, "olha, até que eu consigo me segurar!", vento, corpo pendulando para cima, algo vagamente semelhante a LEGS UP! vindo lá do chão, joelhos dobrando para cima, "olha, não precisei fazer tanta força!", corpo pendulando para trás, "olha, meus pés encostaram na barra, que lindo, deixa eu passá-los por cima", vento, vento, algo vagamente parecido com HANDS OFF! gritado lá do chão, corpo pendulando para a frente de novo, mãos soltas e braços estendidos para baixo, vento, vento, "olha o céu lá no alto!", vento, vento, GRAB THE BAR!, corpo pendulando para trás, "olha, eu consigo pegar a barra, que incrível!", vento, vento, rede de segurança lá embaixo, LET GO!... rede. Dopamina no máximo, estriado ventral a toda, córtex órbito-frontal registrando o ocorrido: uaaaaaaaaau, que delíííícia!!! É assim, então, que a gente se mete a fazer o que nunca pensou que conseguisse, sobrevive - e quer mais...
Meu córtex deve ter registrado que eu voltei viva e extasiada ao chão e mandado desligar o sistema de pânico, porque ao subir a escada pela segunda vez o programa de checagem de é-isso-mesmo? registrou a nova tentativa iminente de voltar ao chão por vias pouco usuais, mas sem mandar a taquicardia. Na terceira, ainda rolava um "você realmente vai agarrar essa barra e se jogar?" de checagem segundos antes - mas só isso.
E então... nível 2: o hand catch, ou seja, ser apanhada pelos braços pelo outro trapezista! Em princípio, nada de novo: é só uma questão de fazer os movimentos na hora certa e logo na primeira tentativa, para não perder o timing dos trapézios. O resultado você vê no vídeo abaixo. As partes mais sensacionais, contudo, não aparecem no vídeo, pois são exclusivas da minha memória pessoal: a visão, de cabeça para baixo, da cabeça do outro trapezista surgindo do céu e se aproximando da minha, seguida da sensação de pressão reconfortantemente forte ao redor dos meus antebraços, dos meus joelhos se abrindo como por mágica para largar o trapézio, e do vento no rosto durante o voo nas mãos do meu catcher, até ser largada na rede. Yeeeeeeeeeyyy!!!
Até dei uma cambalhota para trás ao pousar na rede. Todos comemoram comigo, as crianças riem e reafirmam para seus próprios cerebrinhos como é bacana a sensação de voar, como um pouquinho de ousadia compensa, como correr alguns riscos calculados pode ser bom (de preferência com pai e mãe dando força lá do chão, dizendo "vai sim, você consegue!", ou quem sabe até fazendo junto). O cérebro gosta de se descobrir forte e capaz, e o sucesso do outro nos lembra das nossas próprias possibilidades.
E, depois, ficam as boas memórias, que constróem a nossa história pessoal e dão a sensação de uma vida bem vivida. Voar no trapézio já entrou, com certeza, para a lista das minhas memórias favoritas...

http://www.suzanaherculanohouzel.com/

Você quer mesmo ser cientista? Parte 2: uma proposta prática - Suzana Herculano-Houzel



Escrevi anteriormente aqui sobre o problema da "carreira" de cientista no Brasil, quase inexistente porque postos de "pesquisador" são raros (aliás, pequena curiosidade: tentem preencher um formulário online com a profissão "cientista". Em geral ela não existe!). O resumo da situação, em minha opinião, é que o trabalho de um pesquisador não é considerado trabalho enquanto ele não for contratado como... professor universitário, em geral, o que dificilmente acontece antes de uns 10 anos de formado.
Pensei um bocado sobre o assunto, e eis aqui minha proposta para uma reforma prática, imediatamente implementável se o governo assim quiser - e, mais importante, SEM tocar na estrutura dos empregos públicos já existentes (fazer isso seria pisar em calos demais, o que poderia inviabilizar a implementação da nova estrutura, e de qualquer forma não é essa minha bandeira aqui).
A constatação de origem é a seguinte: é o trabalho de estagiários de iniciação científica, mestrandos, doutorandos e pós-docs que de fato move a ciência. Quem acha que não é, por favor dê uma olhada no currículo de nossos cientistas mais produtivos em termos de publicações - Wanderley de Souza e Iván Izquierdo, por exemplo, só para citar os dois que primeiro me vêm à cabeça -, e veja quantos de seus artigos recentes (sem ser artigos de revisão da literatura) são publicados apenas por eles, sem vários "bolsistas" como primeiros autores ou co-autores. Pois é. Na prática, no Brasil e no mundo, quem faz a ciência, quem está na bancada gerando dados, é o "bolsista" que está supostamente "estudando", e não trabalhando.
Mas trabalho é o que isso é, e minha bandeira é que ele deve ser reconhecido como tal. O empecilho para isso é que as instituições públicas, onde se faz a melhor ciência no Brasil, só contratam por concursos, e com aquela faca de dois gumes que é o emprego garantido (mais sobre isso adiante). Fundações, contudo, têm autonomia para contratar e demitir; podem receber fundos tanto públicos quanto privados para pagar seus funcionários; e estão livres da necessidade de lucro que atrapalha a pesquisa básica.
Eis a primeira parte da minha proposta, então: que as instituições públicas onde se faz ciência criem Fundações, com gestão LOCAL, ágil, para contratar seus pesquisadores - e que esses pesquisadores, contratados e assim reconhecidos como trabalhadores que de fato são, sejam os hoje "bolsistas" de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Assim o cargo de "cientista" passa a existir de fato, em seus vários níveis de progressão na carreira, reconhecendo e recompensando o mérito e a produtividade de cada um: estagiário (atual bolsista de iniciação científica), assistente de pesquisa (atual recém-formado), pesquisador assistente, pesquisador júnior, pesquisador associado, pesquisador pleno, pesquisador sênior, diretor de pesquisa (chefe de laboratório).
De onde viria o dinheiro? De onde já vem: MCT, CNPq, FAPs estaduais - e, agora que são instituições "privadas", quem sabe até de fontes privadas, como em tantos outros países. Para deixar bem claro: proponho ACABAR COM TODAS AS BOLSAS NO PAÍS, e usar esses fundos para contratar os jovens como trabalhadores que são, com todos seus direitos e deveres trabalhistas. Quantos pesquisadores cada laboratório poderia contratar dependeria de produtividade e captação de recursos para seus projetos, com possibilidade de avaliação e reavaliação constante.
Contratados como trabalhadores, valeria assim a meritocracia e a agilidade que são a norma em qualquer empresa: quem faz um bom trabalho permanece; quem não está de fato produzindo corre o risco de ser demitido. Claro, com comissões de avaliação para garantir que ninguém seja demitido por mera picuinha ou por não fazer parte das panelas da vez. Proponho ainda que os cargos dos pesquisadores sênior e diretores de pesquisa, responsáveis pela continuidade dos projetos em andamento, tenham duração assegurada de cinco anos, renováveis indefinidamente, durante os quais o pesquisador, como o professor universitário, não precisará se preocupar com seu emprego.
O que fazer com a pós-graduação? Proponho que ela seja valorizada como algo realmente reservado àqueles jovens pesquisadores que demonstrarem capacidade de inovação e liderança, ao invés de ser usada como a boia de salvação atualmente necessária para quem quer seguir carreira na ciência, na falta de empregos de verdade como pesquisador. Cursos de atualização e formação continuada seriam oferecidos continuamente para pesquisadores contratados de TODOS os níveis, sem custo (mas também sem "bolsa" adicional), pois são fundamentais para todos (e não, na minha opinião, um "investimento opcional"). Mas, no esquema de cargos proposto acima, o pesquisador que demonstrar essas capacidades de pensamento original e independente ganharia acesso ao doutorado (chega de mestrado!), como qualificação adicional para um dia vir a ser líder de seu próprio grupo, no cargo de diretor de pesquisa (chefe de laboratório, na prática). Sendo um processo rigoroso de qualificação (também sem "bolsa" adicional!), onde originalidade e relevância são exigidos de fato, o doutorado prepararia o pesquisador para passar ao cargo de pesquisador pleno, sênior, e eventualmente diretor de pesquisa.
Como implantar esse esquema na estrutura atual de professores universitários? Proponho que seja oferecida a alternativa de acúmulo de cargo de professor universitário (sem dedicação exclusiva, claro) e diretor de pesquisa (para que já é chefe de laboratório) ou pesquisador pleno ou sênior (para quem já é professor com doutorado) para quem já é concursado (e deixo claro desde já que eu abraçaria a opção), mas claro que quem já é funcionário público não seria jamais obrigado a deixar seu cargo. O importante aqui é criar a possibilidade de contratação com perspectiva de carreira, e mudar como a ciência é feita daqui para a frente.
Notem que uma das consequências dessa proposta é que ser professor universitário pode passar a ser reservado a quem realmente SABE e QUER ensinar, ao invés de ser o "preço" a pagar para poder fazer pesquisa por aqueles que não curtem ensinar. Não é vergonha alguma não querer dar aula, assim como não é vergonha não querer fazer pesquisa; portanto, nada melhor do que as duas atividades serem dissociáveis.
A outra consequência desta proposta é a MOBILIDADE e AGILIDADE para contratação por Fundações locais associadas às Universidades (ou, melhor ainda, aos Institutos). Precisamos disso para atrair cientistas de outras cidades, estados, e países. Precisamos disso para ajudar a escolher outro caminho (eufemismo para "demitir", isso mesmo) aqueles que não se encontram na carreira de cientista ou professor, mas continuam nas universidades porque são, bem, funcionários públicos indemissíveis.
Minha irmã, economista, observa há anos, ao me ouvir descrever o funcionamento de laboratórios, universidades e instituições de pesquisa públicas, que o que falta à pesquisa é ser gerenciada como qualquer empresa. Quer saber? Acho que ela está com toda a razão. Um pouco de estabilidade, em geral não assegurada nas empresas, é necessária - mas ela não precisa ser eterna, e pode vir em pacotes de uns 5 anos de cada vez. E meritocracia é fundamental. Mas, sobretudo, ter seu trabalho reconhecido como "trabalho" é o que está faltando aos pesquisadores.

Você quer mesmo ser cientista? - Suzana Herculano-Houzel



Vamos fazer as devidas ressalvas primeiro, antes que a polícia de plantão venha me dizer que estou fazendo um desserviço à ciência brasileira. É claro que gostaria de ver mais jovens se tornarem cientistas, e quero contribuir para isso. Mas decidi que faz parte do meu trabalho de divulgação científica tornar público e notório como é se tornar cientista no Brasil. Meus objetivos aqui são promover a conscientização das pessoas sobre a realidade da carreira de um cientista e, quem sabe, gerar com isso um certo espanto e revolta; e contribuir para que a escolha dos jovens por uma carreira em pesquisa seja consciente, apesar de tudo o que vem a seguir. Mas, sobretudo, o que eu gostaria é de gerar indignação suficiente para fazer a carreira de cientista (1) passar a existir de fato, e (2) ser valorizada.
Feitas as ressalvas, vamos então à minha campanha de anti-propaganda sobre a ciência no Brasil!
Você que é jovem e está considerando se tornar pesquisador: você sabia que...
- durante a faculdade, seus estágios de iniciação científica serão remunerados em apenas 400 reais - isso mesmo, menos do que um salário mínimo? Este é o valor atual definido pelo CNPq. E isso é SE você conseguir bolsa de iniciação científica, porque a Faperj, por exemplo, atualmente limita a sua concessão a UMA bolsa por pesquisador, e o CNPq-PIBIC a duas bolsas. Em um laboratório de tamanho médio, isso já não será suficiente para garantir bolsas a todos os estagiários - o que significa que é vexaminosamente comum termos estagiários trabalhando de graça;
- quando terminar a faculdade, a não ser que consiga emprego na indústria ou em empresas privadas, para fazer pesquisa você precisará concorrer a bolsas de R$ 1.350 para fazer mestrado? Enquanto isso, seus colegas formados em administração, engenharia, advocacia já estarão entrando para o mercado de trabalho, ganhando salários iniciais (com todos os direitos trabalhistas) de 3 a 7 mil reais reais ou mais. Ah, eu mencionei que, embora se espere que você trabalhe 40 horas por semana em dedicação exclusiva durante o mestrado, você não terá qualquer direito trabalhista? Isto porque o seu trabalho ainda não é considerado, ahn, trabalho...
- ...é mais fácil conseguir bolsa do Ciência Sem Fronteiras para fazer GRADUAÇÃO no estrangeiro do que conseguir uma bolsa de pós-graduação no país? É isso mesmo: exportamos nossos alunos de graduação, mas não temos bolsas suficientes para mantê-los na pós-graduação no país.
- quando você terminar o mestrado, a não ser que consiga emprego como pesquisador em empresas privadas (que são pouquíssimos), você terá necessariamente que fazer um doutorado? A razão é que o cargo de "pesquisador" em nosso país é quase inexistente; somente institutos de pesquisa como o INCA ou a Fiocruz oferecem emprego (através de concurso público) para pesquisadores (e muitas vezes exigem doutorado). Todas as demais possibilidades de emprego para um pesquisador são como "professor universitário" - e este cargo, também somente acessível por concurso público, é hoje essencialmente restrito a quem já tem título de Doutor.
- então, com 3 anos de formado, você terá que concorrer a bolsas de R$ 2.000 mensais para fazer doutorado? Isso, vou repetir: seus colegas já estarão no mercado de trabalho, ganhando salários reais, tendo seu trabalho chamado de "trabalho", com direito a férias e 13o salário - e, com sorte, você terá assinado um papel aceitando receber DOIS mil reais por mês pelos próximos 4 anos. E fique muito contente de ter uma bolsa: como dizem nossos detratores, você deveria ficar "muito feliz de estar sendo pago para estudar". Exceto que você não estará "estudando"; você estará trabalhando, gerando conhecimento, e contribuindo para as universidades publicarem os artigos científicos que lhes servem como base de avaliação no cenário mundial.
- que, durante todos esses anos de pós-graduação, para receber uma bolsa você NÃO poderá ter qualquer outra fonte de renda? Sim, você pode ter outro emprego e fazer pós-graduação sem receber bolsa - mas é pouco provável que consiga terminar a pós-graduação assim. Para receber uma bolsa, você será obrigado a assinar uma declaração humilhante de que não tem qualquer outra fonte de renda. Bom, mais ou menos; a Capes há um ano decidiu aceitar acúmulo de bolsa com "emprego de verdade" SE for na mesma área da sua pós-graduação. Adivinha qual é a chance de você ter esse "emprego de verdade"? Pois é.
- agora, com o diploma de Doutor em mãos, você terá ganhado o direito de competir por vagas para... Professor. Isso mesmo: não de "pesquisador", mas de "professor". Isso porque as universidades públicas, onde a boa ciência é feita no país, somente contratam "professores". Ou seja: com MUITA sorte, você será contratado, no mínimo SETE anos após a graduação, para fazer algo que você NUNCA fez: dar aulas. Seu salário inicial líquido (seu primeiro salário de verdade!) será algo em torno de 5 mil reais - mas não se engane, seu "vencimento básico", aquele que o governo usará para talvez um dia pagar sua aposentadoria, será de não muito mais do que 2 mil reais...
- é mais provável, no entanto, que você NÃO consiga emprego imediatamente, uma vez doutor, e tenha que ingressar no limbo dos pós-doutorandos? Um "pós-doutor" é exatamente isso que o nome indica: alguém que já é doutor, mas ainda não tem emprego. É um limbo criado pelo sistema para manter interessados os cada vez mais numerosos recém-doutores que não encontram emprego nem como pesquisadores, nem como professores. Pela mesma tabela do CNPq, um recém-doutor recebe uma bolsa de R$ 3.700 mensais, livres de impostos. Ou seja: lembra daquele salário inicial dos seus colegas recém-formados? Um aspirante a cientista finalmente conquista o direito a um valor semelhante... SETE anos após a graduação. Ah, claro: ainda sem qualquer direito trabalhista, pois você "não trabalha". Permita-me fazer as contas para você: a esta altura, você esta perto de completar 30 anos de idade, e oficialmente... "nunca trabalhou";
- A esta altura, você já será para todos os fins práticos um Cientista - mas ainda não terá direito de pedir auxílio às agências de fomento para fazer pesquisa? Para gerenciar um auxílio-pesquisa é preciso ter vínculo empregatício com uma instituição de pesquisa - e isso, tirando os pouquíssimos cargos de Pesquisador de fato na Fiocruz, INCA, IMPA etc, você só consegue se virar... professor universitário;
- SE você conseguir ser aprovado em concurso para professor universitário E for fazer pesquisa de fato, você não inicialmente ganhará NEM UM CENTAVO A MAIS por isso? Você terá a mesma carga horária de aulas a cumprir, aulas por preparar e atualizar todos os semestres, mas o trabalho de pesquisa, com o qual você tanto sonhou, é... por sua conta. Se você resolver não fazer pesquisa e apenas der aulas, como você foi oficialmente contratado para fazer, está tudo bem. Talvez seus colegas torçam o nariz para você, porque esqueceram que também o emprego deles é apenas como professores, e não pesquisadores, mas você estará rigorosamente correto se só fizer seu trabalho de professor.
- Apesar disso tudo, sua progressão na carreira universitária será dependente do seu trabalho de pesquisa? Você leu corretamente: você foi contratado como PROFESSOR, mas sua avaliação funcional será feita de acordo com as suas atividades como PESQUISADOR...
- SE você tiver produtividade suficiente, em alguns anos você poderá concorrer a uma bolsa de Pesquisador do CNPq, que complementa seu salário em R$ 1.000 por mês. E isso é todo o incentivo financeiro que você receberá para fazer pesquisa.
Já desistiu? Pelo bem da ciência brasileira, espero que... sim. Esta é minha campanha de anti-propaganda em prol da melhoria da ciência no meu querido país: torço para que você tenha ficado indignado a ponto de considerar fazer outra coisa da sua vida. Precisamos de uma crise, e um desinteresse súbito da parte de nossos jovens seria muito, muito, muito eloquente.
Mas sei que a gente escolhe ser cientista assim mesmo, apesar de tudo isso. Quando eu entrei para a Biologia, em 1989, a situação era ainda pior. A ciência no país persiste graças a esses jovens idealistas, que querem contribuir para o progresso da nação apesar de serem mal-tratados e desvalorizados, e que topam embarcar em uma "carreira" que não lhes dará condições financeiras para terem uma vida independente antes dos TRINTA anos de idade - e olhe lá...

Maconha faz mal, sim - e voto pela sua legalização, não descriminalização - Suzana Herculano-Houzel


Quero começar deixando claro que continuo achando péssima ideia, burrice mesmo, usar drogas. Expor o cérebro a substâncias que têm grandes chances de perturbar seu equilíbrio tão delicado é brincar de roleta russa, na qual o melhor resultado é algumas horas de prazer simples, mas o pior é o vício, quando os prazeres da vida vão desaparecendo até serem suplantados pela única coisa que ainda funciona: mais droga, a qualquer custo. Não tenho nenhuma pena, nenhuminha mesmo, de quem escolhe se drogar e sofre as consequências, já que o vício é consequência dessa escolha de brincar de roleta russa com o próprio cérebro. Não se vicia quem jamais usar drogas.
Admiro, isso sim, a força que algumas dessas pessoas têm de reconhecer que tomaram uma péssima decisão ao longo do caminho e buscar ajuda para sair do vício. Mas pena dos que se drogam e, no processo, ainda criam problemas para os outros, seja por suas próprias ações violentas ou por financiar o tráfico que distribui violência? Não tenho.
Por isso sou CONTRA a descriminalização da maconha. Apenas descriminalizar é passar a mão na cabeça do consumidor que viabiliza o mercado do narcotráfico (aliás, as únicas pessoas que conheço que acham que usar drogas não é financiar o tráfico são os próprios drogados - curioso quão completa é a transformação que a droga provoca no cérebro, que precisa justificar seus meios).
Legalizar, por outro lado, interrompe o mercado negro da droga, ao mesmo tempo que responsabiliza os usuários pelas suas próprias escolhas e suas consequências. Como mostram os exemplos de Portugal e Holanda, legalizar não é incentivar usuários a se drogar; é, sim, dizer "use por sua própria conta e risco" - de preferência prefaciado por "péssima ideia por isto, isto, e mais isto - mas, enfim, o cérebro é seu".
O problema, a meu ver, é que muito da campanha pela legalização da maconha tem sido pautada sobre a tese de que "maconha não faz mal". Faz, sim. Muitos estudos já mostraram isso, e dois bem recentes, que comento em minha coluna de hoje na Folha de São Paulo, mostram que o uso frequente da maconha causa, sim, atrofia de partes do cérebro (sobretudo o hipocampo, necessário para a formação de memórias novas; Cousjin et al., NeuroImage 2011), e leva a perda de memória, raciocínio, habilidades verbais e matemáticas, e redução do QI quando começa ainda na adolescência (Meier et al., PNAS 2012).
É hora de parar de mentirinhas e fazer campanha pela razão certa: não porque maconha é "leve" (não é, maconha vicia, e bem rápido), muito menos porque "não faz mal" (faz, sim), e sim porque a proibição obviamente não funcionou para conter a expansão do tráfico. Eu mesma fui, por muito tempo, contrária à legalização, por acreditar que era papel do Estado proteger os cidadãos contra suas próprias más escolhas. Mas deixei disso: agora acho que cada indivíduo deve ser responsabilizado por suas próprias escolhas, boas ou ruins, e é papel do Estado proteger os cidadãos contra as más escolhas DOS OUTROS, com penas severas para quem causar danos a terceiros sob influência. Legalizar a maconha é um bom começo, que espero que logo seja estendido para todas as outras drogas formadoras de vício. Isso deve ser bem mais produtivo do que a tentativa de conter o tráfico, que tem se mostrado tão eficaz quanto enxugar gelo, aqui e em outros países.
Terrie Moffit, uma das autoras do estudo recém-publicado na PNAS que mostrou que o uso da maconha iniciado na adolescência causa prejuízos cognitivos duradouros, faz um apelo ao qual faço coro aqui. É preciso cortar a onda atual de desinformação segundo a qual "maconha não faz mal", que está se espalhando sobretudo entre os mais jovens, e, em seu lugar, incentivar os jovens a dizer "quem sabe mais tarde", quando seu cérebro adolescente já estiver fora do perigo maior. Meu próprio pai lançou uma campanha semelhante lá em casa, quando eu e minha irmã éramos ainda pré-adolescentes: volta e meia ele soltava um "acho que vou virar maconheiro quando fizer 50 anos", sempre com um risinho mal disfarçado no rosto - o que era sempre seguido por protestos veementes de nós duas. Quando completou 50 anos, mudou sua declaração para "quando eu fizer 60" - e hoje já passou dos 70 com seu cérebro ainda intocado, meu sábio pai.
Mas não vou fazer o mesmo com meus filhos. Minha campanha com eles será diferente. Drogas? Dão prazer, sim, e MUITO, muito muito mais do que a gente consegue pelos próprios meios. O problema não é o prazer, e sim o vício. Talvez você não se vicie se usar uma vez só. Mas usar a primeira vez é o que leva à segunda, e esta à terceira, sobretudo quando ainda se é adolescente. A maneira comprovadamente segura e garantida de não se viciar é não usar - e a melhor razão para não usar é porque você se informou e DECIDIU não usar, e não porque o governo proibiu.
E, se decidir usar... que apenas você sofra as consequências, sem espalhar violência ao seu redor. Não deixe seu prazer momentaneo estragar seus prazeres futuros, nem o prazer dos outros.

Um fator H peculiar - mas o CNPq continua me ignorando - Suzana Herculano-Houzel



O fator de impacto das revistas em que conseguimos publicar nossos artigos científicos é a medida mais comum da "qualidade" das nossas publicações. Aos poucos, contudo, ganha uso e popularidade um outro indicador: o fator H. Não sei de onde vem a letra do nome, mas o que ele mede é simples: o número de artigos de sua produção que já foram citados ao menos aquele número de vezes. Um fator H de 5 significa que você tem apenas 5 artigos que já foram citados pelo menos 5 vezes cada um por outros artigos; um fator H de 197 indica que 197 de seus artigos já receberam mais de 197 citações cada um em outros artigos.
Ou seja: um fator H elevado sinaliza um pesquisador que tem uma produção científica não só elevada como também muito influente. Da mesma maneira, é possível um pesquisador ter uma produção enorme, com muitos artigos, e até em boas revistas - mas insignificante em termos de influência em sua área.
Por isso foi uma gratíssima surpresa descobrir ontem que tenho um fator H peculiar. Isso foi graças a uma outra descoberta: que o Google Scholar lista, instantaneamente, o número de citações de artigos científicos buscados por autor, o que torna trivial calcular meu fator H: 14, no momento. Modesto - mas peculiar, e nada mau para quem começou uma nova linha de pesquisa em 2005. Dê uma olhada na lista abaixo dos meus 14 artigos já citados pelo menos 14 vezes, em ordem crescente de número de citações (e com ano de publicação):
15 vezes (2011)
18 vezes (2010)
21 vezes (2010)
24 vezes (2010)
23 vezes (2009)
31 vezes (2002)
36 vezes (2009)
52 vezes (2008)
78 vezes (2006)
79 vezes (2009)
90 vezes (2005)
92 vezes (2007)
143 vezes (2009)
171 vezes (1999)
O número de citações tende a crescer com o tempo, claro - mas mesmo artigos recentes já foram citados em torno de 20 vezes cada!!! Ou seja: se eu continuar publicando trabalhos com a mesma qualidade destes, meu fator H deve continuar crescendo com o número de publicações. Nada mau, nada mau.
E, ainda assim, nada de resposta do CNPq quanto ao meu pedido de reavaliação do auxílio Universal, que está fazendo falta ao laboratório. Acho que vou propor a criação de um novo prêmio. O Globo tem o Faz Diferença; eu vou propor o prêmio Faz Milagre Com Pouco... Tenho certeza que vamos ter muitos concorrentes qualificados na ciência brasileira!

Uma prova do céu: o neurocirurgião que acha que não precisa do seu córtex cerebral - Suzana Herculano-Houzel



O neurocirurgião norte-americano Eben Alexander III, acometido de uma meningite bacteriana, passou uma semana em coma, quase morreu... mas ficou para a contar a estória de suas experiências extracorporais durante o coma, no livro Uma Prova do Céu. O pequeno detalhe, que o colocou no Fantástico e na lista dos mais vendidos, é que ele, convencido de que seu córtex cerebral estava "inoperante" durante a semana de experiências em coma, concluiu que... o cérebro não é necessário para a consciência.
Eu li o livro todo (sou responsável pela revisão técnica da edição brasileira) e acho o relato dele muito interessante, importante, digno de livro e público - MAS a interpretação dele é toda dependente de uma falácia gigantesca, enorme, colossal: a de que o córtex dele "estava morto" - como é que ele diz, mesmo? Silenciado, inoperante. O problema é que ele não oferece NENHUMA evidência no livro de que o córtex cerebral dele esteve de fato inoperante durante o coma. Não há qualquer menção a um EEG, por exemplo, que seria trivial de fazer, ou qualquer outro teste para avaliar o funcionamento de seu córtex enquanto sua mente vagava pelo "céu". O neurocirurgião simplesmente presume que, como estava em coma infeccioso, seu córtex estava "inoperante" - e que por isso suas experiências mentais durante o coma seriam "prova de que o córtex não é necessário para a consciência".
Ao contrário da sua conclusão sem qualquer base, comprovação ou fundamentação lógica, a explicação mais fácil e simples para tudo o que ele descreve é que justamente o córtex cerebral dele esteve, sim, ainda funcional durante o coma, ainda que de maneira capenga e certamente prejudicada pela meningite - o que explicaria todas as experiências durante o coma.
Notem, não tenho qualquer ressalva a fazer a respeito das experiências que ele descreve. Acho muito importante sabermos que é possível haver experiências mentais durante um coma, sobretudo dado que hoje é conhecido que o coma não é uma coisa só, mas um estado temporário que pode ter origens e causas diversas, inclusive ainda com atividade cortical (há vários estudos a respeito - e não, chatos de plantão, não vou dar as referências aqui; entrem no PubMed e busquem-nas vocês mesmos). Não há nada no livro que comprove que o Dr. Alexander tenha ou não tido contato com "o além", mas esse não é o ponto importante aqui. Algumas pessoas gostarão da estória e se identificarão com ela, o que é ótimo.
O problema, que fere todas as iniciativas de divulgação e educação do público sobre a neurociência, é que o autor joga qualquer espírito científico para o alto ao escolher forçar a mão e usar sua autoridade de "neurocirurgião" para concluir, sem qualquer evidência que sim ou que não, que seu córtex cerebral estava "completamente inoperante", e portanto que o cérebro não é necessário para a consciência. Se esse cirurgião tivesse recebido um pingo de formação em ciência, ele teria exigido de si mesmo algum teste de suas funções corticais antes de sair espalhando aos quatro ventos que tem a "prova científica" de que (1) o céu existe e (2) a consciência não depende do córtex cerebral.
Para ficar claro: depende, sim. Ou anestésicos, que modificam a atividade do cérebro, não seriam anestésicos. Ou a falta de oxigênio não levaria ao desmaio. Ou lesões do cérebro não teriam consequências imediatas e graves para a atividade mental. Ou o neurocirurgião não teria sequer entrado em coma por conta de sua meningite...
Por fim: você aceitaria ter seu cérebro operado por um neurocirurgião que está agora convencido de que seu córtex pode ser danificado, ou mesmo totalmente lesionado, sem nenhuma consequência, porque ele "não é necessário para a consciência"? Eu certamente não!

PS. Se vocês olharem o expediente da edição brasileira da Sextante, verão meu nome como revisora técnica do livro. Por que aceitei fazer a revisão, se tenho essa crítica gigantesca ao livro? Aceitei porque acredito na liberdade de opinião e sei que muitas pessoas gostariam de ler a estória desse neurocirurgião-que-agora-acha-que-não-precisa-do-seu-córtex-para-ter-consciência, então quis contribuir para que a estória chegasse até os leitores sem problemas técnicos na tradução. Só isso.

O que eu não disse no Roda Viva - Suzana Herculano-Houzel



Dia 25 de março tive a honra de ser a entrevistada no Programa Roda Viva, da TV Cultura, com a oportunidade de falar sobre como é fazer pós-graduação e ciência no Brasil. Fiquei pensando depois no que eu não disse a respeito, mas gostaria de acrescentar, então segue aqui:
- que eu lamento o engessamento do nosso sistema que, por ser estatizado, não permite agilidade de contratações, tanto pela universidade quanto pelos laboratórios. Nos EUA, por exemplo (atenção, polícia de plantão: falo dos EUA simplesmente porque é o exemplo que eu conheço melhor, pessoalmente, e não porque acho que tenhamos que copiar tudo o que vem de lá, porque não temos. Tem várias coisas erradas por lá, também) - enfim, nos EUA até mesmo as universidades estaduais têm autonomia para buscar, selecionar e contratar quem eles quiserem, em todos os níveis, do assistente de laboratório ao chefão supremo do departamento. O mesmo tipo de autonomia faz falta também nos laboratórios daqui: eu gostaria, por exemplo, de poder contratar rapidamente cientistas que têm as habilidades específicas que faltam em minha equipe. Mas não posso; tenho que elaborar um projeto, pedir bolsa de pós-doutorado já com o nome do candidato, e passar meses esperando uma resposta (enquanto isso, esse candidato faz o quê???). Também gostaria de poder demitir com agilidade quem não faz o seu trabalho. Mas não posso fazer isso sem pensar nas consequências para o programa de pós-graduação, que é avaliado pelos seus bolsistas, e "pega mal" na avaliação pela Capes ter bolsistas que "abandonam" o curso no meio. Se fossem considerados trabalhadores, como de fato são, não haveria problema na demissão por justa causa. E, claro, deveríamos poder contratar PESQUISADORES para fazer PESQUISA, e não sermos obrigados a contratá-los (concursá-los, na verdade) como "professores", muito menos com um contrato surrealmente ad eternum, que NENHUMA empresa comete a insanidade de oferecer aos seus empregados...
- que nos falta, no Brasil, financiamento privado. Não temos a cultura do patrocínio da ciência por pessoas jurídicas, nem de fundações e organizações com prêmios e grants privados de apoio à ciência. Também não temos a possibilidade de receber doações diretas de pessoas físicas. As mídias sociais hoje viabilizam esse tipo de apoio, que eu quero começar a incentivar em breve. Me aguardem! :o)
- que implantei recentemente em meu laboratório um sistema "capitalista" de remuneração pelo trabalho feito, e que está sendo sucesso absoluto de produtividade e motivação! No momento estou pagando por grama de tecido processado. A produtividade mais do que duplicou, sem qualquer perda de qualidade. Mais tarde eu comento meu experimento!

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Suzana Herculano-Houzel - Biografia



Formou-se em Biologia Modalidade Genética pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992). Fez mestrado pela universidade americana Case Western Reserve (1995), doutorado na França pela Pierre et Marie Curie (1998) e pós-doutorado na Alemanha pelo Instituto Max Planck (1999), todos em neurociências.
Em 1999 voltou ao Brasil e passou a dedicar-se à divulgação científica, lançando também o site Cérebro Nosso de Cada Dia.
É autora de alguns livros, produziu inúmeros artigos científicos, além de textos e colunas para revistas e jornais como Folha de S. Paulo.
Exerce o cargo de professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro desde 2002, além de dirigir o Laboratório de Neuroanatomia Comparada.
Desde 2008 é apresentadora e roteirista do quadro Neurológica, do programa de TV Fantástico.
É membro do corpo editorial da Revista Neurociências e colaboradora de Jorge Zahar Editor.
Suzana atualmente é casada, tem dois filhos, gosta de ler, viajar e conviver com sua família.

Livros
O Cérebro Nosso de Cada Dia (Vieira & Lent, 2002)
Sexo, Drogas, Rock and Roll... & Chocolate (Vieira & Lent, 2003)
O Cérebro em Transformação (Objetiva, 2005)
Por que o Bocejo É Contagioso? (Jorge Zahar Editor, 2007)
Fique de Bem com seu Cérebro (Sextante, 2007)
Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor (Sextante, 2009)