quarta-feira, 3 de abril de 2013

Uma prova do céu: o neurocirurgião que acha que não precisa do seu córtex cerebral - Suzana Herculano-Houzel



O neurocirurgião norte-americano Eben Alexander III, acometido de uma meningite bacteriana, passou uma semana em coma, quase morreu... mas ficou para a contar a estória de suas experiências extracorporais durante o coma, no livro Uma Prova do Céu. O pequeno detalhe, que o colocou no Fantástico e na lista dos mais vendidos, é que ele, convencido de que seu córtex cerebral estava "inoperante" durante a semana de experiências em coma, concluiu que... o cérebro não é necessário para a consciência.
Eu li o livro todo (sou responsável pela revisão técnica da edição brasileira) e acho o relato dele muito interessante, importante, digno de livro e público - MAS a interpretação dele é toda dependente de uma falácia gigantesca, enorme, colossal: a de que o córtex dele "estava morto" - como é que ele diz, mesmo? Silenciado, inoperante. O problema é que ele não oferece NENHUMA evidência no livro de que o córtex cerebral dele esteve de fato inoperante durante o coma. Não há qualquer menção a um EEG, por exemplo, que seria trivial de fazer, ou qualquer outro teste para avaliar o funcionamento de seu córtex enquanto sua mente vagava pelo "céu". O neurocirurgião simplesmente presume que, como estava em coma infeccioso, seu córtex estava "inoperante" - e que por isso suas experiências mentais durante o coma seriam "prova de que o córtex não é necessário para a consciência".
Ao contrário da sua conclusão sem qualquer base, comprovação ou fundamentação lógica, a explicação mais fácil e simples para tudo o que ele descreve é que justamente o córtex cerebral dele esteve, sim, ainda funcional durante o coma, ainda que de maneira capenga e certamente prejudicada pela meningite - o que explicaria todas as experiências durante o coma.
Notem, não tenho qualquer ressalva a fazer a respeito das experiências que ele descreve. Acho muito importante sabermos que é possível haver experiências mentais durante um coma, sobretudo dado que hoje é conhecido que o coma não é uma coisa só, mas um estado temporário que pode ter origens e causas diversas, inclusive ainda com atividade cortical (há vários estudos a respeito - e não, chatos de plantão, não vou dar as referências aqui; entrem no PubMed e busquem-nas vocês mesmos). Não há nada no livro que comprove que o Dr. Alexander tenha ou não tido contato com "o além", mas esse não é o ponto importante aqui. Algumas pessoas gostarão da estória e se identificarão com ela, o que é ótimo.
O problema, que fere todas as iniciativas de divulgação e educação do público sobre a neurociência, é que o autor joga qualquer espírito científico para o alto ao escolher forçar a mão e usar sua autoridade de "neurocirurgião" para concluir, sem qualquer evidência que sim ou que não, que seu córtex cerebral estava "completamente inoperante", e portanto que o cérebro não é necessário para a consciência. Se esse cirurgião tivesse recebido um pingo de formação em ciência, ele teria exigido de si mesmo algum teste de suas funções corticais antes de sair espalhando aos quatro ventos que tem a "prova científica" de que (1) o céu existe e (2) a consciência não depende do córtex cerebral.
Para ficar claro: depende, sim. Ou anestésicos, que modificam a atividade do cérebro, não seriam anestésicos. Ou a falta de oxigênio não levaria ao desmaio. Ou lesões do cérebro não teriam consequências imediatas e graves para a atividade mental. Ou o neurocirurgião não teria sequer entrado em coma por conta de sua meningite...
Por fim: você aceitaria ter seu cérebro operado por um neurocirurgião que está agora convencido de que seu córtex pode ser danificado, ou mesmo totalmente lesionado, sem nenhuma consequência, porque ele "não é necessário para a consciência"? Eu certamente não!

PS. Se vocês olharem o expediente da edição brasileira da Sextante, verão meu nome como revisora técnica do livro. Por que aceitei fazer a revisão, se tenho essa crítica gigantesca ao livro? Aceitei porque acredito na liberdade de opinião e sei que muitas pessoas gostariam de ler a estória desse neurocirurgião-que-agora-acha-que-não-precisa-do-seu-córtex-para-ter-consciência, então quis contribuir para que a estória chegasse até os leitores sem problemas técnicos na tradução. Só isso.

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