O tema deste trabalho é a Felicidade:
Tema abordado diretamente por Freud, mas que, na atualidade, parece
ter desaparecido da literatura psicanalítica e das preocupações dos
pensadores em geral. A questão da Felicidade tem correspondido a noções
diferentes através dos tempos e reflete a cultura vigente em cada época.
O presente trabalho é iniciado com um rastreamento das várias visões
que a cultura nos tem legado sobre o
tema, da Grécia antiga até os nossos tempos. Na contemporaneidade, a
ideia de Felicidade é marcada por noções hedonistas que consideram que o
desconforto, o sofrimento, devem ser banidos em nome de uma Felicidade a
ser alcançada a qualquer preço. Sofremos porque não conseguimos ser
felizes de acordo com o que se propaga ser a verdadeira felicidade. O
que antes era um projeto do Id, hoje se torna um projeto do Superego.
Como decorrência, surgem esforços para engajar a psicanálise na luta
pela ausência do sofrimento. Uma proposta hedonista de trabalho se
oferece como desafio para o método psicanalítico. Corre-se, então, o
risco de desnaturar a psicanálise e transformá-la num objeto de consumo
para alcançar uma Felicidade utópica baseada na analgesia.
Palavras-chave: Felicidade; Psicanálise e cultura; Hedonismo; Contemporaneidade; Cura.
RESUMEN
El tema de este trabajo es la Felicidad. Se trata de un asunto abordado
directamente por Freud, pero que en la actualidad parece haber
desaparecido de la literatura psicoanalítica y de las preocupaciones de
los pensadores de manera general. La cuestión de la Felicidad ha
correspondido a nociones diferentes a través de los tiempos. Asimismo,
ha reflejado la cultura vigente en cada época. El presente trabajo se
inicia con un rastreo de las varias visiones que la cultura nos ha
legado sobre el tema, desde la Grecia antigua hasta nuestros días.
Contemporáneamente, la idea de Felicidad está marcada por nociones
hedonistas, que consideran que la incomodidad y el sufrimiento deben
proscribirse para alcanzar una Felicidad a cualquier costo. Sufrimos
porque no logramos ser felices de acuerdo a lo que se propaga como
verdadera felicidad. Lo que antes era un proyecto del Id hoy en día se
ha tornado un proyecto del Superego. Como consecuencia, surgen esfuerzos
para comprometer al psicoanálisis en la lucha por la ausencia de
sufrimiento. Como reto para el método psicoanalítico, se ofrece una
propuesta hedonista de trabajo. Esto conlleva el riesgo de que el
psicoanálisis se desnaturalice y que se transforme en un objeto de
consumo para alcanzar una Felicidad utópica basada en la analgesia.
Palabras clave: Felicidad; Cultura y psicoanálisis; Hedonismo; Contemporaneidad; Cura.
ABSTRACT
The subject of this work is Happiness. This subject has already
approached by Freud. However, nowadays, it seems to have vanish from
psychoanalytical literature and from the concern of thinkers, in
general. Many different notions have been attributed to the question of
Happiness through the years and they reflect the culture of the times.
At the present time, the idea of Happiness carries hedonist notions that
end up by considering that uneasiness and suffering must be banished in
the name of Happiness to be attained at any cost. Consequently, new
efforts appear to engage psychoanalysis in the fight for the banishment
of suffering. Therefore, we are at risk of disqualifying psychoanalysis
and transforming it in consumer’s goods.
Keywords: Happiness; Psychoanalysis and culture; Hedonism; Contemporaneity; Cure.
Velho Tema I
“Essa felicidade que supomos
(…)
Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos”
(Vicente de Carvalho-1866-1924)
Embora este texto tenha por epígrafe uma poesia, ele é uma abordagem
estritamente psicanalítica do tema “Felicidade”. Poesia, literatura em
geral, artes várias, religião e filosofia são campos expressivos da
cultura onde encontramos os sinais da preocupação humana em torno dessa
questão. Pretendo utilizar a expressividade desses campos para discorrer
psicanaliticamente sobre ela.
Como projeto humano individual, a
ideia de felicidade é tão constante e transparente que até parece
dispensar explicações mais profundas. Quase todo mundo sabe imaginar um
quadro pessoal da felicidade que almeja. Como projeto de uma cultura,
também a ela não faltam intérpretes privilegiados e pretensiosos que se
dediquem a delinear seu contorno e condições de possibilidade.
Embora pareça, a princípio, uma noção de senso comum, a felicidade é uma
questão que comporta delineamentos ambíguos que tornam sua expressão
até controvertida. Um dos aspectos dessa ambiguidade foi expresso pelo
poeta, na epígrafe acima. Ou seja, a felicidade, transferida por nós
mesmos para um território utópico, nunca chega a nos pertencer. Existe
maior tragédia do que esse desencontro provocado por nós mesmos?
Todavia, continuamos a falar em sermos felizes. Essa noção, arraigada em
nossos corações e mentes, talvez flua daquele espaço que Bion (1963)
chamava das pré-concepções. A felicidade seria uma pré-concepção que, a
caminho de se tornar concepção, mediante uma experiência, sofre
descaminhos imprevisíveis. E ficamos órfãos de uma condição que, na
verdade, nunca experimentamos de forma estável e, muito menos, em
plenitude.
Freud (1930/1976) se ocupou diretamente e, de forma
exaustiva, do tema da felicidade, em seu texto, “O mal-estar na
civilização”. Segundo MacMahon (2006), o título original que Freud
pretendeu dar àquele texto era: A infelicidade na cultura (Das Ungluck
in der Kultur), o que seria uma denominação bem mais contundente que
aquela oficializada posteriormente. Ele afirmava que a busca da
felicidade era inerente ao ser humano. Há exigências pulsionais que
levam o homem a almejar a felicidade, procurando sensações de prazer e,
ao mesmo tempo, evitando a dor, o desprazer. Acontece, porém, que há um
antagonismo entre essas exigências pulsionais (ligadas ao Princípio do
Prazer) e as restrições impostas pela civilização para que o convívio
entre as pessoas seja, pelo menos, razoável. Desse antagonismo, emerge a
culpa e, num ser culpado, o projeto de ser feliz, em termos pulsionais,
está comprometido. E Freud (idem) explicita por que: … o preço que
pagamos por nosso avanço em termos de civilização é uma perda de
felicidade pela intensificação do sentimento de culpa (p. 158). Em outro
trecho, ele diz, sem meias-palavras: O programa de tornar-se feliz, que
o princípio do prazer nos impõe, não pode ser realizado plenamente (p.
102). No entanto, sua atitude não era de desprezo para com os esforços
humanos nesse sentido. Logo adiante, na mesma linha citada, ele
prossegue: contudo, não devemos – na verdade, não podemos – abandonar
nossos esforços de aproximá-lo da consecução, de uma maneira ou de
outra. O enfrentar esse desafio, ou esse paradoxo, trágico em sua
consecução, contém um tom de altivez, heroísmo e não resignação, muito
do agrado do fundador da psicanálise.
Não obstante, nós
psicanalistas continuamos a ser procurados por pessoas que pretendem o
alívio de suas dores, ou o afastamento do desprazer que sentem, na
expectativa de desfrutar da felicidade. Felicidade que cada um tenta
formular à sua maneira, conforme suas fantasias. Sabemos também que a
petição de ser feliz pode ser a manifestação de um sintoma. Na malha
desse sintoma, poderemos, com o trabalho, identificar conflitos,
recalques, culpas, fantasias etc. Enfim, sempre atrás de um sofrimento,
vamos encontrar um Ego tentando conciliar dois funcionamentos mentais: o
do Princípio do Prazer e o da Realidade.
Será que temos mais
alguma coisa a aprender acerca do sofrimento humano? Existem
características específicas desse modo in-feliz do viver humano, que
trazem marcas da cultura contemporânea? E a psicanálise diante desse
quadro? O que ela pode fazer pelas pessoas que buscam, no divã, obter
uma senda para a felicidade? São essas as questões que tentarei abordar.
A felicidade tem uma história
Seria ingenuidade pensar que, em todos os tempos, em todas as culturas,
a noção de felicidade sempre foi a mesma. Ingenuidade seria, também,
pensar que, ao longo dos tempos, as pessoas se ocuparam dessa questão
com a mesma ênfase que hoje é dada a ela. Podemos desenvolver uma
“História da felicidade”, mediante a qual notamos que essa noção vai
encontrando/criando identidades próprias para se expressar.
Até
alguns séculos passados, os filósofos se ocuparam, em maior ou menor
extensão e profundidade, em discorrer sobre a felicidade. Hoje, parece
que eles se cansaram desse objetivo (não por esgotamento do assunto, é
claro) e se voltaram para as intrincadas questões da linguagem, ou para
os rigores da epistemologia. Talvez a pós-modernidade tenha contribuído
para essa situação, ao relegar para o baú do romantismo esse tema
considerado demodé. Esse vácuo de interesse e inspiração sobre a
temática, foi logo percebido por algumas pessoas que o ocuparam com uma
abundante produção de manuais de autoajuda, de estímulos, com o intuito
de alcançar felicidade e de obter “chaves” para um acesso rápido ao
paraíso. Num plano de maior seriedade e de não oportunismo, ainda nos
resta a esperança de que os poetas, como o que citei, possam nos
sinalizar novas intuições válidas a respeito.
Recentemente,
MacMahon, já citado, um professor de Filosofia americano, escreveu um
livro sobre a Felicidade, no qual procura descrever como, no decurso da
história, foram se articulando vários discursos sobre o tema, cada qual
com um matiz próprio, delineando feições diferentes para o que, de forma
genérica, temos chamado de Felicidade. Remeto os leitores a esse
agradável texto e, de suas ideias principais, vou fazer um apanhado
bastante sucinto.
MacMahon deixa claro, logo de início, que a
noção que se tinha sobre a felicidade, na antiguidade, diferia muito da
que temos atualmente. Para os antigos gregos, a felicidade era um dom
dos deuses, não vinha por mérito das pessoas, mas por lance de sorte ou
destino. Não haveria interferência humana no encontro com esse bem, que
estaria, portanto, fora de nosso controle. Já na Grécia Clássica, a
questão se torna diferente. A felicidade é retirada do território dos
deuses e colocada nas mãos dos homens, embora não houvesse a ilusão de
que fosse fácil alcançá-la. Essa posição parece estar contida nas ideias
de Sócrates, Platão e Aristóteles. Esses autores viam a felicidade como
compilação de muitas qualidades vividas, entre elas, a virtude. O homem
virtuoso podia ser feliz, mas essa condição só poderia ser avaliada
após sua morte. Nesse ponto, fica inserido o fator racional na posse da
felicidade. A virtude organizaria as vidas de acordo com uma ordem
preestabelecida e, por essa correspondência racional, surgiria a
felicidade.
O tema da felicidade é central no Cristianismo, mas
tratado como um bem perdido por conta do pecado original. Pior do que
uma não-felicidade é uma felicidade perdida por um ato culposo. Aqui,
felicidade e tragédia se articulam: nossa incapacidade de ser feliz é
lembrete amargo de uma falha (o pecado original), cujas marcas
carregamos. Mas a esperança de felicidade é reintroduzida pelo próprio
Deus ofendido, que oferece aos homens a graça de apagar essa marca;
todavia, essa promessa anuncia, não propriamente a felicidade, mas uma
“esperança de felicidade” a ser vivida num outro Reino. Quanto à
felicidade aqui, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino a viam como
possível, porém imperfeitamente realizável. Com essa postura, parece que
o Cristianismo realizava uma ponte, ou conciliação, entre aquelas duas
posições mencionadas a propósito dos pensadores gregos daquelas duas
diferentes épocas: a felicidade (destinada a todos os homens) era
unicamente possível como dom de Deus, mas exigia também uma contraparte
virtuosa (ética) no homem.
Mas voltando à questão da virtude:
seria ela um dom entregue aos homens em condições prévias de
viabilidade, ou só seria provável pelo esforço humano de cultivá-la?
Essa discórdia esteve no âmago do movimento que culminou na Reforma
Protestante. Para Lutero, somos justificados pela Fé, ou seja,
tornamo-nos justos, não punidos com a justiça, por um dom de Deus. O
homem justificado deveria ser alegre, pois viveria em harmonia com a
natureza que lhe fora atribuída por Deus. Com essa colocação atacou o
lugar privilegiado do sofrimento na tradição cristã. Se inevitável, o
sofrimento não era a chave perfeita para a salvação. Com Calvino, essa
questão do sofrimento é deslocada mais ainda para uma situação lateral,
mas sua afirmação de que há poucas pessoas predestinadas a serem salvas
pela Graça, não deixa de incomodar. A Graça é uma chave, mas não para
todos. Dizia ele: Quando a bondade de Deus sopra sobre nós, não há nada
(…) que não nos leve à felicidade.
Conclui-se daí que pessoas
felizes expressam em sua felicidade o dom da graça recebido. Enfim, a
alegria, o bem-estar poderiam ser tratados como indicativos do
favorecimento divino. Essa correlação imediatista foi bem recebida na
América do Norte, por exemplo, onde cidadãos passaram a se dedicar com
paixão ao trabalho, à acumulação de riquezas, ao bem-estar, como maneira
de se certificarem (e mostrarem aos outros) que tinham sido favorecidos
de maneira especial por Deus.
Com o Iluminismo (séculos XVII e
XVIII), a questão da felicidade sofre uma dupla virada. Não é mais um
valor tutelado pelos deuses e nem uma promessa para outra vida. Ela não
só era uma aspiração humana legítima, mas igualmente uma condição a ser
obtida nesta vida. Mais ainda: a felicidade consiste em um direito de
todos, um bem básico. Maximizar o prazer e minimizar a dor era meta
iluminista. A ampla iconografia da época dá testemunho dessa procura; no
entanto, seria simplismo reduzir todo o conteúdo da mensagem do século
das Luzes a essa fórmula. A penetração de tais ideias se deu em todos os
quadrantes da cultura. A felicidade, emancipada de expectativas
divinas, passou a ser uma questão social e de cidadania, preservada pelo
Estado. Foi na linha desse ideário que a Declaração da Independência
dos Estados Unidos (1776), redigida por Thomas Jefferson, assinalava que
todos os homens foram dotados por seu criador de direitos inalienáveis,
entre eles: a vida, a liberdade e a busca da felicidade. A Revolução
Francesa, em sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789)
prometia lutar pela felicidade de todos. Mas o vigor revolucionário
acrescentava que essa promessa demandava esforço, trabalho e uma atuação
em escala organizada.
O Movimento Romântico, embora pródigo em
focalizar o sofrimento humano, nunca deixou de lado o interesse pela
felicidade. Este tema aparece, muitas vezes, tratado como Alegria,
embora com um sentido próprio: é o contraponto do desespero e, muitas
vezes, sua irmã siamesa. A Alegria viria da capacidade de o homem se
conectar com ordens superiores, como o Espírito, o Ser, o Infinito etc. A
Ode à Alegria, de Beethoven, é uma visão desse contato.
Com o
marxismo, a questão da Liberdade se coloca na linha de frente das
preocupações. A Felicidade não é uma meta, mas a consequência dos homens
se libertarem de suas alienações. A alienação consistiria num desejo
individual falsamente construído por um sistema artificial de
necessidades, colocando as pessoas em conflitos com um bem coletivo. Mas
a desalienação só poderia ocorrer por meio de uma luta revolucionária
para transformar a sociedade e superar as condições alienantes do
trabalho que separa as pessoas de sua natureza e umas das outras.
Resultaria, então, um estado de liberdade, sem imposições das divisões
de classe. Podemos entrever uma promessa religiosa nessa proposta: o fim
da alienação (as marcas do pecado original?), dos conflitos entre os
homens e do retorno do homem a si mesmo. Uma felicidade humana real, uma
promessa metafísica?
E agora?
A busca
continua. Trágica como antes, porque frequentemente cai na decepção.
Somos mais felizes hoje do que antigamente, com todos os progressos
materiais e tecnológicos de que dispomos? O incrível aumento das
expectativas de vida que nos asseguram que poderemos viver mais anos que
nossos antepassados incrementa nossa felicidade? Há pesquisas feitas
que tentaram quantificar, em alguns países, a dose de bem-estar
proporcionada pela situação socioeconômica das pessoas. O resultado
apontou o seguinte: até certo patamar de prosperidade econômica e
organização dos sistemas sociais, os índices de bem-estar autodeclarados
parece que aumentam. Mas somente até certo patamar. A partir daí,
crescendo a prosperidade, não cresce a sensação de bem-estar. Tudo
indica que passa a haver um menor retorno em termos de felicidade. No
presente, tendo, como Prometeu, se apossado do fogo dos deuses e
desenvolvido um progresso intelectual, material e social em escala sem
precedentes, o homem parece ainda insatisfeito. Já em 1930, Freud
assinalava que: No interesse de nossa investigação, contudo, não
esqueceremos que atualmente o homem não se sente feliz em seu papel de
semelhante de Deus (p. 112).
Aqui, em vez de tentar mapear
índices de bem-estar contemporâneo, proponho-me fazer uma operação
inversa. Que fatores culturais condicionam, hoje, o mal-estar que
detectamos de forma generalizada? Omitirei, por não caber neste estudo,
aquelas situaçõeslimite, de carência, em que vive grande parte da
humanidade.
O hedonismo moderno: uma arma trágica de dois gumes
Indubitavelmente, vivemos em uma época na qual a promessa de
felicidade, agora separada de suas conotações com o sagrado, estaria no
final da trilha de um comportamento que chamaríamos de hedonista. O
hedonismo não é invenção moderna. E pode ter tido, ao longo da história,
várias versões. O emprego dessa palavra exige que se exponham as
configurações com que ela se apresenta neste texto.
Em termos
genéricos, poderíamos dizer que o hedonismo que se nos apresenta hoje em
dia propõe extrair da liberdade individual o máximo de prazer
disponível, o que seria o equivalente a ser feliz. Emprego o termo
disponível para sinalizar a possibilidade de consumo de todas as
benesses que o progresso tecnológico nos põe à disposição. Quanto mais
pudermos consumir, mais seremos felizes. Essa é a promessa embutida na
crença propagada pelos meios de produção. Nesse sentido, até a
psicanálise pode ser encarada como um bem a ser consumido nessa promessa
de felicidade. Volto mais adiante à questão.
Essa proposta
hedonista se insere dentro de uma arquitetura de “razões”, algumas
explícitas, outras implícitas. É importante não só assinalá-las, como
discutir suas consequências.
A primeira delas aponta não apenas
que podemos ser felizes, mas que devemos ser felizes. Essa postura
implica uma mudança radical em nossas estruturas psíquicas: o que antes
era considerado de pertinência ao Id (a busca do prazer), passou a ser
de pertinência ao Superego. Em outras palavras: estaremos condenados (à
culpa) se não formos felizes. McMahon (2006) assinala que, em
consequência, vivemos o fardo da infelicidade de não sermos felizes. E
pagamos o preço de tal pensamento com sofrimento.
A segunda
“razão” formula, generosamente, em termos explícitos, as trilhas e as
atitudes que todas as pessoas devem adotar para chegarem “lá”. O que
fica implícito (ou oculto) na proposta, é a contradição nela embutida:
que a decantada liberdade individual na escolha dos prazeres fica
tolhida, quando não negada, pelo fato de se imporem às pessoas padrões
de consecução de prazer. Exemplos: a mulher feliz é a que…; o homem de
sucesso é aquele que…; a mulher liberada sexualmente é a que…; o jovem
moderno é aquele que... etc. Um livro de autoajuda, recentemente
publicado no Brasil apresenta, em um folheto promocional, a promessa de
mais de cem mensagens para você superar seus medos, solucionar seus
problemas, alcançar o sucesso e mudar radicalmente sua vida. A obrigação
de ser feliz é também condicionada à posse de um corpo cujas
características estéticas estão determinadas, a priori, por padrões
preestabelecidos. Quem não se enquadrar nesse padrão, trate de
alcançá-lo, senão… Essa situação, extremamente desconfortável, quando
não frustradora, ficou evidenciada numa recente pesquisa (2007) da
Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil), que estudou os índices de
satisfação com o próprio corpo, numa amostra que incluía crianças e
adolescentes dos dois sexos. No universo pesquisado, 62% dos
entrevistados se disseram insatisfeitos com seus corpos. Estamos aqui em
plena vigência de outra contradição: os mesmos modelos ofertados para
se alcançar uma felicidade padronizada, idealizada, acabam arrastando a
pessoa para frustração, culpa e sensação de exclusão do paraíso.
O terceiro aspecto da arquitetura mencionada diz respeito à noção de
prazer à qual ela se direciona. Esse prazer não decorre do exercício das
virtudes, como os gregos queriam, mas da capacidade de ter sensações
prazerosas. Isso implica a primazia do prazer sensorial, aquele
proporcionado pelos sentidos que o corpo abriga. Vivemos um império dos
sentidos, uma busca de sensações, que acaba minimizando o valor de se
viverem afetos, emoções mais enraizadas em trocas afetivas com os
outros. Na esteira dessa procura, podemos apontar a exaltação que se faz
do impulso para se buscar experiências novas, enfrentar desafios e,
muitas vezes, viver situações de perigo, nos limites de risco de vida.
Aqui, Tânatos é convocado, junto a Eros, para a vitória final dos
sentidos. Gostaria também de citar a convocação da sexualidade, em sua
vertente predominantemente orgástica, para se juntar a essa onda
sensorial.
A consequência de todas essas propostas conduz a um
traço que me parece ser marcante nas culturas próximas a nós e em nós
mesmos. Vivemos em uma cultura da analgesia. A procura de prazer cria
projetos explícitos, não de se minimizar a dor, mas de se abolir a dor
em todos os níveis em que ela possa aparecer. Talvez nunca a
intolerância à dor tenha sido tão evidente. E o curioso: a dor é
“atacada” numa perspectiva de ação religiosa, como um ato de exorcismo
com o qual as pessoas tentam se defender das forças demoníacas que as
assaltam.
Até aqui apontei as tentativas de defesa contra a
dor, que são feitas individualmente; entretanto, a questão não se esgota
nesse plano individual. Recursos mais amplos são convocados para o
mesmo fim.
A medicina convocada
Talvez
nenhuma outra área do conhecimento humano, a não ser a Medicina, seja
depositária de tantas expectativas para se anular a dor, seja ela física
ou moral. A nosso olhar atual, até parece natural essa expectativa de
anulação da dor por parte da Medicina e nem sequer cogitamos se esta
sempre foi direcionada a esse propósito. Na realidade, nem sempre foi
assim.
Illich (1976) numa obra polêmica – A expropriação da
saúde – aponta que a colocação da “doença” no centro do sistema médico é
de época recente e remonta aos tempos de Galileu. A objetivação do
sofrimento por sua transformação em entidade clínica manipulável
revolucionou a noção anterior de doença que a colocava como sofrimento
experimentado por um ser e implicou mudança da Medicina comparável à
revolução copérnica na astronomia: o homem, a pessoa, deixava de ser o
centro de seu universo para ser colocado em sua periferia. Durante
séculos, na cultura ocidental, a atenção médica era focada na pessoa
como um todo, sem discriminação de corpo e mente. A Medicina
Hipocrática, por exemplo, visava ao restabelecimento da harmonia, sem
que o objetivo da intervenção médica fosse, diretamente, a supressão da
dor. Entre outras razões, era porque a dor, concebida como a experiência
da alma presente no corpo inteiro, não podia ser objetivada num mal
determinado. Era a pessoa que sofria e, não apenas, seu corpo.
A
luta da Medicina contra a dor se inicia como consequência das ideias de
Descartes, até que, no fim do século XIX, a dor aparece emancipada de
todo referencial metafísico. A “virada” da Medicina rumo à analgesia (em
sentido amplo) reflete uma reavaliação ideológica da dor. Sua
eliminação passa a definir a própria Medicina, respondendo a um mandato
conferido pela angústia central da cultura, em sua procura hedonista. O
desejo terapêutico passa a ser substituído pelo furor curandi. É aqui
que Illich denuncia o fenômeno (pouco percebido) da Expropriação da
saúde: gerenciando a vida humana em todas as faixas etárias e em todas
as situações críticas existenciais (desde um parto até um momento de
angústia), a Medicina acaba se transformando na guardiã do paraíso
desejável da analgesia. Esse fato se reflete inequivocamente na formação
do médico atual: ela é voltada, predominantemente, a equipá-lo, técnica
e pessoalmente, a ampliar sua capacidade de objetivação da dor. Este
controle da mesma, mediante os dados sensoriais, tem sido o responsável
por uma deformação que leva o médico a traduzir a linguagem da dor em
termos fisiopatológicos precisos, mas não o conduz a compreender o
sofrimento vivido por quem é o seu portador (Mello Franco Filho, 1977). A
medicalização progressiva da dor e da morte, ilustra a luta do homem
pelo exorcismo do sofrimento na trajetória de sua vida. Numa sociedade
industrial cujo mais alto valor de consumo é o bem-estar, quaisquer
recursos podem ser convocados para essa luta.
A convocação da psicanálise
Freud era médico e, como médico, debruçou-se, no início, sobre o
problema das neuroses. O nascimento da psicanálise no contato com a
questão das neuroses parece ter alimentado a ideia de filiação
permanente da mesma à Medicina. Aliás, parte da terminologia que ainda
hoje usamos para descrever aspectos do processo analítico, advêm da
clínica médica; termos como: paciente, clínica, tratamento, cura, alta
etc., ainda hoje circulam na fala dos próprios analistas. Por essas
aproximações históricas e terminológicas, a psicanálise se viu
identificada a um procedimento médico e, hoje, quando a sociedade cobra
resultados da psicanálise, o faz sob a perspectiva de que a mesma
constitui parte do arsenal médico para combate às doenças mentais. A
propósito da noção de doença mental, cumpre lembrar que a mesma possui
um embasamento ideológico e que o comportamento humano tomado numa
perspectiva de doença se oferece como objeto de manipulação por uma
escala de valores sociais que nada têm a ver com ciência (Mello Franco
Filho, 1977). Colocar a psicanálise na esteira da cura das neuroses para
obtenção de uma felicidade coletiva, é atribuir a ela um papel nessa
manipulação ideológica. A Freud (1930/1976), não escapou a falácia de
tal proposta e suas consequências. A esse respeito ele foi categórico:
Uma dissecação psicanalítica de tais neuroses poderia levar a
recomendações terapêuticas passíveis de reivindicarem um grande
interesse prático. Eu não diria que uma tentativa desse tipo de
transportar a psicanálise para a comunidade cultural seja absurda ou
esteja fadada a ser infrutífera. Mas teríamos de ser muito cautelosos e
não esquecer que, em suma, estamos lidando apenas com analogias e que é
perigoso, não somente para os homens, mas também para os conceitos,
arrancá-los da esfera em que se originaram e se desenvolveram. (p. 169)
Seria pretensioso demais tentar “curar a psicanálise” de tendências
(quaisquer que sejam) que parecessem estranhas à sua natureza. A
psicanálise não é um conjunto de ideias, mas uma práxis que depende
essencialmente das pessoas que, nela, estão envolvidas. Creio, também,
que não se trata de consagrar um modelo psicanalítico como o mais
ortodoxo. Minha advertência é no sentido de, nós psicanalistas, não
cedermos à tentação de encaixar a atividade psicanalítica neste ou
naquele modelo de moda.
Encontrei um artigo do filósofo
esloveno Zizek (2003), cujo título e conteúdo me sugeriram conexões
interessantes para a compreensão do desafio lançado à criação de uma
“Psicanálise contemporânea”, atenta às “demandas” atuais. Zizek comenta
que hoje vivemos uma situação de hedonismo envergonhado que tenta
conciliar a posse de um prazer, mas sem passar pelo constrangimento que
se tem pelos aspectos não prazerosos (nocivos) que fazem parte da
essência desse prazer. Diz o autor: No mercado de hoje, encontramos toda
uma série de produtos desprovidos de suas propriedades nocivas: café
sem cafeína, creme sem gordura, cerveja sem álcool… (p. 3). Ele ainda
acrescenta: sexo virtual, como sendo sexo sem sexo, guerra sem mortes
(de nosso lado, evidentemente), política sem “política” etc. Esta
combinação de prazer com constrangimento nada tem a ver com a antiga
noção de “medida certa”. A que discuto opera na crença de obter com que
nossa procura de prazer não tenha a marca da transgressão, com suas
consequências de desprazer e culpa. Enfim: vale a transgressão, desde
que não pareça transgressão. E sugere ser esta a atitude do Último Homem
hedonista de hoje: tudo é permitido, pode-se desfrutar de tudo, porém
desprovido da substância perigosa (p. 3). Caminha-se para a criação e
consumo do ópio sem ópio.
Considerações finais
Volto agora ao tema que motivou este trabalho: a Felicidade. Embora nós
psicanalistas possamos ser cautelosos em relação às demandas de
felicidade formuladas, direta ou indiretamente por nossos pacientes, não
podemos nos negar a considerar essa questão, à medida que ela é uma
motivação central para a procura de análise por parte dos que são
portadores de algum sofrimento psíquico.
As demandas dos que se
sentem excluídos da felicidade podem conduzir às mais variadas
procuras: ciência, medicina, magia, religiões e terapias psicológicas de
várias naturezas. Cada uma delas equaciona seus recursos aos fins
desejados. Encarada em sua versão mais divulgada – a vertente
terapêutica – a psicanálise também é alvo dessa procura. E aqui entramos
no plano clínico da questão de que nos ocupamos.
Nós,
analistas, motivamo-nos ao trabalho pelo desejo de conhecer e ajudar as
pessoas. Pelo menos, conscientemente, é o que se passa em nosso
interior. Um acordo estabelecido entre analisando e analista inicia o
processo. Sua trajetória, porém, está permeada de conflitos e armadilhas
para ambos. Tanto as motivações do analisando para fazer análise quanto
as motivações do analista para funcionar como analista, podem ser
colocadas em questão durante uma análise. Uma ou mais crises se
instalam. Muitas vezes o paciente reclama da ausência de efeitos
sensíveis, da demora, do custo e… da ineficiência da análise para
“resolver” seus problemas. Essas demandas podem servir de “convite” para
que o analista entre na trajetória de uma psicanálise descafeinada,
como chamei, mesmo porque ninguém gosta de “perder um paciente”.
Em relação ao sofrimento, a análise nunca poderá “garantir” ao paciente
a “extração” de suas dores, nem a prevenção de sofrimentos futuros.
Estamos aqui no plano de uma crença: a tentadora ideia de uma
psicanálise segura, criada na mesma trilha mencionada por Zizek, do sexo
seguro: a falácia de que todos os efeitos dos atos humanos podem ser
previstos e evitados. No caso da sexualidade, seria uma sexualidade
isenta dos conflitos que a permeiam, os quais, sabemos, são os elementos
básicos que encaminham a estruturação de nossa personalidade. O sexo
seguro surge também como um competidor do chocolate laxante, ou do
almejado ópio sem ópio.
Freud, em sua clínica, ou em seus
escritos sobre a cultura, não deixou de mencionar e lidar com esses
conflitos – em torno da questão sofrimento/felicidade – que podem surgir
entre a psicanálise e a cultura em que ela é praticada. Uma mostra
significativa de sua posição frente às perspectivas da psicanálise poder
tornar “feliz” um paciente está nas considerações com que encerra a
descrição e discussão dos famosos “Estudos sobre a Histeria” (em
colaboração com Breuer) (1893/1976). A questão central ali inserida é
sobre a ajuda que o analista pode oferecer ao paciente diante das
circunstâncias e fatos da vida que o colocaram em sofrimento. Freud
exemplifica sua posição clínica por meio de um diálogo hipotético com um
desses pacientes. A resposta é apresentada nos seguintes termos:
Sem dúvida o destino acharia mais fácil do que eu aliviá-lo de sua
doença. Mas você poderá convencer-se de que ganharemos muito se
conseguirmos transformar seu sofrimento histérico em infelicidade comum
(o grifo é meu). Com uma vida mental que foi restaurada, transformandose
em saúde, você ficará melhor armado contra essa infelicidade. (p. 363)
Percebe-se que a fala do criador da psicanálise, não é apenas uma
resposta técnica a uma situação de demanda de um paciente. Vai além
disso: é um posicionamento ético de um analista que respeita,
simultaneamente, o paciente e seu campo de trabalho.
Podemos
não ter garantia nenhuma do final feliz de uma análise. Mas podemos nos
capacitar (mediante nossa análise pessoal e nossa formação) para lidar
eticamente com os dilemas que vamos encontrando ao longo desse difícil
caminho de adentrar no sofrimento humano e em suas vicissitudes.
Referências
Bion, W. R. (1991). Elementos em psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1963).
Freud, S. (1976). Estudos sobre a histeria. In Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 2.
Trad. J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em
1893)
_____ (1976). O mal-estar na civilização. In Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 21.
Trad. J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em
1930)
Illich, I. (1976). A expropriação da saúde. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
MacMahon, D. M. (2006). Felicidade: uma história. São Paulo: Globo.
Mello Franco Filho, O. (1977). Psicanálise e medicina: um confronto. Revista Brasileira de Psicanálise, 11(2), 155-170.
Zizek, S. (2003). O hedonismo envergonhado. Folha de S. Paulo, São Paulo, Caderno Mais!, 19/10/2003.
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