A PSICANÁLISE NÃO PROMETE FELICIDADE
Publicado: domingo, 27 abril, 2008 em angústia, ética, Charles Melman,
clínica, comportamento, desejo, escola de psicanálise, felicidade,
Freud, inconsciente, Lacan, lacaniano(a), mal-estar, prática,
psicanalista, psicanálise, seminário, sociedade, sujeito, Tempo
Freudiano, transmissão e ensino
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O psicanalista francês Charles Melman esteve no Rio de Janeiro neste
fim de semana para realizar o seminário ”E o que é que ele quer, o
psicanalista?”, no Hotel Glória a convite do Tempo Freudiano. Estive
neste evento e ainda farei um post a respeito. Enquanto isso, outra
entrevista de Melman concedida à Veja:
“Entrevista ao repórter Ronaldo Soares, da sucursal carioca de VEJA.
Veja — Por que a psicanálise vem perdendo terreno para terapias que prometem resultados imediatos?
Melman — Porque ela não busca nenhum tipo de cura, não se propõe a
isso. Está, portanto, na contramão da medicina, cuja história é rica em
experiências baseadas na cura, com métodos variados. Alguns desses
métodos, até pelos efeitos de sugestão, não são ineficazes. Mas é
preciso saber se nós preferimos os métodos fundados sobre a sugestão ou
se consideramos que é melhor privilegiar a livre atitude e o pensamento
de cada pessoa, e assim estimular nela sua autonomia de julgamento. Nos
períodos de crise moral, como o atual, proliferam os métodos que
prometem a cura. Aos que escolhem esse caminho, só me resta desejar boa
sorte.
“A última contribuição realmente original
ao pensamento de Freud foi dada por Lacan, que já morreu há quase
30 anos”
Veja — Além de espaço, a psicanálise perdeu prestígio?
Melman — Ela perdeu prestígio junto aos intelectuais, porque os que se
inspiram em Freud não conseguiram dar prosseguimento de forma válida e
original ao trabalho dele. Desse vazio surge a impressão de que Freud
está ultrapassado. A última contribuição realmente original ao
pensamento de Freud foi dada por Lacan, que já morreu há quase 30 anos
(em 1981). Ele deixou ainda muito por fazer para que possamos dar conta
das mudanças que estamos presenciando.
Veja — O senhor concorda que há uma excessiva utilização de psicotrópicos atualmente?
Melman — A saúde hoje é algo que se calcula em bilhões de dólares. É
compreensível e até inevitável que os laboratórios estimulem o alto
consumo de medicamentos como os antidepressivos. A França, por exemplo,
tornou-se um grande consumidor desses produtos justamente em virtude das
ações que os representantes dos laboratórios desenvolvem junto aos
consultórios médicos. A questão é que a hiper-medicalização contém muito
mais riscos do que vantagens. No caso das crianças, por exemplo, isso
fica evidente. Sobretudo no que diz respeito ao uso precoce, recomendado
pelos laboratórios, de neurolépticos (inibidores das funções
psicomotoras). Esses medicamentos vêm sendo usados nas crianças para
tratar distúrbios de personalidade ou para combater problemas como
insônia ou falta de apetite, entre outras coisas. Trata-se de algo
absolutamente condenável, com implicações nefastas tanto sobre o
desenvolvimento quanto sobre o estado físico da criança. Outra
conseqüência grave da hiper-medicalização é a predisposição do indivíduo
para desenvolver dependência química. Primeiro, de remédios. Mas em
seguida, possivelmente, de produtos fora do mercado legal. Com isso,
poderemos chegar ao ponto em que a dependência vai parecer uma situação
absolutamente normal, porque em muitos casos terá começado na infância.
Veja — O Prozac e as idéias de Freud podem conviver harmoniosamente?
Melman — Eles vivem juntos. Às vezes de maneira harmoniosa e outras,
não. No primeiro caso, devemos lembrar que Freud sempre pensou que o
processo psíquico tinha um suporte neuro-hormonal. Ele esperava que a
ciência descobrisse esse processo. Produtos como o Prozac agem sobre
esses mecanismos neuro-hormonais e podem, então, levar a uma modificação
do comportamento. Outra abordagem que mostra essa harmonia é lembrar
que todos nós, assim como o próprio Freud na juventude, já sonhamos com a
existência de uma panacéia de medicamento que dariam conta de todas as
dores e todas as dificuldades. O Prozac se apresenta um pouco assim. Mas
— e é aí que a harmonia desaparece — será que devemos apostar num
procedimento que vai tratar o conjunto dos problemas psíquicos pelas
drogas? Ou devemos continuar a levar em conta, primeiramente, a livre
escolha do sujeito e, em segundo lugar, o próprio papel do corpo? Nesse
sentido, um produto como o Prozac desencadeia um curto-circuito.
Veja — Como assim?
Melman — Dou um exemplo. Digamos que surja amanhã uma droga que, agindo
sobre os centros cerebrais, produza um prazer sexual bem superior ao
que se pode obter com o corpo. O que vamos preferir? Isso ou um acesso
ao prazer sexual que continua a passar pelo corpo, mesmo não tendo a
mesma qualidade do que pode ser proporcionado pela droga que atua
diretamente sobre o cérebro? Eis o tipo de questão que se coloca com o
uso do Prozac.
“Pela primeira vez a instituição familiar está desaparecendo, e as conseqüências são imprevisíveis.”
Veja — Para que serve a psicanálise nos dias de hoje, quando se pode
contar com tantos recursos destinados a proporcionar bem-estar psíquico?
Melman — A psicanálise permite a você se debruçar sobre os problemas
reais e incontornáveis da existência. Não sobre os problemas ligados a
sua infância, ao seu meio social, às neuroses em geral que interromperam
seu desenvolvimento psicológico. Ela não propõe uma cura de
dificuldades que são próprias da vida social, como as ligadas à vida do
casal, à relação entre pais e filhos, etc. Mas permite colocar essas
dificuldades em seus devidos lugares e, ao mesmo tempo, tratá-las de
outra forma. A psicanálise não terá jamais a pretensão de prometer a
felicidade. Mas também não a proibirá a ninguém. Ela convidará cada um a
buscar o que pode ser a felicidade para si.
Veja — Quem procura psicanálise atualmente?
Melman — Fico surpreso quando constato que, se há uma clientela
interessada e engajada na psicanálise hoje em dia, é a dos jovens dos 18
aos 30 anos. Eles não procuram a psicanálise pelo fato de reprimirem
seus desejos, mas principalmente porque não sabem o que desejam. É uma
situação totalmente original em relação a Freud. Antes, a pessoa
recorria à psicanálise porque não ousava realizar seus desejos. Hoje,
principalmente no caso dos jovens, é por não saber o que desejar.
Veja — A que o senhor atribui essa mudança?
Melman — Nossos jovens foram criados em condições que promovem a busca
rápida do prazer máximo e sem obrigações. É o meio social que propõe a
eles essa maneira de agir em sociedade. O problema é que o tratamento
dispensado ao desejo produz situações de dificuldades para os jovens. E
isso os leva ao divã.
Veja — Que situações são essas?
Melman — Muitos jovens encontram dificuldade para desenvolver
plenamente uma vida sexual. Parece paradoxal, porque hoje em dia o sexo é
muito acessível. Mas na verdade essa facilidade leva à busca de uma
vida sexual sem compromisso, que proporcione um prazer ocasional, como o
cinema, a bebida ou a dança. Há aí uma mudança interessante, talvez uma
tentativa de se proteger em relação ao compromisso que uma vida sexual
pode evocar. A idéia é aproveitar sem se engajar, mas isso impõe uma
questão: eles aproveitam plenamente? Esse é o fenômeno que chamei de
nova economia psíquica. Ele é fundado sobre o princípio da busca
imediata de prazer máximo, sem freios nem restrições. Esses momentos de
prazer, que proporcionam uma satisfação profunda, são vividos mas não
organizam a existência, nem o futuro. Ou seja, a existência é feita de
uma sucessão de momentos sem nenhuma projeção no futuro, de momentos que
podem desaparecer porque não terão continuidade. Isso é novo. E é o que
está por trás do sucesso do mundo virtual proporcionado pela internet.
Veja — Por que o mundo virtual é tão atraente?
Melman — Porque é lúdico. É um mundo coerente com a maneira de viver
dos jovens, não exige engajamento nem compromisso. Ali qualquer um pode
viver uma série de vidas sucessivas sem nenhum compromisso definitivo.
As pessoas querem se distanciar da realidade não porque ela seja
assustadora ou sem-graça, mas porque ela implica sempre um limite. Além
disso, a realidade requer uma identidade, um objetivo mais ou menos
claro na vida, ao passo que esses exercícios virtuais não pressupõem
nenhuma identidade, nenhuma perspectiva e ainda derrubam todos os
limites, incluindo os do pudor e da polidez.
Veja —
Por que atualmente os casamentos não duram? A vida a dois ficou inviável
com o novo arranjo social que igualou os papéis do homem e da mulher?
Melman — Pelos padrões vigentes na sociedade atual, nos é recomendado
ao longo da vida renovar os objetos dos quais nos servimos. Trocar de
carro, de tapetes, de mobília, etc. As relações afetivas acabaram
seguindo esse mesmo princípio, dos objetos descartáveis. Elas não
resistem a esse apetite de rejuvenescimento e renovação da sociedade
contemporânea.
Veja — Freud explica as famílias atuais?
Melman — Não acredito. Assistimos hoje a um acontecimento que talvez não
tenha precedente na história, que é a dissolução do grupo familiar.
Pela primeira vez a instituição familiar está desaparecendo, e as
conseqüências são imprevisíveis. Fico surpreso que os sociólogos e
antropólogos não se interessem muito por esse fenômeno. Nesse processo,
podemos constatar que o papel de autoridade do pai foi definitivamente
demolido. Antes, o menino tinha na figura do pai um rival e um modelo.
Um rival que despertava nele o gosto pela competição, e um modelo na
busca do prazer sexual. Já para a menina, tratava-se de um homem em quem
ela procurava se completar. Hoje, com o declínio da figura paterna,
nossos jovens podem estar menos propensos a batalhar pelo sucesso, a
estabelecer um ideal de vida e até a descobrir o gosto pelo sexo. Nesse
caso, a droga proporciona satisfações mais fáceis.
“Freud dizia que a força da religião reside no fato de que ela responde às perguntas que ninguém mais pode responder.”
Veja — É por isso que o consumo de drogas
não pára de crescer?
Melman — Eu diria que o apelo das drogas é tornar a existência cada vez
mais virtual. Dito de outra forma, as drogas afastam as contingências
da realidade. Trata-se de uma outra maneira de celebrar a virtualidade,
diferente da proporcionada pela internet. As drogas permitem uma
aventura psíquica, momentânea, uma trip, que supostamente não teria
outras conseqüências.
Veja — Como a psicanálise vê
as fobias na sociedade atual, que vive sob ameaças concretas,
decorrentes de problemas ambientais e da escalada do terrorismo, por
exemplo? É possível viver sem medo?
Melman — Pode parecer um
paradoxo, mas isso acrescenta pimenta à existência, esse sentimento de
que vivemos constantemente ameaçados. É um reencontro com os grandes
medos antigos, os medos milenares, ligados a uma suposta proximidade do
fim do mundo. O que é dramático é que hoje não se trata apenas de uma
crença imaginária, mas sim de algo muito mais grave do que isso. Criamos
armas de destruição em massa, por exemplo. Não sei se é possível nem se
seria positivo acabar com o medo na sociedade. Ele, de certa forma, é
um fator de proteção do sujeito, permite saber quem é o inimigo.
Veja — Como entra a religião nesse arsenal de enfrentamento das angústias humanas?
Melman — A religião sempre foi bem-sucedida em dar soluções às
angústias do homem, porque consegue explicar o que é esperado de cada
um. Explica o lugar da pessoa no mundo e o papel que ela tem a
desempenhar. Freud dizia que a força da religião reside no fato de que
ela responde às perguntas que ninguém mais pode responder. Em nome
disso, muitos se sacrificam inclusive financeiramente, doando uma parte
significativa de seu salário para garantir que um ser superior vai
livrá-lo das ameaças trazidas por suas falhas. Isso é muito visível em
um certo número de religiões novas, como as neopentecostais. Desse
fenômeno, que vocês conhecem bem no Brasil, posso citar como exemplo a
Igreja Universal do Reino de Deus. Fui assistir a um culto deles e
fiquei muito impressionado. Estive numa catedral, acho que em Recife,
produzida exatamente como a Disneylândia de Orlando, com jogos de luzes
bem feitos e pastores que fazem o estilo rapazes bonitos e simpáticos. O
prazer que o público tinha em cantar e dançar junto, em subir no altar
para dar dinheiro, era incrível. E eram pessoas pobres, claro.
Veja — Freud marcou o pensamento no século 20. Ele sobrevive ao século 21?
Melman — Não tenho certeza. O mundo caminha na direção oposta à
proposta pela psicanálise. Os remédios e, mais recentemente, os avanços
da neurociência, permitem ações diretas sobre os processos cerebrais,
deixando em segundo plano a subjetividade. Então a vida psíquica, e eu
sou pessimista nesse aspecto, corre o risco de ser cada vez menos
determinante sobre o destino de cada um. Freud chegou a escrever que um
dia a ciência estaria em condições de quantificar, de isolar as
substâncias responsáveis pelos eventos psíquicos. Mas os que estudam o
cérebro não estão interessados em Freud.”
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