ALEGRIA E FELICIDADE NA PSICANÁLISE
Chaim Katz: A anti-felicidade, o desamparo e mal estar ontológicos
dominam a psicanálise carioca; e o tema do fórum da Formação Freudiana
do Rio de Janeiro este ano é alegria e felicidade na Psicanálise. Será
isto possível? É, e achei que para abrir nosso "ano" hoje (04/03/1999),
ninguém melhor do que Carneiro Leão, meu professor; ele falará
o tempo que achar necessário, depois quem quiser perguntar, faça-o,
livremente. Tomei a liberdade de gravar, porque nos ajudará a organizar
um outro tipo de programa, desde a fala do Emmanuel. Quem Emmanuel é
quem sabe sabe, quem não sabe ainda não merece. Então, não vou
apresentá-lo.
Boa noite meus amigos.
Comovido com as palavras do Chaim, que é meu amigo desde que eu cheguei
aqui no Rio pela primeira vez. Por isso é que tem essas palavras tão
carregadas, tão de história, tão de uma amizade antiga, carioca,
inaugural.
Bom, que essa temática é muito importante da história do
pensamento ocidental, ela tem um peso de organização fundamental, mas
por isso, como são as questões fundamentais e essenciais, são questões
de desafio e não de solução. Quer dizer, não são respostas a essa
pergunta e a esse questionamento que levaram o comportamento social e
individual do Ocidente a caminhar para frente, a adiantar-se, a
progredir, mas são justamente os obstáculos e a dificuldade, a
provocação e o desafio dessas questões fundamentais que o fazem. Esta é
minha modesta contribuição e colaboração aqui, nessa aula inaugural para
a qual eu fui convidado, e pelo que agradeço de todo coração. Vai se
restringir a abrir algumas dimensões de interrogação, a aprofundar o
desafio e a provocação que nos trazem essas duas palavras articuladas
por um e: felicidade e alegria, como questionamento filosófico. Anotei
aqui algumas dimensões, alguns desdobramentos da questão e a primeira,
digamos, experiência com que nos deparamos com essa questão da
felicidade e da alegria é de que, sendo fundamentais as contribuições
que essas duas palavras nos trazem, elas estão sempre sujeitas a serem
tratadas com grande ligeireza. Significa o risco de um relacionamento
apressado, ligeiro, e um açodamento superficial é muito grande quando se
trata de felicidade e de alegria.
Por isso, se perguntarmos quais
são as respostas que ao longo da evolução das biografias ocidentais e
das histórias de comunidades ocidentais vêm sendo dadas à pergunta: o
que é que é a felicidade, o que é que é-alegria?, observaremos que essa
resposta tem sido de uma espantosa superficialidade nesse século. Por
que? Porque questões fundamentais se acompanham desse risco de
superficialidade, isto é, de serem tratadas de uma maneira ligeira,
açodada. É porque na superfície do comportamento ou da cultura, na
superfície é que se disputam os interesses, e é na superfície também que
se exercem as dominações. Mas, questões fundamentais não são apenas
superficiais, elas não somente desencadeiam os interesses e as
provocações de dominação, pois tem também uma outra dimensão, uma
dimensão de profundidade. A felicidade e a alegria não são feitas apenas
do interesse de dominação. São também construídas e edificadas com a
sua provocação, pela criatividade e inventividade do comportamento
individual e coletivo, social dos homens.
Por isso, a
superficialidade com que se costuma lidar com as questões referentes à
felicidade e à alegria é espantosa e é justamente por isso que é
espantosa essa superficialidade. Isto é, tanto a superficialidade quanto
o espanto, constituem apanágio não apenas da felicidade e da alegria,
como da condição humana e compõem o modo de realizar-se das comunidades
humanas. Isto é, toda comunidade humana, todo comportamento humano é
trabalhado, é atravessado pela tensão entre superficialidade e espanto.
Este espanto provém das entranhas das realizações humanas. De ambos, da
superficialidade e do espanto, participam todas as questões
fundamentais, todo desafio de provocação e de diferenciação, as questões
que se referem e dizem respeito ao humano, à condição humana, à
singularidade humana de todos nós, dos homens. Assim, não é possível se
obter um pouco de transparência, um pouco de encaminhamento ou de
dificuldade, de obscuridade, senão tomando tanto a felicidade quanto a
alegria pela profundidade de tudo que é desafio e provocação humana.
Persistir em enfrentar os desafios da condição humana é procurar saber o
que é o humano no homem, em nós mesmos, nos outros, no esse outro, no
esses outros; esses outros são os nossos outros, são os outros de nós
mesmos e os outros dos outros. É esta, portanto e sempre, enquanto se
persistir em enfrentar esse desafio, quando se supõe simplesmente que
não existe outro, só existe o si mesmo, nada existe além do que sabe a
transparência, a clareza da consciência a respeito do outro, enquanto se
ficar preso a essa condição de "nós já sabermos o que é que é ser
humano", pelo fato de sermos, nós mesmos, seres humanos e pertencermos a
humanidade, a verdadeira questão e o desafio fundamental da felicidade e
da alegria ficarão sempre para trás, às costas de qualquer empenho ou
esforço de relacionamento. É esse escamotear-se, esse esconder-se do
obscuro, do profundo, na superficialidade e na clareza, que marca sempre
de novo os esforços, as investigações, as discussões do conhecimento.
Do conhecimento humano, do que é que é o seu esforço e seu empenho por
ser feliz e alegrar-se.
Ao contrário do conhecimento, impõe-se,
portanto uma radicalização do relacionamento, pois, o conhecimento visa o
que? Visa sair do obscuro para o claro, visa reduzir as dimensões de
obstáculo, de provocação, de desafio para as dimensões do conhecido, do
já trabalhado, do já absorvido. E esta atitude ou este propósito, esse
esforço, têm o seu lugar e a sua razão de ser, mas não esgotam a
condição humana. Não chegam, portanto a preencher, não chegam a
satisfazer o cabedal de exigência das realizações em que todos nos
sentimos empenhados.
Por isso, ao contrário dessa atitude se impõe
uma radicalização do relacionamento com o esforço de buscar a felicidade
e de alegrar-se.
Essa radicalização poderemos encaminhá-la,
acompanhá-la ou senti-la através de uma pergunta simples: como é
possível que haja este feito, o fato absoluto da felicidade? Como é
possível haver alegria? Como se chega a ser trabalhado a ser
impulsionado a ser atravessado e o sentimento de alegrar-se? Alegrar-se
com que? Alegrar-se para que?
Alegrar-se de que? Talvez seja este um
dos caminhos de se radicalizar, de se aprofundar o relacionamento com
os fenômenos de felicidade e de realização humana na alegria. Este
fenômeno de radicalização talvez seja capaz de ajustar-se à seguinte
provocação: por que um ser natural, o homem se vê sempre de novo levado
por si mesmo a estar num outro ser, a estar numa natureza,
transformando-a em busca de felicidade e de alegria? Se se considera
essa colocação abstratamente, abrem-se três possibilidades do homem
estar na natureza buscando ser feliz, buscando alegrar-se com este
estar com sua natureza.
A primeira possibilidade aconteceria em
abstrato e dar-se-ia, se a natureza em que o homem esta oferecesse a ele
apenas facilidades. Neste caso, o ser do homem e o ser da natureza
coincidiriam perfeitamente, ou quase plenamente. Não haveria, assim,
indiferença entre um e o outro, entre o si mesmo e o outro de si mesmo. O
homem se esgotaria com ser a natureza e nada mais. Não haveria,
portanto, a provocação, o desafio, o empenho de alegrar-se e de ser
feliz, de buscar a felicidade. Tudo seria natureza. É o que acontece na
nossa experiência, ou o que nós achamos que acontece em nossa
experiência com os chamados seres naturais, com os fenômenos naturais.
Isto significa que um ser natural, digamos uma pedra, não se realiza na
diversidade, na diferenciação, nem pela diferenciação. E por isso ela
não pode se distinguir por nenhuma diferença de sua própria natureza.
Daí, não se colocar dentro da nossa experiência a questão da felicidade
da pedra, a questão do alegrar-se da pedra. Não quero com isso dizer que
se tenha a possibilidade de excluir da pedra esta condição de
alegrar-se, pois qualquer que seja o esforço e o empenho de nos
aproximarmos da pedra, é sempre nos aproximarmos do outro de nós mesmos.
Portanto, no alinhamento uniforme e unívoco do homem com a sua
natureza, o homem não poderia ter necessidade, seus desejos não se
diferenciariam de sua satisfação. E por isso mesmo não poderia haver a
experiência de desejo que nós temos, a partir da qual brotam o esforço e
a busca da felicidade, o empenho e a realização da alegria. Para haver
desejo é, pois, indispensável algum nível de insatisfação. O homem não
poderia ser homem se não lhe faltasse descontentamento. Significa que o
homem é um ser essencialmente descontente. Ele é um ser insatisfeito,
não se satisfaz nem com o que ele é e não tem, nem com o que ele tem e
não é. É sempre marcado não por esse trabalho, não de no desejo, não da
insatisfação entre ele e a natureza, ele e a sua natureza, ele e a
natureza outra dos outros, a natureza da natureza, a natureza criativa
ou a natureza criada. Sem oferecerem resistência um ao outro, homem e
natureza não se distinguiriam entre si. Não se daria nem mesmo a
possibilidade de alguma desigualdade, pelo simples fato de não haver
dois, mas um só. Alegria é sempre uma experiência do plural, esse plural
não precisa ser sempre e necessariamente individual. Mas está sempre
atravessado por uma cisão entre o si mesmo e o outro, entre a
necessidade e a sua satisfação, o seu objeto de satisfação, o que é
capaz de conservar e aumentar por transformação, por diferenciação, a
insatisfação da necessidade, da demanda de necessidade. Estar na
natureza equivaleria, nessa primeira hipótese, é uma hipótese abstrata,
equivaleria a estar dentro de si mesmo.
Mas essa não é a única hipótese que se pode inventar abstratamente.
Pode-se fazer uma hipótese contrária a essa. A segunda possibilidade
abstrata seria o inverso dessa primeira. A natureza não ofereceria ao
homem senão dificuldades intransponíveis entre obstáculos que não
poderiam ser vencidos, ultrapassados, nem ser transformados; nem
transformado fora de si, nem transformados dentro de si. O ser do homem e
o ser da natureza não seriam somente diversos e diferentes, mas seriam
trabalhados por um antagonismo excludente. Também neste caso não poderia
haver felicidade nem alegria. O homem não poderia estar na sua natureza
nem na natureza do outro, nem por um instante. Pois todo e qualquer
esforço de persistência seria um esforço fadado sempre a fracassar,
antes mesmo de buscar qualquer empenho de realização.
Por isso, uma
terceira possibilidade, também abstrata, embora se apresente como sendo
concreta. Concreta porque nasce com a própria realização do empenho, da
busca, do desejo de ser feliz ou da experiência de alegrar-se com a
busca da felicidade. Alegrar-se com a busca da felicidade significa não
ser totalmente, inteiramente feliz. Isso faz parte da felicidade, faz
parte da experiência da alegria, assim como a insatisfação é
constitutiva do processo de elaboração do desejo.
Ao estar na
natureza, o homem se descobre inserido numa rede híbrida, emaranhada
tanto de facilidades quanto de dificuldades. Toda a sua realização
resulta de uma conquista desses dois poderes. O fenômeno, o processo
mais radical de todos que conferem realidade à busca da felicidade e dão
um perfil de realização à vida humana, é esta ambigüidade radical de se
estar imerso num mundo de facilidades e de dificuldades. E que, por
isso mesmo, é trabalhado pela dinâmica criadora da diferenciação, da
busca das diferenças. E por que? Porque se o homem não dispusesse de
facilidades, não seria possível viver e, em conseqüência, sobreviver.
São as facilidades da natureza que lhe proporcionam o desafio de existir
na busca da felicidade. De alegrar-se com essa busca, de alegrar-se com
o impacto que lhe atravessa todas as entranhas, de buscar aquilo que
não se tem, mas que se dispõe do empenho e da força de diferenciar-se,
para poder se fazer a experiência de não se ter. Mas como esta proporção
inclui sempre dificuldades, a possibilidade de sobreviver e de existir
inclui sempre, a cada instante, a ameaça e o perigo do fracasso. Pois a
alegria é o relacionamento com o perigo do fracasso em termos de
criação, em termos de transformar o fracasso em realização. Agora se
pode então perceber, dentro dessa perspectiva, porque a vida humana não é
um estar inerte, passivo, mas um desafio de conquistar constantemente a
sua sobrevivência, numa relação, numa busca incessante de felicidade,
acompanhada pela alegria da transformação.
Assim, toda felicidade é
sobrenatural, no sentido de estar além do que é dado como natureza, como
natureza acabada, pronta, entregue. Significa que o sobrenatural para a
realização da busca de felicidade humana é a diferenciação, a entrega
de uma provocação criativa de diferenciação.
Portanto, o sobrenatural tem o sentido de estar além e acima do já pronto e acabado da natureza.
Esta experiência se faz fora da história ocidental, que é a nossa
história, história em que fazemos a nossa experiência, mesmo a
experiência da diferenciação, do encontro com os diferentes. Heráclito
já lhe tinha dado uma extensão de totalidade quando ele fala da luta da
diferenciação. Pois é esta luta que nos habilita a buscarmos o controle e
o domínio, não apenas do que nós somos e temos, mas também daquilo que
constitui o limite de nosso esforço de ter alguma coisa ou de ser alguma
coisa, ou de buscar a realização de algum empenho. O exemplo dado aqui é
o da pedra, que o seu modo de ser é o integrante da paisagem. Esse modo
de ser integrante da paisagem lhe é dado pronto e acabado. Significa,
em nossa experiência, que a pedra não tem de conquistar nem a paisagem,
nem um lugar na paisagem, nem de diferenciar-se dessa paisagem e desse
lugar. A pedra não conquista a sua condição de pedra na refrega de
conflitos e de tensões, de empenhos com a transformação do fracasso,
através da alegria. Para o homem, é que ser e combater se identificam.
Assim, o homem tendo que lutar com as dificuldades para transcender a
natureza, o que define e caracteriza sua diferenciação ou sua diferença
com o não humano é a busca da felicidade. É ter o ofício de criar a cada
instante o próprio relacionamento. Ao homem, portanto, só é conferi da a
possibilidade de ter a realidade de sua própria alegria, de sua
própria felicidade. A felicidade se conquista no combate das diferenças,
pela diferenciação de suas experiências de alegria. O homem tem de
ganhar a vida, como está escrito no livro do Gênesis, com o suor de seu
rosto em todos os níveis de sua realização e não apenas no nível
econômico do pão de cada dia, mas, sobretudo no regime da diferenciação e
da diversidade de seus empenhos e de suas lutas, de seus conflitos de
felicidade.
Então, é com o suor do rosto que o homem se torna feliz e
se alegra com esse suor. E tudo isto porque o modo de ser do homem não
coincide perfeitamente com o modo de ser de suas naturezas. É que o
homem é feito de uma condição híbrida: em parte afinado, em parte
desafinado com sua própria natureza. É ao mesmo tempo um ser natural e
trabalhado por um empenho e um esforço de transcender, de ultrapassar,
de não contentar-se com a sua natureza.
Aristóteles tem uma palavra
que diz o seguinte: que o homem está numa fronteira entre duas coisas
diferentes que se conflitam, que se combatem, que se embatem uma na
outra. Ele diz que o homem é o fronteiriço real, um fronteiriço da
realidade, que vive na interseção de natureza e sobrenatureza, que
transforma tanto o natural quanto o sobrenatural numa terceira dimensão,
dimensão esta que se torna a sua alegria, sua primeira diversão.
Significa que o que há de espiritual no homem, o que há de mental no
homem é sempre a sua natureza, mas é a sua natureza dotada e trabalhada
por uma dinâmica de diferenciação, de transformação, de ir cada vez mais
abrindo novas acolhidas para novas diferenças. O que ele tem de natural
não se realiza por si mesmo. A natureza lhe é uma questão tão
fundamental quanto o espírito, porque o espírito nada mais é do que a
natureza movida por uma dinâmica de diferenciação. Por isso, o homem
sente sua natureza como um desafio de transformação, numa realização
típica e especificamente trabalhada por uma busca de felicidade. Por sua
vez, a sobrenatureza, ele não a recebe pronta e realizada, mas como
possibilidade de realização, como uma tarefa a ser criada e ser
cumprida. O homem é sempre, em todas as dimensões e níveis, seu empenho
de ser, ele é sempre um empenho, ou como numa palavra que no início do
século se usava muito, um projeto, uma busca, um empenho, um projeto de
diferenciação. E somente como projeto que ele vive e sente, assume e
aceita as condições de sua experiência, os percalços e as peripécias de
sua realização. A cada instante, portanto, nesse empenho é o que o homem
sente o que ele chama de vida, no afã de cumprir esse projeto de
diferenciação, de transformação. Tudo o que faz ou deixa de fazer, tudo o
que é ou deixa de ser, acha-se sempre a serviço e se dá sempre em
função desse projeto de diferenciação.
Mas não se deve confundir
projeto com programa. Por que? Porque programa é uma combinação de
possibilidades já decididas e realizadas, já prontas, já dadas, já
operantes, já disponíveis. Projeto é uma aventura de criar
possibilidades, de criar a diferença que se é na aceitação desse
hibridismo das dificuldades e das facilidades. Se nós - estamos aqui
reunidos, é porque aceitamos, de um modo ou de outro, que todo empenho
que se fizer nos faz chegar a ser pessoal e comunitariamente, esse
projeto de diferenciação que cada um sente e assume no que é ser, na
sua maneira, dentro de seus limites, suas vivências e seus obstáculos.
Assim, na felicidade, o homem é uma realização que não tem realidade
nem natural, nem sobrenatural, nem corporal, nem espiritual. Trata-se
sempre de um esforço por realizar e buscar uma diferenciação. Ninguém
nunca é tudo o que tem por isso todos aspiram e se empenham por
conquistar o que lhes é dado ter, lhes é dado ser, lhes é dado ser e ter
na diferença, na diferença com o outro, na diferença consigo mesmo, É
essa a condição de toda e qualquer busca de felicidade que, como se diz
na passagem do salmo, que alegra o coração do homem, uma realização
única e sem repetição na totalidade do real e no universo das
realizações.
Por esse empenho de busca de felicidade, o homem se faz
mais estranho para si mesmo, para os outros. Uma realização cuja
realidade não está no que já é, mas no que ainda não é. Uma realização
que consiste em nunca ser tudo que sua capacidade de diferenciação lhe
confere. O conjunto, os modos de ser que se reduzem ao que cada um já é
cuja possibilidade de diferenciar-se coincide com a atualidade de um
empenho de uma condição já dada, é o que chamamos de natureza.
Neste
sentido, a busca de felicidade se distingue da natureza que visa
assumir a pretensão de ser, ao mesmo tempo, identidade com a natureza na
diferença, na diferenciação da natureza. Cada época, cada povo, cada
indivíduo molda e modula de modo diferente a pretensão de felicidade.
Significa a pretensão de projetar a sua diferenciação e realizar um
projeto de vida, que é como se fosse uma palavra que só é dita uma vez e
nunca mais se repete. Agora talvez isto se compreenda, mas com certa
obscuridade, pois a obscuridade não é uma deficiência, mas promessa de
diferenciação. As suposições e os pressupostos desse fenômeno radical
que são a busca da felicidade e o alegrar-se com essa busca, por não ser
totalmente presenteado, como um dom recebido feliz, a felicidade. A
felicidade como um dom uma degradação, é, portanto a tristeza da
realização humana.
Existir consiste em realizar o projeto do que
somos e não somos, dentro de determinada integração do processo
diferenciador de nossas possibilidades, que não nos são dadas, mas que
devem ser conquistadas. Por isto, não se pode escolher de antemão a
felicidade em que estamos empenhados de alcançar, de buscar. É que nós
já nos encontramos, desde sempre, dentro de um esforço, de um movimento,
dentro de um processo que perfazem a ordem de nossa diferenciação.
Este processo, esta ordem, não é apenas a paisagem que nos cerca, mas
também a nossa própria história, o nosso próprio corpo, nossa própria
condição, nossa própria mentalidade.
Mas tudo isso, eu não tenho como coisas dadas, eu só os tenho como trama de diferenciação.
O projeto que aciona essa conquista de felicidade impõe seu perfil a
tudo que recebemos e encontramos em nossa experiência, em nossos
percursos. Assim, a natureza não é senão o conjunto de todas as nossas
condições de produzir possibilidades ou descobrir limites que conferem
ao nosso projeto de diferenciação, não somente o seu sucesso, ou a sua
perspectiva de sucesso, mas também, o que ele tem de sal, de gosto, de
sabor.
A felicidade é o acervo dessas experiências da busca do
alegrar-se com a diferença, pois o alegrar-se com a diferença implica em
aceitar e transformar o que não se tem num caminho e num movimento de
conquista de novas realizações e novos projetos. E assim, felicidade
representa uma experiência de conquista da diferenciação, que
continuamente a nossa alegria nos trás e nos assegura no elan de, mesmo
no fracasso, mesmo no cansaço, mesmo na desistência, nos animar com
novos projetos de realização e nova busca de conquista do que ainda não
somos, mas já temos.
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