O que é ser psicanalista?
A psicanálise é o exercício da diferença no sentido de
permitir que o sujeito e o objeto possam ser elevados a
categoria da Coisa.
Quem vai em busca de análise não sabe o que está buscando; e o analista
sabe o que é ser psicanalista? Lacan, no seu Seminário I, pergunta:
"Qu’est-ce que nous faisons quand nous faisons de l’analyse?". Retomo
esta questão para mim a cada nova sessão de paciente – como dar-se conta
do que implica a posição do analista, posição que possibilita o
levantamento do recalque, permitindo a emergência do sujeito do
inconsciente, sujeito dividido, sujeito do desejo (S/)? Isto impõe uma
direção do tratamento, pois não se trata de intuição mas de uma direção
na dedução e na construção, no manejo da transferência, não havendo
nenhuma garantia, a não ser no après-coup, da validade do ato analítico.
E quando o analista se perde de sua função; como se reencontrar? Que
aspectos de sua clínica levariam a uma maior precisão teórica, que
elementos teóricos o ajudariam a se reposicionar? Como sustentar a
diferença e a destituição subjetiva, direção do percurso de sua própria
análise?
Há uma condição que se impõe de princípio para o
psicanalista em relação àquele que o procura: ele, analista, não está
ali para responder incondicionalmente ao pedido de ajuda que lhe é
feito. O ato de aceitar alguém em análise é uma resposta analítica,
trabalhada pelo analista desde o início do primeiro contato. Em última
instância, é a posição do analista que possibilita a emergência do
inconsciente, sempre virtual. É nas entrevistas preliminares, ao início
do trabalho analítico, que se opera a retificação subjetiva que
possibilitará a transferência analítica e, só então, a abertura do campo
da interpretação. Por exemplo: se alguém vem ao analista trazendo a
demanda de encontrar a "mãe ideal", delegando ao analista esse lugar
imaginário, cabe ao analista manejar essa transferência imaginária, de
modo a que essa demanda se transforme em uma questão analítica, numa
retificação subjetiva que o implique num processo de trabalho analítico,
no qual possa se instaurar a cadeia significante com conseqüências.
Todo trabalho, portanto, vai depender do desejo do analista tanto na
função de sujeito suposto saber (Sss), como na função de objeto, na
sustentação do vazio, para que aí se fale, para que aí aconteça a
associação livre, fala que está em transferência e que faz com que se
produza um determinado saber no analisante – o mito individual do
neurótico – em suas formações do inconsciente e nas opacidades do
"umbigo do sonho".
A aceitação de uma assimetria radical entre
analista e analisando é o que implica alguém nesta posição de analista,
uma assimetria que faz obstáculo à reciprocidade, da ordem do especular,
necessária para a identificação, que se dá no campo do imaginário, com o
outro especular, semelhante (outro com minúscula), na
intersubjetividade. Cabe ao analista sustentar um lugar simbólico, que
na teoria lacaniana é denominado Outro (outro com maiúscula), que
permita que a "inflação" imaginária ceda lugar ao simbólico e ao mais
além, da ordem do inominável, da ordem do real. Lacan diz no Seminário
I: "Vocês podem assegurar-se, desde então, que a regulação do imaginário
depende de qualquer coisa que está situada de maneira transcendente,
como diria Hyppolite – o transcendente na ocasião não sendo nenhum outro
que a ligação simbólica entre os seres humanos. O que é a relação
simbólica? É, para pôr os pingos nos is, que socialmente nós nos
definimos por intermédio da lei. É a troca de símbolos que situa os
nossos eus, uns em relação aos outros. Em outros termos, é a relação
simbólica que define a posição do sujeito como aquele que vê."
E
o que fazer com a demanda do analisando, sabendo de antemão que a
demanda é antes de mais nada isso a que não se deve responder? Paradoxo,
pois é com a demanda que se começa uma análise, é preciso uma demanda
de análise. E é essa demanda que vai se articular, renovar-se nos
significantes da análise e constituir-se em cadeia significante; a
direção do tratamento provocando uma vacilação da demanda, instaurando o
desejo numa dialética que permita ultrapassar o impasse da demanda.
Lacan disse que Desidero é o cogito freudiano, e que a posição do
analista é responder à ética freudiana do desejo, que está em
contradição seja com os ideais da cultura (a assimetria entre analista e
analisando não responde ao ideal democrático de igualdade e
fraternidade), seja com os ideais da pessoa do analista. Freud, em
vários momentos ao longo de sua obra, ataca os desvios que poderiam
levar o analista a não responder a sua função de analista: colocar-se
como educador, como ideal, como amo do desejo, como filantropo. Pois, se
aquele que vem em busca de ajuda quer alcançar a felicidade e acredita
que o analista tem ocaminho, tem o bom julgamento entre o Bem o Mal,
cabe ao analista saberque este julgamento não pode ser da ordem do bom
senso e que a felicidadeimaginária almejada não pode ser alcançada.
Todosestes valores estão profundamente subvertidos pelo pensamento
freudianoque não denega o que é da ordem da sexualidade e da morte.
Freud pôs-se contra a ética aristotélica, idealista,que põe como
finalidade o Soberano Bem (o Outro não zelapelo bem comum, não faz
parceria). Ficou do lado de Kant, que referea ética à lei, a qual deve
determinar o ato. Entretanto,Freud é pessimista quanto à eficácia da
lei, poisnão denega as forças pulsionais que habitam o Homem. O
serfalante está definitivamente marcado em suas açõespela presença da
pulsão que é parcial, polimorfa.Em O Mal Estar na Cultura, Freud fala da
impossibilidade de se cumprir"a mais recente das ordens culturais do
superego, o mandamento de amarao próximo como a si mesmo". Freud não se
põe do ladoideal superegóico, situando-se na escuta do sintoma, desvio
queo desejo toma, por efeito do recalque, para se realizar numa
negaçãoda castração.
O analisando chega à análise com seus nós
sintomáticos,suas demandas, seus enunciados. Trata-se na sessão
analíticade abrir, a partir daí, a questão do desejo, apontar parao
sujeito da enunciação, construir o fantasma (a Outra Cena).No entanto,
se desde a entrada em análise a demanda já estáem função, trata-se de
desde as primeiras pontuaçõesabrir a dialética do desejo, abrir pela
incógnita do desejodo Outro, o que se construirá como a cena
fantasmática. Ese é o complexo de castração que tem a funçãode
instalação do recalque e a conseqüência daestruturação do sintoma, é
para este rochedo que aanálise freudiana se dirige e não há outro
caminhopara o analista que não seja o de aproximação ao desejopelo
levantamento do recalque. A ética que se impõe, a partirda clínica, é
ditada pelo desejo que se desvela pela relaçãodo sujeito com o
significante através das formaçõesdo inconsciente – só se pode alcançar
um sentido pela viado significante.
O desejo é a verdade do
sujeito, verdade que não residena obediência ao princípio do prazer e
sim a um mais alémdo princípio do prazer, aonde está a causa, a Coisa
inacessível,objeto desde sempre perdido. A teoria do sujeito dividido
(S/), sujeitodo inconsciente, mostra-nos justamente que somos destinados
a nunca nossatisfazermos com um mundo calculado para nos fornecer
prazeres. Éo desejo do analista na direção do tratamento que realizaum
campo onde o desejo surge pela imposição da castraçãona lei do incesto. E
quando o desejo surge como a lei (que supõea lei do incesto) põe as
ideologias em questão e a psicanáliseem seu trabalho com o desejo revela
a distância que há entrea articulação do desejo no Homem e o que se
passa quandoo desejo toma o caminho de se realizar. Se o humanismo
aponta para a harmonia,a psicanálise, para a desarmonia. O Homem em
psicanálisenão é tomado como centro do universo, como fim em si
mesmo;pelo contrário, ele aparece como decomposto, como corpo
despedaçadopelo jogo das pulsões, como movido por um mais além – umOutro
fala nele. Na passagem da natureza para a cultura dá-se oaprisionamento
na linguagem deixando o ser falante em um paradoxo: se porum lado a
linguagem permite-lhe a criação, por outro ladoveta qualquer saída de
plenitude, de solução suprema.
Você agiu conforme o seu desejo?
Lacan mostra no seminário da Ética que esta questão ética só pode se
colocar na psicanálise – a ética freudiana consiste num julgamento sobre
a ação, num retorno ao sentido da ação, sentido referido ao desejo. O
campo do discurso analítico remete o sintoma a uma rede significante, à
dimensão simbólica da metáfora e da metonímia, das formações do
inconsciente – a questão fundamental do desejo só pode ser pensada pela
determinação do significante. É a partir desta dimensão simbólica que se
pode interpretar – interpreta-se o que está escrito, o que está no
simbólico já interpretado. E é neste percurso interpretativo de aceder
ao desejo, levado às últimas conseqüências, que se vai em direção ao
campo central do desejo, do mais além, à ordem do gozo, chegando ao
âmago da questão ética, tocando o real na construção da cena
fantasmática. O real aparece quando se força a língua até seus limites. A
ética da psicanálise se liga ao que está além do princípio do prazer,
além do recalque – vai da questão do desejo, do desejo do Outro, à
relação da falta, à localização do Homem em relação ao real; à
descoberta de que o universo da falta não é mórbido mas constitutivo; à
ficção do desejo – o fantasma, construído em análise. A ética está
atravessada pelo real, sustentada em um universo de falta, tendo como
bisturi a pulsão de morte.
É importante lembrar que há o S1
articulado ao S2 na cadeia significante e que há S1 não articulado à
cadeia – a Coisa é da ordem do não representável. É o desejo do analista
que mantém a sustentação do lugar vazio para que aí se fale. Nesta
função de vazio a presença do analista trabalha o objeto a, para
destituí-lo (objeto causa do desejo, não representável; posição só
sujeito na cena fantasmática, posição esta de completamento do Outro, de
tampão da falta do Outro). O objeto em psicanálise é desde sempre
perdido. Da função de Sss para a função de pura presença faz-se a
articulação entre o saber e o rochedo da castração. Introduzir o
discurso do Outro é introduzir a possibilidade de articulação do sujeito
e é o meio de localizar esta significação, que prende o sujeito à
alienação no discurso do Outro. É na travessia desta posição que, em sua
estática, responde à ética do desejo, ao mesmo tempo que é ponto de
dessubjetivação; suporte do desejo, ao mesmo tempo que o ponto em que o
gozo se desvela.
E o fim de análise? É a radicalidade da
singularidade. A psicanálise é o exercício da diferença no sentido de
permitir que sujeito e objeto possam ser tomados em sua
não-representabilidade, elevados à categoria da Coisa. O fim da análise é
um poder desejar na spaltung, sustentado na castração; poder operar
mais a sublimação como destino da pulsão; poder passar de objeto do
desejo do Outro a sujeito do desejo na travessia do fantasma, pela
destituição do objeto a.
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