O que é felicidade? Provavelmente, cada pessoa que resolver responder a esta pergunta apresentará uma resposta própria, pois a felicidade, num certo sentido, é Filosofia e felicidade: O que é ser feliz segundo os grandes filósofos do passado e do presente


Algo
individual, pessoal e intransferível. Por outro lado, há uma ideia de
felicidade que pertence ao senso comum e é compartilhada pela esmagadora
maioria das pessoas: felicidade é ter saúde, amor, dinheiro suficiente,
etc. Além disso, a ideia de felicidade não é uma coisa recente. Com
certeza, ela acompanha o ser humano há muito tempo e faz parte de sua
história.
Sendo assim, é possível traçar a evolução histórica
dessa ideia, se nos debruçarmos sobre a disciplina que sempre se dedicou
a investigar nossas ideias, de modo a defini-las e esclarecê-las: a
filosofia. Na verdade, a ideia de felicidade tem grande importância para
a origem da filosofia. Ela faz parte das primeiras reflexões
filosóficas sobre ética, que foram elaboradas na Grécia antiga. Vamos,
então, acompanhar a evolução histórica dessa ideia fazendo uma viagem
pela história da filosofia.
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Filosofia e felicidade: o que é ser feliz segundo os grandes filósofos do passado e do presente
Tanto Platão quanto Aristóteles associavam a felicidade à virtude. Para
o primeiro, todas as coisas têm sua função: a do olho é ver; a do
ouvido, ouvir; a da alma, ser virtuosa. Já o segundo foi o filósofo que
estabeleceu a Ética como uma reflexão sobre a felicidade, num livro
escrito para seu filho Nicômaco. No quadro "A escola de Atenas", de
Rafael Sanzio, os dois filósofos são vistos ao centro (e aqui também no
detalhe), dialogando. Platão, o mais velho, aponta para o céu, o que
simboliza seu idealismo. Aristóteles tem a mão voltada para a terra, o
que representa seu realismo. Reprodução
A referência
filosófica mais antiga de que se dispõe sobre o tema é um fragmento de
um texto de Tales de Mileto, que viveu entre as últimas décadas do
século 7 a.C. e a primeira metade do século 6 a.C. Segundo ele, é feliz
“quem tem corpo são e forte, boa sorte e alma bem formada”. Vale atentar
para a expressão “boa sorte”, pois disso dependia a felicidade na visão
dos gregos mais antigos.
Bom demônio
Em grego,
felicidade se diz “eudaimonia”, palavra que é composta do prefixo “eu”,
que significa “bom”, e de “daimon”, “demônio”, que, para os gregos, é
uma espécie de semi-deus ou de gênio, que acompanhava os seres humanos.
Ser feliz era dispor de um “bom demônio”, o que estava relacionado à
sorte de cada um. Quem tivesse um “mau demônio” era fatalmente infeliz.
Não há dúvida de que, entre os séculos 10 a.C. e 5. a.C, o pensamento
grego tende a considerar os maus demônios mais frequentes do que os bons
e apresentar uma visão pessimista da existência humana. Não é por acaso
que os gregos inventaram a tragédia. Uma expressão radical desse
pessimismo nos é fornecido por um velho provérbio grego, segundo o qual
“a melhor de todas as coisas é não nascer”.
Foi a filosofia que
rompeu com essa visão pessimista e procurou estabelecer orientações
para que o homem procurasse a felicidade. Demócrito de Abdera (aprox.
460 a.C./370 a.C.) julgava que a felicidade era “a medida do prazer e a
proporção da vida”. Para atingi-la, o homem precisava deixar de lado as
ilusões e os desejos e alcançar a serenidade. A filosofia era o
instrumento que possibilitava esse processo.
Virtude e justiça
Sócrates (469 a.C./399 a.C.) deu novo rumo à compreensão da ideia de
felicidade, postulando que ela não se relacionava apenas à satisfação
dos desejos e necessidades do corpo, pois, para ele, o homem não era só o
corpo, mas, principalmente, a alma. Assim, a felicidade era o bem da
alma que só podia ser atingido por meio de uma conduta virtuosa e justa.
Para Sócrates, sofrer uma injustiça era melhor do que praticá-la e, por
isso, certo de estar sendo justo, não se intimidou nem diante da
condenação à morte por um tribunal ateniense. Cercado pelos discípulos,
bebeu a taça de veneno que lhe foi imposta e parecia feliz a todos os
que o assistiram em seus últimos momentos.
Entre os discípulos
de Sócrates, Antístenes (445 a.C./365 a.C.) acrescentou um toque pessoal
à ideia de felicidade de seu mestre, considerando que o homem feliz é o
homem autossuficiente. A ideia de autossuficiência (que, em grego, se
diz “autarquia”,) continuará diretamente vinculada à de felicidade nos
setecentos anos seguintes.
Uma função da alma
Mas o
maior discípulo de Sócrates, que efetivamente levou a especulação
filosófica adiante de onde a deixara seu mestre, foi Platão (348
a.C./347 a.C.), o qual considerava que todas as coisas têm sua função.
Assim, como a função do olho é ver e a do ouvido, ouvir, a função da
alma é ser virtuosa e justa, de modo que, exercendo a virtude e a
justiça, ela obtem a felicidade.
É importante deixar claro que
noções como virtude e justiça integram uma vertente do pensamento
filosófico chamada Ética, que se dedica à investigação dos costumes,
visando a identificar os bons e os maus. Para Platão, a ética não estava
limitada aos negócios privados, devendo ser posta em prática também nos
negócios públicos. Desse modo, o filósofo entendia que a função do
Estado era tornar os homens bons e felizes.
A ligação entre
ética e política estará ainda mais definida na obra do mais importante
discípulo de Platão, Aristóteles (384 a.C./322 a.C.), o qual dedicou
todo um livro à questão da felicidade: a “Ética a Nicômaco” (que é o
nome de seu filho, para quem o livro foi escrito). Amigo de Platão, mas,
em suas próprias palavras, “mais amigo da verdade”, Aristóteles
criticou o idealismo do mestre, reconhecendo a necessidade de elementos
básicos, como a boa saúde, a liberdade (em vez da escravidão) e uma boa
situação socioeconômica para alguém ser feliz.
Felicidade intelectual
Por outro lado, a partir de uma série de raciocínios que têm como base o
fato de o homem ser um animal racional, Aristóteles conclui que a maior
virtude de nossa “alma racional” é o exercício do pensamento, pelo quê,
segundo ele, a felicidade chega a se identificar com a atividade
pensante do filósofo, a qual, inclusive, aproxima o ser humano da
divindade.
Sem perder de vista a aplicação prática de suas
ideias, Aristóteles considera a política como uma extensão da ética e,
nesse sentido, para ele também é uma função do Estado criar condições
para o cidadão ser feliz. O Estado que o filósofo tinha em mente, porém,
era a “polis” grega, que, naquele momento, estava deixando de existir,
com o surgimento do império de Alexandre o Grande.
Depois de
Alexandre, no mundo grego ou helênico, desenvolveram-se três escolas
filosóficas que vão se estender até o fim do Império romano, as chamadas
filosofias helenísticas. Todas elas, por caminhos diferentes, chegam a
conclusão de que, para ser feliz, o homem deve ser não só
autossuficiente, mas desenvolver uma atitude de indiferença, de
impassibilidade, em relação a tudo ao seu redor. A felicidade, para
eles, era a “apatia”, palavra que, naquela época, não tinha o sentido
patológico que tem hoje.
Prazer e salvação da alma
Entre os filósofos do mundo helênico, pode-se citar Epicuro (341
a.C./271 a.C.), para deixar claro que essa ideia de “apatia” não
significa abdicar ao prazer. O prazer era essencial à felicidade para
Epicuro, cuja filosofia também é conhecida pelo nome de hedonismo (em
grego “hedone” quer dizer “prazer”). Mas ele deixa claro, numa carta a
um discípulo, que não se refere ao prazer “dos dissolutos e dos
crápulas” e sim ao da impassibilidade que liberta de desejos e
necessidades.
Com o fim do mundo helênico e o advento da Idade
Média, a felicidade desapareceu do horizonte da filosofia. Estando
relacionada à vida do homem neste mundo, ela não interessou aos
filósofos cristãos como Agostinho de Hipona (354 d.C./430 d.C.), Anselmo
de Canterbury (1033/1109) ou Tomás de Aquino (1225/1274), todos santos
da Igreja católica. Para a filosofia cristã, mais do que a felicidade, o
que conta é a salvação da alma.
Os filósofos voltaram a se
debruçar sobre o tema na Idade Moderna. John Locke (1632/1704) e Leibniz
(1646/1716), na virada dos séculos 17 e 18, identificaram a felicidade
com o prazer, um “prazer duradouro”. Alguns décadas depois, o filósofo
iluminista Immanuel Kant (1724/1804), na obra “Crítica da razão prática”
definiu a felicidade como “a condição do ser racional no mundo, para
quem, ao longo da vida, tudo acontece de acordo com o seu desejo e
vontade”.
Direito do homem
No entanto, para Kant, como
a felicidade se coloca no âmbito do prazer e do desejo, ela nada tem a
ver com a Ética e, portanto, não é um tema que interesse à investigação
filosófica. Sua argumentação foi tão convincente que, a partir dele, a
felicidade desapareceu da obra das escolas filosóficas que o sucederam.
Mesmo assim, não se pode deixar de mencionar que, no mundo de língua
inglesa, na mesma época de Kant, a ideia de felicidade ganhou lugar de
destaque no pensamento político e buscá-la passou a ser considerada um
“direito do homem”, como está consignado na Constituição dos Estados
Unidos da América, que data de 1787 e foi redigida sob a influência do
Iluminismo.
Egocentrismo e infelicidade
É também no
âmbito da filosofia anglo-saxônica, no século 20, que se encontra uma
nova reflexão sobre nosso assunto. O inglês Bertrand Russell (1872/1970)
dedicou a ele a obra “A conquista da felicidade”, usando o método da
investigação lógica para concluir que é necessário alimentar uma
multiplicidade de interesses e de relações com as coisas e com os outros
homens para ser feliz. Para ele, em síntese, a felicidade é a
eliminação do egocentrismo.
Mais recentemente, em 1989, o
filósofo espanhol Julián Marías também dedicou ao tema um livro notável,
“A felicidade humana”, em que estuda a história dessa ideia, da
Antiguidade aos nossos dias, ressaltando que a ausência da reflexão
filosófica sobre a felicidade no mundo contemporâneo talvez seja um
sintoma de como esse mesmo mundo anda muito infeliz.
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Os filósofos que fizeram a cabeça do mundo contemporâneo
Para entender a sociedade em que vivemos é necessário conhecer as
ideias que estão por trás dela. Nesse sentido, é especialmente
interessante conhecer o pensamento de filósofos que, desde o século
XVII, transformaram a visão que o homem tinha de si mesmo e do mundo ao
seu redor. Conheça esses pensadores que fizeram a cabeça do mundo
contemporâneo.
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