O HOMEM MODERNO E A CRISE DE INTERIORIZAÇÃO
Uma das mais importantes
explorações do homem, se não a maior delas, é a exploração de si mesmo, do seu
próprio mundo intrapsíquico. Aprender a se interiorizar; a criar raízes mais
profundas dentro de si mesmo; a explorar a história intrapsíquica arquivada na
memória; a questionar os paradigmas socioculturais; a trabalhar com maturidade
as dores, perdas e frustrações psicossociais; aprender a desenvolver
consciência crítica, a conhecer os processos básicos que constroem os pensamentos
e que constituem a consciência existencial são direitos fundamentais do homem.
Porém, freqüentemente, esses direitos são exercidos com superficialidade na
trajetória da vida humana. Um dos principais motivos do aborto desses direitos
é que o homem moderno tem vivido uma dramática crise de interiorização.
O ser humano, como complexo
ser pensante, é um exímio explorador. Ele explora, ainda>que sem a
consciência exploratória, até mesmo o meio ambiente intra-uterino, através dos
malabarismos fetais e da deglutição do líquido amniótico. E, ao nascer, em toda
a sua trajetória existencial, explora o mundo que o envolve, o rico pool de
estímulos sensoriais e interpreta-os.
Pelo fato de experimentar,
desde sua mais tenra história existencial, os estímulos sensoriais que
esquadrinham a arquitetura do mundo extra-psíquico, o homem tem a tendência
natural de desenvolver uma trajetória exploratória exteriorizante. Nessa
trajetória, ele se torna cada vez mais íntimo do mundo em que está, o
extrapsíquico, mas, ao mesmo tempo, torna-se um estranho para si mesmo.
O homem moderno, em
detrimento dos avanços da ciência e da tecnicidade, vive a mais angustiante e
paradoxal de todas as solidões psicossociais, expressa pelo abandono de si
mesmo na trajetória existencial. A pior solidão é aquela em que nós mesmos nos
abandonamos, e não aquela em que nos sentimos abandonados pelo mundo. É
possível nos abandonarmos na trajetória existencial? Veremos que sim. Quando o
homem não se repensa, não se questiona, não se recicla, não se reorganiza, ele
abandona a si mesmo, pois não se interioriza, ainda que tenha cultura e
múltiplas atividades sociais.
Os livros de auto-ajuda,
embora não tenham grande profundidade intelectual, são procurados com desespero
nas sociedades atuais, como tentativa de superar, ainda que ineficientemente,
a grave crise de interiorização que satura as pessoas. O homem que não se
interioriza é algoz de si mesmo, sofre de uma solidão intransponível e
incurável, ainda que viva em multidões.
"O homem que não se
interioriza dança a valsa da vida engessado intelectualmente." Sua
flexibilidade intelectual fica profundamente reduzida para solucionar seus
conflitos psicossociais, superar suas contrariedades, frustrações e perdas.
E mais fácil explorar os
fenômenos do mundo que nos envolve do que aprender a nos interiorizar e ser
caminhantes na trajetória de nosso próprio ser e explorar os fenômenos contidos
em nosso mundo intrapsíquico. É mais fácil e confortável explorar os estímulos extrapsíquicos,
que sensibilizam nosso sistema sensorial, do que explorar os sofisticados
processos de construção dos pensamentos, o nascedouro e desenvolvimento das
idéias, a organização da consciência existencial, as causas psicodinâmicas e
histórico-existenciais de nossas misérias, fragilidades, contradições
emocionais, etc.
Mergulhado num processo
socioeducacional que se ancora na transmissibilidade e no construtivismo do
conhecimento exteriorizante, o homem se torna um profissional que aprende a
usar, com determinados níveis de eficiência, o conhecimento como ferramenta ou
instrumento de trabalho. Porém, tem grandes dificuldades para usar o
conhecimento para desenvolver a inteligência: aprender a percorrer as avenidas
da sua própria mente, conhecer os limites e alcance básicos da construção de
pensamentos, regular seu processo de interpretação através da democracia das
idéias e tornar-se um pensador humanista, que trabalha com dignidade seus erros,
dores, perdas e frustrações, e aprende a se colocar no lugar do
"outro" e a perceber suas dores e necessidades psicossociais.
A SÍNDROME DA EXTERIORIZAÇÃO EXISTENCIAL
Infelizmente, como veremos, a
tendência intelectual natural do Homo sapiens, desde a aurora da vida
fetal até o seu último suspiro existencial, é seguir uma trajetória de
construção intelectual superficial. Uma trajetória socioeducacional em que ele
pouco se interioriza, pouco procura por si mesmo e pouco conhece a si mesmo.
Procurar a si mesmo é
explorar e produzir conhecimento sobre os processos de construção da
inteligência, ou seja, sobre os processos de construção dos pensamentos, sua
natureza, cadeias psicodinâmicas, limites, alcance, lógica, práxis, bem como
sobre a formação da consciência existencial, da história intrapsíquica arquivada
na memória, as bases que sustentam o processo de interpretação e as variáveis
que participam do processo de transformação da energia emocional.
Quem sai do discurso
intelectual superficial e procura "velejar" para dentro de si mesmo,
e vive a aventura ímpar de explorar sua própria mente, nunca mais será o
mesmo, ainda que fique perturbado num emaranhado de dúvidas sobre o seu
próprio ser. Aliás, ao contrário do que dizem os livros de auto-ajuda, a dúvida
é o primeiro degrau da sabedoria.
Quem não duvida e critica a
si mesmo nunca se posiciona como aprendiz diante da vida e, conseqüentemente,
nunca explora com profundidade seu próprio mundo intrapsíquico. Quem aprendeu a
vivenciar a arte da dúvida e da crítica na sua trajetória existencial se
posiciona como aprendiz diante da vida e, por isso, tem condições intelectuais
de repensar seus paradigmas socioculturais e expandir continuamente suas idéias
e maturidade psicossocial. Todos os pensadores, filósofos, teóricos e
cientistas que, de alguma forma, promoveram a ciência, as artes e as idéias
humanistas foram, ainda que minimamente, caminhantes nas trajetórias do seu
próprio ser e amantes da arte da dúvida e da crítica, enquanto produziam
conhecimento sobre os fenômenos que contemplavam.
O homem que aprende a se
interiorizar e a criticar suas "verdades", seus dogmas e seus
paradigmas socioculturais estimula a revolução da construção das idéias nos
bastidores clandestinos de sua mente. Assim, sai do superficialismo intelectual
e, no mínimo, aprende a concluir que os processos de construção da
inteligência, dos quais se destacam a produção das cadeias psicodinâmicas dos
pensamentos e a formação da consciência existencial do "eu", são
intrinsecamente mais complexos que uma explicação psicológica e filosófica
meramente especulativa e superficial, que chamo de explicacionismo,
psicologismo, filosofismo.
O homem moderno tem
vivenciado, com freqüência, uma importante síndrome psicossocial doentia, a
qual chamo de "síndrome da exteriorização O ser humano, nos dias atuais,
freqüentemente só tem coragem de falar de si mesmo quando vai a um psicólogo ou
a um psiquiatra. Tem uma necessidade vital de que o mundo gravite em torno de
si mesmo. Para ele, doar-se para o outro sem esperar a contrapartida do retorno
é um absurdo existencial, um jargão intelectual, um delírio humanístico. O
mundo das idéias dos portadores da síndrome da exteriorização existencial tem
pouco espaço para uma compreensão psicossocial e filosófica da existência
humana.
Aprender a interiorizar-se é
uma arte complexa e difícil de ser conseguida no terreno da existência. O homem
moderno tem sido um ávido consumidor de idéias positivistas misticistas,
psicologistas, como se tal consumo cumprisse, por ele, o papel inalienável e
intransferível de caminhar nas trajetórias sinuosas do seu próprio ser e de
aprender a expandir sua consciência crítica e maturidade intelecto-emocional.
PESQUISANDO E ESCREVENDO COMO UM ENGENHEIRO DE IDÉIAS
A complexidade da mente,
associada às deficiências do discurso literário para esquadrinhar os fenômenos
e processos envolvidos na construtividade de pensamentos, na formação da
consciência existencial e na transformação da energia psíquica, fizeram-me
rever, criticar e reescrever continuamente os textos deste livro. Por isso,
passei mais de dezessete anos de intensa dedicação a escrevê-los, bem como aos
demais textos que compõem o arcabouço teórico da minha produção de
conhecimento e que ainda não foram publicados, objetivando que esses textos não
sejam efêmeros na ciência, mas que criem raízes e sejam úteis em diversas áreas
psicossociais.
A maioria das idéias contidas
nas frases que escrevi foram, dentro das minhas limitações, cuidadosamente
elaboradas para que expressem com um pouco mais de justiça intelectual alguns
fenômenos sofisticados que atuam nos bastidores inconscientes e nos palcos
conscientes da inteligência. Por trás de diversas frases se escondem
mecanismos psicodinâmicos sofisticados. Seria possível escrever um estudo à
parte sobre algumas delas, o que escapa aos objetivos deste livro. Além disso,
um problema aconteceu inevitavelmente com a fraseologia ou construção das
frases; elas se tornaram freqüentemente longas, devido à complexidade das
idéias nelas circunscritas, diferente das frases jornalísticas, que são
curtas, de fácil entendimento, porque encerram normalmente assuntos sem muita
complexidade.
Escrevi este livro não apenas
como um escritor, mas como um engenheiro de idéias... Cada idéia nele contida
sofreu uma engenharia dialética. Por isso, até aquelas que estão nos labirintos
dos textos e que, às vezes, passam despercebidas à compreensão, são
importantes.
Na construção das idéias,
tive de me tornar inevitavelmente um "neologista", ou seja, um
construtor e empregador de diversas palavras ou expressões novas — não
existentes na linguagem científica e coloquial — tais como psicoadaptação, Homo
interpres, fenômeno do "autofluxo", ou de palavras antigas com um
sentido novo, tais como "autochecagem da memória" e "âncora da
memória", pois a linguagem científica e coloquial se mostraram
insuficientes para definir, conceituar e discursar teoricamente a construção
dos fundamentos da inteligência. Além disso, uso freqüentemente o sufixo latino
"dade", tais como circunstancialidade, construtividade, evolutividade,
com o objetivo de romper a condição estática das palavras.
Ao usar esse sufixo, quero
resgatar o conteúdo filosófico da palavra, quero que ela expresse a dimensão, a
qualidade e a continuidade de um fenômeno ou de um processo (conjunto de
fenômenos). Por exemplo, ao escrever "construtividade de
pensamentos", quero dizer mais do que uma simples construção de
pensamentos, mas a essência dessa construção, ou seja, um processo de
construção psicodinamicamente ativo, evolutivo, que experimenta o caos para, em
seguida, se reorganizar em novas construções. Quando falo era
"circunstancialidades psicossociais" quero dizer não apenas algumas
circunstâncias particulares, mas a essência e o movimento das circunstâncias
psicossociais vivenciadas no processo existencial. Quando comento a
"evolutividade psicossocial", estou-me referindo a evoluções que
ocorrem continuamente no processo de construção do pensamento de cada ser
humano e que contribuem para a evolução da cultura. Porém, apesar desse zelo
teórico, as deficiências do discurso literário para expressar o processo de
construção do pensamento e o universo psicossocial como um todo do homem ainda
são grandes.
As letras deveriam servir às
idéias e não as idéias às letras e às regras gramaticais, como não poucas vezes
acontece. As letras e a gramática deveriam libertar o pensamento; ser um canal
de veiculação das idéias. Porém, nem sempre as frases e os textos mais
compreensíveis são mais justos para expressar as idéias de um autor, embora
facilitem a vida do leitor. As letras reduzem inevitavelmente as idéias; os
labirintos gramaticais, às vezes, aprisionam os pensamentos. A linguagem tem
um grande débito com o pensamento, principalmente com o pensamento psicológico
e filosófico.
Para termos uma idéia da deficiência
do discurso literário para expressar a ciência, basta dizer que os pontos
finais das frases, embora úteis para a compreensão da linguagem, são uma
mentira científica. Na ciência, não há pontos finais. Tudo é uma seqüência
interminável de eventos que mutuamente co-interferem. Por isso, não há
resposta completa em ciência e, muito menos, há resposta completa na aplicação
dos pensamentos procurando examinar suas próprias origens, seus próprios
processos de construção, limites, alcance, práxis, enfim, compreender a
própria fonte que os gera. Na ciência, cada resposta é o começo de novas
perguntas...
O pensamento, quando é
aplicado para discursar sobre o mundo extrapsíquico, facilmente ganha altivez;
mas, usado para discursar dialeticamente sobre a própria fonte que o concebe,
ele se abate. Quando o pensamento é utilizado para esquadrinhar o
pré-pensamento e os processos de construção que se envolvem na sua própria
construção, ele se perturba diante das suas limitações.
A psique (em grego = alma) é
constituída de um complexo campo de energia psíquica. Nela ocorrem todos os
processos que constroem as cadeias de pensamentos, transformam a energia
psíquica e escrevem os segredos da memória. Investigar os fenômenos que estão
na base da inteligência é uma grande empreitada a que todos os que pensam não
devem se furtar.
MINHA TRAJETÓRIA DE PESQUISA
O homem vive um dramático
paradoxo exploratório. Ele pensa, explora e conhece cada vez mais o mundo que
o envolve, mas pouco pensa sobre seu próprio ser, sobre a riquíssima construção
de pensamentos que explode num espetáculo indescritível a cada momento da
existência. O homem moderno, com as devidas exceções, perdeu o apreço pelo
mundo das idéias.
Apesar de ter escrito este
livro principalmente para pesquisadores, profissionais e estudantes da
Psicologia, da Psiquiatria, da Filosofia, da Educação e das demais áreas cuja
ferramenta fundamental seja o trabalho intelectual, eu gostaria que ele também
atingisse o leitor que não se considera um intelectual nessas áreas. O direito
de pensar com liberdade e consciência crítica é um direito fundamental de todo
ser humano; e este livro objetiva contribuir para esse direito.
Aprender a apreciar o mundo
das idéias, percorrendo as avenidas da arte da dúvida e da crítica, estimula o
processo de interiorização, expande a inteligência e contribui para a prevenção
da síndrome da exteriorização existencial e das doenças psíquicas.
Nestes textos, comentarei
alguns elementos psicossociais que contribuíram para promover minha trajetória
de pesquisa. Esses dados são bem sintéticos e não visam ser uma autobiografia.
Meu objetivo é fornecer algumas informações para evidenciar algumas causas
psicossociais que me fizeram, desde minha época de estudante de Medicina, me
apaixonar pelo mundo das idéias e, ao mesmo tempo, criticar diversas convenções
existentes na Psicologia e na Psiquiatria e evidenciar a crise de formação de
pensadores.
Este texto objetiva também
dar um "rosto histórico" à minha produção de conhecimento, pois creio
que o processo de produção é tão ou mais importante do que o próprio
conhecimento produzido. Um dos maiores erros da educação clássica, que bloqueia
a formação de pensadores, foi e tem sido o de transmitir o conhecimento pronto,
acabado, sem evidenciar o seu processo de produção, o seu rosto histórico.
No VII Congresso
Internacional de Educação *
ministrei uma conferência sobre "O funcionamento da mente e a formação
de pensadores no terceiro milênio". Na ocasião, comentei que no mundo
atual, apesar de termos multiplicado como nunca na história as informações, não
multiplicamos a formação dos homens que pensam. Estamos na era da informação e
da informatização, mas as funções mais importantes da inteligência não estão
sendo desenvolvidas.
Ao que tudo indica, o homem
do século XXI será menos criativo do que o homem do século XX. Há um clima no
ar que denuncia que os homens do futuro serão mais cultos, mas, ao mesmo tempo,
mais frágeis emocionalmente, terão mais informação, contudo serão menos íntimos
da sabedoria.
A cultura acadêmica não os
libertará do cárcere intelectual. Será um homem com mais capacidade de
respostas lógicas, mas com menos capacidade de dar respostas para a vida, com
menos capacidade de superar seus desafios, de lidar com suas dores e enfrentar
as contradições dá existência. Infelizmente, será um homem com menos capacidade
de proteger a sua emoção nos focos de tensão e com mais possibilidade de se
expor a doenças psíquicas e psicossomáticas. Será um homem livre por fora, mas
prisioneiro no território da emoção.
O sistema educacional que se
arrasta por séculos, embora possua professores com elevada dignidade, possui
teorias que não compreendem muito nem o funcionamento multifocal da mente
humana nem o processo de construção dos pensamentos. Por isso, enfileira os
alunos nas salas de aula e os transforma em espectadores passivos do
conhecimento e não em agentes do processo educacional.
Nos primeiros dois capítulos,
fornecerei alguns princípios psicológicos e filosóficos relevantes para o
desenvolvimento da arte de pensar. Posteriormente, do capítulo terceiro ao
nono, entrarei no cerne da teoria da construção da inteligência. A partir do
décimo capítulo retomo o processo.
de formação de pensadores e
aplico alguns elementos da teoria neste processo.
ALGUMAS CONVENÇÕES: A MENTE HUMANA, A INTELIGÊNCIA E A PERSONALIDADE
Usarei o termo
"mente" como o ambiente onde se processam as faculdades
intelectuais, onde se desenvolve a inteligência. A mente humana possui, nestes
textos, alguns termos equivalentes: a psique, a alma ou campo de energia
psíquica.
A inteligência é um conjunto
de estruturas psicodinâmicas derivadas do amplo funcionamento da mente. E a
capacidade de pensar, se emocionar, ter consciência. Ela é constituída de
quatro grandes processos, tais como construção de pensamentos, transformação da
energia emocional, formação da consciência existencial (quem sou, como estou,
onde estou) e formação da história existencial arquivada na memória.
Este livro trata muito mais
da construção da inteligência do que das suas funções. Todo ser humano constrói
uma inteligência, mas nem todos desenvolvem qualitativamente as funções mais
importantes, tais como pensar antes de reagir, expor e não impor as idéias,
gerenciar os pensamentos, resgatar a liderança do eu nos focos de tensão,
filtrar estímulos estressantes.
A inteligência e a
personalidade representam, aqui, termos equivalentes. Todos os dias esses
processos de construção da inteligência estão em atividade. Portanto, a
inteligência ou a personalidade não pára de evoluir, embora seu ritmo de
evolução possa diminuir na vida adulta.
Quando as pessoas dizem que
alguém é pouco ou muito inteligente ou que possui uma boa ou má característica
de personalidade, elas estão na realidade apenas se referindo a manifestação
exterior das funções da inteligência ou da personalidade e não sobre sua
construção. Elas não têm consciência dos surpreendentes dos fenômenos e dos
processos que produzem o homem como ser inteligente.
Outra convenção importante
está relacionada ao "eu". Aqui, o "eu" ou o
"self" não é um termo vago conceitualmente. Ele se refere a
"consciência de si mesmo", a consciência de que existimos e que
possuímos uma "identidade" única e exclusiva, a consciência de que
pensamos e que podemos administrar os pensamentos e as emoções. O adequado
seria chamarmos o "eu" de a "consciência do eu" ou "a
vontade consciente do eu", porque ele está relacionado aos amplos aspectos
da consciência e da vontade humana, mas por questões literárias o chamarei
apenas de "eu".
O grande desafio do
"eu" é gerenciar os processos de construção da inteligência,
expandindo as suas funções mais importantes. Contudo, estudaremos que o homem
tem um grande problema universal. Ele tem facilidade de ser líder no mundo que
o cerca, mas tem enorme dificuldade de ser líder no mundo psíquico, de
controlar o funcionamento da sua própria mente.
A SEDE DE CONHECIMENTO. RESPIRANDO A PESQUISA EMPÍRICA
Todo cientista que não seja
estéril é um aventureiro nas trajetórias do desconhecido, um aprendiz contumaz
no processo existencial, um rebelde das convenções do conhecimento.
Na minha trajetória de
pesquisa, o fascínio pela exploração dos processos de construção da
inteligência e a opção por produzir uma teoria totalmente original me estimularam
a desenvolver e utilizar procedimentos de pesquisa que expandiram meu processo
de observação, interpretação e produção de conhecimento.
Os procedimentos que usei na
pesquisa, tais como a "tríade de arte da pesquisa"(arte da pergunta,
arte da dúvida e arte da crítica), a análise multifocal das variáveis que
participam da construção dos pensamentos, levaram meu processo de observação,
seleção e interpretação dos dados a não ser unidirecional, visando um tipo
específico de comportamento produzido por um tipo específico de pessoa,
proveniente da mesma faixa etária e condições socioeconômicas semelhantes, mas
multidirecional. Eles levaram a explorar o máximo possível das variáveis
presentes em cada comportamento observado. Procurava descobrir até as variáveis
que estavam presentes nas entrelinhas dos pensamentos e no tom e na velocidade
de voz das pessoas que me rodeavam.
Devido à abrangência e
complexidade do projeto de pesquisa sobre os quatro grandes processos de
construção da inteligência, todas as pessoas que me eram próximas se tornavam
alvos das minhas observações e interpretações, pois eu precisava de dados com
as mesmas dimensões de abrangência. Mesmo as mínimas reações da minha mente se
tornavam um material precioso para observações e interpretações.
Em qualquer ambiente, nos
corredores da faculdade de Medicina, nas salas de aula, no leito dos pacientes,
nos ambientes sociais, nas ruas e, posteriormente, nos anos em que exercia a
Psicoterapia e a Psiquiatria, nos cursos que ministrava etc, eu observava
contínua e prazerosamente o comportamento das pessoas. Tinha sede de
conhecimento, vivia como se respirasse a investigação da personalidade, da
inteligência, da mente humana.
Uma revolução intelectual foi
provocada no cerne da minha alma. Não podia contê-la. Quando começamos a nos
interiorizar e a rever nossa maneira de pensar e nossos paradigmas
socioculturais nunca mais somos os mesmos... Por isso, procurava ser não apenas
um profissional que trabalhava com a personalidade, mas um engenheiro de idéias,
alguém que valorizava e construía idéias mesmo diante dos pequenos e
desprezíveis detalhes do comportamento. Percebi paulatinamente que na mente
ocorre um conjunto de processos de construção da inteligência, tais como o
processo de construção dos pensamentos, da formação da consciência existencial,
da formação da história intrapsíquica e da transformação da energia emocional
e motivacional.
Comecei a desejar produzir
não apenas um conhecimento psicológico qualquer, mas uma teoria sobre os
processos de construção presentes no campo de energia psíquica, embora esse
desejo fosse uma empreitada ousada e crítica das convenções do conhecimento.
Lembro-me de que o desejo de
produzir uma teoria original sobre os processos de construção da inteligência
estava me dominando tanto, que, antes de me casar, há mais de 16 anos, chamei
minha futura esposa de lado, que também era estudante de Medicina, e lhe disse
que se ela quisesse se casar comigo, teria que saber que grande parte do meu
tempo seria dedicada à pesquisa e à escrita. Na época, como estava no começo de
minhas pesquisas, eu não conseguia explicar a ela o conteúdo das minhas idéias,
meus objetivos e os resultados que poderia alcançar. Nem a mim mesmo eu
conseguia dar essas explicações. Parecia que eu estava numa sinuosa e
estimulante aventura. Só sabia que não conseguia conter a revolução das idéias
que se operava dentro de mim. Por isso, quanto mais falava a ela, mais a
deixava confusa.
Ela considerava tudo aquilo
estranho, pois ia se casar com um médico e sabia que um médico deveria estudar
doenças neurológicas, psiquiátricas, psicossomáticas etc, mas nunca tinha
ouvido falar que um médico tivesse preocupação em pesquisar os mistérios do
funcionamento da mente humana. Não entendia que o meu objetivo principal não
era exercer a Psiquiatria e a Psicoterapia, mas ser um "filósofo da
Psicologia", um teórico, um produtor de ciência. Ela entendia menos ainda
e se sentia insegura quando eu lhe dizia que estava sendo um crítico de
diversas convenções do conhecimento na Psicologia, que minha produção de
conhecimento era original e que demoraria muito tempo para que ela fosse
absorvida nos centros de pesquisas.
Ela pensava que eu estava
vivendo uma "febre" científica e acreditava que essa febre seria
passageira. Por fim, felizmente, ela se casou comigo. Passados mais de 17 anos,
desde quando iniciei minha trajetória de pesquisa
ESTIMULANDO A PESQUISA: OS FATORES PSICOSSOCIAIS E A DOR DA DEPRESSÃO
A sede de conhecimento e o
desejo de "respirar" a pesquisa científica não foram estimulados
pelos meus professores de Psicologia, Psiquiatria e Sociologia na faculdade de
Medicina, nem por qualquer pessoa com quem convivi.
O embrião dessa sede surgiu,
talvez, por viver num país com imensas desigualdades sociais, mas que, ao mesmo
tempo, possui um rico caldeirão de raças, de cultura e de afetividade e por ser
filho de imigrantes de origem multirracial, árabe, espanhol e ítalo-judia. Há
dúvida quanto à minha origem ítalo-judia, pois há possibilidade de que meus
antepassados tenham sido judeus que fugiram para a Itália e da Itália migraram
para o Brasil.
Meu desejo ardente de
pesquisar e de conhecer a mente humana também surgiu por ter vivido uma
infância rica afetivamente e próxima interpessoalmente, pois dormíamos em oito
pessoas, meus pais e seis filhos, num pequeno quarto de não mais do que 15
metros quadrados. Apesar de esses fatores psicossociais terem sido o embrião do
meu processo de interiorização, creio que o fator mais importante que
impulsionou minha trajetória de pesquisa foi uma crise de depressão por que
passei. Há mais de dezessete anos, vivi silenciosamente, por cerca de dois
meses, um intenso inverno emocional, a dor indescritível da depressão. A
tentativa desesperadora de superar esse intenso inverno emocional me estimulou
a me interiorizar.
O humor deprimido, a
ansiedade, a perda de energia biopsíquica, a insônia, a perda do sentido
existencial, os pensamentos de conteúdo negativo, os pensamentos
antecipatórios, associados a outros sintomas tornaram-se o cenário da minha
depressão. Não vou entrar em detalhes sobre este período existencial nem sobre
as causas da minha depressão, pois não é esse o objetivo deste livro. Porém,
quero dizer que minha crise depressiva se tornou uma das mais belas e importantes
ferramentas para me interiorizar e me estimular a procurar as origens dos meus
pensamentos de conteúdo negativo e as origens da transformação da minha energia
emocional depressiva.
Em síntese, a dor da
depressão, que considero o último estágio da dor humana, me conduziu a ser um
pensador da Psicologia e da Filosofia. Ela me levou não apenas a repensar minha
trajetória existencial e expandir a minha maneira de ver a vida e reagir ao
mundo, mas também me estimulou a iniciar uma pesquisa sobre o funcionamento da
mente, a natureza dos pensamentos e os processos de construção da inteligência.
O processo de interiorização foi uma tentativa desesperadora de tentar me
explicar e de superar minha miséria emocional.
Para muitos, a dor é um fator
de destruição; para outros, ela destila sabedoria, é um fator de crescimento.
Ninguém que deseja conquistar maturidade em sua inteligência, adquirir
sabedoria intelectual e tornar-se um pensador e um poeta da existência pode se
furtar de usar suas dores, perdas e frustrações que, às vezes, são
imprevisíveis e inevitáveis, como alicerces de crescimento humano.
Procurei, apesar de todas as
minhas limitações, investigar, analisar e criticar empiricamente os fundamentos
dos postulados biológicos da depressão, a psicodinâmica da construção dos
pensamentos de conteúdo negativo, os processos da transformação da energia
emocional depressiva etc. Esse caminho, no começo, foi um salto no escuro da
minha mente, um mergulho no caos intelectual, que desmoronou os conceitos e
paradigmas de vida. Esse mergulho interior me ajudou a reorganizar o caos
emocional, a dor da minha alma. Contudo, no início, me envolvi mais num
caldeirão de dúvidas do que de soluções. Porém, foi um bom começo.
O caos emocional da
depressão, se bem trabalhado, não é um fim em si mesmo, mas um precioso estágio
em que se expandem os horizontes da vida. Eu nunca havia percebido que, embora
produzisse muitas idéias, conhecia muito pouco o mundo das idéias, a
construção dos pensamentos e o processo de transformação da energia emocional.
Muitos psiquiatras não têm
idéia da dramaticidade da dor da depressão e das dificuldades de gerenciamento
dos pensamentos negativos que a promovem. Entretanto, o eu pode administrá-los
e, conseqüentemente, resolvê-la. Costumo dizer que se o eu der as costas para a
depressão e para os mecanismos subjacentes que a envolvem, ela se torna um
monstro insuperável, mas se a enfrentarmos com crítica e inteligência, ela se
torna uma doença fácil de ser superada. No capítulo sobre o gerenciamento do eu
este assunto ficará claro.
Meu inverno emocional gerou
uma bela primavera de vida, pois estimulou-me a sair da superfície
intelectual, da condição de ser um passante existencial, de alguém que passa
pela vida e não cria raízes dentro de si mesmo, para alguém que conseguiu se
encantar com o espetáculo da construção de pensamentos.
Não há gigantes no território
da emoção. Todos passamos por períodos dolorosos. Ninguém consegue controlar
todas as variáveis dentro e fora de si. Por isso, a vida humana é sinuosa,
turbulenta e bela. A sabedoria de um homem não está em não errar, chorar, se
angustiar e se fragilizar, mas em usar seu sofrimento como alicerce de sua
maturidade.
PESQUISANDO COM CRITÉRIO PARA EXPANDIR O MUNDO DAS IDÉIAS
Cada ser humano é um mundo
complexo e sofisticado a ser descoberto. Apesar da frustração que possamos ter
com o declínio do humanismo, com a epidemia psicossocial da síndrome da
exteriorização existencial, com as multiformes práticas discriminatórias e com
a baixa capacidade de trabalhar dores, perdas e frustrações que acometem muitos
consócios das sociedades modernas, quando procuramos contemplar e compreender o
espetáculo da construção dos pensamentos, não podemos deixar de nos encantar
com a obra-prima da mente humana.
A medida que eu procurava
investigar os processos de construção que ocorriam na minha mente, comecei
também, pouco a pouco, a me transportar para investigar o universo social.
Observar o homem, procurar indagar sobre os fenômenos intrapsíquicos que
produziam seus comportamentos me fascinavam.
A ousadia em querer
investigar o funcionamento da mente e a descoberta da arte da pergunta, da
arte da dúvida e da arte da crítica me faziam tão crítico, que, ainda nos
tempos de faculdade, por diversas vezes, eu formulava de maneira diferente o
conhecimento de Psicologia, de Psiquiatria e de Sociologia que me ensinavam.
Esse procedimento não derivava da falta de cultura dos meus professores; pelo
contrário, eu os considerava cultos. O problema era que a "tríade de arte
da pesquisa" que eu usava para analisar o que me ensinavam me impedia de
ser um espectador passivo do conhecimento.
Durante meu curso de
Medicina, comecei silenciosamente minha trajetória de pesquisa e a apreciar o
funcionamento da mente; por isso no final desse curso eu havia escrito diversos
cadernos sobre minhas observações e análises. Nesse período eu já começava a
ter algumas críticas contra a rigidez do sistema acadêmico.
Essas críticas aumentaram, ao
longo dos anos, à medida que fui produzindo conhecimento sobre a construção
dos pensamentos, os limites e a lógica do conhecimento, os limites das teorias,
as relações entre a verdade científica e a verdade essencial, o autoritarismo
das idéias.
Comentarei, sucintamente, uma
experiência que passei por me contrapor às regras do sistema acadêmico e que,
apesar de ter me angustiado, me estimulou a arte de pensar.
Lembro-me de que, há cerca de
16 anos, após ter-me formado em Medicina, procurei ingressar em uma conceituada
universidade para fazer pós-graduação. Ao me apresentar, peguei um texto que
havia escrito e o acrescentei em meu curriculum para mostrá-lo à banca
examinadora formada por ilustres professores doutores em Psiquiatria e
Psicologia.
Eu acreditava que eles iriam
ler algo da minha produção de conhecimento e, ainda que a criticassem,
esperava que, pelo menos, valorizassem minha capacidade de pensar. Pensava até
que os examinadores fariam algumas perguntas sobre o conhecimento que havia
produzido, apesar de estar consciente de que, na época, ele carecia de
profundidade. Porém, mesmo assim, acreditava que eles valorizariam e
incentivariam o ímpeto de pesquisar fenômenos tão complexos, por isso estava
animado com a possibilidade de discutir algumas das minhas idéias. Porém, para
minha frustração, os membros da banca examinadora pegaram aqueles textos e,
com uma postura intelectual autoritária, me perguntaram o que significava aquilo.
Respondi em poucas palavras que se referia a uma pesquisa que eu estava
realizando.
Perguntaram-me quem era o orientador
e qual era a teoria e a bibliografia usada. Respondi, educadamente, que era
uma pesquisa original; por isso não tinha nem orientador nem bibliografia.
Senti, pelo semblante dos examinadores, que os incomodei muito, que minhas
palavras soaram como um insulto à inteligência deles. Por isso se negaram a
analisar minha produção de conhecimento. Eles estavam tão enclausurados dentro
dos muros da sua universidade, que parecia uma heresia alguém produzir uma pesquisa
totalmente nova sobre o funcionamento da mente.
Eles usavam a ciência, mas
desconheciam a história e a lógica da ciência. Pareciam ser os senhores da
verdade, embora provavelmente não conhecessem a Filosofia da verdade, as
complexas relações entre a verdade científica e a verdade essencial, que serão
expostas no capítulo seguinte. Percebi que, no momento em que disse que minha
pesquisa era original, eles passaram a me ver como um rebelde ao sistema de
pesquisa que conheciam. Assim, exercendo o autoritarismo das idéias, pegaram
meu texto e, com a maior indiferença, me devolveram sem sequer manuseá-lo.
Seria mais digno e
democrático se eles o lessem e, após criticá-lo, me dissessem que eu era um
sonhador, que aquelas idéias eram tolas. A dor da crítica acusa a existência de
alguém e abre caminhos para amadurecê-lo, enquanto a dor da discriminação anula
sua existência. As universidades estão pouco preparadas para financiar
pesquisas abertas que objetivem a produção de teorias amplas, por isso grande
parte delas foram produzidas fora dos seus muros. Tal é o exemplo da teoria
psicanalítica de Freud e da relatividade de Einstein.
Após devolverem meu texto,
aqueles ilustres professores me pediram que eu retornasse à minha faculdade de
Medicina e procurasse meus professores de Psicologia e Psiquiatria, para que
produzisse pesquisa sob a orientação deles. Eles não imaginavam que, embora
respeitasse a cultura e a inteligência dos meus professores, estava-me tornando
íntimo da arte da dúvida e da crítica e, por isso, diversas vezes escrevia o
conteúdo das aulas de maneira diferente de como eles me ensinavam.
Não imaginavam que eu não
conseguia conter meu ímpeto independente de pesquisar. Catalogava cada
comportamento das pessoas ao meu redor e cada pensamento que transitava pela
minha mente e gastava tempo analisando-os. Meus bolsos viviam cheios de
anotações sobre minhas observações e interpretações e eu já havia perdido
algumas noites de sono pelas inúmeras dúvidas que tinha sobre os fenômenos que
atuam na complexa construção das cadeias de pensamentos.
Hoje, passados tantos anos,
os tempos mudaram. Minhas idéias têm sido cada vez mais conhecidas, respeitadas
e utilizadas por pesquisadores e profissionais não apenas no Brasil, mas em
outros países. Tenho proferido diversas conferências, inclusive em congressos
internacionais. A teoria da inteligência multifocal não apenas tem sido
aplicada na Psiquiatria e na Psicologia, mas também na Educação. Todavia, se no
começo de minhas pesquisas não tivesse vivido uma intensa paixão pelo mundo das
idéias, aqueles membros da banca examinadora teriam destruído meu interesse
pela investigação do funcionamento da mente.
Ao olhar para o passado,
tenho a consciência de que os "invernos" que passei no início das
pesquisas produziram minhas raízes intelectuais mais profundas. O fato de ter
aprendido a ser fiel a minha consciência fez com que os obstáculos temporários
que enfrentei se transformassem em alguns dos principais pilares da minha
capacidade de pensar e de pesquisar. Como estudaremos, esses obstáculos me
estimularam a produzir não apenas uma teoria, mas também, diferente da grande
maioria dos cientistas teóricos, criteriosos procedimentos de pesquisas na
produção dessa teoria.
Fico imaginando quantos
pensadores ilustres não tiveram sua produção de conhecimento abortada pela
postura autoritária do sistema acadêmico se impondo como o centro da produção e
da validação do conhecimento e como o centro exclusivo da produção de
intelectuais, de cientistas, de pensadores, de teóricos.
Parece paradoxal, mas o
sistema acadêmico não apenas forma intelectuais, mas também sufoca pensadores,
mesmo dentro da sua esfera. Muitos cientistas que estão dentro das
universidades sabem disso, pois de alguma forma sofrem restrição na sua
liberdade de pensar e de pesquisar.
A dor da depressão me
estimulou a conhecer o mundo das idéias e a dor da rejeição me incentivou a
expandir esse mundo com consciência crítica.
Se eu não tivesse passado por
tais dificuldades não teria, provavelmente, produzido uma nova e ampla teoria
sobre o processo de construção dos pensamentos com diversas implicações na
ciência.
Muitos pensadores foram
discriminados, considerados rebeldes e perturbadores da ordem ao longo da
história. Sócrates foi condenado a beber a cicuta, a morrer envenenado, pelo
incômodo que suas idéias causavam na época. Porém, ele considerou ser mais
digno tomar a cicuta do que ser infiel às suas idéias e ter uma dívida
impagável com sua própria consciência. Giordano Bruno, filósofo italiano, errou
por muitos países, procurando uma universidade para expor suas idéias, e por
isso experimentou diversos tipos de perseguição e sofrimento, culminando na
sua morte. Baruch Spinoza, um dos pais da Filosofia moderna, foi banido dramaticamente
pelos membros de sua sinagoga por causa das suas idéias, que chegaram,
inclusive, a amaldiçoá-lo, dizendo: "Que ele sej,a maldito durante o dia,
e maldito durante a noite; que seja maldito deitado, e maldito ao se levantar;
maldito ao sair, e maldito ao entrar...". Immanuel Kant foi tratado como
um cão pelo incômodo que suas idéias causavam no clero da época. Voltaire,
devido às suas idéias humanistas, passou por perseguições na sua época. A lista
de pensadores que foram discriminados ou sofreram perseguições é enorme.
As universidades, com as
devidas exceções, monopolizaram o conhecimento, se fecharam numa redoma, como
o clero nos séculos passados. Elas têm uma função humanística, sociopolítica e
socioeducacional importantíssima na sociedade, porém essas funções não têm
sido exercidas adequadamente. Embora possam não conhecer a teoria da
democracia das idéias, exposta nos capítulos finais, elas deveriam ser, ao
menos, albergues dos seus princípios universais.
Hoje é raro encontrar
pensadores fora da instituição acadêmica, como ocorreu nos séculos passados.
A ARTE DA OBSERVAÇÃO E DA ANÁLISE MULTIFOCAL
Eu vivia a arte da observação
e da análise multifocal. Observar a expressão de cada idéia, mesmo das mais
débeis, era uma aventura estimulante, pois provocava a minha ambição de
conhecer as variáveis que participavam do espetáculo da construção dos
pensamentos.
Ficava, como disse,
observando, anotando, interpretando e produzindo conhecimento sobre o
comportamento de determinadas pessoas. Ficava assombrado ao contemplar atenta e
embevecidamente pequenos detalhes do comportamento humano. Procurava
compreender os fenômenos que os produziam. Essa atitude me proporcionava um
prazer indescritível, mesmo quando eu ficava confuso diante de tanta
complexidade. Perguntava-me continuamente: quais fenômenos estão por detrás
desse comportamento? Como se processou a leitura da memória para que se
produzisse essa cadeia de pensamento? Por que os pensamentos fluem no palco da
mente num processo espontâneo e inevitável?
Até um mendigo era para mim
uma pessoa complexa, rica intelectualmente e interessante de ser observada e
analisada. Conversei com vários deles. Muitos deles, quando se aproximam uns
dos outros, logo estabelecem uma relação interpessoal e trocam diálogos, pois
não têm preconceitos socioculturais, não precisam ostentar status ou
provar qualquer coisa para estabelecer confiabilidade. A mercadoria de troca
interpessoal entre os mendigos é o que eles são e não o que eles têm,
diferentemente de grande parte das relações nas sociedades modernas. Assim,
aprendi que até entre as pessoas que vivem em condições miseráveis e que são
totalmente desprotegidas socialmente é possível apreciar o espetáculo da
construção de pensamentos e contemplar lições existenciais.
Uma pessoa psicótica também é
uma pessoa que possui um admirável funcionamento da mente, ainda que
desorganizado. Como veremos, na esquizofrenia, o "eu" perde o
controle da leitura da memória e da utilização dos parâmetros psicossociais na
construtividade das cadeias dos pensamentos, o que gera a produção de delírios
e alucinações. Apesar disso, as pessoas portadoras de psicoses são seres
humanos altamente complexos e que deveriam ser valorizadas, ajudadas e
acolhidas.
Pelo fato de começar a
procurar, após os primeiros anos de pesquisa, as variáveis da interpretação que
estão na base dos processos de construção da inteligência, e de começar a
perceber que elas contaminam inevitavelmente o processo de interpretação, eu
adquiria, pouco a pouco, a consciência crítica sobre a necessidade de revisão
e reorganização contínua do meu processo de observação, interpretação e
produção de conhecimento. Ficava preocupado com as contaminações da
interpretação ligadas aos referenciais contidos na minha história intrapsíquica
que poderiam promover uma produção de conhecimento sem fundamento.
Nos primeiros anos, eu não
tinha uma compreensão tão clara do processo de interpretação como a descrita
na frase anterior, mas, pouco a pouco, à medida que produzia conhecimento sobre
a mente, sobre os procedimentos utilizados na sua investigação e sobre os
limites e alcance dos pensamentos, começava a entendê-lo. A arte da formulação
de perguntas, da dúvida e da crítica inauguravam pouco a pouco minha aurora
intelectual.
À medida que eu observava
cada pessoa, cada pensamento verbalizado e cada expressão facial, formulava
sistematicamente inúmeras perguntas sobre cada fenômeno observado e, ao mesmo
tempo, criticava continuamente a produção de conhecimento que realizava sobre
elas, considerando-as, freqüentemente, reducionistas e insuficientes. Por
isso, procurava novamente o caos intelectual, agora, não apenas para filtrar
algumas contaminações da interpretação, mas também para expandir as
possibilidades de compreensão e de construção do conhecimento sobre os
fenômenos psíquicos. Assim, eu expandia o mundo das idéias e reorganizava minha
produção de conhecimento.
Esse processo me custou
muitas noites maldormidas ou de plena insônia, por causa do turbilhão de
dúvidas que vivia. Algumas dúvidas demoravam
serem resolvidas, ainda que
vivesse continuamente a "tríade de arte da pesquisa" e a busca do
caos intelectual.
Apesar de toda ousadia que
desenvolvi, apesar de viver a pesquisa psicológica como um grande e contínuo
desafio intelectual, como uma aventura indecifrável, eu hesitava algumas vezes
em continuar a pesquisar e produzir conhecimento, quando percebia que minhas
idéias se encontravam num labirinto intelectual sem progressão.
Cada fenômeno que estudava,
cada variável da interpretação, cada texto que produzia passava por um
processo contínuo de montagem e desmontagem intelectual. Assim, eu expandia as
possibilidades de construção do conhecimento.
OS COMPUTADORES JAMAIS CONSEGUIRÃO TER A CONSCIÊNCIA EXISTENCIAL
A maioria dos seres humanos
elogia as maravilhas da tecnologia, mas não conseguem se encantar com o
espetáculo da construção de pensamentos que corre na psique humana. Não
conseguem compreender que a consciência existencial expressa, por exemplo,
pela consciência da solidão e das dores emocionais, os tornam mais sofisticados
do que milhões de computadores interligados.
Os computadores jamais
passarão de escravos de estímulos programados, ainda que incorporem um
processo de auto-aprendizagem e levem em consideração a "lógica
paraconsistente", ou seja, que admitam contradições das informações.1
É cientificamente ingênuo dizer que os computadores produzem uma realidade
virtual, pois eles não têm consciência existencial de si mesmos, eles não
existem para si mesmos e, portanto, não têm consciência da organização das
informações que expressam nas telas de vídeo.
Quando estudarmos a leitura
da memória, a construção das cadeias de pensamentos e a formação da consciência
existencial do eu, entenderemos que será impossível que um dia os computadores
conquistem essa consciência, por isso, eles jamais existirão para si mesmos,
jamais conquistarão conscientemente uma identidade psicossocial, jamais
experimentarão conflitos, insegurança, ansiedade, tranqüilidade, dor, prazer.
Para os computadores, o tudo e o nada, o ter e o ser, um segundo e a
eternidade, serão inevitavelmente sempre a mesma coisa.
A NECESSIDADE DE NOVOS CIENTISTAS TEÓRICOS
A falta do conhecimento sobre
os processos de construção dos pensamentos, sobre o processo de interpretação
e sobre os limites e o alcance de uma teoria pode conduzir os pesquisadores que
procuram defender teses acadêmicas a fechar as janelas do pensamento.
Seria importante que os
usuários de uma teoria não a utilizassem como se ela incorporasse a verdade
essencial, mas como um suporte limitado do processo de observação e
interpretação. Seria importante, também, que na ortodoxia da pesquisa acadêmica
os pesquisadores fossem estimulados a fazer uma intentona teórica, um motim
intelectual, ou seja, fazer uma revolução contra as convenções do conhecimento
e o sistema rígido de pesquisa, capaz de torná-los ousados na produção de um
corpo teórico próprio, uma teoria inovadora, e nem sempre se submeterem às
idéias de Freud, Jung, Roger, Moreno, Erich Fromm, Viktor Frankl, Piaget ou de
filósofos tais como Kant, Hegel, Marx, Husserl, Heidegger etc.
Sem se adotar essa postura...
contra as convenções do conhecimento vigente não se produzirão pensadores e
cientistas teóricos, não haverá a produção de teorias originais, inovadoras.
Uma intentona teórica, alicerçada nos princípios da democracia das idéias,
deveria ser feita com ousadia, criatividade, arte da observação, arte da
formulação de perguntas, arte da dúvida, arte da crítica, análise multifocal,
entre outros procedimentos, uma postura intelectual que não oferece resistência
para reciclar e reorganizar continuamente todo o conhecimento produzido. Esses
procedimentos são fundamentais para romper os paradigmas culturais, o
continuísmo das idéias, a mesmice do conhecimento e, conseqüentemente, para
produzir cientistas teóricos e pensadores.
Esses procedimentos também
podem ser aplicados nas artes, nas ciências naturais, na educação, na
economia, no desenvolvimento empresarial, no exercício da profissão liberal
para produzirem pensadores que expandam com originalidade o mundo das idéias.
Todos os teóricos e
pensadores são revolucionários. Aliás, todo cientista é um revolucionário,
pois recicla o continuísmo das idéias. É claro que grande parte dos cientistas,
embora não sejam teóricos, utilizam as teorias e prestam um grande serviço à
ciência. Porém, a ciência precisa avançar não apenas na utilização das teorias
vigentes, mas também na produção de novas teorias. As teorias funcionam como
fonte de pesquisa e suporte do processo de observação, interpretação analítica
e produção de conhecimento.
Uma grande teoria pode
catalisar a produção de idéias, desde que os que a abraçam não gravitem em
torno dela, não sejam meros retransmissores do conhecimento que ela encerra e
não sejam rígidos defensores, incapazes de criticá-la, reciclá-la ou
expandi-la. Por isso, prejudicam o desenvolvimento da ciência os que aderem
rigidamente a ela. Qualquer usuário de uma teoria que é incapaz de criticá-la
será um mero reprodutor das suas idéias, traindo-a interpretativamente sem o
saber e praticando uma ditadura intelectual no exercício da sua profissão ou
na sua produção de conhecimento científico. Esse processo é passível de
ocorrer não apenas nas ciências da cultura, mas também nas ciências físicas,
biológicas e correlatas.
Penso que é raro uma
universidade incentivar a "intentona teórica", o "motim
intelectual" entre seus estudantes, levando-os à procura de novas
possibilidades de construção e de compreensão do conhecimento, à produção de
novas teorias a partir da busca da desorganização dos conceitos e da arte da
formulação de perguntas, da dúvida e da crítica, bem como de outros
instrumentos empíricos.
O sistema acadêmico é
excessivamente organizado, institucionalizado e preocupado com a
transmissibilidade unifocal do conhecimento. Tais atitudes limitam a formação
de pensadores. As grandes idéias surgiram a partir do caos intelectual. Todos
os que contribuíram com a expansão da ciência e com as idéias humanistas
romperam com os paradigmas intelectuais, vivenciaram micro ou macro motins
intelectuais. Não estou estimulando o caos das idéias, a ruptura pela ruptura
dos paradigmas intelectuais. Não! As idéias vigentes devem ser valorizadas, mas
também filtradas e revisadas. As idéias, mesmo as que são consideradas verdades
científicas, não são fins em si mesmas, pois não são coincidentes com a verdade
essencial, que é inatingível.
Produzir ciência não é uma
tarefa simples. A falta de conhecimento dos processos de construção dos
pensamentos, dos limites e do alcance de uma teoria, bem como dos sistemas de
encadeamentos distorcidos, passíveis de ocorrer no processo de interpretação,
faz com que muitos tenham o conceito errado de que, para produzir ciência ou se
tornar um cientista, basta defender uma tese acadêmica. Muitos orientadores das
teses sabem que isso é totalmente insuficiente. Ao longo dos anos, estudei mais
de vinte possibilidades que podem comprometer a produção de conhecimento de uma
tese acadêmica e a formação de pensadores. Infelizmente, por não ser esse o
objetivo deste livro, não as comentarei. Todavia, quando abordar os
procedimentos de pesquisas multifocais, algumas dessas possibilidades serão
evidenciadas.
Devemos repensar o processo
de formação de pensadores antes de pensar na produção da própria ciência.
Devemos nos preocupar com a qualidade da inteligência dos pensadores. Os
procedimentos de pesquisa multifocais que utilizei, tais como a arte da
formulação de perguntas, da dúvida e da crítica, a busca do caos intelectual e
os dois instrumentos empíricos ligados à análise dos processos de construção
dos pensamentos e das variáveis que atuam na construção das cadeias de
pensamentos, podem contribuir com essa tarefa intelectual.
Nas ciências da cultura, na
qual se inclui a Psicologia, a Filosofia, a Educação, a Sociologia etc, não há
muitos recursos financeiros para incentivar a formação de pensadores e a
expansão das idéias psicossociais, como o têm as ciências naturais, que incluem
a Computação, a Biologia, a Química, cujas pesquisas resultam em produtos
industriais. Se o capital é pequeno nas ciências da cultura, deveria haver,
então, um processo de compensação, através da expansão da qualidade dos
pensadores pelo uso de procedimentos que estimulam a plasticidade construtiva
e a liberdade criativa do conhecimento. Caso contrário, o contraste do
desenvolvimento entre as ciências naturais e as ciências da cultura continuará
e aumentará. A Física sabe como penetrar nas entranhas do átomo e distinguir as
partículas atômicas, tão ocultas aos olhos, e a Psicologia educacional não
sabe como prevenir eficientemente a discriminação racial dos negros, tão
visível aos olhos, nem como prevenir o uso de drogas que acomete milhões de
jovens. Se esse contraste se perpetuar, seremos cada vez mais gigantes na
tecnologia e anões na prevenção das doenças psíquicas, psicossomáticas,
psicossociais, bem como na expansão do humanismo, da cidadania e da democracia
das idéias. Nessa situação, o homem do século XXI, que navegará cada vez mais
pelo espaço e pela Internet, terá infelizmente cada vez mais dificuldade
de navegar para dentro de si mesmo, de se interiorizar e de se repensar, de
superar seus estímulos estressantes e de falar de si mesmo. Talvez ele só
consiga se interiorizar e falar de si mesmo, como já tem acontecido, quando
estiver diante de um psiquiatra ou de um psicoterapeuta.
APLICAÇÃO DA TERAPIA MULTIFOCAL
As experiências que passei
por ser crítico do academicismo me abateram temporariamente o ânimo. Naquela
época, eu estava nos meus primeiros anos de pesquisa; por isso, apesar de ser
crítico, rebelde e determinado, também era frágil e, às vezes, inseguro. Minhas
inseguranças não derivavam apenas dos fatores externos, mas também dos fatores
internos, ligados ao exercício da arte da dúvida e da crítica, bem como da
iniciação do procedimento da busca do caos intelectual no processo de pesquisa,
que será comentado posteriormente.
Os fatores internos me
deixavam freqüentemente confuso diante da complexidade da mente humana.
Produzir conhecimento sem utilizar uma teoria preexistente como suporte da
interpretação e, ainda por cima, exercitando a arte da pergunta, da dúvida e
da crítica e a busca do caos intelectual para descontaminar meu processo de
interpretação, me deixava não apenas confuso, mas perturbado nos primeiros
anos. Por isso, naquela época, apesar de produzir conhecimento sobre muitos
assuntos relativos à mente humana, eu vivia continuamente criticando minhas
próprias idéias. Assim, quando os fatores internos se associaram aos fatores
externos, realmente meu ânimo foi abatido temporariamente, afetando minha
paixão pelo mundo das idéias. Entretanto essa paixão flutua, mas não morre.
Parte do meu tempo exerço a
Psiquiatria e a Psicoterapia multifocal. O uso da teoria dos processos de
construção da inteligência no tratamento das doenças psíquicas faz com que a
Psicoterapia multifocal seja realizada dentro dos princípios da democracia das
idéias e da arte de pensar. Os resultados são. animadores. Muitos casos de
doenças psíquicas de difícil tratamento, inclusive de pacientes autistas, têm
sido resolvidos. A teoria multifocal, devido as suas variáveis universais, pode
ser aplicada em qualquer outra corrente psicoterapêutica: psicanálise,
psicoterapia cognitiva, logoterapia, psicodrama, psicoterapia analítica, etc.
EXEMPLO DE UM CASO INSOLÚVEL NA PSIQUIATRIA CLÁSSICA
Lembro-me de uma cliente de
82 anos de idade que tinha transtornos graves da personalidade e sofria de uma
depressão crônica e resistente que já durava mais de três décadas. Ela era inteligente,
mas também mal-humorada, negativista, agressiva e insociável. Queria a todo
custo separar-se do marido, pois me dizia que tinha aversão dramática por ele.
Essa aversão era tão intensa, que, quando o marido passava por ela e encostava
a mão no seu braço, ela sentia tanta repulsa por ele que ia correndo lavar essa
parte do corpo. Quando o marido tomava banho, ela só conseguia tomar banho se
mandasse desinfetar o banheiro. Viveu por cinqüenta anos um casamento falido,
transformou a relação com seu marido numa praça de guerra. Falava dele com ódio
e dizia que não podia olhar para seu rosto e, não apenas isso, raramente
conseguia expressar qualquer palavra de elogio a qualquer pessoa. Mesmo com os
filhos ela era crítica e agressiva.
O que pode a psiquiatria
fazer para uma pessoa que jamais admitiu que estivesse doente, que sempre quis
que o mundo gravitasse em torno de si mesma? O que pode a psicologia, com todas
as suas técnicas psicoterapêuticas, fazer para uma pessoa que sempre se recusou
a se interiorizar e revisar os pilares fundamentais de sua personalidade?
Muitos membros de sua família
não acreditavam que uma pessoa nessa idade, com uma depressão tão grave e
resistente e que tinha diversos transtornos de personalidade, pudesse ter
alguma melhoria. Porém, o processo psicoterapêutico é ura canteiro onde
florescem as funções mais importantes da inteligência, um ambiente que pode,
se bem conduzido, estimular a produção de um oásis no mais causticante deserto
emocional. Apesar de todas as dificuldades iniciais, da sua recusa de penetrar
dentro de si mesma, pouco a pouco aquela rocha humana foi sendo demolida.
Olhava para sua postura rígida e para seu olhar fadigado pelo tempo e pensava
comigo mesmo: "Deve haver algo belo por detrás dessa rigidez que nunca foi
explorado, deve haver algumas funções nobres da personalidade que estão
embotadas".
Levei-a a ser uma caminhante
nas trajetórias do seu próprio ser, a repensar sua rigidez intelectual, a
analisar as origens de suas angústias e de suas reações insociáveis. Procurei
provocar sua inteligência e estimular sua compreensão sobre alguns fundamentos
do processo de construção dos pensamentos e da transformação da energia
emocional. Acreditava, mesmo com sua idade avançada, nas suas possibilidades
intelectuais e procurava fazer do processo psicoterapêutico um debate de
idéias, criando um clima que promovia o desenvolvimento da arte da dúvida e da
crítica contra seus próprios paradigmas intelectuais. Meu objetivo não era de
que ela apenas resolvesse sua doença psíquica e superasse a sua dor, mas que se
tornasse uma pensadora, uma poeta existencial, alguém capaz de expandir tanto a
arte de pensar como a arte da contemplação do belo.
Depois do tratamento, que
durou cerca de quatro meses, ninguém acreditava no que havia acontecido com
ela. Tornara-se uma pessoa dócil, amável, sociável, tolerante. Começou a tratar
o marido com ternura, inclusive passou a chamá-lo de "meu bem" e
constantemente lhe pedia que a beijasse e lhe fizesse carinho.
Ela me dizia que passou a
amar seu marido como nunca ocorreu em toda a sua história conjugal. Seu marido,
também com 82 anos, um ex-professor universitário, estava, antes da sua
melhora, abatido fisicamente, com dificuldades de se locomover e de organizar
seu raciocínio. Porém, com o grande salto da qualidade de vida da sua esposa,
ele passou a se alimentar mais, ganhou peso, melhorou a deficiência da memória
e seu rendimento intelectual. Marido e esposa mudaram tanto que passaram, mesmo
diante das suas limitações físicas, a cantar e a dançar juntos na sala de seu
apartamento.
Algumas vezes eles choravam
por ter a consciência de que atravessaram um imenso deserto existencial,
saturado de angústias e discórdias. Contudo, queriam recuperar o tempo perdido,
queriam viver intensamente cada minuto que lhes restava de vida, por isso,
algumas vezes, eles acordavam um ao outro de madrugada para conversar e ficar
mais tempo juntos. A afetividade entre os dois floresceu como na primavera
mais rica da adolescência.
Minha paciente me dizia que
havia encontrado um sentido para sua vida e que, no final de sua existência,
começou a trabalhar suas contrariedades e a aprender a ter prazer nos pequenos
estímulos. Por isso, até os sons dos pássaros que eram imperceptíveis aos seus
ouvidos, se tornaram músicas para eles. Comovido com essa melhora acentuada e
estável, escrevi um bilhete para ela e para o marido, dizendo: "Parabéns;
vocês se tornaram poetas da existência, souberam encontrar ternura e dignidade
no final de suas vidas; descobriram que a sabedoria se conquista quando aprendemos
a superar nossos invernos existenciais..." Eles ampliaram os dizeres deste
bilhete e o colocaram na sala do apartamento deles.
Ela deu um salto qualitativo
na sua saúde emocional e intelectual. Resolveu sua depressão crônica, sua
insociabilidade, agressividade e tornou-se uma pessoa encantadora aos 82 anos
de idade. Viveu uma rica história de amor com seu marido por mais dois anos,
até que ele morreu. O último pedido dele, no leito de sua morte, é que ela o
acariciasse até que ele morresse. Foi assim que findou este romance.
A história dessa paciente é
um exemplo vivo que evidencia que, mesmo nos casos aparentemente insolúveis
pela psiquiatria e pela psicologia, é sempre possível reescrever os capítulos
fundamentais da personalidade.
O homem, independentemente de
sua idade, personalidade e transtornos psíquicos, pode e tem o direito de se
tornar um engenheiro de idéias que constrói e reconstrói a sua história
psicossocial. Ao aplicar os princípios psicoterapêuticos derivados do processo
de construção da inteligência, estimulamos o resgate da liderança do eu e
fazemos com que os pacientes deixem de ser espectadores passivos de misérias
psíquicas e passem a ser agentes modificadores de sua personalidade. Onde a
psiquiatria clássica não consegue pisar os procedimentos psicoterapêuticos
multifocais pode, em diversos casos, alcançar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário