quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

O HOMEM MODERNO E A CRISE DE INTERIORIZAÇÃO É ?

O HOMEM MODERNO E A CRISE DE INTERIORIZAÇÃO

Uma das mais importantes explorações do homem, se não a maior delas, é a exploração de si mesmo, do seu próprio mundo intrapsíquico. Aprender a se interiorizar; a criar raízes mais profun­das dentro de si mesmo; a explorar a história intrapsíquica arquivada na memória; a questionar os paradigmas socioculturais; a trabalhar com matu­ridade as dores, perdas e frustrações psicossociais; aprender a desenvolver consciência crítica, a conhecer os processos básicos que constroem os pen­samentos e que constituem a consciência existencial são direitos fundamen­tais do homem. Porém, freqüentemente, esses direitos são exercidos com superficialidade na trajetória da vida humana. Um dos principais motivos do aborto desses direitos é que o homem moderno tem vivido uma dramá­tica crise de interiorização.
O ser humano, como complexo ser pensante, é um exímio explorador. Ele explora, ainda>que sem a consciência exploratória, até mesmo o meio ambiente intra-uterino, através dos malabarismos fetais e da deglutição do líquido amniótico. E, ao nascer, em toda a sua trajetória existencial, ex­plora o mundo que o envolve, o rico pool de estímulos sensoriais e in­terpreta-os.
Pelo fato de experimentar, desde sua mais tenra história existencial, os estímulos sensoriais que esquadrinham a arquitetura do mundo extra-psíquico, o homem tem a tendência natural de desenvolver uma trajetória exploratória exteriorizante. Nessa trajetória, ele se torna cada vez mais ínti­mo do mundo em que está, o extrapsíquico, mas, ao mesmo tempo, torna-se um estranho para si mesmo.
O homem moderno, em detrimento dos avanços da ciência e da tecnicidade, vive a mais angustiante e paradoxal de todas as solidões psicossociais, expressa pelo abandono de si mesmo na trajetória existen­cial. A pior solidão é aquela em que nós mesmos nos abandonamos, e não aquela em que nos sentimos abandonados pelo mundo. É possível nos abandonarmos na trajetória existencial? Veremos que sim. Quando o ho­mem não se repensa, não se questiona, não se recicla, não se reorganiza, ele abandona a si mesmo, pois não se interioriza, ainda que tenha cultura e múltiplas atividades sociais.
Os livros de auto-ajuda, embora não tenham grande profundidade inte­lectual, são procurados com desespero nas sociedades atuais, como tentati­va de superar, ainda que ineficientemente, a grave crise de interiorização que satura as pessoas. O homem que não se interioriza é algoz de si mes­mo, sofre de uma solidão intransponível e incurável, ainda que viva em multidões.
"O homem que não se interioriza dança a valsa da vida engessado intelectualmente." Sua flexibilidade intelectual fica profundamente reduzi­da para solucionar seus conflitos psicossociais, superar suas contrariedades, frustrações e perdas.
E mais fácil explorar os fenômenos do mundo que nos envolve do que aprender a nos interiorizar e ser caminhantes na trajetória de nosso próprio ser e explorar os fenômenos contidos em nosso mundo intrapsíquico. É mais fácil e confortável explorar os estímulos extrapsíquicos, que sensibilizam nos­so sistema sensorial, do que explorar os sofisticados processos de construção dos pensamentos, o nascedouro e desenvolvimento das idéias, a organização da consciência existencial, as causas psicodinâmicas e histórico-existenciais de nossas misérias, fragilidades, contradições emocionais, etc.
Mergulhado num processo socioeducacional que se ancora na transmissibilidade e no construtivismo do conhecimento exteriorizante, o ho­mem se torna um profissional que aprende a usar, com determinados ní­veis de eficiência, o conhecimento como ferramenta ou instrumento de trabalho. Porém, tem grandes dificuldades para usar o conhecimento para desenvolver a inteligência: aprender a percorrer as avenidas da sua própria mente, conhecer os limites e alcance básicos da construção de pensamen­tos, regular seu processo de interpretação através da democracia das idéias e tornar-se um pensador humanista, que trabalha com dignidade seus er­ros, dores, perdas e frustrações, e aprende a se colocar no lugar do "outro" e a perceber suas dores e necessidades psicossociais.

A SÍNDROME DA EXTERIORIZAÇÃO EXISTENCIAL

Infelizmente, como veremos, a tendência intelectual natural do Homo sapiens, desde a aurora da vida fetal até o seu último suspiro existencial, é seguir uma trajetória de construção intelectual superficial. Uma trajetória socioeducacional em que ele pouco se interioriza, pouco procura por si mesmo e pouco conhece a si mesmo.
Procurar a si mesmo é explorar e produzir conhecimento sobre os pro­cessos de construção da inteligência, ou seja, sobre os processos de constru­ção dos pensamentos, sua natureza, cadeias psicodinâmicas, limites, alcan­ce, lógica, práxis, bem como sobre a formação da consciência existencial, da história intrapsíquica arquivada na memória, as bases que sustentam o processo de interpretação e as variáveis que participam do processo de transformação da energia emocional.
Quem sai do discurso intelectual superficial e procura "velejar" para dentro de si mesmo, e vive a aventura ímpar de explorar sua própria men­te, nunca mais será o mesmo, ainda que fique perturbado num emaranha­do de dúvidas sobre o seu próprio ser. Aliás, ao contrário do que dizem os livros de auto-ajuda, a dúvida é o primeiro degrau da sabedoria.
Quem não duvida e critica a si mesmo nunca se posiciona como apren­diz diante da vida e, conseqüentemente, nunca explora com profundidade seu próprio mundo intrapsíquico. Quem aprendeu a vivenciar a arte da dúvida e da crítica na sua trajetória existencial se posiciona como aprendiz diante da vida e, por isso, tem condições intelectuais de repensar seus paradigmas socioculturais e expandir continuamente suas idéias e maturi­dade psicossocial. Todos os pensadores, filósofos, teóricos e cientistas que, de alguma forma, promoveram a ciência, as artes e as idéias humanistas foram, ainda que minimamente, caminhantes nas trajetórias do seu próprio ser e amantes da arte da dúvida e da crítica, enquanto produziam conheci­mento sobre os fenômenos que contemplavam.
O homem que aprende a se interiorizar e a criticar suas "verdades", seus dogmas e seus paradigmas socioculturais estimula a revolução da cons­trução das idéias nos bastidores clandestinos de sua mente. Assim, sai do superficialismo intelectual e, no mínimo, aprende a concluir que os proces­sos de construção da inteligência, dos quais se destacam a produção das cadeias psicodinâmicas dos pensamentos e a formação da consciência exis­tencial do "eu", são intrinsecamente mais complexos que uma explicação psicológica e filosófica meramente especulativa e superficial, que chamo de explicacionismo, psicologismo, filosofismo.
O homem moderno tem vivenciado, com freqüência, uma importante síndrome psicossocial doentia, a qual chamo de "síndrome da exteriorização O ser humano, nos dias atuais, freqüentemente só tem coragem de falar de si mesmo quando vai a um psicólogo ou a um psiquiatra. Tem uma necessidade vital de que o mundo gravite em torno de si mesmo. Para ele, doar-se para o outro sem esperar a contrapartida do retorno é um absurdo existencial, um jargão intelectual, um delírio humanístico. O mundo das idéias dos portadores da síndrome da exteriorização existencial tem pouco espaço para uma compreensão psicossocial e filosófica da existência humana.
Aprender a interiorizar-se é uma arte complexa e difícil de ser conseguida no terreno da existência. O homem moderno tem sido um ávido consumi­dor de idéias positivistas misticistas, psicologistas, como se tal consumo cumprisse, por ele, o papel inalienável e intransferível de caminhar nas trajetórias sinuosas do seu próprio ser e de aprender a expandir sua cons­ciência crítica e maturidade intelecto-emocional.

PESQUISANDO E ESCREVENDO COMO UM ENGENHEIRO DE IDÉIAS

A complexidade da mente, associada às deficiências do discurso literá­rio para esquadrinhar os fenômenos e processos envolvidos na construtividade de pensamentos, na formação da consciência existencial e na transformação da energia psíquica, fizeram-me rever, criticar e reescrever continuamente os textos deste livro. Por isso, passei mais de dezessete anos de intensa dedicação a escrevê-los, bem como aos demais textos que com­põem o arcabouço teórico da minha produção de conhecimento e que ainda não foram publicados, objetivando que esses textos não sejam efêmeros na ciência, mas que criem raízes e sejam úteis em diversas áreas psicossociais.
A maioria das idéias contidas nas frases que escrevi foram, dentro das minhas limitações, cuidadosamente elaboradas para que expressem com um pouco mais de justiça intelectual alguns fenômenos sofisticados que atuam nos bastidores inconscientes e nos palcos conscientes da inteligên­cia. Por trás de diversas frases se escondem mecanismos psicodinâmicos sofisticados. Seria possível escrever um estudo à parte sobre algumas delas, o que escapa aos objetivos deste livro. Além disso, um problema aconteceu inevitavelmente com a fraseologia ou construção das frases; elas se torna­ram freqüentemente longas, devido à complexidade das idéias nelas cir­cunscritas, diferente das frases jornalísticas, que são curtas, de fácil entendi­mento, porque encerram normalmente assuntos sem muita complexidade.
Escrevi este livro não apenas como um escritor, mas como um enge­nheiro de idéias... Cada idéia nele contida sofreu uma engenharia dialética. Por isso, até aquelas que estão nos labirintos dos textos e que, às vezes, passam despercebidas à compreensão, são importantes.
Na construção das idéias, tive de me tornar inevitavelmente um "neologista", ou seja, um construtor e empregador de diversas palavras ou ex­pressões novas — não existentes na linguagem científica e coloquial — tais como psicoadaptação, Homo interpres, fenômeno do "autofluxo", ou de palavras antigas com um sentido novo, tais como "autochecagem da me­mória" e "âncora da memória", pois a linguagem científica e coloquial se mostraram insuficientes para definir, conceituar e discursar teoricamente a construção dos fundamentos da inteligência. Além disso, uso freqüentemente o sufixo latino "dade", tais como circunstancialidade, construtividade, evolutividade, com o objetivo de romper a condição estática das palavras.
Ao usar esse sufixo, quero resgatar o conteúdo filosófico da palavra, quero que ela expresse a dimensão, a qualidade e a continuidade de um fenômeno ou de um processo (conjunto de fenômenos). Por exemplo, ao escrever "construtividade de pensamentos", quero dizer mais do que uma simples construção de pensamentos, mas a essência dessa construção, ou seja, um processo de construção psicodinamicamente ativo, evolutivo, que experimenta o caos para, em seguida, se reorganizar em novas constru­ções. Quando falo era "circunstancialidades psicossociais" quero dizer não apenas algumas circunstâncias particulares, mas a essência e o movimento das circunstâncias psicossociais vivenciadas no processo existencial. Quan­do comento a "evolutividade psicossocial", estou-me referindo a evoluções que ocorrem continuamente no processo de construção do pensamento de cada ser humano e que contribuem para a evolução da cultura. Porém, apesar desse zelo teórico, as deficiências do discurso literário para expres­sar o processo de construção do pensamento e o universo psicossocial como um todo do homem ainda são grandes.
As letras deveriam servir às idéias e não as idéias às letras e às regras gramaticais, como não poucas vezes acontece. As letras e a gramática deve­riam libertar o pensamento; ser um canal de veiculação das idéias. Porém, nem sempre as frases e os textos mais compreensíveis são mais justos para expressar as idéias de um autor, embora facilitem a vida do leitor. As letras reduzem inevitavelmente as idéias; os labirintos gramaticais, às vezes, apri­sionam os pensamentos. A linguagem tem um grande débito com o pensa­mento, principalmente com o pensamento psicológico e filosófico.
Para termos uma idéia da deficiência do discurso literário para expres­sar a ciência, basta dizer que os pontos finais das frases, embora úteis para a compreensão da linguagem, são uma mentira científica. Na ciência, não há pontos finais. Tudo é uma seqüência interminável de eventos que mu­tuamente co-interferem. Por isso, não há resposta completa em ciência e, muito menos, há resposta completa na aplicação dos pensamentos procu­rando examinar suas próprias origens, seus próprios processos de constru­ção, limites, alcance, práxis, enfim, compreender a própria fonte que os gera. Na ciência, cada resposta é o começo de novas perguntas...
O pensamento, quando é aplicado para discursar sobre o mundo extrapsíquico, facilmente ganha altivez; mas, usado para discursar dialeticamente sobre a própria fonte que o concebe, ele se abate. Quando o pensamento é utilizado para esquadrinhar o pré-pensamento e os proces­sos de construção que se envolvem na sua própria construção, ele se per­turba diante das suas limitações.
A psique (em grego = alma) é constituída de um complexo campo de energia psíquica. Nela ocorrem todos os processos que constroem as cadeias de pensamentos, transformam a energia psíquica e escrevem os segredos da memória. Investigar os fenômenos que estão na base da inteligência é uma grande empreitada a que todos os que pensam não devem se furtar.

MINHA TRAJETÓRIA DE PESQUISA

O homem vive um dramático paradoxo exploratório. Ele pensa, explo­ra e conhece cada vez mais o mundo que o envolve, mas pouco pensa sobre seu próprio ser, sobre a riquíssima construção de pensamentos que explode num espetáculo indescritível a cada momento da existência. O homem moderno, com as devidas exceções, perdeu o apreço pelo mundo das idéias.
Apesar de ter escrito este livro principalmente para pesquisadores, pro­fissionais e estudantes da Psicologia, da Psiquiatria, da Filosofia, da Educa­ção e das demais áreas cuja ferramenta fundamental seja o trabalho intelec­tual, eu gostaria que ele também atingisse o leitor que não se considera um intelectual nessas áreas. O direito de pensar com liberdade e consciência crítica é um direito fundamental de todo ser humano; e este livro objetiva contribuir para esse direito.
Aprender a apreciar o mundo das idéias, percorrendo as avenidas da arte da dúvida e da crítica, estimula o processo de interiorização, expande a inteligência e contribui para a prevenção da síndrome da exteriorização existencial e das doenças psíquicas.
Nestes textos, comentarei alguns elementos psicossociais que contri­buíram para promover minha trajetória de pesquisa. Esses dados são bem sintéticos e não visam ser uma autobiografia. Meu objetivo é fornecer algu­mas informações para evidenciar algumas causas psicossociais que me fize­ram, desde minha época de estudante de Medicina, me apaixonar pelo mundo das idéias e, ao mesmo tempo, criticar diversas convenções existen­tes na Psicologia e na Psiquiatria e evidenciar a crise de formação de pensa­dores.
Este texto objetiva também dar um "rosto histórico" à minha produção de conhecimento, pois creio que o processo de produção é tão ou mais importante do que o próprio conhecimento produzido. Um dos maiores erros da educação clássica, que bloqueia a formação de pensadores, foi e tem sido o de transmitir o conhecimento pronto, acabado, sem evidenciar o seu processo de produção, o seu rosto histórico.
No VII Congresso Internacional de Educação * ministrei uma conferên­cia sobre "O funcionamento da mente e a formação de pensadores no terceiro milênio". Na ocasião, comentei que no mundo atual, apesar de termos multiplicado como nunca na história as informações, não multiplicamos a formação dos homens que pensam. Estamos na era da informação e da informatização, mas as funções mais importantes da inteligência não estão sendo desenvolvidas.
Ao que tudo indica, o homem do século XXI será menos criativo do que o homem do século XX. Há um clima no ar que denuncia que os homens do futuro serão mais cultos, mas, ao mesmo tempo, mais frágeis emocionalmente, terão mais informação, contudo serão menos íntimos da sabedoria.
A cultura acadêmica não os libertará do cárcere intelectual. Será um homem com mais capacidade de respostas lógicas, mas com menos capaci­dade de dar respostas para a vida, com menos capacidade de superar seus desafios, de lidar com suas dores e enfrentar as contradições dá existência. Infelizmente, será um homem com menos capacidade de proteger a sua emoção nos focos de tensão e com mais possibilidade de se expor a doen­ças psíquicas e psicossomáticas. Será um homem livre por fora, mas prisio­neiro no território da emoção.
O sistema educacional que se arrasta por séculos, embora possua pro­fessores com elevada dignidade, possui teorias que não compreendem muito nem o funcionamento multifocal da mente humana nem o processo de construção dos pensamentos. Por isso, enfileira os alunos nas salas de aula e os transforma em espectadores passivos do conhecimento e não em agen­tes do processo educacional.
Nos primeiros dois capítulos, fornecerei alguns princípios psicológicos e filosóficos relevantes para o desenvolvimento da arte de pensar. Poste­riormente, do capítulo terceiro ao nono, entrarei no cerne da teoria da construção da inteligência. A partir do décimo capítulo retomo o processo.
de formação de pensadores e aplico alguns elementos da teoria neste pro­cesso.

ALGUMAS CONVENÇÕES: A MENTE HUMANA, A INTELIGÊNCIA E A PERSONALIDADE

Usarei o termo "mente" como o ambiente onde se processam as facul­dades intelectuais, onde se desenvolve a inteligência. A mente humana possui, nestes textos, alguns termos equivalentes: a psique, a alma ou cam­po de energia psíquica.
A inteligência é um conjunto de estruturas psicodinâmicas derivadas do amplo funcionamento da mente. E a capacidade de pensar, se emocio­nar, ter consciência. Ela é constituída de quatro grandes processos, tais como construção de pensamentos, transformação da energia emocional, formação da consciência existencial (quem sou, como estou, onde estou) e formação da história existencial arquivada na memória.
Este livro trata muito mais da construção da inteligência do que das suas funções. Todo ser humano constrói uma inteligência, mas nem todos desenvolvem qualitativamente as funções mais importantes, tais como pen­sar antes de reagir, expor e não impor as idéias, gerenciar os pensamentos, resgatar a liderança do eu nos focos de tensão, filtrar estímulos estressantes.
A inteligência e a personalidade representam, aqui, termos equivalen­tes. Todos os dias esses processos de construção da inteligência estão em atividade. Portanto, a inteligência ou a personalidade não pára de evoluir, embora seu ritmo de evolução possa diminuir na vida adulta.
Quando as pessoas dizem que alguém é pouco ou muito inteligente ou que possui uma boa ou má característica de personalidade, elas estão na realidade apenas se referindo a manifestação exterior das funções da inteli­gência ou da personalidade e não sobre sua construção. Elas não têm cons­ciência dos surpreendentes dos fenômenos e dos processos que produzem o homem como ser inteligente.
Outra convenção importante está relacionada ao "eu". Aqui, o "eu" ou o "self" não é um termo vago conceitualmente. Ele se refere a "consciência de si mesmo", a consciência de que existimos e que possuímos uma "iden­tidade" única e exclusiva, a consciência de que pensamos e que podemos administrar os pensamentos e as emoções. O adequado seria chamarmos o "eu" de a "consciência do eu" ou "a vontade consciente do eu", porque ele está relacionado aos amplos aspectos da consciência e da vontade humana, mas por questões literárias o chamarei apenas de "eu".
O grande desafio do "eu" é gerenciar os processos de construção da inteligência, expandindo as suas funções mais importantes. Contudo, estuda­remos que o homem tem um grande problema universal. Ele tem facilidade de ser líder no mundo que o cerca, mas tem enorme dificuldade de ser líder no mundo psíquico, de controlar o funcionamento da sua própria mente.


A SEDE DE CONHECIMENTO. RESPIRANDO A PESQUISA EMPÍRICA

Todo cientista que não seja estéril é um aventureiro nas trajetórias do desconhecido, um aprendiz contumaz no processo existencial, um rebelde das convenções do conhecimento.
Na minha trajetória de pesquisa, o fascínio pela exploração dos proces­sos de construção da inteligência e a opção por produzir uma teoria total­mente original me estimularam a desenvolver e utilizar procedimentos de pesquisa que expandiram meu processo de observação, interpretação e produção de conhecimento.
Os procedimentos que usei na pesquisa, tais como a "tríade de arte da pesquisa"(arte da pergunta, arte da dúvida e arte da crítica), a análise multifocal das variáveis que participam da construção dos pensamentos, levaram meu processo de observação, seleção e interpretação dos dados a não ser unidirecional, visando um tipo específico de comportamento pro­duzido por um tipo específico de pessoa, proveniente da mesma faixa etária e condições socioeconômicas semelhantes, mas multidirecional. Eles leva­ram a explorar o máximo possível das variáveis presentes em cada com­portamento observado. Procurava descobrir até as variáveis que estavam presentes nas entrelinhas dos pensamentos e no tom e na velocidade de voz das pessoas que me rodeavam.
Devido à abrangência e complexidade do projeto de pesquisa sobre os quatro grandes processos de construção da inteligência, todas as pessoas que me eram próximas se tornavam alvos das minhas observações e inter­pretações, pois eu precisava de dados com as mesmas dimensões de abrangência. Mesmo as mínimas reações da minha mente se tornavam um material precioso para observações e interpretações.
Em qualquer ambiente, nos corredores da faculdade de Medicina, nas salas de aula, no leito dos pacientes, nos ambientes sociais, nas ruas e, posteriormente, nos anos em que exercia a Psicoterapia e a Psiquiatria, nos cursos que ministrava etc, eu observava contínua e prazerosamente o com­portamento das pessoas. Tinha sede de conhecimento, vivia como se respi­rasse a investigação da personalidade, da inteligência, da mente humana.
Uma revolução intelectual foi provocada no cerne da minha alma. Não podia contê-la. Quando começamos a nos interiorizar e a rever nossa ma­neira de pensar e nossos paradigmas socioculturais nunca mais somos os mesmos... Por isso, procurava ser não apenas um profissional que trabalha­va com a personalidade, mas um engenheiro de idéias, alguém que valori­zava e construía idéias mesmo diante dos pequenos e desprezíveis detalhes do comportamento. Percebi paulatinamente que na mente ocorre um con­junto de processos de construção da inteligência, tais como o processo de construção dos pensamentos, da formação da consciência existencial, da formação da história intrapsíquica e da transformação da energia emocio­nal e motivacional.
Comecei a desejar produzir não apenas um conhecimento psicológico qualquer, mas uma teoria sobre os processos de construção presentes no campo de energia psíquica, embora esse desejo fosse uma empreitada ou­sada e crítica das convenções do conhecimento.
Lembro-me de que o desejo de produzir uma teoria original sobre os processos de construção da inteligência estava me dominando tanto, que, antes de me casar, há mais de 16 anos, chamei minha futura esposa de lado, que também era estudante de Medicina, e lhe disse que se ela quises­se se casar comigo, teria que saber que grande parte do meu tempo seria dedicada à pesquisa e à escrita. Na época, como estava no começo de minhas pesquisas, eu não conseguia explicar a ela o conteúdo das minhas idéias, meus objetivos e os resultados que poderia alcançar. Nem a mim mesmo eu conseguia dar essas explicações. Parecia que eu estava numa sinuosa e estimulante aventura. Só sabia que não conseguia conter a revo­lução das idéias que se operava dentro de mim. Por isso, quanto mais falava a ela, mais a deixava confusa.
Ela considerava tudo aquilo estranho, pois ia se casar com um médico e sabia que um médico deveria estudar doenças neurológicas, psiquiátri­cas, psicossomáticas etc, mas nunca tinha ouvido falar que um médico tivesse preocupação em pesquisar os mistérios do funcionamento da mente humana. Não entendia que o meu objetivo principal não era exercer a Psiquiatria e a Psicoterapia, mas ser um "filósofo da Psicologia", um teóri­co, um produtor de ciência. Ela entendia menos ainda e se sentia insegura quando eu lhe dizia que estava sendo um crítico de diversas convenções do conhecimento na Psicologia, que minha produção de conhecimento era original e que demoraria muito tempo para que ela fosse absorvida nos centros de pesquisas.
Ela pensava que eu estava vivendo uma "febre" científica e acreditava que essa febre seria passageira. Por fim, felizmente, ela se casou comigo. Passados mais de 17 anos, desde quando iniciei minha trajetória de pesquisa

ESTIMULANDO A PESQUISA: OS FATORES PSICOSSOCIAIS E A DOR DA DEPRESSÃO

A sede de conhecimento e o desejo de "respirar" a pesquisa científica não foram estimulados pelos meus professores de Psicologia, Psiquiatria e Sociologia na faculdade de Medicina, nem por qualquer pessoa com quem convivi.
O embrião dessa sede surgiu, talvez, por viver num país com imensas desigualdades sociais, mas que, ao mesmo tempo, possui um rico caldeirão de raças, de cultura e de afetividade e por ser filho de imigrantes de origem multirracial, árabe, espanhol e ítalo-judia. Há dúvida quanto à minha ori­gem ítalo-judia, pois há possibilidade de que meus antepassados tenham sido judeus que fugiram para a Itália e da Itália migraram para o Brasil.
Meu desejo ardente de pesquisar e de conhecer a mente humana tam­bém surgiu por ter vivido uma infância rica afetivamente e próxima interpessoalmente, pois dormíamos em oito pessoas, meus pais e seis filhos, num pequeno quarto de não mais do que 15 metros quadrados. Apesar de esses fatores psicossociais terem sido o embrião do meu processo de interiorização, creio que o fator mais importante que impulsionou minha trajetória de pesquisa foi uma crise de depressão por que passei. Há mais de dezessete anos, vivi silenciosamente, por cerca de dois meses, um intenso inverno emocional, a dor indescritível da depressão. A tentativa desesperadora de superar esse intenso inverno emocional me estimulou a me interiorizar.
O humor deprimido, a ansiedade, a perda de energia biopsíquica, a insônia, a perda do sentido existencial, os pensamentos de conteúdo nega­tivo, os pensamentos antecipatórios, associados a outros sintomas torna­ram-se o cenário da minha depressão. Não vou entrar em detalhes sobre este período existencial nem sobre as causas da minha depressão, pois não é esse o objetivo deste livro. Porém, quero dizer que minha crise depressiva se tornou uma das mais belas e importantes ferramentas para me interiorizar e me estimular a procurar as origens dos meus pensamentos de conteúdo negativo e as origens da transformação da minha energia emocional depressiva.
Em síntese, a dor da depressão, que considero o último estágio da dor humana, me conduziu a ser um pensador da Psicologia e da Filosofia. Ela me levou não apenas a repensar minha trajetória existencial e expandir a minha maneira de ver a vida e reagir ao mundo, mas também me estimu­lou a iniciar uma pesquisa sobre o funcionamento da mente, a natureza dos pensamentos e os processos de construção da inteligência. O processo de interiorização foi uma tentativa desesperadora de tentar me explicar e de superar minha miséria emocional.
Para muitos, a dor é um fator de destruição; para outros, ela destila sabedoria, é um fator de crescimento. Ninguém que deseja conquistar ma­turidade em sua inteligência, adquirir sabedoria intelectual e tornar-se um pensador e um poeta da existência pode se furtar de usar suas dores, per­das e frustrações que, às vezes, são imprevisíveis e inevitáveis, como alicer­ces de crescimento humano.
Procurei, apesar de todas as minhas limitações, investigar, analisar e criticar empiricamente os fundamentos dos postulados biológicos da de­pressão, a psicodinâmica da construção dos pensamentos de conteúdo ne­gativo, os processos da transformação da energia emocional depressiva etc. Esse caminho, no começo, foi um salto no escuro da minha mente, um mergulho no caos intelectual, que desmoronou os conceitos e paradigmas de vida. Esse mergulho interior me ajudou a reorganizar o caos emocional, a dor da minha alma. Contudo, no início, me envolvi mais num caldeirão de dúvidas do que de soluções. Porém, foi um bom começo.
O caos emocional da depressão, se bem trabalhado, não é um fim em si mesmo, mas um precioso estágio em que se expandem os horizontes da vida. Eu nunca havia percebido que, embora produzisse muitas idéias, co­nhecia muito pouco o mundo das idéias, a construção dos pensamentos e o processo de transformação da energia emocional.
Muitos psiquiatras não têm idéia da dramaticidade da dor da depressão e das dificuldades de gerenciamento dos pensamentos negativos que a pro­movem. Entretanto, o eu pode administrá-los e, conseqüentemente, resolvê-la. Costumo dizer que se o eu der as costas para a depressão e para os mecanismos subjacentes que a envolvem, ela se torna um monstro insupe­rável, mas se a enfrentarmos com crítica e inteligência, ela se torna uma doença fácil de ser superada. No capítulo sobre o gerenciamento do eu este assunto ficará claro.
Meu inverno emocional gerou uma bela primavera de vida, pois esti­mulou-me a sair da superfície intelectual, da condição de ser um passante existencial, de alguém que passa pela vida e não cria raízes dentro de si mesmo, para alguém que conseguiu se encantar com o espetáculo da cons­trução de pensamentos.
Não há gigantes no território da emoção. Todos passamos por períodos dolorosos. Ninguém consegue controlar todas as variáveis dentro e fora de si. Por isso, a vida humana é sinuosa, turbulenta e bela. A sabedoria de um homem não está em não errar, chorar, se angustiar e se fragilizar, mas em usar seu sofrimento como alicerce de sua maturidade.

PESQUISANDO COM CRITÉRIO PARA EXPANDIR O MUNDO DAS IDÉIAS

Cada ser humano é um mundo complexo e sofisticado a ser descober­to. Apesar da frustração que possamos ter com o declínio do humanismo, com a epidemia psicossocial da síndrome da exteriorização existencial, com as multiformes práticas discriminatórias e com a baixa capacidade de trabalhar dores, perdas e frustrações que acometem muitos consócios das sociedades modernas, quando procuramos contemplar e compreender o espetáculo da construção dos pensamentos, não podemos deixar de nos encantar com a obra-prima da mente humana.
A medida que eu procurava investigar os processos de construção que ocorriam na minha mente, comecei também, pouco a pouco, a me trans­portar para investigar o universo social. Observar o homem, procurar inda­gar sobre os fenômenos intrapsíquicos que produziam seus comportamen­tos me fascinavam.
A ousadia em querer investigar o funcionamento da mente e a desco­berta da arte da pergunta, da arte da dúvida e da arte da crítica me faziam tão crítico, que, ainda nos tempos de faculdade, por diversas vezes, eu formulava de maneira diferente o conhecimento de Psicologia, de Psiquiatria e de Sociologia que me ensinavam. Esse procedimento não derivava da falta de cultura dos meus professores; pelo contrário, eu os considerava cultos. O problema era que a "tríade de arte da pesquisa" que eu usava para analisar o que me ensinavam me impedia de ser um espectador passi­vo do conhecimento.
Durante meu curso de Medicina, comecei silenciosamente minha traje­tória de pesquisa e a apreciar o funcionamento da mente; por isso no final desse curso eu havia escrito diversos cadernos sobre minhas observações e análises. Nesse período eu já começava a ter algumas críticas contra a rigi­dez do sistema acadêmico.
Essas críticas aumentaram, ao longo dos anos, à medida que fui produ­zindo conhecimento sobre a construção dos pensamentos, os limites e a lógica do conhecimento, os limites das teorias, as relações entre a verdade científica e a verdade essencial, o autoritarismo das idéias.
Comentarei, sucintamente, uma experiência que passei por me contra­por às regras do sistema acadêmico e que, apesar de ter me angustiado, me estimulou a arte de pensar.
Lembro-me de que, há cerca de 16 anos, após ter-me formado em Medicina, procurei ingressar em uma conceituada universidade para fazer pós-graduação. Ao me apresentar, peguei um texto que havia escrito e o acrescentei em meu curriculum para mostrá-lo à banca examinadora forma­da por ilustres professores doutores em Psiquiatria e Psicologia.
Eu acreditava que eles iriam ler algo da minha produção de conheci­mento e, ainda que a criticassem, esperava que, pelo menos, valorizassem minha capacidade de pensar. Pensava até que os examinadores fariam algumas perguntas sobre o conhecimento que havia produzido, apesar de estar consciente de que, na época, ele carecia de profundidade. Porém, mesmo assim, acreditava que eles valorizariam e incentivariam o ímpeto de pesquisar fenômenos tão complexos, por isso estava animado com a possi­bilidade de discutir algumas das minhas idéias. Porém, para minha frustra­ção, os membros da banca examinadora pegaram aqueles textos e, com uma postura intelectual autoritária, me perguntaram o que significava aqui­lo. Respondi em poucas palavras que se referia a uma pesquisa que eu estava realizando.
Perguntaram-me quem era o orientador e qual era a teoria e a biblio­grafia usada. Respondi, educadamente, que era uma pesquisa original; por isso não tinha nem orientador nem bibliografia. Senti, pelo semblante dos examinadores, que os incomodei muito, que minhas palavras soaram como um insulto à inteligência deles. Por isso se negaram a analisar minha produ­ção de conhecimento. Eles estavam tão enclausurados dentro dos muros da sua universidade, que parecia uma heresia alguém produzir uma pes­quisa totalmente nova sobre o funcionamento da mente.
Eles usavam a ciência, mas desconheciam a história e a lógica da ciên­cia. Pareciam ser os senhores da verdade, embora provavelmente não co­nhecessem a Filosofia da verdade, as complexas relações entre a verdade científica e a verdade essencial, que serão expostas no capítulo seguinte. Percebi que, no momento em que disse que minha pesquisa era original, eles passaram a me ver como um rebelde ao sistema de pesquisa que co­nheciam. Assim, exercendo o autoritarismo das idéias, pegaram meu texto e, com a maior indiferença, me devolveram sem sequer manuseá-lo.
Seria mais digno e democrático se eles o lessem e, após criticá-lo, me dissessem que eu era um sonhador, que aquelas idéias eram tolas. A dor da crítica acusa a existência de alguém e abre caminhos para amadurecê-lo, enquanto a dor da discriminação anula sua existência. As universidades estão pouco preparadas para financiar pesquisas abertas que objetivem a produção de teorias amplas, por isso grande parte delas foram produzidas fora dos seus muros. Tal é o exemplo da teoria psicanalítica de Freud e da relatividade de Einstein.
Após devolverem meu texto, aqueles ilustres professores me pediram que eu retornasse à minha faculdade de Medicina e procurasse meus pro­fessores de Psicologia e Psiquiatria, para que produzisse pesquisa sob a orientação deles. Eles não imaginavam que, embora respeitasse a cultura e a inteligência dos meus professores, estava-me tornando íntimo da arte da dúvida e da crítica e, por isso, diversas vezes escrevia o conteúdo das aulas de maneira diferente de como eles me ensinavam.
Não imaginavam que eu não conseguia conter meu ímpeto indepen­dente de pesquisar. Catalogava cada comportamento das pessoas ao meu redor e cada pensamento que transitava pela minha mente e gastava tempo analisando-os. Meus bolsos viviam cheios de anotações sobre minhas obser­vações e interpretações e eu já havia perdido algumas noites de sono pelas inúmeras dúvidas que tinha sobre os fenômenos que atuam na complexa construção das cadeias de pensamentos.
Hoje, passados tantos anos, os tempos mudaram. Minhas idéias têm sido cada vez mais conhecidas, respeitadas e utilizadas por pesquisadores e profissionais não apenas no Brasil, mas em outros países. Tenho proferido diversas conferências, inclusive em congressos internacionais. A teoria da inteligência multifocal não apenas tem sido aplicada na Psiquiatria e na Psicologia, mas também na Educação. Todavia, se no começo de minhas pesquisas não tivesse vivido uma intensa paixão pelo mundo das idéias, aqueles membros da banca examinadora teriam destruído meu interesse pela investigação do funcionamento da mente.
Ao olhar para o passado, tenho a consciência de que os "invernos" que passei no início das pesquisas produziram minhas raízes intelectuais mais profundas. O fato de ter aprendido a ser fiel a minha consciência fez com que os obstáculos temporários que enfrentei se transformassem em alguns dos principais pilares da minha capacidade de pensar e de pesquisar. Como estudaremos, esses obstáculos me estimularam a produzir não apenas uma teoria, mas também, diferente da grande maioria dos cientistas teóricos, criteriosos procedimentos de pesquisas na produção dessa teoria.
Fico imaginando quantos pensadores ilustres não tiveram sua produção de conhecimento abortada pela postura autoritária do sistema acadêmico se impondo como o centro da produção e da validação do conhecimento e como o centro exclusivo da produção de intelectuais, de cientistas, de pen­sadores, de teóricos.
Parece paradoxal, mas o sistema acadêmico não apenas forma intelec­tuais, mas também sufoca pensadores, mesmo dentro da sua esfera. Muitos cientistas que estão dentro das universidades sabem disso, pois de alguma forma sofrem restrição na sua liberdade de pensar e de pesquisar.
A dor da depressão me estimulou a conhecer o mundo das idéias e a dor da rejeição me incentivou a expandir esse mundo com consciência crítica.
Se eu não tivesse passado por tais dificuldades não teria, provavelmen­te, produzido uma nova e ampla teoria sobre o processo de construção dos pensamentos com diversas implicações na ciência.
Muitos pensadores foram discriminados, considerados rebeldes e perturbadores da ordem ao longo da história. Sócrates foi condenado a beber a cicuta, a morrer envenenado, pelo incômodo que suas idéias cau­savam na época. Porém, ele considerou ser mais digno tomar a cicuta do que ser infiel às suas idéias e ter uma dívida impagável com sua própria consciência. Giordano Bruno, filósofo italiano, errou por muitos países, procurando uma universidade para expor suas idéias, e por isso experi­mentou diversos tipos de perseguição e sofrimento, culminando na sua morte. Baruch Spinoza, um dos pais da Filosofia moderna, foi banido dra­maticamente pelos membros de sua sinagoga por causa das suas idéias, que chegaram, inclusive, a amaldiçoá-lo, dizendo: "Que ele sej,a maldito durante o dia, e maldito durante a noite; que seja maldito deitado, e maldi­to ao se levantar; maldito ao sair, e maldito ao entrar...". Immanuel Kant foi tratado como um cão pelo incômodo que suas idéias causavam no clero da época. Voltaire, devido às suas idéias humanistas, passou por perseguições na sua época. A lista de pensadores que foram discriminados ou sofreram perseguições é enorme.
As universidades, com as devidas exceções, monopolizaram o conheci­mento, se fecharam numa redoma, como o clero nos séculos passados. Elas têm uma função humanística, sociopolítica e socioeducacional importantís­sima na sociedade, porém essas funções não têm sido exercidas adequada­mente. Embora possam não conhecer a teoria da democracia das idéias, exposta nos capítulos finais, elas deveriam ser, ao menos, albergues dos seus princípios universais.
Hoje é raro encontrar pensadores fora da instituição acadêmica, como ocorreu nos séculos passados.

A ARTE DA OBSERVAÇÃO E DA ANÁLISE MULTIFOCAL

Eu vivia a arte da observação e da análise multifocal. Observar a ex­pressão de cada idéia, mesmo das mais débeis, era uma aventura estimu­lante, pois provocava a minha ambição de conhecer as variáveis que parti­cipavam do espetáculo da construção dos pensamentos.
Ficava, como disse, observando, anotando, interpretando e produzindo conhecimento sobre o comportamento de determinadas pessoas. Ficava assombrado ao contemplar atenta e embevecidamente pequenos detalhes do comportamento humano. Procurava compreender os fenômenos que os produziam. Essa atitude me proporcionava um prazer indescritível, mes­mo quando eu ficava confuso diante de tanta complexidade. Perguntava-me continuamente: quais fenômenos estão por detrás desse comportamen­to? Como se processou a leitura da memória para que se produzisse essa cadeia de pensamento? Por que os pensamentos fluem no palco da mente num processo espontâneo e inevitável?
Até um mendigo era para mim uma pessoa complexa, rica intelectual­mente e interessante de ser observada e analisada. Conversei com vários deles. Muitos deles, quando se aproximam uns dos outros, logo estabele­cem uma relação interpessoal e trocam diálogos, pois não têm preconceitos socioculturais, não precisam ostentar status ou provar qualquer coisa para estabelecer confiabilidade. A mercadoria de troca interpessoal entre os mendigos é o que eles são e não o que eles têm, diferentemente de grande parte das relações nas sociedades modernas. Assim, aprendi que até entre as pessoas que vivem em condições miseráveis e que são totalmente desprotegidas socialmente é possível apreciar o espetáculo da construção de pensamentos e contemplar lições existenciais.
Uma pessoa psicótica também é uma pessoa que possui um admirável funcionamento da mente, ainda que desorganizado. Como veremos, na esquizofrenia, o "eu" perde o controle da leitura da memória e da utiliza­ção dos parâmetros psicossociais na construtividade das cadeias dos pensa­mentos, o que gera a produção de delírios e alucinações. Apesar disso, as pessoas portadoras de psicoses são seres humanos altamente complexos e que deveriam ser valorizadas, ajudadas e acolhidas.
Pelo fato de começar a procurar, após os primeiros anos de pesquisa, as variáveis da interpretação que estão na base dos processos de construção da inteligência, e de começar a perceber que elas contaminam inevitavel­mente o processo de interpretação, eu adquiria, pouco a pouco, a consciên­cia crítica sobre a necessidade de revisão e reorganização contínua do meu processo de observação, interpretação e produção de conhecimento. Fica­va preocupado com as contaminações da interpretação ligadas aos referenciais contidos na minha história intrapsíquica que poderiam promo­ver uma produção de conhecimento sem fundamento.
Nos primeiros anos, eu não tinha uma compreensão tão clara do pro­cesso de interpretação como a descrita na frase anterior, mas, pouco a pouco, à medida que produzia conhecimento sobre a mente, sobre os pro­cedimentos utilizados na sua investigação e sobre os limites e alcance dos pensamentos, começava a entendê-lo. A arte da formulação de pergun­tas, da dúvida e da crítica inauguravam pouco a pouco minha aurora inte­lectual.
À medida que eu observava cada pessoa, cada pensamento verbalizado e cada expressão facial, formulava sistematicamente inúmeras perguntas sobre cada fenômeno observado e, ao mesmo tempo, criticava continua­mente a produção de conhecimento que realizava sobre elas, consideran­do-as, freqüentemente, reducionistas e insuficientes. Por isso, procurava novamente o caos intelectual, agora, não apenas para filtrar algumas conta­minações da interpretação, mas também para expandir as possibilidades de compreensão e de construção do conhecimento sobre os fenômenos psíquicos. Assim, eu expandia o mundo das idéias e reorganizava minha produção de conhecimento.
Esse processo me custou muitas noites maldormidas ou de plena insônia, por causa do turbilhão de dúvidas que vivia. Algumas dúvidas demo­ravam
serem resolvidas, ainda que vivesse continua­mente a "tríade de arte da pesquisa" e a busca do caos intelectual.
Apesar de toda ousadia que desenvolvi, apesar de viver a pesquisa psicológica como um grande e contínuo desafio intelectual, como uma aventura indecifrável, eu hesitava algumas vezes em continuar a pesquisar e produzir conhecimento, quando percebia que minhas idéias se encontra­vam num labirinto intelectual sem progressão.
Cada fenômeno que estudava, cada variável da interpretação, cada tex­to que produzia passava por um processo contínuo de montagem e desmontagem intelectual. Assim, eu expandia as possibilidades de constru­ção do conhecimento.

OS COMPUTADORES JAMAIS CONSEGUIRÃO TER A CONSCIÊNCIA EXISTENCIAL

A maioria dos seres humanos elogia as maravilhas da tecnologia, mas não conseguem se encantar com o espetáculo da construção de pensamen­tos que corre na psique humana. Não conseguem compreender que a cons­ciência existencial expressa, por exemplo, pela consciência da solidão e das dores emocionais, os tornam mais sofisticados do que milhões de compu­tadores interligados.
Os computadores jamais passarão de escravos de estímulos programa­dos, ainda que incorporem um processo de auto-aprendizagem e levem em consideração a "lógica paraconsistente", ou seja, que admitam contradi­ções das informações.1 É cientificamente ingênuo dizer que os computado­res produzem uma realidade virtual, pois eles não têm consciência existen­cial de si mesmos, eles não existem para si mesmos e, portanto, não têm consciência da organização das informações que expressam nas telas de vídeo.
Quando estudarmos a leitura da memória, a construção das cadeias de pensamentos e a formação da consciência existencial do eu, entenderemos que será impossível que um dia os computadores conquistem essa cons­ciência, por isso, eles jamais existirão para si mesmos, jamais conquistarão conscientemente uma identidade psicossocial, jamais experimentarão con­flitos, insegurança, ansiedade, tranqüilidade, dor, prazer. Para os computa­dores, o tudo e o nada, o ter e o ser, um segundo e a eternidade, serão inevitavelmente sempre a mesma coisa.

A NECESSIDADE DE NOVOS CIENTISTAS TEÓRICOS

A falta do conhecimento sobre os processos de construção dos pensa­mentos, sobre o processo de interpretação e sobre os limites e o alcance de uma teoria pode conduzir os pesquisadores que procuram defender teses acadêmicas a fechar as janelas do pensamento.
Seria importante que os usuários de uma teoria não a utilizassem como se ela incorporasse a verdade essencial, mas como um suporte limitado do processo de observação e interpretação. Seria importante, também, que na ortodoxia da pesquisa acadêmica os pesquisadores fossem estimulados a fazer uma intentona teórica, um motim intelectual, ou seja, fazer uma revo­lução contra as convenções do conhecimento e o sistema rígido de pesqui­sa, capaz de torná-los ousados na produção de um corpo teórico próprio, uma teoria inovadora, e nem sempre se submeterem às idéias de Freud, Jung, Roger, Moreno, Erich Fromm, Viktor Frankl, Piaget ou de filósofos tais como Kant, Hegel, Marx, Husserl, Heidegger etc.
Sem se adotar essa postura... contra as convenções do conhecimento vigente não se produzirão pensadores e cientistas teóricos, não haverá a produção de teorias originais, inovadoras. Uma intentona teórica, alicerçada nos princípios da democracia das idéias, deveria ser feita com ousadia, criatividade, arte da observação, arte da formulação de perguntas, arte da dúvida, arte da crítica, análise multifocal, entre outros procedimentos, uma postura intelectual que não oferece resistência para reciclar e reorganizar continuamente todo o conhecimento produzido. Esses procedimentos são fundamentais para romper os paradigmas culturais, o continuísmo das idéias, a mesmice do conhecimento e, conseqüentemente, para produzir cientistas teóricos e pensadores.
Esses procedimentos também podem ser aplicados nas artes, nas ciên­cias naturais, na educação, na economia, no desenvolvimento empresarial, no exercício da profissão liberal para produzirem pensadores que expan­dam com originalidade o mundo das idéias.
Todos os teóricos e pensadores são revolucionários. Aliás, todo cientis­ta é um revolucionário, pois recicla o continuísmo das idéias. É claro que grande parte dos cientistas, embora não sejam teóricos, utilizam as teorias e prestam um grande serviço à ciência. Porém, a ciência precisa avançar não apenas na utilização das teorias vigentes, mas também na produção de novas teorias. As teorias funcionam como fonte de pesquisa e suporte do processo de observação, interpretação analítica e produção de conheci­mento.
Uma grande teoria pode catalisar a produção de idéias, desde que os que a abraçam não gravitem em torno dela, não sejam meros retransmissores do conhecimento que ela encerra e não sejam rígidos defensores, incapa­zes de criticá-la, reciclá-la ou expandi-la. Por isso, prejudicam o desenvolvi­mento da ciência os que aderem rigidamente a ela. Qualquer usuário de uma teoria que é incapaz de criticá-la será um mero reprodutor das suas idéias, traindo-a interpretativamente sem o saber e praticando uma ditadu­ra intelectual no exercício da sua profissão ou na sua produção de conheci­mento científico. Esse processo é passível de ocorrer não apenas nas ciên­cias da cultura, mas também nas ciências físicas, biológicas e correlatas.
Penso que é raro uma universidade incentivar a "intentona teórica", o "motim intelectual" entre seus estudantes, levando-os à procura de novas possibilidades de construção e de compreensão do conhecimento, à pro­dução de novas teorias a partir da busca da desorganização dos conceitos e da arte da formulação de perguntas, da dúvida e da crítica, bem como de outros instrumentos empíricos.
O sistema acadêmico é excessivamente organizado, institucionalizado e preocupado com a transmissibilidade unifocal do conhecimento. Tais atitudes limitam a formação de pensadores. As grandes idéias surgiram a partir do caos intelectual. Todos os que contribuíram com a expansão da ciência e com as idéias humanistas romperam com os paradigmas intelec­tuais, vivenciaram micro ou macro motins intelectuais. Não estou estimu­lando o caos das idéias, a ruptura pela ruptura dos paradigmas intelectuais. Não! As idéias vigentes devem ser valorizadas, mas também filtradas e revisadas. As idéias, mesmo as que são consideradas verdades científicas, não são fins em si mesmas, pois não são coincidentes com a verdade essen­cial, que é inatingível.
Produzir ciência não é uma tarefa simples. A falta de conhecimento dos processos de construção dos pensamentos, dos limites e do alcance de uma teoria, bem como dos sistemas de encadeamentos distorcidos, passíveis de ocorrer no processo de interpretação, faz com que muitos tenham o conceito errado de que, para produzir ciência ou se tornar um cientista, basta defender uma tese acadêmica. Muitos orientadores das teses sabem que isso é totalmente insuficiente. Ao longo dos anos, estudei mais de vinte possibilidades que podem comprometer a produção de conhecimento de uma tese acadêmica e a formação de pensadores. Infelizmente, por não ser esse o objetivo deste livro, não as comentarei. Todavia, quando abordar os procedimentos de pesquisas multifocais, algumas dessas possibilidades se­rão evidenciadas.
Devemos repensar o processo de formação de pensadores antes de pensar na produção da própria ciência. Devemos nos preocupar com a qualidade da inteligência dos pensadores. Os procedimentos de pesquisa multifocais que utilizei, tais como a arte da formulação de perguntas, da dúvida e da crítica, a busca do caos intelectual e os dois instrumentos empíricos ligados à análise dos processos de construção dos pensamentos e das variáveis que atuam na construção das cadeias de pensamentos, po­dem contribuir com essa tarefa intelectual.
Nas ciências da cultura, na qual se inclui a Psicologia, a Filosofia, a Educação, a Sociologia etc, não há muitos recursos financeiros para incen­tivar a formação de pensadores e a expansão das idéias psicossociais, como o têm as ciências naturais, que incluem a Computação, a Biologia, a Quími­ca, cujas pesquisas resultam em produtos industriais. Se o capital é peque­no nas ciências da cultura, deveria haver, então, um processo de compen­sação, através da expansão da qualidade dos pensadores pelo uso de pro­cedimentos que estimulam a plasticidade construtiva e a liberdade criativa do conhecimento. Caso contrário, o contraste do desenvolvimento entre as ciências naturais e as ciências da cultura continuará e aumentará. A Física sabe como penetrar nas entranhas do átomo e distinguir as partículas atô­micas, tão ocultas aos olhos, e a Psicologia educacional não sabe como prevenir eficientemente a discriminação racial dos negros, tão visível aos olhos, nem como prevenir o uso de drogas que acomete milhões de jovens. Se esse contraste se perpetuar, seremos cada vez mais gigantes na tecnologia e anões na prevenção das doenças psíquicas, psicossomáticas, psicossociais, bem como na expansão do humanismo, da cidadania e da democracia das idéias. Nessa situação, o homem do século XXI, que navegará cada vez mais pelo espaço e pela Internet, terá infelizmente cada vez mais dificulda­de de navegar para dentro de si mesmo, de se interiorizar e de se repensar, de superar seus estímulos estressantes e de falar de si mesmo. Talvez ele só consiga se interiorizar e falar de si mesmo, como já tem acontecido, quan­do estiver diante de um psiquiatra ou de um psicoterapeuta.

APLICAÇÃO DA TERAPIA MULTIFOCAL

As experiências que passei por ser crítico do academicismo me abate­ram temporariamente o ânimo. Naquela época, eu estava nos meus primei­ros anos de pesquisa; por isso, apesar de ser crítico, rebelde e determinado, também era frágil e, às vezes, inseguro. Minhas inseguranças não deriva­vam apenas dos fatores externos, mas também dos fatores internos, ligados ao exercício da arte da dúvida e da crítica, bem como da iniciação do procedimento da busca do caos intelectual no processo de pesquisa, que será comentado posteriormente.
Os fatores internos me deixavam freqüentemente confuso diante da complexidade da mente humana. Produzir conhecimento sem utilizar uma teoria preexistente como suporte da interpretação e, ainda por cima, exer­citando a arte da pergunta, da dúvida e da crítica e a busca do caos intelec­tual para descontaminar meu processo de interpretação, me deixava não apenas confuso, mas perturbado nos primeiros anos. Por isso, naquela épo­ca, apesar de produzir conhecimento sobre muitos assuntos relativos à mente humana, eu vivia continuamente criticando minhas próprias idéias. Assim, quando os fatores internos se associaram aos fatores externos, realmente meu ânimo foi abatido temporariamente, afetando minha paixão pelo mundo das idéias. Entretanto essa paixão flutua, mas não morre.
Parte do meu tempo exerço a Psiquiatria e a Psicoterapia multifocal. O uso da teoria dos processos de construção da inteligência no tratamento das doenças psíquicas faz com que a Psicoterapia multifocal seja realizada dentro dos princípios da democracia das idéias e da arte de pensar. Os resultados são. animadores. Muitos casos de doenças psíquicas de difícil tratamento, inclusive de pacientes autistas, têm sido resolvidos. A teoria multifocal, devido as suas variáveis universais, pode ser aplicada em qual­quer outra corrente psicoterapêutica: psicanálise, psicoterapia cognitiva, logoterapia, psicodrama, psicoterapia analítica, etc.

EXEMPLO DE UM CASO INSOLÚVEL NA PSIQUIATRIA CLÁSSICA

Lembro-me de uma cliente de 82 anos de idade que tinha transtornos graves da personalidade e sofria de uma depressão crônica e resistente que já durava mais de três décadas. Ela era inteligente, mas também mal-humorada, negativista, agressiva e insociável. Queria a todo custo separar-se do marido, pois me dizia que tinha aversão dramática por ele. Essa aversão era tão intensa, que, quando o marido passava por ela e encosta­va a mão no seu braço, ela sentia tanta repulsa por ele que ia correndo lavar essa parte do corpo. Quando o marido tomava banho, ela só conse­guia tomar banho se mandasse desinfetar o banheiro. Viveu por cinqüen­ta anos um casamento falido, transformou a relação com seu marido numa praça de guerra. Falava dele com ódio e dizia que não podia olhar para seu rosto e, não apenas isso, raramente conseguia expressar qualquer palavra de elogio a qualquer pessoa. Mesmo com os filhos ela era crítica e agressiva.
O que pode a psiquiatria fazer para uma pessoa que jamais admitiu que estivesse doente, que sempre quis que o mundo gravitasse em torno de si mesma? O que pode a psicologia, com todas as suas técnicas psicoterapêuticas, fazer para uma pessoa que sempre se recusou a se interiorizar e revisar os pilares fundamentais de sua personalidade?
Muitos membros de sua família não acreditavam que uma pessoa nessa idade, com uma depressão tão grave e resistente e que tinha diversos trans­tornos de personalidade, pudesse ter alguma melhoria. Porém, o processo psicoterapêutico é ura canteiro onde florescem as funções mais importan­tes da inteligência, um ambiente que pode, se bem conduzido, estimular a produção de um oásis no mais causticante deserto emocional. Apesar de todas as dificuldades iniciais, da sua recusa de penetrar dentro de si mes­ma, pouco a pouco aquela rocha humana foi sendo demolida. Olhava para sua postura rígida e para seu olhar fadigado pelo tempo e pensava comigo mesmo: "Deve haver algo belo por detrás dessa rigidez que nunca foi ex­plorado, deve haver algumas funções nobres da personalidade que estão embotadas".
Levei-a a ser uma caminhante nas trajetórias do seu próprio ser, a re­pensar sua rigidez intelectual, a analisar as origens de suas angústias e de suas reações insociáveis. Procurei provocar sua inteligência e estimular sua compreensão sobre alguns fundamentos do processo de construção dos pensamentos e da transformação da energia emocional. Acreditava, mes­mo com sua idade avançada, nas suas possibilidades intelectuais e procura­va fazer do processo psicoterapêutico um debate de idéias, criando um clima que promovia o desenvolvimento da arte da dúvida e da crítica con­tra seus próprios paradigmas intelectuais. Meu objetivo não era de que ela apenas resolvesse sua doença psíquica e superasse a sua dor, mas que se tornasse uma pensadora, uma poeta existencial, alguém capaz de expandir tanto a arte de pensar como a arte da contemplação do belo.
Depois do tratamento, que durou cerca de quatro meses, ninguém acre­ditava no que havia acontecido com ela. Tornara-se uma pessoa dócil, amável, sociável, tolerante. Começou a tratar o marido com ternura, inclusive passou a chamá-lo de "meu bem" e constantemente lhe pedia que a beijasse e lhe fizesse carinho.
Ela me dizia que passou a amar seu marido como nunca ocorreu em toda a sua história conjugal. Seu marido, também com 82 anos, um ex-professor universitário, estava, antes da sua melhora, abatido fisicamente, com dificuldades de se locomover e de organizar seu raciocínio. Porém, com o grande salto da qualidade de vida da sua esposa, ele passou a se alimentar mais, ganhou peso, melhorou a deficiência da memória e seu rendimento intelectual. Marido e esposa mudaram tanto que passaram, mesmo diante das suas limitações físicas, a cantar e a dançar juntos na sala de seu apartamento.
Algumas vezes eles choravam por ter a consciência de que atravessa­ram um imenso deserto existencial, saturado de angústias e discórdias. Contudo, queriam recuperar o tempo perdido, queriam viver intensamen­te cada minuto que lhes restava de vida, por isso, algumas vezes, eles acor­davam um ao outro de madrugada para conversar e ficar mais tempo jun­tos. A afetividade entre os dois floresceu como na primavera mais rica da adolescência.
Minha paciente me dizia que havia encontrado um sentido para sua vida e que, no final de sua existência, começou a trabalhar suas contrariedades e a aprender a ter prazer nos pequenos estímulos. Por isso, até os sons dos pássaros que eram imperceptíveis aos seus ouvidos, se tornaram músicas para eles. Comovido com essa melhora acentuada e estável, escre­vi um bilhete para ela e para o marido, dizendo: "Parabéns; vocês se torna­ram poetas da existência, souberam encontrar ternura e dignidade no final de suas vidas; descobriram que a sabedoria se conquista quando aprende­mos a superar nossos invernos existenciais..." Eles ampliaram os dizeres deste bilhete e o colocaram na sala do apartamento deles.
Ela deu um salto qualitativo na sua saúde emocional e intelectual. Re­solveu sua depressão crônica, sua insociabilidade, agressividade e tornou-se uma pessoa encantadora aos 82 anos de idade. Viveu uma rica história de amor com seu marido por mais dois anos, até que ele morreu. O último pedido dele, no leito de sua morte, é que ela o acariciasse até que ele morresse. Foi assim que findou este romance.
A história dessa paciente é um exemplo vivo que evidencia que, mes­mo nos casos aparentemente insolúveis pela psiquiatria e pela psicologia, é sempre possível reescrever os capítulos fundamentais da personalidade.
O homem, independentemente de sua idade, personalidade e transtor­nos psíquicos, pode e tem o direito de se tornar um engenheiro de idéias que constrói e reconstrói a sua história psicossocial. Ao aplicar os princí­pios psicoterapêuticos derivados do processo de construção da inteligência, estimulamos o resgate da liderança do eu e fazemos com que os pa­cientes deixem de ser espectadores passivos de misérias psíquicas e passem a ser agentes modificadores de sua personalidade. Onde a psiquiatria clás­sica não consegue pisar os procedimentos psicoterapêuticos multifocais pode, em diversos casos, alcançar.

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