O
Anticristo
Ensaio
de uma Crítica do Cristianismo
Autor:
Friedrich Nietzsche
Tradução:
André Díspore Cancian
Fonte:
The Anti-Christ
Prefácio
Este
livro pertence aos homens mais raros. Talvez nenhum deles sequer esteja vivo. É
possível
que se
encontrem entre aqueles que compreendem o meu “Zaratustra”: como eu poderia
misturar-me
àqueles
aos quais se presta ouvidos atualmente? – Somente os dias vindouros me
pertencem. Alguns
homens
nascem póstumos.
As
condições sob as quais sou compreendido, sob as quais sou necessariamente
compreendido
–
conheço-as muito bem. Para suportar minha seriedade, minha paixão, é necessário
possuir uma
integridade
intelectual levada aos limites extremos. Estar acostumado a viver no cimo das
montanhas – e
ver a
imundície política e o nacionalismo abaixo de si. Ter se tornado indiferente;
nunca perguntar se a
verdade
será útil ou prejudicial... Possuir uma inclinação – nascida da força – para
questões que ninguém
possui
coragem de enfrentar; ousadia para o proibido; predestinação para o labirinto.
Uma experiência
de sete
solidões. Ouvidos novos para música nova. Olhos novos para o mais distante. Uma
consciência
nova
para verdades que até agora permaneceram mudas. E um desejo de economia em
grande estilo –
acumular
sua força, seu entusiasmo... Auto-reverência, amor-próprio, absoluta liberdade
para consigo...
Muito
bem! Apenas esses são meus leitores, meus verdadeiros leitores, meus leitores
predestinados:
que importância tem o resto? – O resto é somente a humanidade. – É preciso
tornar-se
superior
à humanidade em poder, em grandeza de alma – em desprezo...
Friedrich
Nietzsche
I
–
Olhemos-nos face a face. Somos hiperbóreos(1) – sabemos muito bem quão remota é
nossa
morada.
“Nem por terra nem por mar encontrarás o caminho aos hiperbóreos”: mesmo
Píndaro, em seus
dias,
sabia tanto sobre nós. Além do Norte, além do gelo, além da morte – nossa vida,
nossa felicidade...
Nós
descobrimos essa felicidade; nós conhecemos o caminho; retiramos essa sabedoria
dos milhares de
anos no
labirinto. Quem mais a descobriu? – O homem moderno? – “Eu não conheço nem a
saída nem a
entrada;
sou tudo aquilo que não sabe nem sair nem entrar” – assim suspira o homem
moderno... Esse é
o tipo
de modernidade que nos adoeceu – a paz indolente, o compromisso covarde, toda a
virtuosa
sujidade
do moderno Sim e Não. Essa tolerância e largeur(2) de coração que tudo “perdoa”
porque tudo
“compreende”
é um siroco(3) para nós. Antes viver no meio do gelo que entre virtudes
modernas e outros
ventos
do sul!... Fomos bastante corajosos; não poupamos a nós mesmos nem os outros;
mas levamos
um longo
tempo para descobrir aonde direcionar nossa coragem. Tornamo-nos tristes; nos
chamaram de
fatalistas.
Nosso destino – ele era a plenitude, a tensão, o acumular de forças. Tínhamos
sede de
relâmpagos
e grandes feitos; mantivemo-nos o mais longe possível da felicidade dos fracos,
da
“resignação”...
Nosso ar era tempestuoso; nossa própria natureza tornou-se sombria – pois ainda
não
havíamos
encontrado o caminho. A fórmula de nossa felicidade: um Sim, um Não, uma linha
reta, uma
meta...
1 – Os
Gregos acreditavam que no extremo Norte da Terra vivia um povo que gozava de
felicidade eterna, os hiperbóreos,
que
nunca guerreavam, adoeciam ou envelheciam. Sem a ajuda dos Deuses, seu
território era inalcançável. (N. do T.)
2 –
Grandeza.
3 –
Vento asfixiante, quente e empoeirado originário de desertos. (N. do T.)
II
O que é
bom? – Tudo que aumenta, no homem, a sensação de poder, a vontade de poder, o
próprio
poder.
O que é
mau? – Tudo que se origina da fraqueza.
O que é
felicidade? – A sensação de que o poder aumenta – de que uma resistência foi
superada.
Não o
contentamento, mas mais poder; não a paz a qualquer custo, mas a guerra; não a
virtude,
mas a
eficiência (virtude no sentido da Renascença, virtu(1), virtude desvinculada de
moralismos).
Os
fracos e os malogrados devem perecer: primeiro princípio de nossa caridade. E
realmente
deve-se
ajudá-los nisso.
O que é
mais nocivo que qualquer vício? – A compaixão posta em prática em nome dos
malogrados
e dos fracos – o cristianismo...
1 –
“Vir”, em latim, significa “varão”, “homem”. Ou seja, “virtu”, neste “sentido
da Renascença”, designa qualidades viris
como
força, bravura, vigor, coragem, e não humildade, compaixão, etc. (N. do T.)
III
O
problema que aqui apresento não consiste em rediscutir o lugar humanidade na
escala dos
seres
viventes (– o homem é um fim –): mas que tipo de homem deve ser criado, que
tipo deve ser
pretendido
como sendo o mais valioso, o mais digno de viver, a garantia mais segura do
futuro.
Este
tipo mais valioso já existiu bastantes vezes no passado: mas sempre como um
afortunado
acidente,
como uma exceção, nunca como algo deliberadamente desejado. Com muita
freqüência esse foi
precisamente
o tipo mais temido; até ao presente foi considerado praticamente o terror dos
terrores; – e
devido a
esse terror, o tipo contrário foi desejado, cultivado e atingido: o animal
doméstico, o animal de
rebanho,
a doentia besta humana: o cristão...
IV
Pelo que
aqui se entende como progresso, a humanidade certamente não representa uma
evolução
em direção a algo melhor, mais forte ou mais elevado. Este “progresso” é apenas
uma idéia
moderna,
ou seja, uma idéia falsa. O Europeu de hoje, em sua essência, possui muito
menos valor que o
Europeu
da Renascença; o processo da evolução não significa necessariamente elevação,
melhora,
fortalecimento.
É bem
verdade que ela tem sucesso em casos isolados e individuais em várias partes da
Terra e
sob as
mais variadas culturas, e nesses casos certamente se manifesta um tipo
superior; um tipo que,
comparado
ao resto da humanidade, parece uma espécie de super-homem. Tais golpes de sorte
sempre
foram
possíveis e, talvez, sempre serão. Até mesmo raças inteiras, tribos e nações
podem ocasionalmente
representar
tais ditosos acidentes.
V
Não
devemos enfeitar nem embelezar o cristianismo: ele travou uma guerra de morte
contra este
tipo de
homem superior, anatematizou todos os instintos mais profundos desse tipo,
destilou seus
conceitos
de mal e de maldade personificada a partir desses instintos – o homem forte
como um réprobo,
como
“degredado entre os homens”. O cristianismo tomou o partido de tudo o que é
fraco, baixo e
fracassado;
forjou seu ideal a partir da oposição a todos os instintos de preservação da vida
saudável;
corrompeu
até mesmo as faculdades daquelas naturezas intelectualmente mais vigorosas,
ensinando que
os
valores intelectuais elevados são apenas pecados, descaminhos, tentações. O
exemplo mais
lamentável:
o corrompimento de Pascal, o qual acreditava que seu intelecto havia sido
destruído pelo
pecado
original, quando na verdade tinha sido destruído pelo cristianismo! –
VI
Um
doloroso e trágico espetáculo surge diante de mim: retirei a cortina da corrupção
do homem.
Essa
palavra, em minha boca, é isenta de pelo menos uma suspeita: a de que envolve
uma acusação
moral
contra a humanidade. A entendo – e desejo enfatizar novamente – livre de
qualquer valor moral: e
isso é
tão verdade que a corrupção de que falo é mais aparente para mim precisamente
onde esteve, até
agora, a
maior parte da aspiração à “virtude” e à “divindade”. Como se presume, entendo
essa corrupção
no
sentido de decadência: meu argumento é que todos os valores nos quais a
humanidade apóia seus
anseios
mais sublimes são valores de decadência.
Denomino
corrompido um animal, uma espécie, um indivíduo, quando perde seus instintos,
quando
escolhe, quando prefere o que lhe é nocivo. Uma história dos “sentimentos
elevados”, dos “ideais
da humanidade”
– e é possível que tenha de escrevê-la – praticamente explicaria por que o
homem é tão
degenerado.
A própria vida apresenta-se a mim como um instinto para o crescimento, para a
sobrevivência,
para a acumulação de forças, para o poder: sempre que falta a vontade de poder
ocorre o
desastre.
Afirmo que todos os valores mais elevados da humanidade carecem dessa vontade –
que os
valores
de decadência, de niilismo, agora prevalecem sob os mais sagrados nomes.
VII
Chama-se
cristianismo a religião da compaixão. – A compaixão está em oposição a todas as
paixões
tônicas que aumentam a intensidade do sentimento vital: tem ação depressora. O
homem perde
poder
quando se compadece. Através da perda de força causada pela compaixão o
sofrimento acaba por
multiplicar-se.
O sofrimento torna-se contagioso através da compaixão; sob certas
circunstancias pode
levar a
um total sacrifício da vida e da energia vital – uma perda totalmente
desproporcional à magnitude
da causa
(– o caso da morte de Nazareno). Essa é uma primeira perspectiva; há,
entretanto, outra mais
importante.
Medindo os efeitos da compaixão através da intensidade das reações que produz,
sua
periculosidade
à vida mostra-se sob uma luz muito mais clara. A compaixão contraria
inteiramente lei da
evolução,
que é a lei da seleção natural. Preserva tudo que está maduro para perecer;
luta em prol dos
desterrados
e condenados da vida; e mantendo vivos malogrados de todos os tipos, dá à
própria vida um
aspecto
sombrio e dúbio. A humanidade ousou denominar a compaixão uma virtude (– em
todo sistema
de moral
superior ela aparece como uma fraqueza –); indo mais adiante, chamaram-na a
virtude, a
origem e
fundamento de todas as outras virtudes – mas sempre mantenhamos em mente que
esse era o
ponto de
vista de uma filosofia niilista, em cujo escudo há a inscrição negação da vida.
Schopenhauer
estava
certo nisto: através a compaixão a vida é negada, e tornada digna de negação –
a compaixão é
uma
técnica de niilismo. Permita-me repeti-lo: esse instinto depressor e contagioso
opõe-se a todos os
instintos
que se empenham na preservação e aperfeiçoamento da vida: no papel de defensor
dos
miseráveis,
é um agente primário na promoção da decadência – compaixão persuade à
extinção... É claro,
ninguém
diz “extinção”: dizem “o outro mundo”, “Deus”, “a verdadeira vida”, Nirvana,
salvação, bemaventurança...
Essa
inocente retórica do reino da idiossincrasia moral-religiosa mostra-se muito
menos
inocente
quando se percebe a tendência que oculta sob palavras sublimes: a tendência à
destruição da
vida.
Schopenhauer era hostil à vida: esse foi o porquê de a compaixão, para ele, ser
uma virtude...
Aristóteles,
como todos sabem, via na compaixão um estado mental mórbido e perigoso, cujo
remédio era
um
purgativo ocasional: considerava a tragédia como sendo esse purgativo. O
instinto vital deveria nos
incitar
a buscar meios de alfinetar quaisquer acúmulos patológicos e perigosos de
compaixão, como os
presentes
no caso de Schopenhauer (e também, lamentavelmente, em toda a nossa décadence
literária,
de St.
Petersburgo a Paris, de Tolstoi a Wagner), para que ele estoure e se dissipe...
Nada é mais
insalubre,
em toda nossa insalubre modernidade, que a compaixão cristã. Sermos os médicos
aqui,
sermos
impiedosos aqui, manejarmos a faca aqui – tudo isso é o nosso serviço, é o
nosso tipo de
humanidade,
é isso que nos torna filósofos, nós, hiperbóreos! –
VIII
É
necessário dizer quem consideramos nossos adversários: os teólogos e tudo que
tem sangue
teológico
correndo em suas veias – essa é toda a nossa filosofia... É necessário ter
visto essa ameaça de
perto,
melhor ainda, é preciso tê-la vivido e quase sucumbido por ela, para
compreender que isso não é
qualquer
brincadeira (– o alegado livre-pensamento de nossos naturalistas e fisiologistas
me parece uma
brincadeira
– não possuem a paixão nessas coisas; não sofreram –). Este envenenamento vai
muito mais
longe do
que a maioria imagina: encontro o arrogante hábito de teólogo entre todos
aqueles que se
consideram
“idealistas”, entre todos que, em virtude uma origem superior, reivindicam o
direito de se
colocarem
acima da realidade, e olhá-la com suspeita... O idealista, assim como o
eclesiástico, carrega
todos os
grandes conceitos em sua mão (– e não apenas em sua mão!); os lança com um
benevolente
desprezo
contra o “entendimento”, os “sentidos”, a “honra”, o “bem viver”, a “ciência”;
vê tais coisas
abaixo
de si, como forças perniciosas e sedutoras, sobre as quais “o espírito” plana
como a coisa pura em
si –
como se a humildade, a castidade, a pobreza, em uma palavra, a santidade, não
tivessem causado
muito
mais dano à vida que quaisquer outros horrores e vícios... O puro espírito é a
pura mentira...
Enquanto
o padre, esse negador, caluniador e envenenador da vida por profissão for
aceito como uma
variedade
de homem superior, não poderá haver resposta à pergunta: Que é a verdade?(1) A
verdade já
foi
posta de cabeça para baixo quando o advogado do nada foi confundido com o
representante da
verdade.
1 – Alusão
à passagem bíblica (Novo Testamento, Evangelho segundo João 18:38) na qual
Pilatos pergunta a Jesus: “Que é a
verdade?”.
(N. do T.)
IX
É contra
este instinto teológico que guerreio: encontro vestígios dele por toda parte.
Todo aquele
que
possui sangue teológico em suas veias é cínico e desonrado em todas as coisas.
Ao pathos(1) que se
desenvolve
dessa condição denomina-se fé: em outras palavras, fechar os olhos ante si
mesmo de uma
vez por
todas para evitar o sofrimento causado pela visão de uma falsidade incurável.
As pessoas
constroem
um conceito de moral, de virtude, de santidade a partir dessa falsa perspectiva
das coisas;
fundamentam
a boa consciência sobre uma visão falseada; após terem-na tornado sacrossanta
com os
nomes
“Deus”, “salvação” e “eternidade” não aceitam mais que qualquer outro tipo de
visão possa ter
valor.
Descubro este instinto teológico em todas direções: é a mais disseminada e mais
subterrânea
forma de
falsidade que se pode encontrar na Terra. Tudo que um teólogo considera
verdadeiro é
necessariamente
falso: aqui temos praticamente um critério da verdade. Seu profundo instinto de
autopreservação
não lhe permite honrar ou sequer mencionar a verdade. Onde quer que a
influência dos
teólogos
seja sentida, há uma transmutação de valores, os conceitos de “verdadeiro” e
“falso” são
forçados
a inverter suas posições: tudo que é mais prejudicial à vida é nomeado
“verdadeiro”, tudo que a
exalta,
a intensifica, a afirma, a justifica e a torna triunfante é nomeado “falso”...
Quando teólogos,
através
“consciência” dos príncipes (ou dos povos –), estendem suas mãos ao poder, não
há qualquer
dúvida
quanto a este aspecto fundamental: que o anseio pelo fim, a vontade niilista,
aspira ao poder...
1 – O
termo phatos vem do grego, significando “sentimento”, “emoção” “paixão”.
Opõe-se a logos, pensamento racional,
lógico.
(N. do T.)
X
Entre os
alemães sou imediatamente compreendido quando digo que o sangue teológico é a
ruína
da
filosofia. O pastor protestante é o avô da filosofia alemã; o protestantismo em
si é o peccatum
originale(1).
Definição do protestantismo: paralisia hemiplégica(2) do cristianismo – e da
razão... Precisase
apenas
pronunciar as palavras “Escola de Tübingen”(3) para compreender o que é, no
fundo, a filosofia
alemã –
uma forma muito astuta de teologia... Os suevos são os melhores mentirosos da
Alemanha;
mentem
com inocência... Qual o porquê de toda alegria que se estendeu pelo universo
erudito da
Alemanha
– que é formado em três quartos por filhos de pastores e professores – com o
aparecimento de
Kant?
Por que ainda ecoa na convicção alemã que com Kant houve uma mudança para
melhor? O instinto
teológico
dos estudiosos alemães os fez enxergar nitidamente o que tinha se tornado
possível
novamente...
Abria-se um caminho que conduzia de volta ao velho ideal; os conceitos de
“mundo
verdadeiro”
e de moral como essência do mundo (– os dois erros mais viciosos que já
existiram!)
estavam,
uma vez mais, graças a um ceticismo sutil e astucioso, se não demonstráveis,
pelo menos
irrefutáveis...
A razão, o direito da razão, não vai tão longe... A realidade foi relegada a
uma “aparência”;
um mundo
absolutamente falso – o da essência – foi transformado na realidade... O sucesso
de Kant foi
um
sucesso meramente teológico; assim como Lutero ou Leibniz, ele não foi senão um
empecilho à já
pouco
estável integridade alemã. –
1 –
Pecado original.
2 –
Hemiplegia designa paralisia de um dos lados do corpo.
3 – A
Escola de Tübingen (fundada em 1477) possui uma famosa faculdade de teologia,
na qual estudaram Hegel e Johannes
Kepler.
(N. do T.)
XI
Agora
uma palavra contra Kant como moralista. A virtude deve ser nossa invenção; deve
surgir de
nossa
necessidade pessoal e em nossa defesa. Em qualquer outro caso é fonte de
perigo. Tudo que não
pertence
à vida representa uma ameaça a ela; uma virtude nascida simplesmente do
respeito ao conceito
de
“virtude”, como Kant a desejava, é perniciosa. A “virtude”, o “dever”, o “bem
em si”, a bondade
fundamentada
na impessoalidade ou na noção de validez universal – são todas quimeras, e
nelas apenas
encontra-se
a expressão da decadência, o último colapso vital, o espírito chinês de
Konigsberg(1).
Exatamente
o contrário é exigido pelas mais profundas leis da autopreservação e do
crescimento: que
cada
homem crie sua própria virtude, seu próprio imperativo categórico(2). Uma nação
se reduz a ruínas
quando
confunde seu dever com o conceito universal de dever. Nada conduz a um desastre
mais cabal e
pungente
que todo dever “impessoal”, todo sacrifício ao Moloch(3) da abstração. – E
imaginar que
ninguém
pensou no imperativo categórico de Kant como algo perigoso à vida!... Somente o
instinto
teológico
tomou-o sob sua proteção! – Uma ação suscitada pelo instinto vital prova estar
correta pela
quantidade
de prazer que gera: e ainda assim esse niilista, com suas vísceras de
dogmatismo cristão,
considerava
o prazer como uma objeção... O que destrói um homem mais rapidamente que
trabalhar,
pensar e
sentir sem uma necessidade interna, sem um profundo desejo pessoal, sem prazer
– como um
mero
autômato do dever? Essa é tanto uma receita para a décadence(4) quanto para a
idiotice... Kant
tornou-se
um idiota. – E ele era contemporâneo de Goethe! Este calamitoso fiandeiro de
teias de aranha
foi
reputado o filósofo alemão par excellence(5) – e continua a sê-lo!...
Abstenho-me de dizer o que penso
dos
alemães... Kant não viu na Revolução Francesa a transformação do estado da
forma inorgânica para a
orgânica?
Não perguntou a si mesmo se havia algum evento que não poderia ser explicado
exceto através
de uma
disposição moral no homem, para que, fundamentada nisso, “a tendência da
humanidade ao
bem”
pudesse ser explicada de uma vez por todas? Resposta de Kant: “Isso é a revolução”.
O instinto que
engana
sobre toda e qualquer coisa, o instinto como revolta contra a natureza, a
decadência alemã em
forma de
filosofia – isso é Kant!
1 –
Cidade da Prússia onde Kant nasceu e passou toda a sua vida. Por isso, também é
conhecido como “filósofo de
Köenizberg”.
(Pietro nasseti)
2 –
Conceito kantiano. Considera-se imperativo uma proposição que tenha a forma de
comando, de imposição e, em
particular,
de um comando ou ordem que o espírito dá a si próprio, Kant distinguia duas
espécies de imperativos: o hipotético
(ou
condicional), quando a ordem ou determinação está subordinada como meio para
atingir um determinado fim (ex.: sê
justo,
se queres ser respeitado); e o categórico (ou não-condicional), se a ordem é
incondicional (ex. sê justo). Para Kant só
existia
um imperativo categórico fundamental (e é a esse que Nietzsche se refere) cuja
fórmula é: “Age de tal maneira que o
motivo
que te levou a agir possa ser convertido em lei universal”. (Pietro nasseti)
3 –
Divindade adorada pelos amonitas e moabitas, à qual sacrificavam crianças em
troca de boas colheitas e vitória nas
guerras.
(N. do T.)
4 –
Decadência.
5 – Por
excelência.
XII
Ponho à
parte uns poucos céticos, os tipos decentes na história da filosofia: o resto
não possui a
menor
noção de integridade intelectual. Comportam-se como donzelas, todos esses
grandes entusiastas e
prodígios
– consideram os “belos sentimentos” como argumentos, o “peito estufado” como o
sopro de
uma
inspiração divina, a convicção como um critério da verdade. Ao final, com
“alemã” inocência, Kant
tentou
dar um caráter científico a essa forma de corrupção, essa falta de consciência
intelectual,
chamando-a
de “razão prática”. Deliberadamente inventou uma variedade de razões para usar
ocasionalmente
quando fosse desejável não se preocupar a razão – isto é, quando a moral,
quando o
sublime
comando “tu deves” fosse ouvido. Lembrando do fato que, entre todos os povos, o
filósofo não
representa
nada mais que o desenvolvimento dos velhos sacerdotes, essa herança sacerdotal,
essa fraude
contra
si mesmo deixa de ser algo surpreendente. Quando um homem sente que possui uma
missão
divina,
digamos, melhorar, salvar ou libertar a humanidade – quando um homem sente uma
faísca divina
em seu
coração e acredita ser o porta-voz de imperativos supranaturais – quando tal
missão o inflama, é
simplesmente
natural que ele coloque-se acima dos níveis de julgamento meramente racionais.
Sente a si
próprio
como santificado por essa missão, sente que faz parte de uma ordem superior!...
O que padres
têm a
ver com filosofia! Estão muito acima dela! – E até agora os padres reinaram! –
Determinaram o
significado
dos conceitos de “verdadeiro” e “falso”!
XIII
Não
subestimemos este fato: que nós mesmos, nós, espíritos livres, já somos a “transmutação
de
todos os
valores”, uma manifesta declaração de guerra e uma vitória contra todos os
velhos conceitos de
“verdadeiro”
e “falso”. As intuições mais valiosas são as mais tardiamente adquiridas; as
mais valiosas de
todas
são aquelas que determinam os métodos. Todos os métodos, todos os princípios do
espírito
científico
de hoje foram alvo, por milhares de anos, do mais profundo desprezo; caso um
homem se
interessasse
por eles era excluído da sociedade das pessoas “decentes” – passava por
“inimigo de Deus”,
por
zombador da verdade, por “possesso”. Enquanto homem da ciência, pertencia à
Chandala(1)...
Tivemos
contra nós toda a patética estupidez da humanidade – toda a noção que tinham do
que a
verdade
deveria ser, de qual deveria ser a função da verdade – todo o seu “tu deves”
era arremessado
contra
nós... Nossos objetivos, nossos métodos, nossa calma, cautela, desconfiança –
para eles tudo isso
parecia
algo absolutamente indecoroso e desprezível. – Olhando para trás, alguém até
poderia perguntarse,
com
alguma razão, se não foi, na verdade, um senso estético que manteve os homens
cegos por tanto
tempo: o
que exigiam da verdade era uma eficiência pitoresca, e daquele em busca do
conhecimento uma
forte
impressão sobre seus sentidos. Foi nossa modéstia que por tanto tempo lhes
desceu a contragosto...
Quão bem
o adivinharam, esses pavões da divindade!
1 –
Chandala é a casta mais baixa no sistema hindu. (N. do T.)
XIV
Nós
desaprendemos algo. Nos tornamos mais modestos em todos os sentidos. Não
derivamos
mais o
homem do “espírito”, do “desejo de Deus”; rebaixamos o homem a um mero animal.
O
consideramos
o mais forte entre eles porque é o mais astuto; um dos resultados disso é sua
intelectualidade.
Em contrapartida, nós nos precavemos contra este conceito: de que o homem é o
grande
objetivo da evolução orgânica. Em verdade, pode ser qualquer coisa, menos a
coroa da criação:
ao lado
dele estão muitos outros animais, todos em similares estágios de
desenvolvimento... E mesmo
quando
dizemos isso, estamos exagerando, pois o homem, relativamente falando, é o mais
corrompido e
doentio
de todos os animais, o mais perigosamente desviado de seus instintos – apesar
disso tudo, com
certeza,
continua a ser o mais interessante! – No que concerne aos animais inferiores,
foi Descartes quem
primeiro
teve a admirável ousadia de descrevê-los como uma machina(1); toda a nossa
fisiologia é um
esforço
para provar a veracidade dessa doutrina. Entretanto, é ilógico colocar o homem
à parte, como fez
Descartes:
todo o conhecimento que temos sobre o homem aponta precisamente ao que o
consideramos:
uma
máquina. Antigamente, concedíamos ao homem, como herança de algum tipo de ser
superior, o que
se
denominava “livre-arbítrio”; agora lhe retiramos até essa vontade, pois o termo
não descreve qualquer
coisa
que possamos compreender. A velha palavra “vontade” agora designa apenas um
tipo de resultado,
uma
reação individual, que se segue inevitavelmente de uma série de estímulos
parcialmente
discordantes
e parcialmente harmoniosos – a vontade não mais “age” ou “movimenta”...
Antigamente
pensava-se
que a consciência humana, seu “espírito”, era uma evidência de sua origem
superior, de sua
divindade.
Aconselharam-no que, para que se tornasse perfeito, assim como a tartaruga,
recolhesse seus
sentidos
em si mesmo e não tivesse mais contato com coisas terrenas, para escapar de seu
“envoltório
mortal”
– assim apenas restaria sua parte importante, o “puro espírito”. Aqui também
pensamos melhor
sobre o
assunto: para nós a consciência, ou “o espírito”, aparece como um sintoma de
uma relativa
imperfeição
do organismo, como uma experiência, um tatear, um equívoco, como uma aflição
que
consome
força nervosa desnecessariamente – nós negamos que qualquer coisa feita
conscientemente
possa
ser feita com perfeição. O “puro espírito” é uma pura estupidez: retire o
sistema nervoso e os
sentidos,
o chamado “envoltório mortal”, e o resto é um erro de cálculo – isso é tudo!...
1 –
Máquina.
XV
No
cristianismo, nem a moral nem a religião têm qualquer ponto de contado com a
realidade. São
oferecidas
causas puramente imaginárias (“Deus”, “alma”, “eu”, “espírito”, “livre
arbítrio” – ou mesmo o
“não-livre”)
e efeitos puramente imaginários (“pecado”, “salvação”, “graça”, “punição”,
“remissão dos
pecados”).
Um intercurso entre seres imaginários (“Deus”, “espíritos”, “almas”); uma
história natural
imaginária
(antropocêntrica; uma negação total do conceito de causas naturais); uma
psicologia
imaginária
(mal-entendidos sobre si, interpretações equivocadas de sentimentos gerais
agradáveis ou
desagradáveis,
por exemplo, os estados do nervus sympathicus com a ajuda da linguagem
simbólica da
idiossincrasia
moral-religiosa – “arrependimento”, “peso na consciência”, “tentação do
demônio”, “a
presença
de Deus”); uma teleologia imaginária (o “reino de Deus”, “o juízo final”, a
“vida eterna”). – Esse
mundo
puramente fictício, com muita desvantagem, se distingue do mundo dos sonhos; o
último ao
menos
reflete a realidade, enquanto aquele falsifica, desvaloriza e nega a realidade.
Após o conceito de
“natureza”
ter sido usado como oposto ao conceito de “Deus”, a palavra “natural”
forçosamente tomou o
significado
de “abominável” – todo esse mundo fictício tem sua origem no ódio contra o
natural (– a
realidade!
–), é evidência de um profundo mal-estar com a efetividade... Isso explica
tudo. Quem tem
motivos
para fugir da realidade? Quem sofre com ela. Mas sofrer com a realidade
significa uma existência
malograda...
A preponderância do sofrimento sobre o prazer é a causa dessa moral e religião
fictícias:
mas tal
preponderância, no entanto, também fornece a fórmula para a décadence...
XVI
Uma
crítica da concepção cristã de Deus conduz inevitavelmente à mesma conclusão. –
Uma
nação
que ainda acredita em si mesma possui seu próprio Deus. Nele são honradas as
condições que a
possibilitam
sobreviver, suas virtudes – projeta o prazer que possui em si mesma, seu
sentimento de
poder,
em um ser ao qual pode agradecer por isso. Quem é rico lhe prodigaliza sua
riqueza; uma nação
orgulhosa
precisa de um Deus ao qual pode oferecer sacrifícios... A religião, dentro
desses limites, é uma
forma de
gratidão. O homem é grato por existir: para isso precisa de um Deus. – Tal Deus
precisa ser
tanto
capaz de beneficiar quanto de prejudicar; deve ser capaz de representar um
amigo ou um inimigo –
é
admirado tanto pelo bem quanto pelo mal que causa. Castrar esse Deus, contra
toda a natureza,
transformando-o
em um Deus somente bondade, seria contrário à inclinação humana. A humanidade
necessita
igualmente de um Deus mau e de um Deus bom; não deve agradecer por sua própria
existência
à mera
tolerância e à filantropia... Qual seria o valor de um Deus que desconhecesse o
ódio, a vingança, a
inveja,
o desprezo, a astúcia, a violência? Que talvez nem sequer tenha experimentado
os arrebatadores
ardeurs(1)
da vitória e da destruição? Ninguém entenderia tal Deus: por que alguém o
desejaria? – Sem
dúvida,
quando uma nação está em declínio, quando sente que a crença em seu próprio
futuro, sua
esperança
de liberdade estão se esvaindo, quando começa a enxergar a submissão como
primeira
necessidade
e como medida de autopreservação, então precisa também modificar seu Deus. Ele
então se
torna
hipócrita, tímido e recatado; aconselha a “paz na alma”, a ausência de ódio, a
indulgência, o “amor”
aos
amigos e aos inimigos. Torna-se um moralizador por excelência; infiltra-se em
toda virtude privada;
transforma-se
no Deus de todos os homens; torna-se um cidadão privado, um cosmopolita...
Noutros
tempos
representava um povo, a força de um povo, tudo que em suas almas havia de
agressivo e
sequioso
de poder; agora é simplesmente o bom Deus... Na verdade não há outra
alternativa para os
Deuses:
ou são a vontade de poder – no caso de serem os Deuses de uma nação – ou a
inaptidão para o
poder –
e neste caso precisam ser bons.
1 –
Ardores.
XVII
Onde
quer que, por qualquer forma, a vontade de poder comece enfraquecer, haverá
sempre um
declínio
fisiológico concomitante, uma décadence. A divindade dessa décadence, despida
de suas virtudes
e
paixões masculinas, é convertida forçosamente em um Deus dos fisiologicamente
degradados, dos
fracos.
Obviamente, eles não se denominam os fracos; denominam-se “os bons”... Nenhuma
explicação é
necessária
para se entender em quais momentos da História a ficção dualista de um Deus bom
e um Deus
mau se
tornou possível pela primeira vez. O mesmo instinto que leva os inferiores a
reduzir seu próprio
Deus à
“bondade em si” também os leva a eliminar todas as qualidades do Deus daqueles
que lhes são
superiores;
vingam-se demonizando o Deus de seus dominadores. – O bom Deus, assim como o
Diabo –
ambos
são frutos da décadence. – Como podemos ser tão tolerantes com o simplismo dos
teólogos
cristãos,
aceitando sua doutrina de que a evolução do conceito de Deus a partir do “Deus
de Israel”, o
Deus de
um povo, ao Deus cristão, a essência de toda a bondade, significa um progresso?
– Mas até
Renan(1)
o fez. Como se Renan tivesse o direito ao simplismo! O contrário, na realidade,
é o que se faz
ver.
Quando tudo que é necessário à vida ascendente; quando tudo que é forte,
corajoso, imperioso e
orgulhoso
foi amputado do conceito de Deus; quando se degenerou progressivamente até
tornar-se uma
bengala
para os cansados, uma tábua de salvação aos que se afogam; quando vira o Deus
dos pobres, o
Deus dos
pecadores, o Deus dos incapazes par excellence, e o atributo de “salvador” ou
“redentor”
continua
como o atributo mais essencial da divindade – qual é a significância de tal
metamorfose? O que
implica
tal redução do divino? – Sem dúvida, com isso o “reino de Deus” cresceu.
Antigamente, tinha
somente
seu povo, seus “escolhidos”. Mas desde então saiu perambulando, assim como seu
próprio povo,
a
territórios estrangeiros; desistiu de acomodar-se; e finalmente passou a
sentir-se em casa em qualquer
lugar,
esse grande cosmopolita – até agora possui a “grande maioria” ao seu lado, e
metade da Terra.
Mas esse
Deus da “grande maioria”, esse democrata entre os Deuses, não se tornou um Deus
pagão
orgulhoso:
pelo contrário, continua um judeu, continua um Deus das esquinas, um Deus de
todos os
recantos
e gretas, de todos lugares insalubres do mundo!... Seu reino na Terra, agora,
assim como
sempre,
é um reino do submundo, um reino subterrâneo, um reino-gueto... Ele mesmo é tão
pálido, tão
fraco,
tão décadent... Até o mais pálido entre os pálidos é capaz de dominá-lo – os
senhores metafísicos,
os
albinos do intelecto. Esses teceram teias ao seu redor por tanto tempo que
finalmente o hipnotizaram,
o
transformaram em aranha, em mais um metafísico. E então retornou mais uma vez
ao seu velho serviço
de tecer
o mundo a partir de sua natureza interior sub specie Spinozae(2); após isso se
transformou em
algo
cada vez mais tênue e pálido – tornou-se o “ideal”, o “puro espírito”, o
“absoluto”, a “coisa em si”...
O
colapso de um Deus: ele converte-se na “coisa em si”.
1 – O
filólogo e historiador Ernest Renan (1823-1892), que dera a um dos volumes de
sua obra-mestra, Les Origines du
Christianisme,
precisamente o título L'Atnéchrist. O volume continha uma história das
heresias. (Rubens Rodrigues Torres
Filho)
2 –
Frase de sentido duplo: segundo a óptica de Espinoza e sob a forma de aranha.
Trata-se de um jogo de palavras baseado
no
próprio de Espinoza – spinne significa aranha em alemão. (Pietro Nasseti)
XVIII
A
concepção cristã de Deus – Deus o como protetor dos doentes, o Deus que tece
teias de aranha,
o Deus
na forma de espírito – é uma das concepções mais corruptas que jamais
apareceram no mundo:
provavelmente
representa o nível mais ínfero da declinante evolução do tipo divino. Um Deus
que se
degenerou
em uma contradição da vida. Em vez de ser sua própria glória e eterna
afirmação! Nele
declara-se
guerra à vida, à natureza, à vontade de viver! Deus transforma-se na fórmula
para todas
calúnias
contra o “aqui e agora” e para cada mentira sobre “além”! Nele o nada é
divinizado e a vontade
do nada
se faz sagrada!...
XIX
O fato
de as raças fortes do Norte da Europa não terem repudiado esse Deus cristão não
dá
qualquer
crédito aos seus dotes religiosos – para não mencionar seus gostos. Deveriam
ter sido capazes
de
sobrepujar tal moribundo e decrépito produto da décadence. Uma maldição paira
sobre eles porque
não o
repeliram; absorveram em seus instintos a enfermidade, a senilidade e a
contradição – e a partir de
então
não criaram mais nenhum Deus. Dois mil anos se passaram – e nem um único Deus
novo! Em vez
disso,
ainda existe como que por algum direito intrínseco – como se fosse um
ultimatum(1) e
maximum(2)
da força criadora de divindades, do creator spiritus(3) da humanidade –, esse
deplorável
Deus do
monótono-teísmo cristão! Essa imagem híbrida da decadência, destilada do nada,
da contradição
e da
imaginação estéril, na qual todos os instintos da décadence, todas as covardias
e cansaços da alma
encontram
sua sanção! –
1 –
Última palavra.
2 –
Máximo.
3 –
Espírito criador.
XX
Em minha
condenação do cristianismo certamente espero não injustiçar uma religião
análoga que
possui
um número ainda maior de seguidores: aludo ao budismo. Ambas devem ser
consideradas
religiões
niilistas – são religiões da décadence – mas distinguem-se de um modo bastante
notável. Pelo
simples
fato de poder compará-las, o crítico do Cristianismo está em débito com os
estudiosos da Índia. –
O
budismo é cem vezes mais realista que o cristianismo – é parte de sua herança
de vida ser capaz de
encarar
problemas de modo objetivo e impassível; é o produto de longos séculos de
especulação
filosófica.
O conceito “Deus” já havia se estabelecido antes dele surgir. O budismo é a
única religião
genuinamente
positiva que pode ser encontrada na História, e isso se aplica até mesmo à sua
epistemologia
(que é um fenomenalismo estrito) – ele não fala sobre “a luta contra o pecado”,
mas,
rendendo-se
à realidade, diz “a luta contra o sofrimento”. Diferenciando-se nitidamente do
cristianismo,
coloca a
autodecepção que existe nos conceitos morais por detrás de si; isso significa,
em minha
linguagem,
além do bem e do mal. – Os dois fatos fisiológicos nos quais se apóia e aos
quais direciona a
maior
parte de sua atenção são: primeiro, uma excessiva sensibilidade à sensação que
se manifesta
através
de uma refinada suscetibilidade ao sofrimento; segundo, uma extraordinária
espiritualidade, uma
preocupação
muito prolongada com os conceitos e com os procedimentos lógicos, sob a
influência da qual
o instinto
de personalidade submete-se à noção de “impessoalidade” (– ambos esses estados
serão
familiares
a alguns de meus leitores, os objetivistas, por experiência própria, assim como
são para mim).
Esses
estados fisiológicos produzem uma depressão, e Buda tentou combatê-la através
de medidas
higiênicas.
Prescreveu a vida ao ar livre, a vida nômade; moderação na alimentação e uma
cuidadosa
seleção
dos alimentos; prudência em relação ao uso de intoxicantes; igual cautela em
relação a quaisquer
paixões
que induzem comportamentos biliosos e aquecimento do sangue; finalmente, não se
preocupar
nem
consigo nem com os outros. Encoraja idéias que produzam serenidade ou alegria –
e encontra meios
de
combater as idéias de outros tipos. Entende o bem, o estado de bondade, como
algo que promove a
saúde. A
oração não está inclusa, e nem o asceticismo. Não há um imperativo categórico
ou qualquer
disciplina,
mesmo dentro dos monastérios (– dos quais é sempre permitido sair –). Todas
essas coisas
seriam
simplesmente meios para aumentar aquela excessiva sensibilidade
supramencionada. Pelo mesmo
motivo
não advoga qualquer conflito contra os incrédulos; seus ensinamentos não
antagonizam nada
senão a
vingança, a aversão, o ressentimento (– “inimizade nunca põe fim à inimizade”:
o refrão que
move o
budismo...) E nisso tudo estava correto, pois são precisamente essas paixões
que, na perspectiva
de seu
principal objetivo regimental, são insalubres. A fadiga mental que apresenta,
já claramente
evidenciada
pelo excesso de “objetividade” (isto é, a perda do interesse em si mesmo, a
perda do
equilíbrio
e do “egoísmo”), é combatida por vigorosos esforços a fim de levar os
interesses espirituais de
volta ao
ego. Nos ensinamentos de Buda o egoísmo é um dever. A “única coisa necessária”,
a questão
“como
posso me libertar do sofrimento”, é o que rege e determina toda a dieta
espiritual (– talvez alguém
lembrar-se-á
daquele ateniense que também declarou guerra ao “cientificismo” puro, a saber,
Sócrates,
que
também elevou o egoísmo à condição de princípio moral).
XXI
As
necessidades do budismo são um clima extremamente ameno, muita gentileza e
liberalidade
nos
costumes, e nenhum militarismo; ademais, que seu início provenha das classes
mais altas e
educadas.
Alegria, serenidade e ausência de desejo são os objetivos principais, e eles
são alcançados. O
budismo
não é uma religião na qual a perfeição é meramente objeto de aspiração: a
perfeição é algo
normal.
– No cristianismo os instintos dos subjugados e dos oprimidos vêm em primeiro
lugar: apenas os
mais
rebaixados buscam a salvação através dele. Nele o passatempo prevalecente, a
cura favorita para o
enfado,
é a discussão sobre pecados, a autocrítica, a inquisição da consciência; nele a
emoção produzida
pelo
poder (chamada de “Deus”) é insuflada (pela reza); nele o bem mais elevado é
considerado algo
inatingível,
uma dádiva, uma “graça”. Também falta transparência: o encobrimento e os
lugares
obscurecidos
são cristãos. Nele o corpo é desprezado e a higiene é acusada de lascívia; a
Igreja distanciase
até da
limpeza (– a primeira providência cristã após a expulsão dos mouros foi fechar
os banhos
públicos,
dos quais havia 270 apenas em Córdoba). Também é cristã uma certa crueldade
para consigo e
para com
os outros; o ódio aos incrédulos; o desejo de perseguir. Idéias sombrias e
inquietantes ocupam
o
primeiro plano; os estados mentais mais estimados, portando os nomes mais
respeitáveis, são
epileptiformes;
a dieta é determinada com o fim de engendrar sintomas mórbidos e
supra-estimulação
nervosa.
Também é cristã toda a inimizade mortal aos senhores da terra, aos
“aristocratas” – juntamente
com uma
rivalidade secreta contra eles (– resignam-se do “corpo” – querem apenas a
“alma”...). É cristão
todo o
ódio contra o intelecto, o orgulho, a coragem, a liberdade, a libertinagem
intelectual; o ódio aos
sentidos,
à alegria dos sentidos, à alegria em geral, é cristão...
XXII
Quando o
cristianismo abandonou sua terra natal, aqueles das classes mais baixas, o
submundo
da
Antigüidade, e começou a buscar poder entre os povos bárbaros, não tinha mais
de se relacionar com
homens
exauridos, mas homens ainda intimamente selvagens e capazes de sacrifícios – em
suma,
homens
fortes, mas atrofiados. Aqui, distintamente do caso dos budistas, a causa do
descontentamento
consigo,
do sofrimento por si, não é meramente uma sensibilidade extremada e uma
suscetibilidade à
dor,
mas, ao contrário, uma excessiva ânsia por infligir sofrimento aos outros, uma
tendência a obter uma
satisfação
subjetiva em feitos e idéias hostis. O cristianismo tinha de adotar conceitos e
valorações
bárbaras
para obter domínio sobre os bárbaros: assim como, por exemplo, o sacrifício do
primogênito, a
ingestão
de sangue como um sacramento, o desprezo pelo intelecto e pela cultura; a
tortura sob todas as
suas
formas, corporal e espiritual; toda a pompa do culto. O budismo é uma religião
para pessoas em um
estágio
mais adiantado de desenvolvimento, para raças que se tornaram gentis, amenas e
demasiado
espiritualizadas
(– a Europa ainda não está madura para ele –): é um convite de retorno à paz e
à
felicidade,
a um cuidadoso racionamento do espírito, a um certo enrijecimento do corpo. O
cristianismo
visa
dominar animais de rapina; sua estratégia consiste em torná-los doentes –
enfraquecer é a receita
cristã
para domesticar, para “civilizar”. O budismo é uma religião para o final, para
os derradeiros
estágios
de cansaço da civilização. O cristianismo surge antes da civilização mal ter
começado – sob
certas
circunstâncias cria as próprias fundações desta.
XXIII
O
Budismo, eu repito, é uma centena de vezes mais austero, mais honesto, mais
objetivo. Não
precisa
mais justificar suas aflições, sua suscetibilidade ao sofrimento, interpretando
essas coisas em
termos
de pecado – simplesmente diz o que simplesmente pensa: “eu sofro”. Para o
bárbaro, entretanto,
o
sofrimento em si é pouco compreensível: o que necessita é, em primeiro lugar,
uma explicação sobre o
porquê
de seu sofrimento (o seu instinto leva-o a negar completamente seu sofrimento,
ou a suportá-lo
em
silêncio). Aqui a palavra “Diabo” era uma bênção: o homem devia possuir um
inimigo onipotente e
terrível
– não havia motivos para envergonhar-se por sofrer nas mãos de tal inimigo.
– No seu
íntimo o cristianismo possui várias sutilezas que pertencem ao Oriente. Em
primeiro
lugar,
sabe que é de pouca relevância se uma coisa é verdadeira ou não, desde que se
acredite que é
verdadeira.
Verdade e fé: aqui temos dois mundos de idéias inteiramente distintas, praticamente
dois
mundos
diametralmente opostos – os seus caminhos distam milhas um do outro. Entender
esse fato a
fundo –
isso é quase o suficiente, no Oriente, para fazer de alguém um sábio. Os
brâmanes sabiam disso,
Platão
sabia disso, todo estudante de esoterismo sabe disso. Quando, por exemplo, um
homem sente
qualquer
prazer através da idéia de que foi redimido do pecado, não é necessário que
seja realmente
pecador,
mas que simplesmente sinta-se pecador. Mas quando a fé é exaltada acima de
tudo, disso
segue-se
necessariamente o descrédito à razão, ao conhecimento e à investigação
meticulosa: o caminho
que leva
à verdade torna-se proibido. – A esperança, em suas formas mais vigorosas, é um
estimulante
muito
mais poderoso à vida que qualquer espécie de felicidade efetiva. Para o homem
resistir ao
sofrimento
deve possuir uma esperança tão elevada que nenhum conflito com a realidade
possa destruí-la
– de
fato, tão elevada que nenhuma conquista possa satisfazê-la: uma esperança que
alcança além deste
mundo
(precisamente por causa do poder que a esperança tem de fazer os sofredores
persistirem, os
gregos a
consideravam o mal entre os males, como o mais maligno de todos males;
permaneceu no fundo
da fonte
de todo o mal(1)). – Para que o amor seja possível, Deus deve tornar-se uma
pessoa; para que
os
instintos mais baixos tenham seu espaço, Deus precisa ser jovem. Para
satisfazer o ardor das
mulheres,
um santo formoso deve aparecer na cena; para satisfazer o dos homens, deve
haver uma
virgem.
Tais coisas são necessárias se o cristianismo quiser assumir controle sobre um
solo no qual o
culto de
Afrodite ou de Adônis já tenha estabelecido a noção de como uma adoração deve
ser. Insistir na
castidade
aumenta grandemente a veemência e a subjetividade do instinto religioso – torna
o culto mais
fervoroso,
mais entusiástico, mais espirituoso. – O amor é o estado no qual o homem vê as
coisas quase
totalmente
como não são. A força da ilusão alcança seu ápice aqui, assim como a capacidade
para a
suavização
e para a transfiguração. Quando um homem está apaixonado sua tolerância atinge
ao
máximo;
tolera-se qualquer coisa. O problema consistia em inventar uma religião na qual
se pudesse
amar:
através disso o pior que a vida tem a oferecer é superado – tais coisas sequer
serão notadas. –
Tudo
isso se alcança com as três virtudes cristãs: fé, esperança e caridade: as
denomino as três
habilidades
cristãs. – O budismo encontra-se em um estágio de desenvolvimento demasiado
avançado,
demasiado
positivista para ter esse tipo de astúcia. –
1 – Ou
seja, na caixa de Pandora. (H. L. Mencken)
XXIV
Aqui
apenas toco superficialmente o problema da origem do cristianismo. A primeira
coisa
necessária
para resolver o problema é a seguinte: que o cristianismo deve ser compreendido
apenas a
partir
da análise do solo em que se originou – não é uma reação contra os instintos
judaicos; é sua
conseqüência
inevitável; é simplesmente mais um passo dentro da intimidante lógica dos
judeus. Nas
palavras
do Salvador: “a salvação vem dos judeus”(1). – A segunda coisa a ser lembrada é
esta: que o
tipo
psicológico do Galileu(2) ainda é reconhecível, mas que apenas em sua forma
mais degenerada
(mutilado
e sobrecarregado com características estrangeiras) pôde servir da maneira em
que foi utilizado:
como
tipo para Salvador da humanidade.
– Os
judeus são o povo mais notável da História, pois quando foram confrontados com
o dilema
do ser
ou não ser, escolheram, através de uma deliberação excepcionalmente lúcida, o
ser a qualquer
preço:
esse preço envolvia uma radical falsificação de toda a natureza, de toda a
naturalidade, de toda a
realidade,
de todo o mudo interior e também o exterior. Colocaram-se contra todas aquelas
condições sob
as
quais, até agora, os povos foram capazes de viver, ou até mesmo tiveram o
direito de viver; a partir
deles se
desenvolveu uma idéia que se encontrava em direta oposição às condições
naturais –
sucessivamente
distorceram a religião, a civilização, a moral, a história e a psicologia até
as transformar
em uma
contradição de sua significação natural. Nós encontramos o mesmo fenômeno mais
adiante, em
uma
forma incalculavelmente exagerada, mas apenas como uma cópia: a Igreja cristã,
comparada ao
“povo
eleito”, exibe absoluta ausência de qualquer pretensão à originalidade.
Precisamente por esse
motivo
os judeus são o povo mais funesto de toda a história universal: sua influência
causou tal
falsificação
na racionalidade da humanidade que hoje um cristão pode sentir-se anti-semita
sem se dar
conta de
que ele próprio não é senão a última conseqüência do judaísmo.
Em minha
“Genealogia da Moral” apresentei a primeira explicação psicológica dos
conceitos
subjacentes
a estas coisas antitéticas: uma moral nobre e uma moral do ressentimento, a
segunda sendo
um mero
produto da negação da primeira. O sistema moral judaico-cristão pertence à
segunda divisão, e
em todos
os sentidos. Para ser capaz de dizer Não a tudo que representa uma evolução
ascendente da
vida –
isto é, ao bem-estar, ao poder, à beleza, à auto-afirmação – os instintos do
ressentimento, aqui
completamente
transformados em gênio, tiveram de inventar outro mundo no qual a afirmação da
vida
representasse
as maiores malignidades e abominações imagináveis. Psicologicamente, os judeus
são
pessoas
dotadas da mais forte vitalidade, tanto que, quando se viram frente a condições
onde a vida era
impossível,
escolheram voluntariamente, e com um profundo talento para a autopreservação,
tomar o
lado de
todos os instintos que produzem a decadência – não por estarem dominados por
eles, mas como
que
adivinhando neles o poder através do qual “o mundo” poderia ser desafiado. Os
judeus são
exatamente
o oposto dos decadentes: simplesmente foram forçados se mostrar com esse
disfarce, e com
um grau
de habilidade próximo ao non plus ultra(3) do gênio histriônico conseguiram se
colocar à frente
de todos
of movimentos decadentes (– por exemplo, o cristianismo de Paulo –), e assim
fazerem-se algo
mais
forte que qualquer partido de afirmação da vida. Para o tipo de homens que
aspiram ao poder no
judaísmo
e no cristianismo – em outras palavras, a classe sacerdotal – a decadência não
é senão um
meio.
Homens desse tipo têm um interesse vital em tornar a humanidade enferma, em
confundir os
valores
de “bom” e “mau”, “verdadeiro” e “falso” de uma maneira que não é apenas
perigosa à vida, mas
que
também a falsifica.
1 – João
4:22.
2 – A
palavra possui forte conotação histórica, pois assim era mais freqüentemente
designado Cristo no séc IV, na época das
grandes
lutas entre pagãos ou helenos, liderados pelo imperador Juliano, e os cristãos
alcunhados depreciativamente Galileus,
fanáticos
do Galileu. (Pietro Nasseti)
3 – Não
mais além, isto é, algo inexcedível, que não se ultrapassa.
XXV
A
história de Israel é inestimável como uma típica história de uma tentativa de
deturpar todos os
valores
naturais: exponho três fatos corroboram isso. Originalmente, e acima de tudo no
tempo da
monarquia,
Israel manteve uma atitude justa em relação às coisas, ou seja, uma atitude
natural. O seu
Iavé(1)
era a expressão da consciência de seu próprio poder, de sua alegria consigo
mesmo, da
esperança
que tinha em si: através dele os judeus buscavam a vitória e a salvação,
através dele
esperavam
que a natureza lhes desse tudo que fosse necessário para sua existência – acima
de tudo,
chuva.
Iavé é o Deus de Israel e, conseqüentemente, o Deus da justiça: essa é a lógica
de toda raça que
possui
poder em suas mãos e que o utiliza com a consciência tranqüila. Na cerimônia
religiosa dos judeus
ambos
aspectos dessa auto-afirmação ficam manifestos. A nação é grata pelo grande
destino que a
possibilitou
obter domínio; é grata pela benéfica regularidade na mudança das estações e por
toda a
fortuna
que favorece seus rebanhos e colheitas. – Essa visão das coisas permaneceu
ideal por um longo
período,
mesmo após ter sido despojada de validade tragicamente: dentro, a anarquia,
fora, os assírios.
Mas o
povo ainda conservou, como uma projeção de sua mais alta aspiração, a visão de
um rei que era ao
mesmo
tempo um galante guerreiro e um decoroso juiz – foi conservada sobretudo por
aquele profeta
típico
(ou seja, crítico e satírico do momento), Isaías. – Mas toda a esperança foi
vã. O velho Deus não
podia
mais fazer o que fizera noutros tempos. Deveria ter sido abandonado. Mas o que
ocorreu de fato?
Simplesmente
isto: sua concepção foi mudada – sua concepção foi desnaturalizada; esse foi o
preço que
tiveram
de pagar para mantê-lo. – Iavé, o Deus da “justiça” – não está mais de acordo
com Israel, não
representa
mais o egoísmo da nação; agora é apenas um Deus condicionado... A noção pública
desse
Deus
agora se torna meramente uma arma nas mãos de agitadores clericais, que
interpretam toda
felicidade
como recompensa e toda desgraça como punição em termos de obediência ou
desobediência a
Deus, em
termos de “pecado”: a mais fraudulenta das interpretações imagináveis, através
da qual a
“ordem
moral do mundo” é estabelecida e os conceitos fundamentais, “causa” e “efeito”,
são colocados de
ponta
cabeça. Uma vez que o conceito de causa natural é varrido do mundo por
doutrinas de recompensa
e
punição, algum tipo de causalidade inatural torna-se necessária: seguem-se
disso todas as outras
variedades
de negação da natureza. Um Deus que ordena – no lugar de um Deus que ajuda, que
dá
conselhos,
que no fundo é meramente um nome para cada feliz inspiração de coragem e
autoconfiança...
A moral
já não é mais um reflexo das condições que promovem vida sã e o crescimento de
um
povo;
não é mais um instinto vital primário; em vez disso se tornou algo abstrato e
oposto à vida – uma
perversão
dos fundamentos da fantasia, um “olhar maligno” contra todas as coisas. Que é a
moral
judaica?
Que é a moral cristã? A sorte despida de sua inocência; a infelicidade
contaminada com a idéia
de
“pecado”; o bem-estar considerado como um perigo, como uma “tentação”; um desarranjo
fisiológico
causado
pelo veneno do remorso...
1 – Uma
das designações do Deus de Israel utilizadas nos Livros Sagrados. (Pietro
Nasseti)
XXVI
O
conceito de Deus falsificado; o conceito de moral falsificado; – mas mesmo aqui
os feitos dos
padres
judaicos não cessaram. – Toda a história de Israel não lhes tinha qualquer
valor: então a
dispensaram!
– Tais padres realizaram essa prodigiosa falsificação da qual grande parte da
Bíblia é uma
evidência
documentária; com um grau de desprezo sem paralelos, e em face de toda a
tradição e toda a
realidade
histórica, traduziram o passado de seu povo em termos religiosos, ou seja,
converteram-no em
um
mecanismo imbecil de salvação, através do qual todas ofensas contra Iavé eram
punidas e toda
devoção
recompensada. Nós consideraríamos esse ato de falsificação histórica algo muito
mais
vergonhoso
se a familiaridade com a interpretação eclesiástica da história por milhares
anos não tivesse
embotado
nossas inclinações à retidão in hitoricis(1). E os filósofos apóiam a Igreja: a
mentira sobre a
“ordem
moral do mundo” permeia toda a filosofia, mesmo a mais recente. O que significa
uma “ordem
moral do
mundo”? Significa que existe uma coisa chamada vontade de Deus, a qual
determina o que o
homem
deve ou não fazer; que a dignidade de um povo ou de um indivíduo deve ser
medida pelo seu
grau de
obediência ou desobediência à vontade de Deus; que os destinos de um povo ou de
um indivíduo
são
controlados por essa vontade de Deus, que recompensa ou pune de acordo com a
obediência ou
desobediência
manifestadas. – Em lugar dessa deplorável mentira, a realidade teria isto a
dizer: o padre,
essa
espécie parasitária que existe às custas da toda vida sã, usa o nome de Deus em
vão: chama o
estado
da sociedade humana no qual ele próprio determina o valor de todas as coisas de
“o reino de
Deus”;
chama os meios através dos quais esse estado é alcançado de “vontade de Deus”;
com um
cinismo
glacial, avalia todos povos, todas épocas e todos indivíduos através de seu
grau de subserviência
ou
oposição do poder da ordem sacerdotal. Observemo-lo em serviço: pelas mãos do
sacerdócio judaico a
grande
época de Israel transfigurou-se em uma época de declínio; a Diáspora, com sua
longa série de
infortúnios,
foi transformada em uma punição pela grande época – na qual os padres ainda não
significavam
nada. Transformaram, de acordo com suas necessidades, os heróis poderosos e
absolutamente
livres da história de Israel ou em fanáticos miseráveis e hipócritas, ou em
homens
totalmente
“ímpios”. Reduziram todos grandes acontecimentos à estúpida fórmula:
“obedientes ou
desobedientes
a Deus”. – E foram mais adiante: a “vontade de Deus” (em outras palavras, as
condições
necessárias
para a preservação do poder dos padres) tinha de ser determinada – e para tal fim
necessitavam
de uma “revelação”. Dizendo de modo mais claro, uma enorme fraude literária
teve de ser
perpetrada,
“sagradas escrituras” tiveram de ser forjadas – e então, com grandiosa pompa
hierática e
dias
penitência e muita lamentação pelos longos dias de “pecado” agora terminados,
foram devidamente
publicadas.
A “vontade de Deus”, ao que parece, há muito já havia sido estabelecida; o
problema foi que
a
humanidade negligenciou as “sagradas escrituras”... Mas a “vontade de Deus” já
havia sido revelada a
Moisés...
O que ocorreu? Simplesmente isto: os padres tinham formulado, de uma vez por
todas e com a
mais
estrita meticulosidade, que tributos deveriam ser-lhe pagos, desde o maior até
o menor (– não se
esquecendo
dos mais apetitosos cortes de carne, pois o padre é um grande consumidor de
bifes); em
suma,
ele disse o que desejava ter, qual era a “vontade de Deus”... Desse tempo em
diante as coisas se
organizam
de tal modo que o padre tornou-se indispensável em todos os lugares; em todos
os
importantes
eventos naturais da vida, no nascimento, no casamento, na enfermidade, na
morte, para não
falar no
“sacrifício” (ou seja, na ceia), o sacro-parasita se apresenta para os
desnaturalizar – na sua
linguagem,
para os “santificar”... Pois é necessário salientar isto: que todo hábito
natural, toda instituição
natural
(o Estado, a administração da Justiça, o casamento, os cuidados prestados aos
doentes e pobres),
tudo que
é exigido pelo instinto vital, em suma, tudo que tem valor em si mesmo é
reduzido a algo
absolutamente
imprestável e até transformado no oposto ao que é valoroso pelo o parasitismo
dos padres
(ou, se
alguém preferir, pela “ordem moral do mundo”). O fato precisa de uma sanção –
um poder para
criar
valores faz-se necessário, e tal poder só pode valorar através da negação da
natureza... O padre
deprecia
e profana a natureza: esse é o preço para que possa existir. – A desobediência
a Deus, ou seja,
a
desobediência ao padre, à lei, agora porta o nome de “pecado”; os meios
prescritos para a
“reconciliação
com Deus” são, é claro, precisamente os que induzem mais eficientemente um
indivíduo a
sujeitar-se
ao padre; apenas ele “salva”. Considerados psicologicamente, os “pecados” são
indispensáveis
em toda
sociedade organizada sobre fundamentos eclesiásticos; são os únicos
instrumentos confiáveis de
poder; o
padre vive do pecado; tem necessidade de que existam “pecadores”... Axioma
Supremo: “Deus
perdoa a
todo aquele que faz penitência” – ou, em outras palavras, a todo aquele que se
submete ao
padre.
1 – Nas
questões históricas.
XXVII
O
cristianismo se desenvolveu a partir de um solo tão corrupto que nele todo o
natural, todo valor
natural,
toda realidade se opunha aos instintos mais profundos da classe dominante –
surgiu como uma
espécie
de guerra de morte contra a realidade, e como tal nunca foi superada. O “povo
eleito” que para
todas as
coisas adotou valores sacerdotais e nomes sacerdotais, e que, com aterrorizante
lógica, rejeitou
tudo que
era terrestre como “profano”, “mundano”, “pecaminoso” – esse povo colocou seus
instintos em
uma
fórmula final que era conseqüente até o ponto da auto-aniquilação: como
cristianismo, de fato negou
mesmo a
última forma da realidade, o “povo sagrado”, o “povo eleito”, a própria
realidade judaica. O
fenômeno
tem importância de primeira ordem: o pequeno movimento insurrecional que levou
o nome de
Jesus de
Nazaré é simplesmente o instinto judaico redivivus(1) – em outras palavras, é o
instinto
sacerdotal
que não consegue mais suportar sua própria realidade; é a descoberta de um
estado
existencial
ainda mais abstrato, de uma visão da vida ainda mais irreal que a necessária
para uma
organização
eclesiástica. O cristianismo de fato nega a igreja...
Não sou
capaz de determinar qual foi o alvo da insurreição da qual Jesus foi
considerado – seja
isso
verdade ou não – o promotor, caso não seja a Igreja judaica – a palavra
“igreja” sendo usada aqui
exatamente
no mesmo sentido que possui hoje. Era uma insurreição contra “os bons e os
justos”, contra
os
“Santos de Israel”, contra toda a hierarquia da sociedade – não contra a
corrupção, mas contra as
castas,
o privilégio, a ordem, o formalismo. Era uma descrença no “homem superior”, um
Não
arremessado
contra tudo que padres e teólogos defendiam. Mas a hierarquia que foi posta em
causa por
esse
movimento, ainda que por apenas um instante, era uma jangada que, acima de
tudo, era necessária
à
segurança do povo judaico em meio às “águas” – representava sua última
possibilidade de
sobrevivência;
era o último residuum(2) de sua existência política independente; um ataque
contra isso
era um
ataque contra o mais profundo instinto nacional, contra a mais tenaz vontade de
viver de um povo
que
jamais existiu sobre a Terra. Esse santo anarquista incitou o povo de baixeza
abissal, os réprobos e
“pecadores”,
os chandala do judaísmo a emergirem em revolta contra a ordem estabelecida das
coisas – e
com uma
linguagem que, se os Evangelhos merecem crédito, hoje o conduziria à Sibéria –,
esse homem
certamente
era um criminoso político, ao menos tanto quanto era possível o ser em uma
comunidade tão
absurdamente
apolítica. Foi isso que o levou à cruz: a prova consiste na inscrição colocada
sobre ela.
Morreu
pelos seus pecados – não há qualquer razão para se acreditar, não importa
quanto isso seja
afirmado,
que tenha morrido pelo pecado dos outros. –
1 – Que
retornou à vida; ressuscitado.
2 –
Resíduo.
XXVIII
Se ele
próprio era consciente dessa contradição – ou se, de fato, essa era a única da
qual tinha
conhecimento
– essa é uma questão totalmente distinta. Aqui, pela primeira vez, toco o
problema da
psicologia
do Salvador. – Para começar, confesso que muitos poucos livros, para mim, são
mais difíceis de
ler que
os Evangelhos. Minhas dificuldades são bastante diferentes daquelas que
possibilitaram à
curiosidade
letrada da mente alemã perpetrar um de seus triunfos mais inesquecíveis. Faz um
longo
tempo
desde que eu, como qualquer outro jovem erudito, desfrutava da incomparável
obra de Strauss(1)
com toda
a sapiente laboriosidade de um meticuloso filólogo. Naquele tempo possuía vinte
anos: agora
sou
sério demais para esse tipo de coisa. Que me importam as contradições da
“tradição”? Como alguém
pode
chamar lendas de santos de “tradição”? As histórias de santos são a mais dúbia
variedade de
literatura
existente; examiná-las à luz do método científico na ausência total de
documentos
corroborativos
a mim parece condenar toda a investigação desde suas origens – isso seria
simplesmente
uma
divagação erudita...
1 –
David Friedrich Strauss (1808-74), autor de “Das Leben Jesu” (1835-6), uma obra
muito famosa em sua época. Nietzsche
se
refere a ela. (H. L. Mencken)
XXIX
O que me
importa é o tipo psicológico do Salvador. Esse tipo talvez seja descrito nos
evangelhos,
apesar
de que em uma forma mutilada e saturada de caracteres estrangeiros – isto é, a
despeito dos
Evangelhos;
assim como a figura de Francisco de Assis se apresenta em suas lendas a
despeito de suas
lendas.
A questão não é a veracidade das evidências sobre seus feitos, seus ditos ou
sobre como foi sua
morte; a
questão é se seu tipo ainda pode ser compreendido, se foi conservado. – Todas
as tentativas de
que
tenho conhecimento de se ler a história da “alma” nos Evangelhos revelam para
mim apenas uma
lamentável
leviandade psicológica. O Senhor Renan, esse arrivista in psychologicis(1),
contribuiu às duas
noções
mais inadequadas concernentes à explicação do tipo de Jesus: a noção de gênio e
a de herói
(“heros”).
Mas se existe alguma coisa essencialmente antievangélica, certamente é a noção
de herói. O
que os
Evangelhos tornam instintivo é precisamente o oposto de todo o esforço heróico,
de todo o gosto
pelo
conflito: a incapacidade de resistência converte-se aqui em algo moral: (“não
resistas ao mal” – a
mais
profunda sentença dos Evangelhos, talvez a verdadeira chave para eles) a saber,
na bemaventurança
da paz,
da bondade, na incapacidade para a inimizade. Qual o significado da “boa-nova”?
–
Que
verdadeira vida, a vida eterna foi encontrada – não foi meramente prometida,
está aqui, está em
você; é
a vida que se encontra no amor livre de todos os retraimentos e exclusões,
livre de todas as
distâncias.
Todos são filhos Deus, Jesus não reivindica nada apenas para si; como filhos de
Deus, todos os
homens
são iguais... Imagine fazer de Jesus um herói! – E que tremenda incompreensão
escorre da
palavra
“gênio”! Toda nossa concepção do “espiritual”, toda concepção de nossa
civilização não possui
qualquer
sentido no mundo em que Jesus viveu. Falando com o rigor de um fisiologista,
uma palavra
bastante
diferente deveria ser usada aqui... Todos sabemos que há uma sensibilidade
mórbida dos nervos
táteis
que faz com que os sofredores evitem todo o tocar, se retraiam ante a
necessidade de agarrar um
objeto
sólido. Infere-se disso que, em última instância, tal habitatus(2) fisiológico
transforma-se em um
ódio
instintivo contra toda a realidade, em uma fuga ao “intangível”, ao
“incompreensível”; uma
repugnância
por toda fórmula, por todas noções de tempo e espaço, por todo o estabelecido –
costumes,
instituições,
Igreja –; a sensação de estar em casa em um mundo sem contado com a realidade,
um
mundo
exclusivamente “interior”, um mundo “verdadeiro”, um mundo “eterno”... “O reino
de Deus está
dentro
de vós”...
1 – Em
assuntos psicológicos.
2 –
Comportamento.
XXX
O ódio
instintivo contra a realidade: a conseqüência de uma extremada suscetibilidade
à dor e
irritação
– tão intensa que meramente ser “tocado” torna-se insuportável, pois cada
sensação manifestase
muito
profundamente.
A
exclusão instintiva de toda aversão, toda hostilidade, todas as fronteiras e
distâncias no
sentimento:
a conseqüência de uma extremada suscetibilidade à dor e irritação – tão grande
que sente
toda a
resistência, toda a compulsão à resistência como uma angústia insuportável (–
em outros termos,
como
nocivo, como proibido pelo instinto de autopreservação), e considera a
bem-aventurança (alegria)
como
algo possível apenas após não ser mais necessário oferecer resistência a nada
nem a ninguém, nem
mesmo ao
mal e ao perigoso – amor como única, como a última possibilidade de vida...
Essas
são as duas realidades fisiológicas a partir das quais e por causa das quais a
doutrina da
salvação
se desenvolveu. Denomino-as um sublime hedonismo superdesenvolvido assentado
sobre um
solo
completamente insalubre. O que fica mais próximo delas, apesar de misturado com
uma grande dose
de
vitalidade grega e força nervosa, é o epicurismo, a teoria da salvação do
paganismo. Epicuro era um
típico
decadente: fui o primeiro a reconhecê-lo. – O medo da dor, mesmo da dor
infinitamente pequena –
o
resultado disso não pode ser qualquer coisa exceto uma religião do amor...
XXXI
Antecipadamente
dei minha resposta ao problema. Seu pré-requisito é a assunção de que o tipo
do
Salvador chegou até nós com sua forma altamente distorcida. Tal distorção é
muito provável: há
muitos
motivos para que esse tipo não deva ser transmitido em sua forma pura, completa
e livre de
acréscimos.
O ambiente no qual esta estranha figura se movia deve ter deixado vestígios
nela, e ainda
mais
deve ter sido feito pela história, pelo destino das primeiras comunidades
cristãs; a última, de fato,
deve ter
embelezado o tipo retrospectivamente com caracteres que apenas podem ser
compreendidos
enquanto
finalidades de guerra e propaganda. Aquele mundo estranho e doentio ao qual os
Evangelhos
nos
conduzem – um mundo aparentemente vindo de uma novela russa, no qual a escória
da sociedade,
as
moléstias nervosas e a idiotice “pueril” se reúnem – deve, de qualquer modo,
ter tornado o tipo
grosseiro:
os primeiros discípulos, em particular, devem ter sido forçados a traduzir, com
sua crueza
própria,
um ser totalmente formado por símbolos e coisas ininteligíveis para poderem
compreender
alguma
coisa – na visão deles o tipo apenas existiu após ter sido reformado em moldes
mais familiares...
O
profeta, o messias, o futuro juiz, o professor de moral, o milagreiro, João
Batista – todas simplesmente
chances
de desfigurá-lo... Finalmente, não subestimemos o proprium(1) de todas as
grandes venerações,
especialmente
as sectárias: tendem a apagar dos objetos venerados todas as características
originais e
idiossincrasias,
não raro dolorosamente estranhas – nem mesmo os vê. Deve-se lamentar muito que
nenhum
Dostoievski tenha vivido nas vizinhanças do mais interessante dos décadents –
ou seja, alguém
que
teria sentido o comovente encanto de tal mistura do sublime, do mórbido e do
infantil. Em última
análise,
o tipo, enquanto tipo da decadência, talvez possa realmente ter sido
peculiarmente complexo e
contraditório:
não se deve excluir essa possibilidade. Contudo, as probabilidades parecem
estar em seu
desfavor,
pois neste caso a tradição teria sido particularmente precisa e objetiva,
enquanto temos razões
para
admitir o contrário. Entretanto, existe uma contradição entre o pacífico
pregador das montanhas,
dos
lagos e dos campos, que parece como um novo Buda em um solo muito pouco
indiano, e o fanático
agressivo,
o inimigo mortal dos teólogos e dos eclesiásticos, que é glorificado pela
malícia de Renan como
“lê
grand maitre em ironie(2)”. Pessoalmente não tenho qualquer dúvida de que a
maior parte desse
veneno
(e não menos de esprit(3)) haja penetrado no tipo do Mestre apenas como um
resultado da
agitada
natureza da propaganda cristã: todos conhecemos a inescrupulosidade dos
sectários quando
decidem
fazer de seu líder uma apologia para si mesmos. Quando os primeiros cristãos
precisaram de um
teólogo
hábil, contencioso, pugnaz e maliciosamente sutil para enfrentar outros
teólogos, criaram um
“Deus”
para satisfazer tal necessidade, exatamente como também, sem hesitação,
colocaram em sua
boca
certas idéias que eram necessárias a eles, mas totalmente divergentes dos
Evangelhos – “a volta de
Cristo”,
“o juízo final”, todos os tipos de expectativas e promessas temporais. –
1 –
Propriedade, qualidade.
2 – O
grande mestre em ironia.
3 –
Espírito, ironia.
XXXII
Repito
que me oponho a todos os esforços para introduzir o fanatismo na figura do
Salvador: a
própria
palavra imperieux(1), usada por Renan, sozinha é suficiente para anular o tipo.
A “boa-nova” nos
diz
simplesmente que não existem mais contradições; o reino de Deus pertence às
crianças; a fé
anunciada
aqui não é mais conquistada por lutas – está ao alcance das mãos, existiu desde
o princípio, é
um tipo
de infantilidade que se refugiou no espiritual. Tal puberdade retardada e
incompleta dos
organismos
é familiar aos fisiologistas como sintoma da degeneração. A fé desse tipo não é
furiosa, não
denuncia,
não se defende: não empunha “espada” – não entende como poderia um dia colocar
homem
contra
homem. Não se manifesta através de milagres, recompensas, promessas ou
“escrituras”: é, do
principio
ao fim, seu próprio milagre, sua própria recompensa, sua própria promessa, seu
próprio “reino
de
Deus”. Essa fé não se formula – simplesmente vive, e assim guarda-se contra
fórmulas. Com certeza,
a
casualidade do ambiente, da formação educacional dá proeminência aos conceitos
de certa espécie: no
cristianismo
primitivo encontramos apenas noções de caráter judaico-semítico (– a de comer e
beber em
comunhão
pertence a esta categoria – uma idéia que, como tudo que é judaico, foi
severamente fustigada
pela
Igreja). Cuidemo-nos para não ver nisso tudo mais que uma linguagem simbólica,
uma
semântica(2),
uma oportunidade para falar em parábolas. A teoria de que nenhuma palavra deve
ser
tomada
ao pé da letra era um pressuposto para que este anti-realista pudesse
discursar. Colocado entre
hindus
teria usado os conceitos de Shanhya(3), e entre chineses os de Lao-Tsé(4) – e
em ambos os casos
isso não
faria qualquer diferença a ele. – Tomando uma pequena liberdade no uso das
palavras, alguém
poderia
de fato chamar Jesus de “espírito livre(5)” – não lhe importa o que está
estabelecido: a palavra
mata(6),
tudo aquilo que é estabelecido mata. A noção de “vida” como uma experiência,
como apenas ele
a
concebe, a seu ver encontra-se em oposição a todo tipo de palavra, fórmula,
lei, crença e dogma. Fala
apenas
de coisas interiores: “vida”, ou “verdade”, ou “luz”, são suas palavras para o
mundo interior – a
seu ver
todo o resto, toda a realidade, toda natureza, mesmo a linguagem, tem valor
apenas como um
sinal,
uma alegoria. – Aqui é de suprema importância não se deixar conduzir ao erro
pelas tentações
existentes
nos preconceitos cristãos, ou melhor, eclesiásticos: este simbolismo par
excellence encontra-se
alheio a
toda religião, todas noções de adoração, toda história, toda ciência natural,
toda experiência
mundana,
todo conhecimento, toda política, toda psicologia, todos livros, toda arte –
sua “sabedoria” é
precisamente
a ignorância pura(7) em relação a todas essas coisas. Nunca ouviu falar de
cultura; não a
combate
– nem mesmo a nega... O mesmo pode ser dito do Estado, de toda a ordem social
burguesa, do
trabalho,
da guerra – não tem motivos para negar o “mundo”, nem sequer tem conhecimento
do conceito
eclesiástico
de “mundo”... Precisamente a negação lhe era impossível. – De modo idêntico
carece de
capacidade
argumentativa, não acredita que um artigo de fé, que uma “verdade” possa ser
estabelecida
através
de provas (– suas provas são “iluminações” interiores, sensações subjetivas de
felicidade e autoafirmação,
simples “provas
de força” –). Tal doutrina não pode contradizer: não sabe que outras doutrinas
existem
ou podem existir, é inteiramente incapaz de imaginar um juízo oposto... E se,
porventura, o
encontra,
lamenta por tal “cegueira” com uma sincera compaixão – pois somente ela vê a
“luz” – no
entanto
não fará quaisquer objeções...
1 –
Imperioso.
2 – A
palavra semiótica está no texto, mas é provável que semântica seja a palavra
que Nietzsche tinha em mente. (H. L.
Mencken)
3 – Um
dos seis grandes sistemas da filosofia hindu. (H. L. Mencken)
4 –
Considerado o fundador do taoísmo. (H. L. Mencken)
5 – O
nome que Nietzsche da aos que aceitam sua filosofia. (H. L. Mencken)
6 – Isto
é, a rigorosa palavra da lei – o objetivo mais importante nas primeiras
pregações de Jesus. (H. L. Mencken)
7 –
Referência à “ignorância pura” (reine Thorheit) do Parsifal de Richard Wagner.
(H. L. Mencken)
XXXIII
Em toda
a psicologia dos Evangelhos os conceitos de culpa e punição estão ausentes, e o
mesmo
vale
para o de recompensa. O “pecado”, que significa tudo aquilo que distancia o
homem de Deus, é
abolido
– essa é precisamente a “boa-nova”. A felicidade eterna não está meramente
prometida, nem
vinculada
a condições: é concebida como a única realidade – todo o restante não são mais
que sinais
úteis
para falar dela.
Os
resultados de tal ponto de vista projetam-se em um novo estilo de vida, um
estilo de vida
especialmente
evangélico. Não é a “fé” que o distingue do cristão; a distinção se estabelece
através da
maneira
de agir; ele age diferentemente. Não oferece resistência, nem em palavras, nem
em seu coração,
àqueles
que lhe são opositores. Não vê diferença entre estrangeiros e conterrâneos,
judeus e pagãos
(“próximo”,
é claro, significa correligionário, judeu). Não se irrita com ninguém, não
despreza ninguém.
Não
apela às cortes de justiça nem se submete às suas decisões (“não prestar
juramento”(1)). Nunca,
quaisquer
sejam as circunstâncias, se divorcia de sua esposa, mesmo que possua provas de
sua
infidelidade.
– No fundo, tudo isso é um princípio; tudo surge de um instinto. –
A vida
do salvador foi simplesmente professar essa prática – e também em sua morte...
Não
precisava
mais de qualquer formula ou ritual em suas relações com Deus – nem sequer da oração.
Rejeitou
toda a doutrina judaica do arrependimento e recompensa; sabia que apenas
através da vivência,
de um
estilo de vida alguém poderia se sentir “divino”, “bem-aventurado”,
“evangélico”, “filho de Deus”.
Não é o
“arrependimento”, não são a “oração e o perdão” o caminho para Deus: apenas o
modo de viver
evangélico
conduz a Deus – isso é justamente o próprio o “Deus”! – O que os Evangelhos
aboliram foi o
judaísmo
presente nas idéias de “pecado”, “remissão dos pecados”, “salvação através da
fé” – toda a
dogmática
eclesiástica dos judeus foi negada pela “boa-nova”.
O
profundo instinto que leva o cristão a viver de modo que se sinta “no céu” e
“imortal”, apesar
das
muitas razões para sentir que não está “no céu”: essa é a única realidade
psicológica na “salvação”. –
Uma nova
vida, não uma nova fé.
1 –
Mateus 5:34.
XXXIV
Se
compreendo alguma coisa sobre esse grande simbolista, é isto: que considerava
apenas
realidades
subjetivas como reais, como “verdades” – que viu todo o resto, todo o natural,
temporal,
espacial
e histórico apenas como símbolos, como material para parábolas. O conceito de
“Filho de Deus”
não
designa uma pessoa concreta na história, um indivíduo isolado e definido, mas
um fato “eterno”, um
símbolo
psicológico desvinculado da noção de tempo. O mesmo é válido, no sentido mais
elevado, para o
Deus
desse típico simbolista, para o “reino de Deus” e para a “filiação divina”.
Nada poderia ser mais
acristão
que as cruas noções eclesiásticas de um Deus como pessoa, de um “reino de Deus”
vindouro, de
um
“reino dos céus” no além e de um “filho de Deus” como segunda pessoa da
Trindade. Isso tudo –
perdoem-me
a expressão – é como soco no olho (e que olho!) do Evangelho: um desrespeito
aos
símbolos
elevado a um cinismo histórico-mundial... Todavia é suficientemente óbvio o
significado dos
símbolos
“Pai” e “Filho” – não para todos, é claro –: a palavra “Filho” expressa a
entrada em um
sentimento
de transformação de todas as coisas (beatitude); “Pai” expressa esse próprio
sentimento – a
sensação
da eternidade e perfeição. – Envergonho-me de lembrar o que a Igreja fez com
esse
simbolismo:
ela não colocou uma história de Anfitrião(1) no limiar da “fé” cristã? E um
dogma da
“imaculada
conceição” ainda por cima?... – Com isso conseguiu apenas macular a
concepção...
O “reino
dos céus” é um estado de espírito – não algo que virá “além do mundo” ou “após
a
morte”.
Toda a idéia de morte natural está ausente nos Evangelhos: a morte não é uma
ponte, não é uma
passagem;
está ausente porque pertence a um mundo bastante diferente, um mundo apenas
aparente,
apenas
útil enquanto símbolo. A “hora da morte” não é uma idéia cristã – “horas”,
tempo, a vida física e
suas
crises são inexistentes para o mestre da “boa-nova”...
O “reino
de Deus” não é uma coisa pela qual os homens aguardam: não teve um ontem nem
terá
um
amanhã, não virá em um “milênio” – é uma experiência do coração, está em toda
parte e não está em
parte
alguma...
1 –
Mitologia grega. Anfitrião era o filho de Alceu. Alcmena era sua esposa.
Durante sua ausência ela foi visitada por Zeus e
Heracles.
(H. L. Mencken)
XXXV
O
“portador da boa-nova” morreu assim como viveu e ensinou – não para “salvar a
humanidade”,
mas para
demonstrar-lhe como viver. Seu legado ao homem foi um estilo de vida: sua
atitude ante os
juízes,
ante os oficiais, ante seus acusadores – sua atitude perante a cruz. Não
resiste; não defende seus
direitos;
não faz qualquer esforço para evitar a maior das penalidades – ainda mais, a
convida... E roga,
sofre e
ama com aqueles, por aqueles que o maltratam. Não se defender, não se
encolerizar, não culpar...
Mas
igualmente não resistir ao mal – amá-lo...
XXXVI
– Nós,
espíritos livres – nós somos os primeiros a possuir os pré-requisitos para
entender o que,
por
dezenove séculos, permaneceu incompreendido – temos aquele instinto e paixão
pela integridade que
declara
uma guerra muito mais ferrenha contra a “sagrada mentira” que contra todas as
outras
mentiras...
A humanidade estava indizivelmente distante de nossa benevolente e cautelosa
neutralidade,
de nossa
disciplina de espírito que sozinha torna possível solucionar coisas tão
estranhas e sutis: o que os
homens
sempre buscaram, com descarado egoísmo, foi sua própria vantagem; criaram a
Igreja a partir
da
negação dos Evangelhos...
Todos
que procurassem por sinais de uma divindade irônica que maneja os cordéis por
detrás do
grande
drama da existência não encontrariam pequena evidência neste estupendo ponto de
interrogação
chamado
cristianismo. A humanidade ajoelha-se exatamente perante a antítese do que era
a origem, o
significado
e a lei dos Evangelhos – santificaram no conceito de “Igreja” justamente o que
o “portador da
boa-nova”
considerava abaixo si, atrás de si – seria vão procurar por um melhor exemplo
de ironia
histórico-mundial
–
XXXVII
– Nossa
época orgulha-se de seu senso histórico: como, então, se permitiu acreditar que
a
grosseira
fábula do fazedor de milagres e Salvador constitui as origens do cristianismo –
e que tudo nele
de
espiritual e simbólico surgiu apenas posteriormente? Muito pelo contrário, toda
a história do
cristianismo
– da morte na cruz em diante – é a história de uma incompreensão
progressivamente
grosseira
de um simbolismo original. Com toda a difusão do cristianismo entre massas mais
vastas e
incultas,
até mesmo incapazes de compreender os princípios dos quais nasceu, surgiu a
necessidade de
torná-lo
mais vulgar e bárbaro – absorveu os ensinamentos e rituais de todos cultos
subterrâneos do
imperium
Romanum e as absurdidades engendradas por todo tipo de raciocínio doentio. Era
o destino do
cristianismo
que sua fé se tornasse tão doentia, baixa e vulgar quanto as necessidades
doentias, baixas e
vulgares
que tinha de administrar. O barbarismo mórbido finalmente ascende ao poder com
a Igreja – a
Igreja,
esta encarnação da hostilidade mortal contra toda a honestidade, toda grandeza
de alma, toda
disciplina
do espírito, toda humanidade espontânea e bondosa. – Valores cristãos – valores
nobres:
apenas
nós, espíritos livres, restabelecemos a maior das antíteses em matéria de
valores!...
XXXVIII
– Não
posso, neste momento, evitar um suspiro. Há dias em que sou visitado por um
sentimento
mais
negro que a mais negra melancolia – o desprezo pelos homens. Que não haja
qualquer dúvida sobre
o que
desprezo, sobre quem desprezo: é o homem de hoje, do qual desgraçadamente sou
contemporâneo.
O homem de hoje – seu hálito podre me asfixia!... Em relação ao passado, como
todos
estudiosos,
tenho muita tolerância, ou seja, um generoso autocontrole: com uma melancólica
precaução
atravesso
milênios inteiros de mundo-manicômio, chamem isso de “cristianismo”, “fé
cristã” ou “Igreja
cristã”,
como desejaram – tomo o cuidado de não responsabilizar a humanidade por sua
demência. Mas
um
sentimento irrefreável irrompe no momento em que entro nos tempos modernos, nos
nossos tempos.
Nossa
época é mais esclarecida... O que era antigamente apenas doentio agora se
tornou indecente – é
uma
indecência ser cristão hoje em dia. E aqui começa minha repugnância. – Olho à
minha volta: não
resta
sequer uma palavra do que outrora se chamava “verdade”; já não suportamos mais
que um padre
pronuncie
tal palavra. Mesmo um homem com as mais modestas pretensões à integridade
precisa saber
que um
teólogo, um padre, um papa de hoje não apenas se engana quando fala, mas na
verdade mente –
já não
se isenta de sua culpa através da “inocência” ou da “ignorância”. O padre sabe,
como todos sabem,
que não
há qualquer “Deus”, nem “pecado”, nem “salvador” – que o “livre arbítrio” e a
“ordem moral do
mundo”
são mentiras –: a reflexão séria, a profunda auto-superação espiritual impedem
que quaisquer
homens
finjam não saber disso... Todas idéias da Igreja agora estão reconhecidas pelo
que são – as
piores
falsificações existentes, inventadas para depreciar a natureza e todos os
valores naturais; o padre
é visto
como realmente é – como a mais perigosa forma de parasita, como a peçonhenta
aranha da
criação...
– Nós sabemos, nossa consciência agora sabe – exatamente qual era o verdadeiro
valor de
todas
essas sinistras invenções do padre e da Igreja e para que fins serviram, com
sua desvalorização da
humanidade
ao nível da autopoluição, cujo aspecto inspira náusea – os conceitos de “outro
mundo”, de
“juízo
final”, de “imortalidade da alma”, da própria “alma”: não passam de
instrumentos de tortura,
sistemas
de crueldade através dos quais o padre torna-se mestre e mantém-se mestre...
Todos sabem
disso,
mas, mesmo assim, nada mudou. Para onde foi nosso último resquício decência, de
auto-respeito
se
nossos homens de Estado, no geral uma classe de homens não convencionais e
profundamente
anticristãos
em seus atos, agora se denominam cristãos e vão à mesa de comunhão?... Um
príncipe à
frente
de seus regimentos, magnificente enquanto expressão do egoísmo e arrogância de
seu povo – e
mesmo
assim declarando, sem qualquer vergonha, que é um cristão!...(1) Quem, então, o
cristianismo
nega? O
que ele chama “o mundo”? Ser soldado, ser juiz, ser patriota; defender-se a si
mesmo; zelar
pela sua
honra; desejar sua própria vantagem; ser orgulhoso... Toda prática trivial,
todo instinto, toda
valoração
convertida em ato agora é anticristã: que monstro de falsidade o homem moderno
precisa ser
para se
denominar um cristão sem envergonhar-se! –
1 –
Nietzsche refere-se ao Kaiser Guilherme II, que subira ao trono da Alemanha em
15 de abril de 1888, cinco meses antes
da
redação de O Anticristo. (Pietro Nasseti)
XXXIX
– Farei
uma pequena regressão para explicar a autêntica história do cristianismo. – A
própria
palavra
“cristianismo” é um mal-entendido – no fundo só existiu um cristão, e ele
morreu na cruz. O
“Evangelho”
morreu na cruz. O que, desse momento em diante, chamou-se de “Evangelho” era
exatamente
o oposto do que ele viveu: “más novas”, um Dysangelium(1). É um erro elevado à
estupidez
ver na
“fé”, e particularmente na fé na salvação através de Cristo, o sinal distintivo
do cristão: apenas a
prática
cristã, a vida vivida por aquele que morreu na cruz, é cristã... Hoje tal vida
ainda é possível, e
para
certos homens até necessária: o cristianismo primitivo, genuíno, continuará
sendo possível em
quaisquer
épocas... Não fé, mas atos; acima de tudo, um evitar atos, um modo diferente de
ser... Os
estados
de consciência, uma fé qualquer, por exemplo, a aceitação de alguma coisa como
verdade – como
todo
psicólogo sabe, o valor dessas coisas é perfeitamente indiferente e de quinta
ordem se comparado
ao dos
instintos: estritamente falando, todo o conceito de causalidade intelectual é
falso. Reduzir o ato ser
cristão,
o estado de cristianismo, a uma aceitação da verdade, a um mero fenômeno de
consciência,
equivale
a formular uma negação do cristianismo. De fato, não existem cristãos. O
“cristão” – aquele que
por dois
mil anos passou-se por cristão – é simplesmente uma auto-ilusão psicológica.
Examinado de
perto,
parece que, apesar de toda sua “fé”, foi apenas governado por seus instintos –
e que instintos! –
Em todas
as épocas – por exemplo, no caso de Lutero – “fé” nunca foi mais que uma capa,
um pretexto,
uma
cortina por detrás da qual os instintos faziam seu jogo – uma engenhosa
cegueira à dominação de
certos
instintos... Eu já denominei a “fé” uma habilidade especialmente cristã –
sempre se fala de “fé”
mas se
age de acordo com os instintos... No mundo de idéias do cristão não há qualquer
coisa que sequer
toque a
realidade: ao contrário, reconhece-se um ódio instintivo contra a realidade
como força
motivadora,
como único poder de motivação no fundo do cristianismo. Que se segue disso? Que
mesmo
aqui, in
psychologicis, há um erro radical, isto é, determinante da essência, ou seja,
da substância.
Retire-se
uma idéia e coloque-se uma realidade genuína em seu lugar – e todo o
cristianismo reduz-se a
um nada!
– Visto calmamente, este fenômeno é dos mais estranhos, uma religião não apenas
dependente
de
erros, mas inventiva e engenhosa apenas em criar erros nocivos, venenosos à
vida e ao coração –
constitui
um verdadeiro espetáculo para os Deuses – para aquelas divindades que também
são filósofas,
as quais
encontrei, por exemplo, nos célebres diálogos de Naxos. No momento em que a
repugnância as
deixar
(– e também a nós!) ficarão agradecidas pelo espetáculo proporcionado pelos
cristãos: talvez por
causa
desta curiosa exibição somente o miserável e minúsculo planeta chamado Terra
mereça olhar
divino,
uma demonstração de interesse divino... Portanto, não subestimemos os cristãos:
o cristão, falso
até a
inocência, está muito acima do macaco – uma teoria das origens bastante
conhecida(2), quando
aplicada
aos cristãos, torna-se simplesmente uma delicadeza...
1 – Um
dos muitos neologismos de Nietzsche. Ele compõe este vocábulo angelium (cuja
origem vem do grego e que significa
“nova”,
“notícia”) fazendo oposição com os prefixos dys (mau, infeliz – “notícia má”) e
eu (bom, feliz – “boa nova”, “boa
notícia”).
(Pietro Nasseti)
2 –
Referência à teoria de Charles Darwin sobre as origens do homem. (Pietro
Nasseti)
XL
– O
destino do Evangelho foi decidido no momento de sua morte – foi pendurado na
“cruz”...
Somente
a morte, essa inesperada e vergonhosa morte; somente a cruz, a qual geralmente
era reservada
apenas à
canalha – somente este assombroso paradoxo colocou os discípulos face a face
com o
verdadeiro
enigma: “Quem era este? O que era este?” – O sentimento de desalento, de
profunda afronta
e
injúria; a suspeita de que tal morte poderia constituir uma refutação de sua
causa; a terrível questão
“Por que
aconteceu assim?” – esse estado mental é facilmente compreensível. Aqui tudo
precisa ser
considerado
como necessário; tudo precisa ter um significado, uma razão, uma elevadíssima
razão; o
amor de
um discípulo exclui todo o acaso. Apenas então da fenda da dúvida bocejou:
“Quem o matou?
Quem era
seu inimigo natural?” – essa pergunta reluziu como um relâmpago. Resposta: o
judaísmo
dominante,
a classe dirigente. A partir desse momento revoltaram-se contra a ordem
estabelecida,
começaram
a compreender Jesus como um insurrecto contra a ordem estabelecida. Até então
este
elemento
militante, negador estava ausente em sua imagem; ainda mais, isso representava
seu próprio
oposto.
Decerto a pequena comunidade não havia compreendido o que era precisamente o
mais
importante:
o exemplo oferecido pela sua morte, a liberdade, a superioridade sobre todo o
ressentimento
– uma
plena indicação de quão pouco foi compreendido! Tudo que Jesus poderia desejar
através de sua
morte,
em si mesma, era oferecer publicamente a maior prova possível, um exemplo de
seus
ensinamentos.
Mas os discípulos estavam muito longe de perdoar sua morte – apesar de que
fazê-lo seria
consoante
ao evangelho no mais alto grau; e também não estavam preparados para se
oferecerem, com
doce e
suave tranqüilidade de coração, a uma morte similar... Muito pelo contrário,
foi precisamente o
menos
evangélico dos sentimentos, a vingança, que os possuiu. Parecia-lhes impossível
que a causa
devesse
perecer com sua morte: “recompensa” e “julgamento” tornaram-se necessários (– e
o que
poderia
ser menos evangélico que “recompensa”, “punição” e “julgamento”!). – Uma vez
mais a crença
popular
na vinda de um messias apareceu em primeiro plano; a atenção foi direcionada a
um momento
histórico:
o “reino de Deus” virá para julgar seus inimigos... Mas nisso tudo há um
mal-entendido
gigantesco:
conceber o “reino de Deus” como ato final, como uma simples promessa! O
Evangelho havia
sido, de
fato, a própria encarnação, o cumprimento, a realização desse “reino de Deus”.
Foi apenas então
que todo
o desprezo e acridez contra fariseus e teólogos começaram a aparecer no tipo do
Mestre, que
com isso
foi transformado, ele próprio, em fariseu e teólogo! Por outro lado, a selvagem
veneração dessas
almas
completamente desequilibradas não podia mais suportar a doutrina do Evangelho,
ensinada por
Jesus,
sobre os direitos iguais entre todos os homens à filiação divina: sua vingança
consistiu em elevar
Jesus de
modo extravagante, destarte separando-o deles: exatamente como, em tempos
anteriores, os
judeus,
para vingarem-se de seus inimigos, se separaram de seu Deus e o elevaram às
alturas. Este Deus
único e
este filho único de Deus: ambos foram produtos do ressentimento...
XLI
– E a
partir desse momento surgiu um problema absurdo: “Como pôde Deus permiti-lo?”
Para o
qual a
perturbada lógica da pequena comunidade formulou uma resposta assustadoramente
absurda:
Deus deu
seu filho em sacrifício para a remissão dos pecados. De uma só vez acabaram com
o Evangelho!
O
sacrifício pelos pecados, e em sua forma mais obnóxia e bárbara: o sacrifício
do inocente pelo pecado
dos
culpados! Que paganismo apavorante! – O próprio Jesus havia suprimido o
conceito de “culpa”,
negava a
existência de um abismo entre Deus e o homem; ele viveu essa unidade entre Deus
e o homem,
que era
precisamente a sua “boa-nova”... E não como um privilégio! – Desde então o tipo
do Salvador foi
sendo
corrompido, pouco a pouco, pela doutrina do julgamento e da segunda vinda, a
doutrina da morte
como
sacrifício, a doutrina da ressurreição, através da qual toda a noção de
“bem-aventurança”, a inteira
e única
realidade dos Evangelhos é escamoteada – em favor de um estado existencial
pós-morte!... Paulo,
com
aquela insolência rabínica que permeia todos seus atos, deu um caráter lógico a
essa concepção
indecente
deste modo: “Se Cristo não ressuscitou de entre os mortos, então é vã toda a
nossa fé” – E de
súbito
converteu-se o Evangelho na mais desprezível e irrealizável das promessas, a
petulante doutrina
da
imortalidade do indivíduo... E Paulo a pregava como uma recompensa!...
XLII
Agora se
começa a ver justamente o que terminava com a morte na cruz: um esforço novo e
totalmente
original para fundar um movimento de pacifismo budístico, e assim estabelecer a
felicidade na
Terra –
real, não meramente prometida. Pois esta é – como já demonstrei – a diferença
essencial entre as
duas
religiões da decadência: o budismo não promete, mas de fato cumpre; o
cristianismo promete tudo,
mas não
cumpre nada. – A “boa nova” foi seguida rente aos calcanhares pela “péssima
nova”: a de Paulo.
Paulo
encarna exatamente o tipo oposto ao “portador da boa nova”; representa o gênio
do ódio, a visão
do ódio,
a inexorável lógica do ódio. O que esse disangelista(1) não ofereceu em
sacrifício ao ódio! Acima
de tudo,
o Salvador: ele pregou-o em sua própria cruz. A vida, o exemplo, o ensinamento,
a morte de
Cristo,
o significado e a lei de todo o Evangelho – nada disso restou após esse
falsário, com seu ódio, ter
reduzido
tudo ao que lhe tivesse utilidade. Certamente não a realidade, certamente não a
verdade
histórica!...
E uma vez mais o instinto sacerdotal do judeu perpetrou o mesmo grande crime
contra a
História
– simplesmente extirpou o ontem e o anteontem do cristianismo e inventou sua
própria história
das
origens do cristianismo. Ainda mais, fez da história de Israel outra
falsificação, para que assim se
tornasse
uma mera pré-história de seus feitos: todos os profetas falavam de seu
“Salvador”... Mais
adiante
a Igreja falsificou até a história da humanidade para transformá-la em uma
pré-história do
cristianismo...
A figura do Salvador, seus ensinamentos, seu estilo de vida, sua morte, o
significado de
sua
morte, mesmo as conseqüências de sua morte – nada permaneceu intocado, nada
permaneceu
sequer
semelhante à realidade. Paulo simplesmente deslocou o centro de gravidade
daquela vida inteira
para um
local detrás desta existência – na mentira do Jesus “ressuscitado”. No fundo, a
vida do salvador
não lhe
tinha qualquer utilidade – o que necessitava era de uma morte na cruz e de algo
mais. Ver
qualquer
coisa honesta em Paulo, cuja casa estava no centro da ilustração estóica,
quando converteu uma
alucinação
em uma prova da ressurreição do Salvador, ou mesmo acreditar na narrativa de
que ele
próprio
sofreu essa alucinação – isso seria uma genuína niaiserie(2) da parte de um
psicólogo. Paulo
desejava
o fim; logo, também desejava os meios. – Aquilo que ele próprio não acreditava
foi prontamente
engolido
por suficientes idiotas entre os quais disseminou seu ensinamento. – Seu desejo
era o poder; em
Paulo o
padre novamente quis chegar ao poder – só podia servir-se de conceitos,
ensinamentos e
símbolos
que tiranizam as massas e formam rebanhos. Qual parte do cristianismo Maomé
tomou
emprestada
mais tarde? A invenção de Paulo, sua técnica para estabelecer a tirania
sacerdotal e organizar
rebanhos:
a crença na imortalidade da alma – isto é, a doutrina do “julgamento”.
1 –
“Portador da má notícia”
2 –
Parvoíce, tolice.
XLIII
Quando
centro de gravidade da vida é colocado, não nela mesma, mas no “além” – no nada
–,
então se
retirou da vida o seu centro de gravidade. A grande mentira da imortalidade
pessoal destrói toda
razão,
todo instinto natural – tudo que há nos instintos que seja benéfico,
vivificante, que assegure o
futuro,
agora é causa de desconfiança. Viver de modo que a vida não tenha sentido:
agora esse é o
“sentido”
da vida... Para que o espírito público? Para que se orgulhar pela origem e
antepassados? Para
que cooperar,
confiar, preocupar-se com o bem-estar geral e servir a ele?... Outras tantas
“tentações”,
outros
tantos desvios do “bom caminho”. – “Somente uma coisa é necessária”... Que todo
homem, por
possuir
uma “alma imortal”, tenha tanto valor quanto qualquer outro homem; que na
totalidade dos seres
a
“salvação” de todo indivíduo um possa reivindicar uma importância eterna; que
beatos insignificantes e
desequilibrados
possam imaginar que as leis da natureza são constantemente transgredidas em seu
favor
– não há
como expressar desprezo suficiente por tamanha intensificação de toda espécie
de egoísmos ad
infinitum,
até a insolência. E, contudo, o cristianismo deve o seu triunfo precisamente a
essa deplorável
bajulação
de vaidade pessoal – foi assim que seduziu ao seu lado todos os malogrados, os
insatisfeitos, os
vencidos,
todo o refugo e vômito da humanidade. A “salvação da alma” – em outras
palavras: “o mundo
gira ao
meu redor”... A venenosa doutrina dos “direitos iguais para todos” foi
propagada como um
princípio
cristão: a partir dos recônditos mais secretos dos maus instintos o
cristianismo travou uma
guerra
de morte contra todos os sentimentos de reverência e distância entre os homens,
ou seja, contra o
primeiro
pré-requisito de toda evolução, de todo desenvolvimento da civilização – do
ressentimento das
massas
forjou sua principal arma contra nós, contra tudo que é nobre, alegre,
magnânimo sobre a terra,
contra
nossa felicidade na Terra... Conceder a “imortalidade” a qualquer Pedro e Paulo
foi a maior e mais
viciosa
afronta à humanidade nobre já perpetrada. – E não subestimemos a funesta
influência que o
cristianismo
exerceu mesmo na política! Atualmente ninguém mais possui coragem para os
privilégios,
para o
direito de dominar, para os sentimentos de veneração por si e seus iguais –
para o pathos da
distância...
Nossa política está debilitada por essa falta de coragem! – Os sentimentos
aristocráticos foram
subterraneamente
carcomidos pela mentira da igualdade das almas; e se a crença nos “privilégios
da
maioria”
faz e continuará a fazer revoluções – é o cristianismo, não duvidemos disso,
são as valorações
cristãs
que convertem toda revolução em um carnaval de sangue e crime! O cristianismo é
uma revolta de
todas as
criaturas rastejantes contra tudo que é elevado: o Evangelho dos “baixos”
rebaixa...
XLIV
– Os
Evangelhos são inestimáveis como evidência da corrupção já arraigada dentro da
comunidade
cristã primitiva. O que Paulo, com a cínica lógica de um rabino, posteriormente
levou a cabo
era no
fundo apenas um processo de degradação que se iniciou com a morte do Salvador.
– Nenhum
esmero é
demais na leitura dos Evangelhos; dificuldades se ocultam por detrás de cada
palavra. Eu
confesso
– espero que ninguém me leve a mal – que precisamente por essa razão oferecem
um deleite de
primeira
ordem a um psicólogo – como o oposto de toda corrupção ingênua, como um
refinamento par
excellence,
como uma arte da corrupção psicológica. Os Evangelhos, de fato, estão à parte.
A Bíblia em
geral
não deve ser comparada a eles. Estamos entre judeus: essa é a primeira coisa
que devemos ter em
mente se
não quisermos perder o fio do assunto. A genialidade empregada para criar a
ilusão de
“santidade”
pessoal permanece sem paralelos, tanto nos livros quanto nos homens; essa
elevação da
falsidade
na palavra e nos gestos ao nível de arte – isso tudo não se deve ao acaso de um
talento
individual,
de alguma natureza excepcional. O necessário aqui é a raça. Todo o judaísmo
manifesta-se no
cristianismo
como a arte de forjar mentiras sagradas, como a técnica judaica que após muitos
séculos de
aprendizado
e treinamento sério chegou à sua mais alta maestria. O cristão, essa ultima
ratio(1) da
mentira,
é o judeu mais uma vez – é triplicemente judeu... A vontade subjacente de
utilizar somente
conceitos,
símbolos e atitudes que convém à práxis sacerdotal, o repúdio instintivo a
qualquer outra
perspectiva
e a qualquer outro método para estimar valor e utilidade – isso não é somente
uma tradição,
é uma
herança: apenas como uma herança é capaz de operar com força natural. Toda a
humanidade,
mesmo as
maiores mentes das maiores épocas (com uma exceção que, talvez, mal fosse
humana –),
deixou-se
enganar. O Evangelho foi lido como um livro da inocência... certamente nenhuma
modesta
indicação
do alto grau de perícia com que o truque foi feito. – É claro, se pudéssemos de
fato ver esses
carolas
e santos falsos, mesmo que apenas por um instante, a farsa seria posta a fim –
e precisamente
porque
não consigo ler suas palavras sem também ver seus gestos que acabei com eles...
Simplesmente
não
consigo suportar a maneira com que levantam os olhos. – Para a maioria,
felizmente, livros não
passam
de literatura. – Que não nos deixemos induzir em erro: eles dizem “não julgueis”,
mas condenam
ao
inferno tudo que fica em seu caminho. Ao deixarem Deus julgar, são eles
próprios que julgam; ao
glorificarem
Deus, glorificam a si mesmos; ao exigirem que todos manifestem as virtudes para
as quais
são
aptos – mais ainda, das quais precisam para permanecer no topo –, assumem o
aspecto de homens
em uma
luta pela virtude, de homens engajados numa guerra para que a virtude
prevaleça. “Nós
vivemos,
morremos, sacrificamo-nos pelo bem” (– “a verdade”, “a luz”, “o reino de
Deus”): na realidade,
simplesmente
fazem o que não podem deixar de fazer. Forçados, como hipócritas, a serem
furtivos, se
esconderem
nos cantos, se esquivarem pelas sombras, convertem sua necessidade em dever: é
como um
dever
que surge sua vida humilde, e tal humildade converte-se em mais uma prova de
devoção... Ah,
essa
humilde, casta e misericordiosa fraude! “A própria virtude deve testemunhar em
nosso favor”...
Leiam-se
os Evangelhos como livros de sedução moral: essa gentinha insignificante se
atrela à moral –
conhecem
perfeitamente suas utilidades! A moral é o melhor meio para conduzir a
humanidade pelo nariz!
– A
verdade é que a mais consciente presunção dos eleitos disfarça-se de modéstia:
desse modo
colocaram
a si próprios, a “comunidade”, os “bons e justos”, de uma vez por todas, de um
lado, do lado
da
“verdade” – e o resto da humanidade, “o mundo”, do outro... Nisto observamos a
espécie mais fatal de
megalomania
que a Terra já testemunhou: pequenos abortos de beatos e mentirosos começam a
reivindicar
direitos exclusivos sobre os conceitos de “Deus”, “verdade”, “luz”, “espírito”,
“amor”,
“sabedoria”,
“vida”, como se fossem sinônimos deles próprios, e através disso buscaram
estabelecer o
limite
entre si e o “mundo”; pequenos superjudeus, maduros para todo tipo de
manicômio, viraram os
valores
de cabeça para baixo para satisfazerem suas noções, como se somente o cristão
fosse o
significado,
o sal, a medida e também o juízo final de todo o resto... Todo esse desastre só
foi possível
porque
no mundo já existia uma megalomania similar, de mesma raça, a saber, a judaica:
uma vez que
se abriu
o abismo entre judeus e judeus-cristãos, a estes já não havia escolha senão
empregar os
mesmos
procedimentos de autoconservação que o instinto judaico lhes aconselhava, mesmo
contra os
próprios
judeus, ainda que judeus somente os tivessem empregado contra não-judeus. O
cristão é
simplesmente
um judeu de confissão “reformada”. –
1 –
Última razão. Argumento decisivo.
XLV
–
Ofereço alguns exemplos do tipo de coisa que essa gente insignificante tinha
dentro de suas
cabeças
– do que colocaram na boca do Mestre: a cândida crença de “belas almas”. –
E tantos
quantos vos não receberem, nem vos ouvirem, saindo dali, sacudi o pó que
estiver
debaixo
dos vossos pés, em testemunho contra eles. Em verdade vos digo que haverá mais
tolerância no
dia do
juízo para Sodoma e Gomorra, do que para os daquela cidade” (Marcos, 6:11). –
Quão evangélico!
“E
qualquer que escandalizar um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe
fora que lhe
pusessem
ao pescoço uma mó de atafona, e que fosse lançado no mar” (Marcos, 9:42). –
Quão
evangélico!
“E, se o
teu olho te escandalizar, lança-o fora; melhor é para ti entrares no reino de
Deus com um
só olho
do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do inferno, onde o seu bicho
não morre, e o fogo
nunca se
apaga” (Marcos, 9:47-48). – Não é exatamente do olho que se trata...
“Dizia-lhes
também: Em verdade vos digo que, dos que aqui estão, alguns há que não provarão
a
morte
sem que vejam chegado o reino de Deus com poder” (Marcos 9:1). – Bem mentido,
leão!...(1)
“Se
alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me.
Porque...”
(Nota de
um psicólogo: a moral cristã é refutada pelos seus porquês: suas razões a
contrariam – isso a
faz
cristã) (Marcos, 8:34). –
“Não
julgueis, para que não sejais julgados ...com a medida com que tiverdes medido
vos hão de
medir a
vós” (Mateus 7:1-2). – Que noção de justiça, que juiz “justo”!...
“Pois,
se amardes os que vos amam, que galardão tereis? Não fazem os publicanos também
o
mesmo?
E, se saudardes unicamente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os
publicanos
também
assim?” (Mateus 5:46-47). – Princípio do “amor cristão”: no fim das contas quer
ser bem pago...
“Se,
porém, não perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai vos não
perdoará as
vossas
ofensas” (Mateus 6:15). – Muito comprometedor para o assim chamado “pai”.
“Mas,
buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas vos
serão
acrescentadas”
(Mateus 6:33). – Todas estas coisas: isto é, alimento, vestuário, todas
necessidades da
vida. Um
erro, para ser eufêmico... Um pouco antes esse Deus apareceu como um alfaiate,
pelo menos
em
certos casos.
“Folgai
nesse dia, exultai; porque eis que é grande o vosso galardão no céu, pois assim
faziam os
seus
pais aos profetas” (Lucas 6:23). – Canalha indecente! Já se compara aos
profetas...
“Não
sabeis vós que sois o templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se
alguém
violar o
templo de Deus, Deus o destruirá; porque o templo de Deus, que sois vós, é
santo” (I Paulo aos
coríntios,
3:16-17). – Para coisas assim não há desprezo suficiente...
“Não
sabeis vós que os santos hão de julgar o mundo? Ora, se o mundo deve ser
julgado por vós,
sois
porventura indignos de julgar as coisas mínimas?” (I Paulo aos coríntios, 6:2).
– Infelizmente, não é
apenas o
discurso de um lunático... Esse espantoso impostor assim prossegue: “Não sabeis
vós que
havemos
de julgar os anjos? Quanto mais as coisas pertencentes a esta vida?”...
“Porventura
não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo? Visto como na sabedoria de Deus
o
mundo
não conheceu a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela
loucura da
pregação...
Não são muitos os sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos, nem muitos
os nobres
que são
chamados. Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as
sábias; e Deus
escolheu
as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes; e Deus escolheu as
coisas vis deste
mundo, e
as desprezíveis, e as que nada são, para aniquilar as que são; para que nenhuma
carne se
glorie
perante ele” (I Paulo aos coríntios, 1:20 e adiante(2)). – Para compreender
esta passagem, um
exemplo
de primeira linha da psicologia da moral de chandala, deve-se ler a primeira
parte de minha
“Genealogia
da Moral”: nela, pela primeira vez, foi evidenciado o antagonismo entre a moral
nobre e a
moral de
chandala, nascida do ressentimento e da vingança impotente. Paulo foi o maior
dos apóstolos da
vingança...
1 –
Paráfrase de Demétrio. “Bem rugido, leão!”, ato V, cena I de “Sonho de uma
Noite de Verão”, por William Shakespeare. O
leão,
obviamente, é o símbolo cristão para Marcos. (H. L. Mencken)
2 – 20,
21, 26, 27, 28, 29.
XLVI
– Que se
infere disso? Que convém vestir luvas antes de ler o Novo Testamento. A
presença de
tanta
sujeira faz disso algo muito aconselhável. Tão pouco escolheríamos como
companheiros os
“primeiros
cristãos” quanto os judeus poloneses: não que tenhamos a necessidade de lhes
fazer
objeções...
Ambos cheiram mal. – Em vão procurei no Novo Testamento por um único traço de
simpatia;
nele não
há nada que seja livre, bondoso, sincero ou leal. Nele a humanidade nem mesmo
dá seu
primeiro
passo ascendente – o instinto de limpeza está ausente... Apenas maus instintos
estão presentes,
e tais
instintos nem ao menos são dotados de coragem. Nele tudo é covardia; tudo é um
fechar os olhos,
um
auto-engano. Após ler o Novo Testamento qualquer outro livro parece limpo: por
exemplo,
imediatamente
após Paulo, li com arrebatamento o mais encantador e insolente zombeteiro,
Petrônio, do
qual
poder-se-ia dizer o mesmo que Domenico Boccaccio escreveu sobre César Bórgia ao
Duque de
Parma:
“é tutto festo” – imortalmente saudável, imortalmente alegre e são... Estes
santarrões miseráveis
erram no
essencial. Atacam, mas tudo que atacam torna-se distinto. Quem é atacado por um
“primeiro
cristão”
certamente não é denegrido... Pelo contrário, é uma honra possuir um “primeiro
cristão” como
oponente.
Não se pode ler o Novo Testamento sem adquirir uma predileção por tudo que nele
é
maltatrado
– para não falar da “sabedoria deste mundo”, que um insolente fanfarrão tenta
reduzir a nada
com a
“loucura da pregação”... Mesmo os escribas e fariseus são beneficiados por tal
oposição:
certamente
deviam ter algum valor para merecerem ser odiados de maneira tão indecente.
Hipocrisia –
como se
essa fosse uma acusação que os “primeiros cristãos” ousassem fazer! – Afinal,
eles eram os
privilegiados,
e isso era suficiente: o ódio dos chandala não precisa de qualquer outro
pretexto. O
“primeiro
cristão” – e também, receio, o “último cristão”, que eu talvez viva tempo
suficiente para ver – é
um
rebelde por profundo instinto contra tudo que é privilégio – vive e guerreia
sempre pela “igualdade de
direitos”...
Estritamente falando, ele não tem escolha. Quando alguém pretende representar,
ele próprio,
o
“eleito de Deus” – ou “templo de Deus”, ou “juiz dos anjos” –, então qualquer
outro critério de eleição,
quer
seja baseado na honestidade, no intelecto, na virilidade e no orgulho, ou na
beleza e liberdade de
coração,
torna-se simplesmente “mundano” – o mal em si... Moral: toda palavra
pronunciada por um
“primeiro
cristão” é uma mentira, todos seus atos são instintivamente desonestos – todos
seus valores,
todos
seus fins são nocivos, mas todos que odeia, tudo que odeia, tem valor
verdadeiro... O cristão, e
particularmente
o padre cristão, é um critério de valores.
–
Preciso acrescentar que, em todo o Novo Testamento, não aparece senão uma única
figura
merecedora
de honra: Pilatos, o governador romano. Levar assuntos judaicos a sério – ele
estava muito
acima
disso. Um judeu a mais ou a menos – que isso importa?... A nobre ironia do
romano ante o qual a
palavra
“verdade” foi cinicamente abusada enriqueceu o Novo Testamento com a única
passagem que
tem
qualquer valor – que é sua crítica e sua destruição: “Que é a verdade?”...
XLVII
– O que
nos distingue não é nossa incapacidade de encontrar Deus, nem na história, nem
na
natureza,
nem por detrás da natureza – mas que consideramos tudo que foi honrado como
sendo Deus,
não como
algo “divino”, mas lastimável, absurdo, nocivo; não como um simples erro, mas
como um crime
contra a
vida... Negamos que esse Deus seja Deus... E se alguém nos mostrasse esse Deus
cristão,
ficaríamos
ainda menos inclinamos a crer nele. – Numa fórmula: Deus, qualem Paulus
creavit, Dei
negatio.(1)
– Uma religião como o cristianismo, que não possui um único ponto de contato
com a
realidade,
que se esfacela no momento em que a realidade impõe seus direitos,
inevitavelmente será a
inimiga
mortal da “sabedoria deste mundo”, ou seja, da ciência – nomeará bom tudo que
serve para
envenenar,
caluniar e depreciar toda disciplina intelectual, toda lucidez e retidão em
matéria de
consciência
intelectual, toda frieza nobre e liberdade de espírito. A “fé”, como um
imperativo, veta a
ciência
– in praxi(2), mentir a todo custo... Paulo compreendeu muito bem que a mentira
– que a “fé” –
era
necessária; e posteriormente a Igreja compreendeu Paulo. – O Deus que Paulo
inventou, um Deus
que
“reduz ao absurdo” a “sabedoria deste mundo” (especialmente as duas grandes
inimigas da
superstição,
a filologia e a medicina), é em verdade uma indicação da firme determinação de
Paulo para
realizar
isto: dar o nome de Deus à sua própria vontade, thora(3) – isso é
essencialmente judaico. Paulo
quer
desvalorizar a “sabedoria deste mundo”: seus inimigos são os bons filólogos e
médicos da escola
alexandrina
– a guerra é feita contra eles. De fato, nenhum homem pode ser filólogo e
médico sem ao
mesmo
tempo ser anticristo. O filólogo vê por detrás dos “livros sagrados”, o médico
vê por detrás da
degeneração
fisiológica do cristão típico. O médico diz “incurável”; o filólogo diz
“fraude”...
1 –
Deus, tal como Paulo o criou, é a negação de Deus.
2 – Na
prática.
3 – Lei.
XLVIII
– Será
que alguém já compreendeu claramente a célebre história que se encontra no
início da
Bíblia –
a do pavor mortal de Deus ante a ciência? Ninguém, de fato, a compreendeu. Este
livro de padres
par
excellence começa, como convém, com a grande dificuldade interior do padre: ele
enfrenta um único
grande
perigo, ergo, “Deus” enfrenta um único grande perigo. –
O velho
Deus, todo “espírito”, todo grão-padre, todo perfeição, passeia pelo seu
jardim: está
entediado
e tentando matar tempo. Contra o enfado até os Deuses lutam em vão(1). O que
ele faz? Cria
o homem
– o homem é divertido... Mas então percebe que o homem também está entediado. A
piedade
de Deus
para a única forma da aflição presente em todos os paraísos desconhece limites:
então em
seguida
criou outros animais. Primeiro erro de Deus: para o homem esses animais não
representavam
diversão
– ele buscava dominá-los; não queria ser um “animal”. – Então Deus criou a
mulher. Com isso
erradicou
enfado – e muitas outras coisas também! A mulher foi o segundo erro de Deus. –
“A mulher,
por
natureza, é uma serpente: Eva” – todo padre sabe disso; “da mulher vem todo o
mal do mundo” –
todo
padre sabe disso também. Logo, igualmente cabe a ela a culpa pela ciência...
Foi devido à mulher
que o
homem provou da árvore do conhecimento. – Que sucedeu? O velho Deus foi
acometido por um
pavor
mortal. O próprio homem havia sido seu maior erro; criou para si um rival; a
ciência torna os
homens
divinos – tudo se arruína para padres e deuses quando o homem torna-se
científico! – Moral: a
ciência
é proibida per se; somente ela é proibida. A ciência é o primeiro dos pecados,
o germe de todos os
pecados,
o pecado original. Toda a moral é apenas isto: “Tu não conhecerás” – o resto
deduz-se disso. –
O pavor
de Deus, entretanto, não o impediu de ser astuto. Como se proteger contra a
ciência? Por longo
tempo
esse foi o problema capital. Resposta: expulsando o homem do paraíso! A
felicidade e a ociosidade
evocam o
pensar – e todos pensamentos são maus pensamentos! – O homem não deve pensar. –
Então o
“padre”
inventa a angústia, a morte, os perigos mortais do parto, toda a espécie de
misérias, a
decrepitude
e, acima de tudo, a enfermidade – nada senão armas para alimentar a guerra
contra a
ciência!
Os problemas não permitem que o homem pense... Apesar disso – que terrível! – o
edifício do
conhecimento
começa a elevar-se, invadindo os céus, obscurecendo os Deuses – que fazer? – O
velho
Deus
inventa a guerra; separa os povos; faz com que se destruam uns aos outros (– os
padres sempre
necessitaram
de guerras...). Guerra – entre outras coisas, um grande estorvo à ciência! –
Inacreditável! O
conhecimento,
a emancipação do domínio sacerdotal prosperam apesar da guerra! – Então o velho
Deus
chega à
sua resolução final: “O homem tornou-se científico – não existe outra solução:
ele precisa ser
afogado”...
1 –
Paráfrase de Schiller, “Contra a estupidez até os Deuses lutam em vão”. (H. L.
Mencken)
XLIX
– Fui
compreendido. No início da Bíblia está toda a psicologia do padre. – O padre
conhece apenas
um
grande perigo: a ciência – o conceito sadio de causa e efeito. Mas a ciência
apenas floresce
totalmente
sob condições favoráveis – um homem precisa de tempo, precisa possuir um
intelecto
transbordante
para poder “conhecer”... “Logo, é preciso tornar o homem infeliz” – essa foi,
em todas as
épocas,
a lógica do padre. – É fácil ver o que, a partir dessa lógica, surgiu no mundo:
– o “pecado”... O
conceito
de culpa e punição, toda a “ordem moral do mundo” foram direcionados contra a
ciência – contra
a emancipação
do homem do jugo sacerdotal... O homem não deve olhar para seu exterior; deve
olhar
apenas
para o interior. Não deve olhar as coisas com acuidade e prudência, não deve
aprender sobre
elas;
não deve olhar para nada; deve apenas sofrer... E sofrer tanto que sempre
esteja precisando de um
padre. –
Fora os médicos! O necessário é um Salvador. – O conceito de culpa e punição,
incluindo as
doutrinas
da “graça”, da “salvação”, do “perdão” – mentiras sem qualquer realidade
psicológica – foram
inventadas
para destruir o senso de causalidade do homem: são um ataque contra o conceito
de causa e
efeito!
– E não um ataque com punho, com faca, com honestidade no amor e no ódio! Longe
disso, foi
inspirado
pelo mais covarde, mais velhaco, mais ignóbil dos instintos! Um ataque de
padres! Um ataque
de
parasitas! O vampirismo de sanguessugas pálidas e subterrâneas!... Quando as
conseqüências naturais
de um
ato já não são mais “naturais”, mas vistas como obras de fantasmas da
superstição – “Deus”,
“espíritos”,
“almas” –, como conseqüências “morais”, recompensas, punições, sinais, lições,
então tornase
estéril
todo o solo para o conhecimento – e com isso perpetrou-se o maior dos crimes
contra a
humanidade.
– Repito que o pecado, essa autoprofanação par excellence, foi inventado para
tornar
impossível
ao homem a ciência, a cultura, toda a elevação e todo o enobrecimento; o padre
reina graças
à
invenção do pecado. –
L
– Não
posso, aqui, prescindir de uma psicologia da “fé”, do “crente”, em proveito,
como é justo,
dos
próprios “crentes”. Se hoje há alguns que ainda não sabem quão indecente é ser
“crente” – ou quanto
isso
indica decadência, falta de vontade de viver –, amanhã eles o saberão. Minha
voz alcança até os
surdos.
– Parece-me que entre cristãos, se não compreendi mal, prevalece uma espécie de
critério da
verdade
chamado “prova de força”. A fé beatifica: logo, é verdadeira”. – Poderia-se
objetar que a
beatitude
não é demonstrada, mas apenas prometida: sustenta-se na “fé” enquanto condição
– será
beatificado
porque crê... Mas e aquilo que o padre promete ao crente, aquele “além”
transcendental –
como
isso pode ser demonstrado? – A “prova de força”, no fundo, não passa da crença
de que os efeitos
prometidos
pela fé se realizarão. – Numa fórmula: “Creio que a fé beatifica – logo, ela é
verdadeira”...
Mas não
podemos ir além disso. Esse “logo” já é o próprio absurdum transformado em
critério da
verdade.
– Contudo, por cortesia, admitamos que a beatificação através da fé tenha sido
demonstrada (–
não
meramente desejada, não meramente prometida pela suspeita boca de um padre):
mesmo assim,
poderia
a beatitude – dito em forma técnica, o prazer – ser uma prova da verdade? Dista
tanto de sê-lo
que a
influência das sensações de prazer sobre a resposta à questão “Que é a verdade?”
praticamente
constitui
uma objeção à verdade, ou, em todo caso, é suficiente para torná-la altamente
suspeita. A prova
do
“prazer” prova o “prazer” – nada mais; por que se deveria admitir que juízos
verdadeiros geram mais
prazer
que os falsos e que, em conformidade a alguma harmonia preestabelecida,
necessariamente
trariam
consigo sensações de prazer? – A experiência de todas as mentes profundas e
disciplinadas
ensina o
contrário. O homem teve de lutar bravamente por cada migalha da verdade; teve de
sacrificar
quase
tudo aquilo em que se agarra o coração humano, o amor humano, a confiança
humana na vida.
Para
isso é necessário possuir grandeza de alma: o serviço da verdade é o mais duro
dos serviços. – O
que
significa, então, a integridade intelectual? Significa ser severo com seu
próprio coração, desprezar os
“belos
sentimentos” e fazer de cada Sim e de cada Não uma questão de consciência! – A
fé beatifica:
logo,
ela mente...
LI
Que em
certas circunstâncias a fé promove a bem-aventurança, que a bem-aventurança não
faz
de uma
idee fixe(1) uma idéia verdadeira, que a fé na realidade não move montanhas,
mas as constrói
onde
antes não existiam: tudo isso fica bastante evidente após uma breve visita a um
hospício. Mas não,
é claro,
para um padre: pois seus instintos o induzem a dizer que a doença não é doença
e que hospícios
não são
hospícios. O cristianismo necessita da doença, assim como o espírito grego
necessitava de uma
saúde
superabundante – o verdadeiro objetivo de todo o sistema de salvação da Igreja
é tornar as
pessoas
enfermas. E a própria Igreja – não considera ela um manicômio católico como o
ideal último? –
Toda a
Terra, um manicômio? – O tipo de homem religioso que a Igreja deseja é o típico
decadente; a
época em
que uma crise religiosa se apodera de um povo é sempre marcada por epidemias de
desordem
nervosa;
o “mundo interior” de um homem religioso assemelha-se tanto ao “mundo interior”
de um
homem
sobreexcitado e exausto que é difícil distinguir entre os dois; os estados mais
“elevados”, que o
cristianismo
colocou sobre a humanidade como valores supremos, são formas epileptóides – a
Igreja
concedeu
nomes sagrados apenas para lunáticos ou grandes impostores in majorem Dei
honorem(2)...
Uma vez
me aventurei a considerar todo o sistema cristão de training em penitência e
salvação
(atualmente
melhor estudado na Inglaterra) como um método para produzir uma folie
circulaire(3) sobre
um solo
já preparado, ou seja, um solo absolutamente insalubre. Nem todos podem ser
cristãos: não se é
“convertido”
ao cristianismo – antes é necessário estar suficientemente doente... Nós
outros, nós que
temos
coragem para a saúde e para o desprezo – temos o direito de desprezar uma
religião que prega a
incompreensão
do corpo! Que se recusa a dispensar a superstição da alma! Que da insuficiência
alimentar
faz
“virtude”! Que combate a saúde como alguma espécie de inimigo, de demônio, de
tentação! Que se
convenceu
de que é possível trazer uma “alma perfeita” em um corpo cadavérico, e que,
para isso,
inventou
um novo conceito de “perfeição”, um estado existencial pálido, doentio,
fanático até a estupidez,
a
chamada “santidade” – uma santidade que não passa de uma série de sintomas de
um corpo
empobrecido,
enervado e incuravelmente corrompido!... O movimento cristão, enquanto
movimento
Europeu,
desde o começo não foi mais que uma sublevação de toda espécie de elementos
desterrados e
refugados
(– que agora, sob a máscara do cristianismo, aspiram ao poder). – Não
representa a
degeneração
de uma raça; representa, pelo contrário, uma conglomeração de produtos da
decadência
vindos
de todas as direções, amontoando-se e buscando-se reciprocamente. Não foi, como
se pensa, a
corrupção
da Antigüidade, da Antigüidade nobre, que tornou o cristianismo possível; nunca
será possível
combater
com violência suficiente a imbecilidade erudita que atualmente sustém tal
teoria. Quando as
enfermas
e podres classes chandala de todo o imperium foram cristianizadas, o tipo oposto,
a nobreza,
alcançou
seu estágio de desenvolvimento mais belo e amadurecido. A maioria subiu ao
poder; a
democracia,
com seus instintos cristãos, triunfou... O cristianismo não era “nacional”, não
estava baseado
em raça
– apelou a todas as variedades de homens deserdados pela vida, tinha aliados em
toda parte. O
cristianismo
possui em seu âmago o rancor dos doentes – o instinto contra os sãos, contra a
saúde. Tudo
que é
bem-constituído, orgulhoso, galante e, acima de tudo, belo é uma ofensa aos
seus olhos e ouvidos.
Novamente
recordo as inestimáveis palavras de Paulo: “Deus escolheu as coisas fracas
deste mundo, as
coisas
loucas deste mundo, as coisas ignóbeis e as desprezadas”(4): essa era a
fórmula; in hoc signo(5) a
décadence
triunfou. – Deus na cruz – o homem nunca compreenderá o assustador significado
que esse
símbolo
encerra? – Tudo que sofre, tudo que está crucificado é divino... Nós todos
estamos suspensos na
cruz,
conseqüentemente somos divinos... Apenas nós somos divinos!... Neste sentido o
cristianismo foi
uma
vitória: uma mentalidade mais nobre pereceu por ele – o cristianismo continua
sendo a maior
desgraça
da humanidade. –
1 –
Idéia fixa.
2 – Para
maior honra de Deus.
3 –
Loucura circular.
4 – I
Coríntios 1:27-28.
5 – Com
este sinal.
LII
O
cristianismo também se encontra em oposição a toda boa constituição intelectual
– somente a
razão
enferma pode ser usada como razão cristã; toma o partido de tudo que é idiota;
lança sua maldição
contra o
“intelecto”, contra a soberba do intelecto são. Visto que a doença é inerente
ao cristianismo,
segue-se
disso que o estado típico do cristão, “a fé”, também é necessariamente uma
forma de doença;
todos os
caminhos retos, legítimos e científicos devem ser banidos pela Igreja como
sendo caminhos
proibidos.
A própria dúvida é um pecado... A completa ausência de limpeza psicológica no
padre –
identificada
por um simples olhar – é um fenômeno resultante da decadência – observando-se
mulheres
histéricas
e crianças raquíticas notar-se-á regularmente que a falsificação dos instintos,
o prazer de
mentir
por mentir e a incapacidade de olhar e caminhar direito são sintomas da
decadência. “Fé” significa
não
querer saber o que é a verdade. O padre, o devoto de ambos os sexos, é uma fraude
porque é
doente:
seus instintos exigem que a verdade jamais tenha direito em qualquer ponto.
“Tudo que torna
doente é
bom; tudo que surge da plenitude, da superabundância, do poder, é mau”: assim
pensa o
crente.
Uma compulsão para mentir – é através disso que reconheço todo teólogo
predestinado. – Outra
característica
do teólogo é sua incapacidade filológica. O que quero dizer com filologia é, de
modo geral, a
arte de
ler bem – a capacidade de absorver fatos sem interpretá-los falsamente, sem
perder, na ânsia de
compreendê-los,
a cautela, a paciência e a sutileza. Filologia como ephexis(1) na
interpretação: trate-se
de
livros, de notícias de jornal, dos mais funestos eventos ou de estatísticas
meteorológicas – para não
mencionar
a “salvação da alma”... A maneira como um teólogo, seja de Berlim ou Roma,
explica,
digamos,
uma “passagem bíblica”, ou um acontecimento, por exemplo, a vitória do exército
nacional, sob
a
sublime luz dos Salmos de Davi, é sempre tão ousada que faz um filólogo subir
pelas paredes. E o que
dizer
quando devotos e outras vacas da Suábia(2) usam o “dedo de Deus” para converter
sua miserável
existência
cotidiana e sedentária em um milagre da “graça”, da “providência”, em uma
“experiência
divina”?
O mais modesto exercício de intelecto, para não dizer de decência, deveria de
certo ser suficiente
para
convencer esses intérpretes da perfeita infantilidade e indignidade de tal
abuso da destreza digital de
Deus.
Apesar de sermos poucos compassivos, caso encontrássemos um Deus que curasse
oportunamente
um
constipado, ou que nos colocasse em uma carruagem no instante em que começasse
a chover, ele
nos
pareceria um Deus tão absurdo que, mesmo existindo, teríamos de aboli-lo. Deus
como empregado
doméstico,
como carteiro, como mensageiro – no fundo, Deus é simplesmente um nome dado
para a mais
imbecil
espécie de acaso... A “Divina Providência”, na qual terça parte da “Alemanha
culta” ainda acredita,
é um argumento
tão forte contra Deus que em vão se procuraria por um melhor. E em todo caso é
um
argumento
contra os alemães!...
1 –
Ceticismo.
2 – Uma
referência à Universidade de Tübingen e sua famosa escola de crítica Bíblica. O
líder da escola era F. C. Baur, e um
dos
homens que ele mais fortemente influenciou era uma abominação de Nietzsche,
David F. Strauss, ele próprio, um suábio.
(H. L.
Mencken)
LIII
– É tão
pouco verdadeiro que mártires oferecem qualquer verossimilhança a uma causa que
me
sinto
inclinado a negar que qualquer mártir já teve alguma coisa a ver com a verdade.
No tom com que
um
mártir lança sua convicção à cara do mundo revela-se um grau tão baixo de
probidade intelectual,
tamanha
insensibilidade ao problema da “verdade”, que nunca chega a ser necessário
refutá-lo. A
verdade
não é algo que alguns homens têm e outros não: na melhor das hipóteses, só há
camponeses e
apóstolos
de camponeses, da classe de Lutero, que possam pensar assim da verdade. Pode-se
ter certeza
de que,
quanto maior for o grau de consciência intelectual de um homem, maior será sua
modéstia, sua
discrição
neste ponto. Ser competente em cinco ou seis coisas e se recusar, com
delicadeza, a saber algo
mais...
O entendimento que todos profetas, sectários, livres-pensadores, socialistas e
homens de igreja
têm da
palavra “verdade” é simplesmente uma prova cabal de que nem sequer foi dado o
primeiro passo
em
direção à disciplina intelectual e ao autocontrole necessários à descoberta da
menor das verdades. –
Os
mártires, diga-se de passagem, foram uma grande desgraça na história:
seduziram... A conclusão a
que
todos idiotas, mulheres e plebeus chegam é que deve haver algum valor em uma
causa pela qual
alguém
afronta a morte (ou que, como o cristianismo primitivo, engendra uma epidemia
de gente à
procura
da morte) – essa conclusão impede o exame os fatos, tolhe por inteiro o
espírito investigativo e
circunspeto.
Os mártires danificaram a verdade... Mesmo hoje, basta uma certa dose de
crueldade na
perseguição
para proporcionar uma honrável reputação ao mais vazio tipo de sectarismo. –
Como? O
valor de
uma causa é alterado pelo fato alguém ter se sacrificado por ela? – Um erro que
se torna
honroso
é simplesmente um erro que possui um encanto sedutor: julgais, senhores
teólogos, que vos
daremos
a chance de serdes martirizados por vossas mentiras? – Melhor se refuta uma
causa colocandoa,
respeitosamente,
no gelo – esse também é o melhor meio para refutar os teólogos... Foi
precisamente
esta a
estupidez histórico-mundial de todos os perseguidores: deram uma aparência
honrosa à causa a
que se
opuseram – deram-lhe de presente a fascinação do martírio... Mulheres ainda se
ajoelham ante
um erro
porque lhes disseram que um indivíduo morreu na cruz por ele. A cruz, então, é
um argumento?
– Mas
sobre todas essas coisas um, e somente um, disse aquilo de que há milhares de
anos se tinha
necessidade
– Zaratustra:
Traçaram
sinais de sangue pelo caminho que percorreram, e sua loucura ensinava que a
verdade
se prova
através do sangue.
Mas o
sangue é, de todas, a pior testemunha da verdade; sangue envenena até a
doutrina mais
pura e a
converte em insânia e ódio do coração.
E quando
alguém atravessa o fogo por sua doutrina – que isso prova? Mais vale, em
verdade, que
do nosso
próprio incêndio venha a nossa doutrina!(1)
1 –
“Assim falou Zaratustra”, parte II, “Dos Sacerdotes”.
LIV
Não nos
enganemos: grandes intelectos são céticos. Zaratustra é um cético. A força e a
liberdade
que
surgem do vigor e da plenitude intelectual se manifestam através do ceticismo.
Homens de convicção
estática
não são levados em consideração quando se pretende determinar o que é
fundamental em
matéria
de valor e desvalor. Homens de convicção são prisioneiros. Não vêem longe o
bastante, não vêem
abaixo
de si: para um homem poder falar de valor e desvalor é necessário que veja
quinhentas
convicções
abaixo de si – atrás de si... Uma mente que aspira a algo grande, e que também
deseja os
meios
para isso, é necessariamente cética. A liberdade de qualquer tipo de convicção
constitui parte da
força,
da capacidade de possuir um ponto de vista independente... A grande paixão do
cético, o
fundamento
e a potência do seu ser, é mais esclarecida e mais despótica que ele próprio,
coloca toda sua
inteligência
a seu serviço; lhe torna inescrupuloso; lhe concede a coragem para empregar até
meios
ímpios;
sob certas circunstâncias, lhe permite convicções. A convicção enquanto um
meio: muito só pode
ser
alcançado por meio de uma convicção. A grande paixão usa, consome convicções,
mas não se
submete
a elas – sabe-se a soberana. – Pelo contrário, a necessidade de fé, de uma
coisa não
subordinada
ao sim e não, de carlylismo, se me permitem a expressão, é a necessidade da
fraqueza. O
homem de
fé, o “crente” de toda espécie, é necessariamente dependente – tal homem é
incapaz de
colocar-se
a si mesmo como objetivo, e tampouco é capaz determinar ele próprio seus
objetivos. O
“crente”
não se pertence; apenas pode ser o meio para um fim; precisa ser consumido;
precisa de alguém
que o
consuma. Seus instintos atribuem suprema honra à moral da despersonalização;
tudo o persuade a
abraçar
essa moral: sua prudência, sua experiência, sua vaidade. Todo tipo de fé é em
si mesma a
expressão
de uma despersonalização, de um alheamento de si... Após se ponderar sobre quão
necessários
à maioria são os regulamentos restringentes; sobre quão necessária é a
opressão, ou, em um
sentido
mais elevado, a escravidão, para possibilitar o bem-estar ao homem de vontade
fraca, e
especialmente
à mulher, então finalmente se compreende o significado da convicção e da “fé”.
Para o
homem de
convicção a fé representa sua espinha dorsal. Deixar de ver muitas coisas, não
possuir
imparcialidade
alguma, ser sempre de um partido, estimar todos os valores com uma ótica severa
e
infalível
– essas são as condições necessárias à existência desse tipo de homem. Mas isso
faz deles
antagonistas
do homem veraz – da verdade... O crente não é livre pra responder à questão do
“verdadeiro”
e do “falso”; segundo os ditames de sua consciência: a integridade, neste
ponto, seria sua
própria
ruína. A limitação patológica de sua ótica faz do homem convicto um fanático –
Savonarola,
Lutero,
Rousseau, Robespierre, Saint-Simon – o tipo desses encontra-se em oposição ao
espírito forte,
emancipado.
Mas as grandiosas atitudes desses intelectos doentes, desses epiléticos das
idéias, exercem
influência
sobre as grandes massas – os fanáticos são pitorescos, e a humanidade prefere
observar poses
a ouvir
razões...
LV
– Um
passo adiante na psicologia da convicção, da “fé”. Agora já faz bastante tempo
desde que
propus a
questão de talvez as convicções serem inimigas mais perigosas à verdade que as
mentiras
(“Humano,
Demasiado Humano”, Aforismo 483(1)). Desta vez pretendo colocar a questão
definitiva:
existe,
de modo geral, alguma diferença entre uma mentira e uma convicção? – Todo o
mundo acredita
que sim;
mas no que esse mundo não acredita! – Toda convicção tem sua história, suas
formas
primitivas,
seus estágios de tentativa e erro: somente se transforma em convicção após não
ter sido, por
um longo
tempo, uma convicção, e, depois disso, por um tempo ainda mais longo,
sofrivelmente uma
convicção.
Não poderia também haver a falsidade nessas formas embrionárias de convicção? –
Às vezes
apenas é
necessária uma mudança de pessoas: o que era uma mentira para o pai torna-se
uma convicção
para o
filho. – Chamo de mentira o recusar-se a ver uma coisa que se vê, recusar-se a
ver algo como de
fato é:
se a mentira foi proferida perante testemunhas ou não, isso não possui
relevância. A espécie mais
comum de
mentira é aquela com a qual nos enganamos a nós mesmos: mentir aos outros é
algo
relativamente
raro. – Agora, este não querer ver o que se vê, este não querer ver como de
fato é,
praticamente
constitui o primeiro requisito para todos que pertencem a alguma espécie de
partido: o
homem de
partido inevitavelmente torna-se um mentiroso. Por exemplo, os historiadores
alemães estão
convictos
de que Roma era sinônimo de despotismo e que os povos germânicos trouxeram o
espírito da
liberdade
ao mundo: qual a diferença entre essa convicção e uma mentira? Pode alguém
ainda se admirar
de que
todos os partidos, incluindo os historiadores alemães, instintivamente se
sirvam de frases morais –
que a
moral quase deva sua sobrevivência ao fato de toda espécie de homem de partido
necessitar dela a
cada
instante? – “Esta é nossa convicção: proclamamo-la perante todo o mundo;
vivemos e morremos
por ela
– que sejam respeitados todos aqueles que possuem convicções!” – De fato, ouvi
isso da boca dos
anti-semitas.
Pelo contrário, senhores! Mentir por princípio certamente não torna um
anti-semita mais
respeitável...
Os padres, que possuem mais sutileza em tais questões, e que compreendem bem a
objeção
existente contra a idéia de convicção, ou seja, de uma mentira que se
transforma em princípio
porque
serve a um propósito, tomaram emprestado dos judeus o artifício de introduzir
nesses casos os
conceitos
“Deus”, “vontade de Deus” e “revelação Divina”. Kant, com seu imperativo
categórico, também
estava
no mesmo caminho: isso era sua razão prática(2). Há questões relativas à
verdade e à inverdade
que o
homem não pode decidir; todas as questões capitais, todos problemas capitais de
valoração estão
acima da
razão humana... Conhecer os limites da razão – somente isso é filosofia
genuína. Que finalidade
teve a
revelação divina ao homem? Deus faria algo supérfluo? O homem não pode
descobrir por si mesmo
o que é
bom e o é ruim, então Deus lhe ensinou sua vontade... Moral: o padre não mente
– não existe a
questão
da “verdade” ou da “inverdade” entre as coisas de que falam os padres. É
impossível mentir a
respeito
de tais coisas, pois para mentir primeiramente seria necessário saber o que é
verdade. Mas isso
está
além do que o homem pode saber; logo, o padre é simplesmente um porta-voz de
Deus. – Tal
silogismo
de padre não é de modo algum somente judaico e cristão; o direito à mentira e à
astuciosa
evasiva
da “revelação” pertence ao tipo do padre em geral – tanto aos padres da
decadência quanto aos
padres
dos tempos pagãos (– pagãos são todos aqueles que dizem sim à vida, e para os
quais “Deus” é
uma
palavra que significa um sim a todas as coisas). – A “lei”, a “vontade de
Deus”, o “livro sagrado”, a
“inspiração”
– são todas palavras que designam as condições sob as quais o padre adquire e
mantém o
poder –
esses conceitos se encontram no fundo de todas organizações sacerdotais, de
todos governos
eclesiásticos
ou filosófico-eclesiásticos. A “santa mentira” – comum a Confúcio, ao código de
Manu, a
Maomé e
à Igreja cristã – não falta em Platão. “A verdade está aqui”: essas palavras
significam, onde
quer que
sejam pronunciadas, o padre mente...
1 –
“Inimigos da verdade. – Convicções são inimigos da verdade mais perigosos que
as mentiras.”
2 – Uma
referência, é claro, à “Kritik der praktischen Vernunft” de Kant (Crítica da
Razão Prática). (H. L. Mencken)
LVI
– Em
última análise, chega-se a isto: qual a finalidade da mentira? O fato de que,
no cristianismo,
os fins
“sagrados” não são visíveis é minha objeção aos seus meios. Só existem maus
fins: o
envenenamento,
a calúnia, a negação da vida, o desprezo pelo corpo, a degradação e
envilecimento do
homem
através do conceito de pecado – logo, seus meios também são maus. – Tenho o
sentimento
oposto
quando leio o código de Manu, uma obra incomparavelmente mais intelectual e
superior; seria um
pecado
contra a inteligência simplesmente nomeá-lo juntamente com a Bíblia. É fácil ver
o porquê: há
uma
filosofia genuína por detrás dele, nele próprio, e não apenas uma mixórdia
fétida de rabinismo
judaico
e superstição – oferece, mesmo aos psicólogos mais delicados, algo saboroso. E
não nos
esqueçamos
do mais importante, ele difere fundamentalmente de toda espécie de Bíblia:
através dele os
nobres,
os filósofos e guerreiros preservam o domínio sobre a maioria; está cheio de
valores nobres,
denota
um sentimento de perfeição, de aceitação da vida, um ar triunfante em relação a
si e à vida – o
sol
brilha sobre o livro todo. – Todas as coisas sobre as quais o cristianismo
descarrega sua inexaurível
vulgaridade
– por exemplo, a procriação, as mulheres e o casamento – nele são tratadas
seriamente, com
respeito,
amor e confiança. Como alguém pode colocar nas mãos de crianças e mulheres um
livro
contentor
de palavras tão abjetas: “Para evitar a impudicícia, que cada homem tenha sua
própria esposa
e que
cada mulher tenha seu próprio marido; ...pois é melhor casar-se que
queimar-se(1)”? E será
possível
ser um cristão enquanto a origem do homem estiver cristianizada, isto é,
maculada pela doutrina
da
immaculata conceptio?... Não conheço qualquer outro livro em que sejam ditas
tantas coisas boas e
ternas
sobre a mulher quanto no código de Manu; aqueles velhos e santos possuíam um
modo tão amável
de ser
com as mulheres que talvez seja impossível superá-los. “A boca de uma mulher”,
diz um trecho, “o
seio de
uma donzela, a oração de uma criança e a fumaça de um sacrifício são sempre
puros”. Noutro
trecho:
“Não há nada mais puro que a luz do sol, a sombra de uma vaca, o ar, a água, o
fogo e a
respiração
de uma donzela”. Finalmente, esta última passagem – que talvez também seja uma
mentira
sagrada
–: “todos orifícios do corpo acima do umbigo são puros, todos os abaixo são
impuros. Apenas na
donzela
o corpo todo é puro”.
1 – I
Coríntios 7:2 e 7:9.
LVII
Pega-se
a irreligiosidade dos meios cristãos in flagranti simplesmente colocando os
fins
tencionados
pelo cristianismo ao lado dos tencionados pelo código de Manu – pondo essas
duas
finalidades
monstruosamente antitéticas sob uma forte luz. O crítico do cristianismo não
pode evitar a
necessidade
de torná-lo desprezível. – O código de Manu tem a mesma origem que todo bom
livro de leis:
sumariza
a prática, a sagacidade e a experimentação ética de longos séculos; chega às
suas conclusões, e
então
não cria mais nada. O pré-requisito para uma codificação dessa espécie é
reconhecer que os meios
usados
para estabelecer a autoridade de uma verdade adquirida dura e lentamente
diferem
fundamentalmente
dos que seriam utilizados para demonstrá-la. Um livro de leis nunca relata a
utilidade,
as
razões, a casuística de suas leis: com isso perderia o tom imperativo, o “tu
deves”, no qual a
obediência
se fundamenta. O problema encontra-se exatamente aqui. – Em um certo ponto da
evolução
de um
povo, sua classe mais judiciosa, ou seja, com melhor percepção do passado e do
futuro, declara
que as
séries experiências usadas para determinar como todos devem viver – ou podem
viver – chegaram
ao fim.
O objetivo agora é colher os frutos mais ricos possíveis desses dias de
experimentação e
experiências
difíceis. Em conseqüência, o que se deve evitar acima de tudo é o prolongamento
da
experimentação
– a continuação do estado no qual os valores são volúveis, sendo testados,
escolhidos e
criticados
ad infinitum. Contra isso se levantam duas paredes: de um lado, a revelação,
isto é, a assunção
de que as
razões subjacentes às leis não possuem origem humana, que não foram buscadas e
encontradas
por um lento processo e após muitos erros, mas que possuem uma origem divina,
foram
feitas
completas, perfeitas, sem uma história, como um presente, um milagre...; do
outro lado, a
tradição,
isto é, a afirmação de que as leis permaneceram inalteradas desde tempos
imemoriais, e que
seria um
crime contra os antepassados colocá-las em dúvida. A autoridade da lei
assenta-se sobre estas
duas
teses: Deus a deu e os antepassados a viveram. – A razão superior desse
procedimento está na
intenção
de distrair a consciência, passo a passo, de suas preocupações sobre os modos
corretos de viver
(isto é,
aqueles que foram provados por uma vasta e minuciosamente considerada experiência),
para que
o
instinto atinja um automatismo perfeito – um pressuposto essencial a toda
espécie de mestria, toda
perfeição
na arte da vida. Confeccionar um código como o de Manu significa oferecer a um
povo a chance
de ser
mestre, de chegar à perfeição – de aspirar ao mais sublime na arte da vida.
Para tal fim deve-se
torná-lo
inconsciente: esse é o objetivo de toda mentira sagrada. – A ordem das castas,
a lei suma e
dominante,
é meramente uma ratificação de uma ordem natural, de uma lei natural de primeira
ordem,
sobre a
qual nenhum arbítrio, nenhuma “idéia moderna” exerce qualquer influência. Em
toda sociedade
saudável
há três tipos fisiológicos que gravitam à diferenciação, mas que se condicionam
mutuamente;
cada
qual tem sua própria higiene, sua própria esfera de trabalho, seu próprio
sentimento de perfeição e
maestria.
Não é manu, mas a natureza que separa em uma classe aqueles que preponderam
intelectualmente,
em outra aqueles que são notáveis pela força muscular e temperamento, e numa
terceira
aqueles que não se distinguem, que somente demonstram mediocridade – esta
última representa
a grande
maioria, as duas primeiras são a elite. A casta superior – que denomino a dos
pouquíssimos –
tem,
sendo a mais perfeita, privilégios correspondentes: representa a felicidade, a
beleza e tudo de bom
sobre a
Terra. Apenas os homens mais intelectuais têm direito à beleza, ao belo; apenas
entre eles a
bondade
não significa fraqueza. Pulchrum est paucorum hominum(1): ser bom é privilégio.
Nada lhes é
mais
impróprio que a rudeza, o olhar pessimista, os olhos afinados com a fealdade –
ou a indignação por
causa do
aspecto geral das coisas. A indignação é um privilégio dos chandala; assim como
o pessimismo.
“O mundo
é perfeito” – assim fala o instinto dos mais intelectuais, o instinto do homem
que diz sim à
vida. “A
imperfeição, tudo que é inferior a nós, a distância, o pathos da distância, os
próprios chandala,
são
parte dessa perfeição”. Os homens mais inteligentes, sendo os mais fortes,
encontram sua felicidade
onde
outros encontrariam apenas desastre: no labirinto, na dureza para consigo e
para com os outros, no
esforço;
seu prazer está na auto-superação; neles o ascetismo torna-se uma segunda
natureza, uma
necessidade,
um instinto. Consideram tarefas difíceis como um privilégio; para eles é um
entretenimento
lidar
com fardos que esmagariam todos os outros... Conhecimento – uma forma de
ascetismo. –
Representam
o tipo mais honroso de homens: mas isso não impede que também sejam os mais
amáveis
e mais
alegres. Dominam não porque querem, mas porque são; não possuem a liberdade de
ser os
segundos.
– A segunda casta: a esta pertencem os guardiões da lei, os mantenedores da
ordem e da
segurança,
os guerreiros mais nobres e, acima de tudo, o rei, como a mais elevada forma de
guerreiro,
juiz e
defensor da lei. Os segundos constituem o elemento executivo dos intelectuais;
são aqueles que
lhes
estão mais próximos, os aliviando de tudo que há de grosseiro no trabalho de
liderar – são seu
séqüito,
sua mão direita, os seus melhores discípulos. Nisso tudo, repito, nada é
arbitrário, nada é
“artificial”;
apenas o contrário é artificial – ele destrói a natureza... A ordem das castas,
a hierarquia
simplesmente
formula a lei suprema própria vida; a separação dos três tipos é necessária
para conservar
a
sociedade, para possibilitar o surgimento dos tipos mais elevados, mais
sublimes – a desigualdade de
direitos
é condição primordial para a existência de quaisquer direitos. – Um direito é
um privilégio. Cada
qual tem
seus privilégios de acordo com seu modo de ser. Não subestimemos os privilégios
dos
medíocres.
Quanto mais elevada, mais dura torna-se a vida – o frio aumenta, a
responsabilidade
aumenta.
Uma civilização elevada é uma pirâmide: somente subsiste com uma base larga; seu
prérequisito
é uma
mediocridade sã e fortemente consolidada. O ofício, o comércio, a agricultura,
a ciência,
grande
parte da arte, em suma, toda a gama de atividades ocupacionais, são apenas
compatíveis com a
mediocridade
no poder e no querer; tais coisas estariam fora de seu lugar entre homens
excepcionais; o
instinto
necessário encontrar-se-ia em contradição tanto com a aristocracia como com o
anarquismo. O
fato de
o homem ser publicamente útil, uma engrenagem, uma função, é evidência de uma
predisposição
natural;
não é a sociedade, mas o único tipo de felicidade de que são capazes, que faz
deles máquinas
inteligentes.
Para os medíocres a felicidade é a mediocridade; possuem um instinto natural
para dominar
apenas
uma coisa, para a especialização. Seria profundamente indigno da parte de um
intelecto profundo
ver algo
de condenável na mediocridade em si. Ela é, de fato, o primeiro pré-requisito
ao surgimento das
exceções:
é uma condição necessária a toda civilização elevada. Quando o homem
excepcional trata o
homem
medíocre com mais delicadeza que si próprio ou seus iguais, isso não se trata
de uma gentileza –
é
simplesmente seu dever... A quem odeio mais entre a ralé de hoje? A escumalha
socialista, aos
apóstolos
de chandala que minam o instinto do trabalhador, seu prazer, seu sentimento de
contentamento
com uma existência pequena – que o tornam invejoso, que lhe ensinam a
vingança... A
injustiça
nunca está desigualdade de direitos, mas na exigência de direitos “iguais”... O
que é mau? Mas
essa
questão foi respondida: tudo que se origina da fraqueza, da inveja, da
vingança. – O anarquista e o
cristão
têm a mesma origem...
1 – A
beleza é para poucos.
LVIII
Em
verdade, o fim pelo qual se mente faz uma grande diferença: se com isso
preserva ou destrói.
Há uma
perfeita consonância entre o cristão e o anarquista: seus objetivos, seus
instintos, direcionam-se
somente
à destruição. Basta voltarmo-nos à história para encontrar a prova disso: ela
aparece com
precisão
espantosa. Já estudamos um código religioso cujo objetivo era converter as
condições sob as
quais a
vida prospera numa organização social “eterna” – a missão que o cristianismo
encontrou foi
justamente
destruir tal organização, porque com ela a vida prospera. Naquele, os
benefícios que a razão
produziu
durante longos períodos de experimentação e incerteza foram aplicados nos
aspectos mais
remotos,
fazia-se o todo esforço possível para colher os maiores, mais ricos e mais
completos frutos;
aqui,
pelo contrário, os frutos são envenenados durante a noite... Aquilo que se
erigia aere perennius(1),
o
imperium Romanum, a mais magnificente forma de organização sob condições
adversas jamais
alcançada,
em comparação com a qual todo o anterior e o posterior assemelham-se a uma
grosseria, uma
imperfeição,
um diletantismo – esses anarquistas santos fizeram da destruição do “mundo”, ou
seja, do
imperium
Romanum, uma questão de “devoção”, até que não restasse pedra sobre pedra – até
ao ponto
em que
os germanos e outros rústicos foram capazes de dominá-lo... O cristão e o
anarquista: ambos são
decadentes;
ambos são incapazes de qualquer ato que não seja dissolvente, venenoso,
degenerativo,
hematófago;
ambos têm por instinto um ódio mortal contra tudo que esta em pé, tudo que é grande,
tudo
que é
durável, tudo que promete futuro à vida... O cristianismo foi o vampiro do
imperium Romanum –
destruiu
do dia para a noite a vasta obra dos romanos: a conquista do solo para uma
grande cultura que
poderia
aguardar por sua hora. Será possível que isso ainda não foi compreendido? O
imperium Romanum
que
conhecemos, e que a história da província romana nos ensina a conhecer cada vez
melhor – essa
admirável
obra de arte em grande estilo, era apenas um começo, sua construção estava
calculada para
provar
seu valor por milhares de anos. Até hoje nada em escala semelhante sub specie
aeterni(2) foi
construído,
ou sequer sonhado! – Essa organização era forte o suficiente para resistir a
maus
imperadores:
o acaso da personalidade não pode fazer nada em tais coisas – primeiro
princípio de toda
arquitetura
genuinamente grande. Mas não era forte o suficiente para resistir contra a mais
corrupta das
corrupções
– contra cristãos... Esses vermes furtivos que, sob a proteção da noite, da
névoa e da
duplicidade
rastejam sobre todo indivíduo, sugando-lhe todo o interesse sério pelas coisas
reais, todo o
instinto
para a realidade – essa turba covarde, efeminada e melíflua gradualmente
alienou todas as
“almas”
desse edifício colossal – aquelas naturezas preciosas, virilmente nobres, que
haviam encontrado
em Roma
sua própria causa, sua própria seriedade, seu próprio orgulho. A dissimulação
dos hipócritas, o
mistério
dos conventículos, conceitos tão sombrios quanto o inferno, como o sacrifício
do inocente, a unio
mystica(3)
no beber sangue, e acima de tudo o fogo lentamente reavivado da vingança, da
vingança de
chandala
– isso dominou Roma: o mesmo tipo de religião que, numa forma preexistente,
Epicuro
combateu.
Leia-se Lucrécio para entender contra o que Epicuro fez guerra – não contra o
paganismo, mas
contra o
“cristianismo”, isto é, a corrupção das almas através dos conceitos de culpa,
punição e
imortalidade.
– Combateu os cultos subterrâneos, todo o cristianismo latente – naquele tempo
negar a
imortalidade
já era uma verdadeira salvação. – E Epicuro havia triunfado, todo intelecto
respeitável em
Roma era
epicúreo – foi quando Paulo apareceu... Paulo, o ódio de chandala encarnado,
inspirado pelo
gênio,
contra Roma, contra “o mundo” – o judeu, o judeu eterno par excellence... O que
ele percebeu foi
como,
com a ajuda de um pequeno movimento sectário cristão, à parte do judaísmo, uma
“conflagração
mundial”
poderia ser acesa; percebeu como, com o símbolo do “Deus na cruz”, poderia condensar
todas
as
sedições secretas, todos os frutos das intrigas anárquicas, em um imenso poder.
“A salvação vem dos
judeus”
– cristianismo é a fórmula para sobrepor e agregar os cultos subterrâneos de
todas variedades,
por
exemplo, o de Osíris, da Grande Mãe, de Mitra: era nisso que consistia o gênio
de Paulo. Seu instinto
estava
tão seguro disso que, com ousada violência contra a verdade, colocou as idéias
que fascinavam
toda
espécie de chandala na boca de sua invenção, do “salvador”, e não apenas na
boca – fez dele algo
que até
os sacerdotes de Mitra podiam entender... Foi esta sua revelação em Damasco:
compreendeu que
precisava
da crença na imortalidade para despojar o valor do “mundo”, que a idéia de
“inferno” dominaria
Roma –
que a noção de um “além” significa a morte da vida. Niilista e cristão: são
coisas que rimam(4), e
não
somente rimam...
1 – Mais
duradouro que o bronze.
2 – Sob
o aspecto do eterno.
3 –
União sagrada ou mística.
4 –
Rimam em alemão: “Nihilist und Christ”. (N. do T.)
LIX
Todo o
esforço do mundo antigo em vão: não tenho palavras para descrever meu
sentimento ante
tal
monstruosidade. – E, considerando o fato de que esse era um trabalho meramente
preparatório, que
com
granítica autoconsciência lançou os fundamentos para um trabalho de milhares de
anos, todo o
significado
da antiguidade desaparece!... Para que serviram os gregos? Para que serviram os
romanos? –
Todos os
pré-requisitos para uma cultura sábia, todos métodos científicos já existiam; o
homem já havia
aperfeiçoado
a grande e incomparável arte de ler bem – essa é a primeira necessidade para a
tradição da
cultura,
para a unidade das ciências; as ciências naturais, aliadas às matemáticas e à
mecânica,
palmilhavam
o caminho certo – o sentido dos fatos, o último e mais precioso de todos os
sentidos, tinha
suas
escolas, e suas tradições possuíam séculos! Compreende-se isso? Tudo que era
essencial ao começo
do
trabalho estava pronto; – e o mais essencial, nunca será demais repeti-lo, são
os métodos, que
também
são o mais difícil de desenvolver e o que há mais tempo têm contra si os
costumes e a
indolência.
O que hoje reconquistamos com uma inexprimível vitória sobre nós mesmos – pois
certos
maus
instintos, certos instintos cristãos ainda habitam nossos corpos –, ou seja, o
olhar afiado ante a
realidade,
a mão prudente, a paciência e a seriedade nas menores coisas, toda a
integridade no
conhecimento
– tudo isso já existia há mais de dois mil anos! E mais, havia também bom
gosto, um
excelente
e refinado tato! Não como um adestramento de cérebros! Não como a cultura
“alemã”, com
seus
modos grosseiros! Mas como corpo, como gesto, como instinto – em suma, como
realidade... Tudo
em vão!
Do dia para a noite tornou-se memória! – Os gregos! Os romanos! A nobreza do
instinto, o
gosto, a
investigação metódica, o gênio para a organização e administração, a fé e a
vontade para
assegurar
futuro do homem, um grandioso sim a todas as coisas, visível sob a forma de
imperium
romanum
e palpável a todos os sentidos, um grande estilo que não era simplesmente arte,
mas que havia
se
transformado em realidade, verdade, vida... – Tudo destruído de um dia para
outro, e não por uma
convulsão
da natureza! Não pisoteado até a morte por teutônicos e outros búfalos! Mas
vencido por
vampiros
velhacos, furtivos, invisíveis e anêmicos! Não conquistado – apenas
consumido!... A vingança
oculta,
a inveja mesquinha, agora dominam! Tudo que é miserável, intrinsecamente
doente, tomado por
maus
sentimentos, todo o mundo de gueto da alma estava subitamente no topo! –
Leia-se qualquer
agitador
cristão, por exemplo, Santo Agostinho, para entender, para sentir o cheiro
daquela gente imunda
que
subiu ao poder. – Seria um erro, entretanto, presumir que havia falta de
compreensão por parte dos
líderes
do movimento cristão: – ah, eles eram espertos, espertos até à santidade, esses
pais da Igreja! O
que lhes
faltava era algo bastante diferente. A natureza deixou – talvez esqueceu-se –
de dotá-los, ao
menos
modestamente, de instintos respeitáveis, íntegros, limpos... Dito entre nós,
eles não são sequer
homens...
Se o islamismo despreza o cristianismo, tem mil razões para fazê-lo: o
islamismo pressupõe
homens...
LX
O
cristianismo nos fez perder todos os frutos da civilização antiga, e mais tarde
nos fez perder os
frutos
da civilização islâmica. A maravilhosa cultura dos mouros na Espanha, que era
fundamentalmente
mais próxima
aos nossos sentidos e gostos que Roma e Grécia, foi pisoteada (– não digo por
que tipo de
pés –).
Por quê? Porque devia sua origem aos instintos nobres e viris – porque dizia
sim à vida, e a com a
rara e
refinada luxuosidade da vida mourisca!... Mais tarde os cruzados combateram
algo ante o qual
seria
mais apropriado que rastejassem – uma civilização que faria mesmo o nosso
século XIX parecer
muito
pobre e “atrasado”. – O que queriam, obviamente, era saquear: o Oriente era
rico... Coloquemos à
parte os
preconceitos! As cruzadas: pirataria em grande escala, nada mais! A nobreza
alemã, que no
fundo é
uma nobreza de viking, estava em seu elemento com as cruzadas: a Igreja sabia
muito bem
como
ganhar a nobreza alemã.... A nobreza alemã, sempre a “guarda suíça” da Igreja,
estava ao serviço
de todos
maus instintos da Igreja – mas bem paga... Foi precisamente a ajuda das
espadas, do sangue e
do valor
alemães que permitiu à Igreja fazer sua guerra de morte contra tudo que é nobre
sobre a Terra!
Aqui
poderiam ser feitas perguntas bastante dolorosas. A nobreza alemã encontra-se
fora da história das
civilizações
elevadas: a razão é óbvia... Cristianismo, álcool – os dois grandes meios de
corrupção... Em
suma,
não havia mais escolha entre o islamismo e o cristianismo que há entre um árabe
e um judeu. A
decisão
já foi tomada; não há mais liberdade de escolha aqui. Ou bem se é chandala ou
bem se não é...
“Guerra
de morte a Roma! Paz e amizade com o islamismo!”: esse foi o sentimento, essa
foi a ação do
grande
espírito livre, do gênio entre os imperadores alemães, Frederico II. Como? Será
preciso que um
alemão
seja gênio, espírito livre, para possuir sentimentos decentes? Não consigo
imaginar como um
alemão
poderia sentir-se cristão...
LXI
Neste
momento faz-se mister evocar uma memória cem vezes mais dolorosa aos alemães.
Os
alemães
impediram a Europa de colher os últimos grandes frutos de cultura – a
Renascença.
Compreende-se
finalmente, será que por fim compreende-se o que era a Renascença? A
transmutação
dos
valores cristãos – uma tentativa com todos os meios, todos os instintos e todos
os recursos do gênio
para
fazer triunfarem os valores opostos, os valores mais nobres... Até ao presente
essa foi a única
grande
guerra; nunca houve uma questão mais crítica que a da Renascença – que é minha
questão
também
–; nunca houve uma forma de ataque mais fundamental, mais direta, mais
violentamente
desferida
por toda uma frente contra o centro do inimigo! Atacar no lugar decisivo, no
próprio assento do
cristianismo,
e lá entronar os valores nobres – isto é, introduzi-los nos instintos, nas
necessidades e
desejos
mais fundamentais dos que ocupavam o poder... Vejo diante de mim a
possibilidade de um
encantamento
supraterreno: – parece-me que cintila com todas vibrações de uma beleza sutil e
refinada,
dentro
da qual há uma arte tão divina, tão diabolicamente divina, que em vão se
procuraria através dos
milênios
por semelhante possibilidade; vejo um espetáculo tão rico em significância e ao
mesmo tempo
tão
maravilhosamente paradoxal que daria a todas as divindades do Olimpo o ensejo
de irromper numa
imortal
gargalhada – César Bórgia como Papa!... Compreendem-me?... Pois bem, essa teria
o sido a
espécie
de vitória que hoje somente eu desejo –: com ela o cristianismo teria sido
abolido! – Que
sucedeu?
Um monge alemão, Lutero, chegou a Roma. Esse monge, com todos os instintos
vingativos de
um padre
malogrado no corpo, levantou uma rebelião contra a Renascença em Roma... Em vez
de
compreender,
com profundo reconhecimento, o milagre que havia ocorrido: a conquista do
cristianismo
em sua
sede – usou o espetáculo apenas para alimentar seu próprio ódio. O homem
religioso pensa
apenas
em si mesmo. – Lutero viu apenas a corrupção do papado, enquanto exatamente o
oposto estava
tornando-se
visível: a velha corrupção, o peccatum originale, o cristianismo já não ocupava
mais o trono
papal!
Em seu lugar havia vida! Havia o triunfo da vida! Havia um grande sim a tudo
que é grande, belo e
audaz!...
E Lutero restabeleceu a Igreja: a atacou... A Renascença – um evento sem
sentido, uma grande
futilidade!
– Ah, esses alemães, quanto já nos custaram! Tornar todas as coisas vãs –
sempre foi esse o
trabalho
dos alemães. – A Reforma; Leibniz; Kant e a assim chamada filosofia alemã; as
guerras de
“independência”;
o Império – sempre um substituto fútil para algo que existia, para algo
irrecuperável...
Estes
alemães, eu confesso, são meus inimigos: desprezo neles toda a sujidade nos
valores e nos
conceitos,
a covardia perante todo sim e não sinceros. Há quase mil anos embaraçam e
confundem tudo
que seus
dedos tocam; têm sobre suas consciências todas as coisas feitas pela metade,
feitas nas suas
três
oitavas partes, de que a Europa está doente – e também pesa sobre suas
consciências a mais
imunda,
incurável e indestrutível espécie de cristianismo – protestantismo... Se a
humanidade nunca
conseguir
livrar-se do cristianismo, os culpados serão os alemães...
LXII
– Com
isto concluo e pronuncio meu julgamento: eu condeno o cristianismo; lanço
contra a Igreja
cristã a
mais terrível acusação que um acusador já teve em sua boca. Para mim ela é a
maior corrupção
imaginável;
busca perpetrar a última, a pior espécie de corrupção. A Igreja cristã não
deixou nada
intocado
pela sua depravação; transformou todo valor em indignidade, toda verdade em
mentira e toda
integridade
em baixeza de alma. Que se atrevam a me falar sobre seus benefícios
“humanitários”! Suas
necessidades
mais profundas a impedem de suprimir qualquer miséria; ela vive da miséria;
criou a
miséria
para fazer-se imortal... Por exemplo, o verme do pecado: foi a Igreja que
enriqueceu a
humanidade
com esta desgraça! – A “igualdade das almas perante Deus” – essa fraude, esse
pretexto
para o
rancor de todos espíritos baixos – essa idéia explosiva terminou por
converter-se em revolução,
idéia
moderna e princípio de decadência de toda ordem social – isso é dinamite
cristã... Os “humanitários”
benefícios
do cristianismo! Fazer da humanitas(1) uma autocontradição, uma arte da
autopoluição, um
desejo
de mentir a todo custo, uma aversão e desprezo por todos instintos bons e
honestos! Para mim
são
esses os “benefícios” do cristianismo! – O parasitismo como única prática da
Igreja; com seus ideais
“sagrados”
e anêmicos, sugando da vida todo o sangue, todo o amor, toda a esperança; o
além como
vontade
de negação de toda a realidade; a cruz como símbolo representante da
conspiração mais
subterrânea
que jamais existiu – contra a saúde, a beleza, o bem-estar, o intelecto, a bondade
da alma –
contra a
própria vida...
Escreverei
esta acusação eterna contra o cristianismo em todas as paredes, em toda parte
onde
houver
paredes – tenho letras que até os cegos poderão ler... Denomino o cristianismo
a grande
maldição,
a grande corrupção interior, o grande instinto de vingança, para o qual nenhum
meio é
suficientemente
venenoso, secreto, subterrâneo ou baixo – chamo-lhe a imortal vergonha da
humanidade...
E
conta-se o tempo a partir do dies nefastus(2) em que essa fatalidade começou –
o primeiro dia
do
cristianismo! – Por que não contá-lo a partir do seu último dia? – A partir de
hoje? – Transmutação de
todos os
valores!...
1 –
Caráter humano, sentimento humano.
2 – Dia
nefasto.
Lei
contra o cristianismo
Datada do
dia da Salvação: primeiro dia do ano Um (em 30 de Setembro de 1888, pelo falso
calendário).
Guerra
de morte contra o vício: o vício é o cristianismo
Artigo
Primeiro – Qualquer espécie de antinatureza é vício. O tipo de homem mais
vicioso é o
padre:
ele ensina a antinatureza. Contra o padre não há razões: há cadeia.
Artigo
Segundo – Qualquer tipo de colaboração a um ofício divino é um atentado contra
a moral
pública.
Seremos mais ríspidos com protestantes que com católicos, e mais ríspidos com
os protestantes
liberais
que com os ortodoxos. Quanto mais próximo se está da ciência, maior o crime de
ser cristão.
Conseqüentemente,
o maior dos criminosos é filósofo.
Artigo
Terceiro – O local amaldiçoado onde o cristianismo chocou seus ovos de
basilisco deve ser
demolido
e transformado no lugar mais infame da Terra, constituirá motivo de pavor para
a posteridade.
Lá devem
ser criadas cobras venenosas.
Artigo
Quarto – Pregar a castidade é uma incitação pública à antinatureza. Qualquer
desprezo à
vida
sexual, qualquer tentativa de maculá-la através do conceito de “impureza” é o
maior pecado contra o
Espírito
Santo da Vida.
Artigo
Quinto – Comer na mesma mesa que um padre é proibido: quem o fizer será
excomungado
da
sociedade honesta. O padre é o nosso chandala – ele será proscrito, lhe
deixaremos morrer de fome,
jogá-lo-emos
em qualquer espécie de deserto.
Artigo
Sexto – A história “sagrada” será chamada pelo nome que merece: história
maldita; as
palavras
“Deus”, “salvador”, “redentor”, “santo” serão usadas como insultos, como
alcunhas para
criminosos.
Artigo
Sétimo – O resto nasce a partir daqui.
Nietzsche
– O Anticristo
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