quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O anticristo Friedrich Nietzsche

O Anticristo
Ensaio de uma Crítica do Cristianismo
Autor: Friedrich Nietzsche
Tradução: André Díspore Cancian
Fonte: The Anti-Christ
Prefácio
Este livro pertence aos homens mais raros. Talvez nenhum deles sequer esteja vivo. É possível
que se encontrem entre aqueles que compreendem o meu “Zaratustra”: como eu poderia misturar-me
àqueles aos quais se presta ouvidos atualmente? – Somente os dias vindouros me pertencem. Alguns
homens nascem póstumos.
As condições sob as quais sou compreendido, sob as quais sou necessariamente compreendido
– conheço-as muito bem. Para suportar minha seriedade, minha paixão, é necessário possuir uma
integridade intelectual levada aos limites extremos. Estar acostumado a viver no cimo das montanhas – e
ver a imundície política e o nacionalismo abaixo de si. Ter se tornado indiferente; nunca perguntar se a
verdade será útil ou prejudicial... Possuir uma inclinação – nascida da força – para questões que ninguém
possui coragem de enfrentar; ousadia para o proibido; predestinação para o labirinto. Uma experiência
de sete solidões. Ouvidos novos para música nova. Olhos novos para o mais distante. Uma consciência
nova para verdades que até agora permaneceram mudas. E um desejo de economia em grande estilo –
acumular sua força, seu entusiasmo... Auto-reverência, amor-próprio, absoluta liberdade para consigo...
Muito bem! Apenas esses são meus leitores, meus verdadeiros leitores, meus leitores
predestinados: que importância tem o resto? – O resto é somente a humanidade. – É preciso tornar-se
superior à humanidade em poder, em grandeza de alma – em desprezo...
Friedrich Nietzsche
I
– Olhemos-nos face a face. Somos hiperbóreos(1) – sabemos muito bem quão remota é nossa
morada. “Nem por terra nem por mar encontrarás o caminho aos hiperbóreos”: mesmo Píndaro, em seus
dias, sabia tanto sobre nós. Além do Norte, além do gelo, além da morte – nossa vida, nossa felicidade...
Nós descobrimos essa felicidade; nós conhecemos o caminho; retiramos essa sabedoria dos milhares de
anos no labirinto. Quem mais a descobriu? – O homem moderno? – “Eu não conheço nem a saída nem a
entrada; sou tudo aquilo que não sabe nem sair nem entrar” – assim suspira o homem moderno... Esse é
o tipo de modernidade que nos adoeceu – a paz indolente, o compromisso covarde, toda a virtuosa
sujidade do moderno Sim e Não. Essa tolerância e largeur(2) de coração que tudo “perdoa” porque tudo
“compreende” é um siroco(3) para nós. Antes viver no meio do gelo que entre virtudes modernas e outros
ventos do sul!... Fomos bastante corajosos; não poupamos a nós mesmos nem os outros; mas levamos
um longo tempo para descobrir aonde direcionar nossa coragem. Tornamo-nos tristes; nos chamaram de
fatalistas. Nosso destino – ele era a plenitude, a tensão, o acumular de forças. Tínhamos sede de
relâmpagos e grandes feitos; mantivemo-nos o mais longe possível da felicidade dos fracos, da
“resignação”... Nosso ar era tempestuoso; nossa própria natureza tornou-se sombria – pois ainda não
havíamos encontrado o caminho. A fórmula de nossa felicidade: um Sim, um Não, uma linha reta, uma
meta...
1 – Os Gregos acreditavam que no extremo Norte da Terra vivia um povo que gozava de felicidade eterna, os hiperbóreos,
que nunca guerreavam, adoeciam ou envelheciam. Sem a ajuda dos Deuses, seu território era inalcançável. (N. do T.)
2 – Grandeza.
3 – Vento asfixiante, quente e empoeirado originário de desertos. (N. do T.)
II
O que é bom? – Tudo que aumenta, no homem, a sensação de poder, a vontade de poder, o
próprio poder.
O que é mau? – Tudo que se origina da fraqueza.
O que é felicidade? – A sensação de que o poder aumenta – de que uma resistência foi superada.
Não o contentamento, mas mais poder; não a paz a qualquer custo, mas a guerra; não a virtude,
mas a eficiência (virtude no sentido da Renascença, virtu(1), virtude desvinculada de moralismos).
Os fracos e os malogrados devem perecer: primeiro princípio de nossa caridade. E realmente
deve-se ajudá-los nisso.
O que é mais nocivo que qualquer vício? – A compaixão posta em prática em nome dos
malogrados e dos fracos – o cristianismo...
1 – “Vir”, em latim, significa “varão”, “homem”. Ou seja, “virtu”, neste “sentido da Renascença”, designa qualidades viris
como força, bravura, vigor, coragem, e não humildade, compaixão, etc. (N. do T.)
III
O problema que aqui apresento não consiste em rediscutir o lugar humanidade na escala dos
seres viventes (– o homem é um fim –): mas que tipo de homem deve ser criado, que tipo deve ser
pretendido como sendo o mais valioso, o mais digno de viver, a garantia mais segura do futuro.
Este tipo mais valioso já existiu bastantes vezes no passado: mas sempre como um afortunado
acidente, como uma exceção, nunca como algo deliberadamente desejado. Com muita freqüência esse foi
precisamente o tipo mais temido; até ao presente foi considerado praticamente o terror dos terrores; – e
devido a esse terror, o tipo contrário foi desejado, cultivado e atingido: o animal doméstico, o animal de
rebanho, a doentia besta humana: o cristão...
IV
Pelo que aqui se entende como progresso, a humanidade certamente não representa uma
evolução em direção a algo melhor, mais forte ou mais elevado. Este “progresso” é apenas uma idéia
moderna, ou seja, uma idéia falsa. O Europeu de hoje, em sua essência, possui muito menos valor que o
Europeu da Renascença; o processo da evolução não significa necessariamente elevação, melhora,
fortalecimento.
É bem verdade que ela tem sucesso em casos isolados e individuais em várias partes da Terra e
sob as mais variadas culturas, e nesses casos certamente se manifesta um tipo superior; um tipo que,
comparado ao resto da humanidade, parece uma espécie de super-homem. Tais golpes de sorte sempre
foram possíveis e, talvez, sempre serão. Até mesmo raças inteiras, tribos e nações podem ocasionalmente
representar tais ditosos acidentes.
V
Não devemos enfeitar nem embelezar o cristianismo: ele travou uma guerra de morte contra este
tipo de homem superior, anatematizou todos os instintos mais profundos desse tipo, destilou seus
conceitos de mal e de maldade personificada a partir desses instintos – o homem forte como um réprobo,
como “degredado entre os homens”. O cristianismo tomou o partido de tudo o que é fraco, baixo e
fracassado; forjou seu ideal a partir da oposição a todos os instintos de preservação da vida saudável;
corrompeu até mesmo as faculdades daquelas naturezas intelectualmente mais vigorosas, ensinando que
os valores intelectuais elevados são apenas pecados, descaminhos, tentações. O exemplo mais
lamentável: o corrompimento de Pascal, o qual acreditava que seu intelecto havia sido destruído pelo
pecado original, quando na verdade tinha sido destruído pelo cristianismo! –
VI
Um doloroso e trágico espetáculo surge diante de mim: retirei a cortina da corrupção do homem.
Essa palavra, em minha boca, é isenta de pelo menos uma suspeita: a de que envolve uma acusação
moral contra a humanidade. A entendo – e desejo enfatizar novamente – livre de qualquer valor moral: e
isso é tão verdade que a corrupção de que falo é mais aparente para mim precisamente onde esteve, até
agora, a maior parte da aspiração à “virtude” e à “divindade”. Como se presume, entendo essa corrupção
no sentido de decadência: meu argumento é que todos os valores nos quais a humanidade apóia seus
anseios mais sublimes são valores de decadência.
Denomino corrompido um animal, uma espécie, um indivíduo, quando perde seus instintos,
quando escolhe, quando prefere o que lhe é nocivo. Uma história dos “sentimentos elevados”, dos “ideais
da humanidade” – e é possível que tenha de escrevê-la – praticamente explicaria por que o homem é tão
degenerado. A própria vida apresenta-se a mim como um instinto para o crescimento, para a
sobrevivência, para a acumulação de forças, para o poder: sempre que falta a vontade de poder ocorre o
desastre. Afirmo que todos os valores mais elevados da humanidade carecem dessa vontade – que os
valores de decadência, de niilismo, agora prevalecem sob os mais sagrados nomes.
VII
Chama-se cristianismo a religião da compaixão. – A compaixão está em oposição a todas as
paixões tônicas que aumentam a intensidade do sentimento vital: tem ação depressora. O homem perde
poder quando se compadece. Através da perda de força causada pela compaixão o sofrimento acaba por
multiplicar-se. O sofrimento torna-se contagioso através da compaixão; sob certas circunstancias pode
levar a um total sacrifício da vida e da energia vital – uma perda totalmente desproporcional à magnitude
da causa (– o caso da morte de Nazareno). Essa é uma primeira perspectiva; há, entretanto, outra mais
importante. Medindo os efeitos da compaixão através da intensidade das reações que produz, sua
periculosidade à vida mostra-se sob uma luz muito mais clara. A compaixão contraria inteiramente lei da
evolução, que é a lei da seleção natural. Preserva tudo que está maduro para perecer; luta em prol dos
desterrados e condenados da vida; e mantendo vivos malogrados de todos os tipos, dá à própria vida um
aspecto sombrio e dúbio. A humanidade ousou denominar a compaixão uma virtude (– em todo sistema
de moral superior ela aparece como uma fraqueza –); indo mais adiante, chamaram-na a virtude, a
origem e fundamento de todas as outras virtudes – mas sempre mantenhamos em mente que esse era o
ponto de vista de uma filosofia niilista, em cujo escudo há a inscrição negação da vida. Schopenhauer
estava certo nisto: através a compaixão a vida é negada, e tornada digna de negação – a compaixão é
uma técnica de niilismo. Permita-me repeti-lo: esse instinto depressor e contagioso opõe-se a todos os
instintos que se empenham na preservação e aperfeiçoamento da vida: no papel de defensor dos
miseráveis, é um agente primário na promoção da decadência – compaixão persuade à extinção... É claro,
ninguém diz “extinção”: dizem “o outro mundo”, “Deus”, “a verdadeira vida”, Nirvana, salvação, bemaventurança...
Essa inocente retórica do reino da idiossincrasia moral-religiosa mostra-se muito menos
inocente quando se percebe a tendência que oculta sob palavras sublimes: a tendência à destruição da
vida. Schopenhauer era hostil à vida: esse foi o porquê de a compaixão, para ele, ser uma virtude...
Aristóteles, como todos sabem, via na compaixão um estado mental mórbido e perigoso, cujo remédio era
um purgativo ocasional: considerava a tragédia como sendo esse purgativo. O instinto vital deveria nos
incitar a buscar meios de alfinetar quaisquer acúmulos patológicos e perigosos de compaixão, como os
presentes no caso de Schopenhauer (e também, lamentavelmente, em toda a nossa décadence literária,
de St. Petersburgo a Paris, de Tolstoi a Wagner), para que ele estoure e se dissipe... Nada é mais
insalubre, em toda nossa insalubre modernidade, que a compaixão cristã. Sermos os médicos aqui,
sermos impiedosos aqui, manejarmos a faca aqui – tudo isso é o nosso serviço, é o nosso tipo de
humanidade, é isso que nos torna filósofos, nós, hiperbóreos! –
VIII
É necessário dizer quem consideramos nossos adversários: os teólogos e tudo que tem sangue
teológico correndo em suas veias – essa é toda a nossa filosofia... É necessário ter visto essa ameaça de
perto, melhor ainda, é preciso tê-la vivido e quase sucumbido por ela, para compreender que isso não é
qualquer brincadeira (– o alegado livre-pensamento de nossos naturalistas e fisiologistas me parece uma
brincadeira – não possuem a paixão nessas coisas; não sofreram –). Este envenenamento vai muito mais
longe do que a maioria imagina: encontro o arrogante hábito de teólogo entre todos aqueles que se
consideram “idealistas”, entre todos que, em virtude uma origem superior, reivindicam o direito de se
colocarem acima da realidade, e olhá-la com suspeita... O idealista, assim como o eclesiástico, carrega
todos os grandes conceitos em sua mão (– e não apenas em sua mão!); os lança com um benevolente
desprezo contra o “entendimento”, os “sentidos”, a “honra”, o “bem viver”, a “ciência”; vê tais coisas
abaixo de si, como forças perniciosas e sedutoras, sobre as quais “o espírito” plana como a coisa pura em
si – como se a humildade, a castidade, a pobreza, em uma palavra, a santidade, não tivessem causado
muito mais dano à vida que quaisquer outros horrores e vícios... O puro espírito é a pura mentira...
Enquanto o padre, esse negador, caluniador e envenenador da vida por profissão for aceito como uma
variedade de homem superior, não poderá haver resposta à pergunta: Que é a verdade?(1) A verdade já
foi posta de cabeça para baixo quando o advogado do nada foi confundido com o representante da
verdade.
1 – Alusão à passagem bíblica (Novo Testamento, Evangelho segundo João 18:38) na qual Pilatos pergunta a Jesus: “Que é a
verdade?”. (N. do T.)
IX
É contra este instinto teológico que guerreio: encontro vestígios dele por toda parte. Todo aquele
que possui sangue teológico em suas veias é cínico e desonrado em todas as coisas. Ao pathos(1) que se
desenvolve dessa condição denomina-se fé: em outras palavras, fechar os olhos ante si mesmo de uma
vez por todas para evitar o sofrimento causado pela visão de uma falsidade incurável. As pessoas
constroem um conceito de moral, de virtude, de santidade a partir dessa falsa perspectiva das coisas;
fundamentam a boa consciência sobre uma visão falseada; após terem-na tornado sacrossanta com os
nomes “Deus”, “salvação” e “eternidade” não aceitam mais que qualquer outro tipo de visão possa ter
valor. Descubro este instinto teológico em todas direções: é a mais disseminada e mais subterrânea
forma de falsidade que se pode encontrar na Terra. Tudo que um teólogo considera verdadeiro é
necessariamente falso: aqui temos praticamente um critério da verdade. Seu profundo instinto de
autopreservação não lhe permite honrar ou sequer mencionar a verdade. Onde quer que a influência dos
teólogos seja sentida, há uma transmutação de valores, os conceitos de “verdadeiro” e “falso” são
forçados a inverter suas posições: tudo que é mais prejudicial à vida é nomeado “verdadeiro”, tudo que a
exalta, a intensifica, a afirma, a justifica e a torna triunfante é nomeado “falso”... Quando teólogos,
através “consciência” dos príncipes (ou dos povos –), estendem suas mãos ao poder, não há qualquer
dúvida quanto a este aspecto fundamental: que o anseio pelo fim, a vontade niilista, aspira ao poder...
1 – O termo phatos vem do grego, significando “sentimento”, “emoção” “paixão”. Opõe-se a logos, pensamento racional,
lógico. (N. do T.)
X
Entre os alemães sou imediatamente compreendido quando digo que o sangue teológico é a ruína
da filosofia. O pastor protestante é o avô da filosofia alemã; o protestantismo em si é o peccatum
originale(1). Definição do protestantismo: paralisia hemiplégica(2) do cristianismo – e da razão... Precisase
apenas pronunciar as palavras “Escola de Tübingen”(3) para compreender o que é, no fundo, a filosofia
alemã – uma forma muito astuta de teologia... Os suevos são os melhores mentirosos da Alemanha;
mentem com inocência... Qual o porquê de toda alegria que se estendeu pelo universo erudito da
Alemanha – que é formado em três quartos por filhos de pastores e professores – com o aparecimento de
Kant? Por que ainda ecoa na convicção alemã que com Kant houve uma mudança para melhor? O instinto
teológico dos estudiosos alemães os fez enxergar nitidamente o que tinha se tornado possível
novamente... Abria-se um caminho que conduzia de volta ao velho ideal; os conceitos de “mundo
verdadeiro” e de moral como essência do mundo (– os dois erros mais viciosos que já existiram!)
estavam, uma vez mais, graças a um ceticismo sutil e astucioso, se não demonstráveis, pelo menos
irrefutáveis... A razão, o direito da razão, não vai tão longe... A realidade foi relegada a uma “aparência”;
um mundo absolutamente falso – o da essência – foi transformado na realidade... O sucesso de Kant foi
um sucesso meramente teológico; assim como Lutero ou Leibniz, ele não foi senão um empecilho à já
pouco estável integridade alemã. –
1 – Pecado original.
2 – Hemiplegia designa paralisia de um dos lados do corpo.
3 – A Escola de Tübingen (fundada em 1477) possui uma famosa faculdade de teologia, na qual estudaram Hegel e Johannes
Kepler. (N. do T.)
XI
Agora uma palavra contra Kant como moralista. A virtude deve ser nossa invenção; deve surgir de
nossa necessidade pessoal e em nossa defesa. Em qualquer outro caso é fonte de perigo. Tudo que não
pertence à vida representa uma ameaça a ela; uma virtude nascida simplesmente do respeito ao conceito
de “virtude”, como Kant a desejava, é perniciosa. A “virtude”, o “dever”, o “bem em si”, a bondade
fundamentada na impessoalidade ou na noção de validez universal – são todas quimeras, e nelas apenas
encontra-se a expressão da decadência, o último colapso vital, o espírito chinês de Konigsberg(1).
Exatamente o contrário é exigido pelas mais profundas leis da autopreservação e do crescimento: que
cada homem crie sua própria virtude, seu próprio imperativo categórico(2). Uma nação se reduz a ruínas
quando confunde seu dever com o conceito universal de dever. Nada conduz a um desastre mais cabal e
pungente que todo dever “impessoal”, todo sacrifício ao Moloch(3) da abstração. – E imaginar que
ninguém pensou no imperativo categórico de Kant como algo perigoso à vida!... Somente o instinto
teológico tomou-o sob sua proteção! – Uma ação suscitada pelo instinto vital prova estar correta pela
quantidade de prazer que gera: e ainda assim esse niilista, com suas vísceras de dogmatismo cristão,
considerava o prazer como uma objeção... O que destrói um homem mais rapidamente que trabalhar,
pensar e sentir sem uma necessidade interna, sem um profundo desejo pessoal, sem prazer – como um
mero autômato do dever? Essa é tanto uma receita para a décadence(4) quanto para a idiotice... Kant
tornou-se um idiota. – E ele era contemporâneo de Goethe! Este calamitoso fiandeiro de teias de aranha
foi reputado o filósofo alemão par excellence(5) – e continua a sê-lo!... Abstenho-me de dizer o que penso
dos alemães... Kant não viu na Revolução Francesa a transformação do estado da forma inorgânica para a
orgânica? Não perguntou a si mesmo se havia algum evento que não poderia ser explicado exceto através
de uma disposição moral no homem, para que, fundamentada nisso, “a tendência da humanidade ao
bem” pudesse ser explicada de uma vez por todas? Resposta de Kant: “Isso é a revolução”. O instinto que
engana sobre toda e qualquer coisa, o instinto como revolta contra a natureza, a decadência alemã em
forma de filosofia – isso é Kant!
1 – Cidade da Prússia onde Kant nasceu e passou toda a sua vida. Por isso, também é conhecido como “filósofo de
Köenizberg”. (Pietro nasseti)
2 – Conceito kantiano. Considera-se imperativo uma proposição que tenha a forma de comando, de imposição e, em
particular, de um comando ou ordem que o espírito dá a si próprio, Kant distinguia duas espécies de imperativos: o hipotético
(ou condicional), quando a ordem ou determinação está subordinada como meio para atingir um determinado fim (ex.: sê
justo, se queres ser respeitado); e o categórico (ou não-condicional), se a ordem é incondicional (ex. sê justo). Para Kant só
existia um imperativo categórico fundamental (e é a esse que Nietzsche se refere) cuja fórmula é: “Age de tal maneira que o
motivo que te levou a agir possa ser convertido em lei universal”. (Pietro nasseti)
3 – Divindade adorada pelos amonitas e moabitas, à qual sacrificavam crianças em troca de boas colheitas e vitória nas
guerras. (N. do T.)
4 – Decadência.
5 – Por excelência.
XII
Ponho à parte uns poucos céticos, os tipos decentes na história da filosofia: o resto não possui a
menor noção de integridade intelectual. Comportam-se como donzelas, todos esses grandes entusiastas e
prodígios – consideram os “belos sentimentos” como argumentos, o “peito estufado” como o sopro de
uma inspiração divina, a convicção como um critério da verdade. Ao final, com “alemã” inocência, Kant
tentou dar um caráter científico a essa forma de corrupção, essa falta de consciência intelectual,
chamando-a de “razão prática”. Deliberadamente inventou uma variedade de razões para usar
ocasionalmente quando fosse desejável não se preocupar a razão – isto é, quando a moral, quando o
sublime comando “tu deves” fosse ouvido. Lembrando do fato que, entre todos os povos, o filósofo não
representa nada mais que o desenvolvimento dos velhos sacerdotes, essa herança sacerdotal, essa fraude
contra si mesmo deixa de ser algo surpreendente. Quando um homem sente que possui uma missão
divina, digamos, melhorar, salvar ou libertar a humanidade – quando um homem sente uma faísca divina
em seu coração e acredita ser o porta-voz de imperativos supranaturais – quando tal missão o inflama, é
simplesmente natural que ele coloque-se acima dos níveis de julgamento meramente racionais. Sente a si
próprio como santificado por essa missão, sente que faz parte de uma ordem superior!... O que padres
têm a ver com filosofia! Estão muito acima dela! – E até agora os padres reinaram! – Determinaram o
significado dos conceitos de “verdadeiro” e “falso”!
XIII
Não subestimemos este fato: que nós mesmos, nós, espíritos livres, já somos a “transmutação de
todos os valores”, uma manifesta declaração de guerra e uma vitória contra todos os velhos conceitos de
“verdadeiro” e “falso”. As intuições mais valiosas são as mais tardiamente adquiridas; as mais valiosas de
todas são aquelas que determinam os métodos. Todos os métodos, todos os princípios do espírito
científico de hoje foram alvo, por milhares de anos, do mais profundo desprezo; caso um homem se
interessasse por eles era excluído da sociedade das pessoas “decentes” – passava por “inimigo de Deus”,
por zombador da verdade, por “possesso”. Enquanto homem da ciência, pertencia à Chandala(1)...
Tivemos contra nós toda a patética estupidez da humanidade – toda a noção que tinham do que a
verdade deveria ser, de qual deveria ser a função da verdade – todo o seu “tu deves” era arremessado
contra nós... Nossos objetivos, nossos métodos, nossa calma, cautela, desconfiança – para eles tudo isso
parecia algo absolutamente indecoroso e desprezível. – Olhando para trás, alguém até poderia perguntarse,
com alguma razão, se não foi, na verdade, um senso estético que manteve os homens cegos por tanto
tempo: o que exigiam da verdade era uma eficiência pitoresca, e daquele em busca do conhecimento uma
forte impressão sobre seus sentidos. Foi nossa modéstia que por tanto tempo lhes desceu a contragosto...
Quão bem o adivinharam, esses pavões da divindade!
1 – Chandala é a casta mais baixa no sistema hindu. (N. do T.)
XIV
Nós desaprendemos algo. Nos tornamos mais modestos em todos os sentidos. Não derivamos
mais o homem do “espírito”, do “desejo de Deus”; rebaixamos o homem a um mero animal. O
consideramos o mais forte entre eles porque é o mais astuto; um dos resultados disso é sua
intelectualidade. Em contrapartida, nós nos precavemos contra este conceito: de que o homem é o
grande objetivo da evolução orgânica. Em verdade, pode ser qualquer coisa, menos a coroa da criação:
ao lado dele estão muitos outros animais, todos em similares estágios de desenvolvimento... E mesmo
quando dizemos isso, estamos exagerando, pois o homem, relativamente falando, é o mais corrompido e
doentio de todos os animais, o mais perigosamente desviado de seus instintos – apesar disso tudo, com
certeza, continua a ser o mais interessante! – No que concerne aos animais inferiores, foi Descartes quem
primeiro teve a admirável ousadia de descrevê-los como uma machina(1); toda a nossa fisiologia é um
esforço para provar a veracidade dessa doutrina. Entretanto, é ilógico colocar o homem à parte, como fez
Descartes: todo o conhecimento que temos sobre o homem aponta precisamente ao que o consideramos:
uma máquina. Antigamente, concedíamos ao homem, como herança de algum tipo de ser superior, o que
se denominava “livre-arbítrio”; agora lhe retiramos até essa vontade, pois o termo não descreve qualquer
coisa que possamos compreender. A velha palavra “vontade” agora designa apenas um tipo de resultado,
uma reação individual, que se segue inevitavelmente de uma série de estímulos parcialmente
discordantes e parcialmente harmoniosos – a vontade não mais “age” ou “movimenta”... Antigamente
pensava-se que a consciência humana, seu “espírito”, era uma evidência de sua origem superior, de sua
divindade. Aconselharam-no que, para que se tornasse perfeito, assim como a tartaruga, recolhesse seus
sentidos em si mesmo e não tivesse mais contato com coisas terrenas, para escapar de seu “envoltório
mortal” – assim apenas restaria sua parte importante, o “puro espírito”. Aqui também pensamos melhor
sobre o assunto: para nós a consciência, ou “o espírito”, aparece como um sintoma de uma relativa
imperfeição do organismo, como uma experiência, um tatear, um equívoco, como uma aflição que
consome força nervosa desnecessariamente – nós negamos que qualquer coisa feita conscientemente
possa ser feita com perfeição. O “puro espírito” é uma pura estupidez: retire o sistema nervoso e os
sentidos, o chamado “envoltório mortal”, e o resto é um erro de cálculo – isso é tudo!...
1 – Máquina.
XV
No cristianismo, nem a moral nem a religião têm qualquer ponto de contado com a realidade. São
oferecidas causas puramente imaginárias (“Deus”, “alma”, “eu”, “espírito”, “livre arbítrio” – ou mesmo o
“não-livre”) e efeitos puramente imaginários (“pecado”, “salvação”, “graça”, “punição”, “remissão dos
pecados”). Um intercurso entre seres imaginários (“Deus”, “espíritos”, “almas”); uma história natural
imaginária (antropocêntrica; uma negação total do conceito de causas naturais); uma psicologia
imaginária (mal-entendidos sobre si, interpretações equivocadas de sentimentos gerais agradáveis ou
desagradáveis, por exemplo, os estados do nervus sympathicus com a ajuda da linguagem simbólica da
idiossincrasia moral-religiosa – “arrependimento”, “peso na consciência”, “tentação do demônio”, “a
presença de Deus”); uma teleologia imaginária (o “reino de Deus”, “o juízo final”, a “vida eterna”). – Esse
mundo puramente fictício, com muita desvantagem, se distingue do mundo dos sonhos; o último ao
menos reflete a realidade, enquanto aquele falsifica, desvaloriza e nega a realidade. Após o conceito de
“natureza” ter sido usado como oposto ao conceito de “Deus”, a palavra “natural” forçosamente tomou o
significado de “abominável” – todo esse mundo fictício tem sua origem no ódio contra o natural (– a
realidade! –), é evidência de um profundo mal-estar com a efetividade... Isso explica tudo. Quem tem
motivos para fugir da realidade? Quem sofre com ela. Mas sofrer com a realidade significa uma existência
malograda... A preponderância do sofrimento sobre o prazer é a causa dessa moral e religião fictícias:
mas tal preponderância, no entanto, também fornece a fórmula para a décadence...
XVI
Uma crítica da concepção cristã de Deus conduz inevitavelmente à mesma conclusão. – Uma
nação que ainda acredita em si mesma possui seu próprio Deus. Nele são honradas as condições que a
possibilitam sobreviver, suas virtudes – projeta o prazer que possui em si mesma, seu sentimento de
poder, em um ser ao qual pode agradecer por isso. Quem é rico lhe prodigaliza sua riqueza; uma nação
orgulhosa precisa de um Deus ao qual pode oferecer sacrifícios... A religião, dentro desses limites, é uma
forma de gratidão. O homem é grato por existir: para isso precisa de um Deus. – Tal Deus precisa ser
tanto capaz de beneficiar quanto de prejudicar; deve ser capaz de representar um amigo ou um inimigo –
é admirado tanto pelo bem quanto pelo mal que causa. Castrar esse Deus, contra toda a natureza,
transformando-o em um Deus somente bondade, seria contrário à inclinação humana. A humanidade
necessita igualmente de um Deus mau e de um Deus bom; não deve agradecer por sua própria existência
à mera tolerância e à filantropia... Qual seria o valor de um Deus que desconhecesse o ódio, a vingança, a
inveja, o desprezo, a astúcia, a violência? Que talvez nem sequer tenha experimentado os arrebatadores
ardeurs(1) da vitória e da destruição? Ninguém entenderia tal Deus: por que alguém o desejaria? – Sem
dúvida, quando uma nação está em declínio, quando sente que a crença em seu próprio futuro, sua
esperança de liberdade estão se esvaindo, quando começa a enxergar a submissão como primeira
necessidade e como medida de autopreservação, então precisa também modificar seu Deus. Ele então se
torna hipócrita, tímido e recatado; aconselha a “paz na alma”, a ausência de ódio, a indulgência, o “amor”
aos amigos e aos inimigos. Torna-se um moralizador por excelência; infiltra-se em toda virtude privada;
transforma-se no Deus de todos os homens; torna-se um cidadão privado, um cosmopolita... Noutros
tempos representava um povo, a força de um povo, tudo que em suas almas havia de agressivo e
sequioso de poder; agora é simplesmente o bom Deus... Na verdade não há outra alternativa para os
Deuses: ou são a vontade de poder – no caso de serem os Deuses de uma nação – ou a inaptidão para o
poder – e neste caso precisam ser bons.
1 – Ardores.
XVII
Onde quer que, por qualquer forma, a vontade de poder comece enfraquecer, haverá sempre um
declínio fisiológico concomitante, uma décadence. A divindade dessa décadence, despida de suas virtudes
e paixões masculinas, é convertida forçosamente em um Deus dos fisiologicamente degradados, dos
fracos. Obviamente, eles não se denominam os fracos; denominam-se “os bons”... Nenhuma explicação é
necessária para se entender em quais momentos da História a ficção dualista de um Deus bom e um Deus
mau se tornou possível pela primeira vez. O mesmo instinto que leva os inferiores a reduzir seu próprio
Deus à “bondade em si” também os leva a eliminar todas as qualidades do Deus daqueles que lhes são
superiores; vingam-se demonizando o Deus de seus dominadores. – O bom Deus, assim como o Diabo –
ambos são frutos da décadence. – Como podemos ser tão tolerantes com o simplismo dos teólogos
cristãos, aceitando sua doutrina de que a evolução do conceito de Deus a partir do “Deus de Israel”, o
Deus de um povo, ao Deus cristão, a essência de toda a bondade, significa um progresso? – Mas até
Renan(1) o fez. Como se Renan tivesse o direito ao simplismo! O contrário, na realidade, é o que se faz
ver. Quando tudo que é necessário à vida ascendente; quando tudo que é forte, corajoso, imperioso e
orgulhoso foi amputado do conceito de Deus; quando se degenerou progressivamente até tornar-se uma
bengala para os cansados, uma tábua de salvação aos que se afogam; quando vira o Deus dos pobres, o
Deus dos pecadores, o Deus dos incapazes par excellence, e o atributo de “salvador” ou “redentor”
continua como o atributo mais essencial da divindade – qual é a significância de tal metamorfose? O que
implica tal redução do divino? – Sem dúvida, com isso o “reino de Deus” cresceu. Antigamente, tinha
somente seu povo, seus “escolhidos”. Mas desde então saiu perambulando, assim como seu próprio povo,
a territórios estrangeiros; desistiu de acomodar-se; e finalmente passou a sentir-se em casa em qualquer
lugar, esse grande cosmopolita – até agora possui a “grande maioria” ao seu lado, e metade da Terra.
Mas esse Deus da “grande maioria”, esse democrata entre os Deuses, não se tornou um Deus pagão
orgulhoso: pelo contrário, continua um judeu, continua um Deus das esquinas, um Deus de todos os
recantos e gretas, de todos lugares insalubres do mundo!... Seu reino na Terra, agora, assim como
sempre, é um reino do submundo, um reino subterrâneo, um reino-gueto... Ele mesmo é tão pálido, tão
fraco, tão décadent... Até o mais pálido entre os pálidos é capaz de dominá-lo – os senhores metafísicos,
os albinos do intelecto. Esses teceram teias ao seu redor por tanto tempo que finalmente o hipnotizaram,
o transformaram em aranha, em mais um metafísico. E então retornou mais uma vez ao seu velho serviço
de tecer o mundo a partir de sua natureza interior sub specie Spinozae(2); após isso se transformou em
algo cada vez mais tênue e pálido – tornou-se o “ideal”, o “puro espírito”, o “absoluto”, a “coisa em si”...
O colapso de um Deus: ele converte-se na “coisa em si”.
1 – O filólogo e historiador Ernest Renan (1823-1892), que dera a um dos volumes de sua obra-mestra, Les Origines du
Christianisme, precisamente o título L'Atnéchrist. O volume continha uma história das heresias. (Rubens Rodrigues Torres
Filho)
2 – Frase de sentido duplo: segundo a óptica de Espinoza e sob a forma de aranha. Trata-se de um jogo de palavras baseado
no próprio de Espinoza – spinne significa aranha em alemão. (Pietro Nasseti)
XVIII
A concepção cristã de Deus – Deus o como protetor dos doentes, o Deus que tece teias de aranha,
o Deus na forma de espírito – é uma das concepções mais corruptas que jamais apareceram no mundo:
provavelmente representa o nível mais ínfero da declinante evolução do tipo divino. Um Deus que se
degenerou em uma contradição da vida. Em vez de ser sua própria glória e eterna afirmação! Nele
declara-se guerra à vida, à natureza, à vontade de viver! Deus transforma-se na fórmula para todas
calúnias contra o “aqui e agora” e para cada mentira sobre “além”! Nele o nada é divinizado e a vontade
do nada se faz sagrada!...
XIX
O fato de as raças fortes do Norte da Europa não terem repudiado esse Deus cristão não dá
qualquer crédito aos seus dotes religiosos – para não mencionar seus gostos. Deveriam ter sido capazes
de sobrepujar tal moribundo e decrépito produto da décadence. Uma maldição paira sobre eles porque
não o repeliram; absorveram em seus instintos a enfermidade, a senilidade e a contradição – e a partir de
então não criaram mais nenhum Deus. Dois mil anos se passaram – e nem um único Deus novo! Em vez
disso, ainda existe como que por algum direito intrínseco – como se fosse um ultimatum(1) e
maximum(2) da força criadora de divindades, do creator spiritus(3) da humanidade –, esse deplorável
Deus do monótono-teísmo cristão! Essa imagem híbrida da decadência, destilada do nada, da contradição
e da imaginação estéril, na qual todos os instintos da décadence, todas as covardias e cansaços da alma
encontram sua sanção! –
1 – Última palavra.
2 – Máximo.
3 – Espírito criador.
XX
Em minha condenação do cristianismo certamente espero não injustiçar uma religião análoga que
possui um número ainda maior de seguidores: aludo ao budismo. Ambas devem ser consideradas
religiões niilistas – são religiões da décadence – mas distinguem-se de um modo bastante notável. Pelo
simples fato de poder compará-las, o crítico do Cristianismo está em débito com os estudiosos da Índia. –
O budismo é cem vezes mais realista que o cristianismo – é parte de sua herança de vida ser capaz de
encarar problemas de modo objetivo e impassível; é o produto de longos séculos de especulação
filosófica. O conceito “Deus” já havia se estabelecido antes dele surgir. O budismo é a única religião
genuinamente positiva que pode ser encontrada na História, e isso se aplica até mesmo à sua
epistemologia (que é um fenomenalismo estrito) – ele não fala sobre “a luta contra o pecado”, mas,
rendendo-se à realidade, diz “a luta contra o sofrimento”. Diferenciando-se nitidamente do cristianismo,
coloca a autodecepção que existe nos conceitos morais por detrás de si; isso significa, em minha
linguagem, além do bem e do mal. – Os dois fatos fisiológicos nos quais se apóia e aos quais direciona a
maior parte de sua atenção são: primeiro, uma excessiva sensibilidade à sensação que se manifesta
através de uma refinada suscetibilidade ao sofrimento; segundo, uma extraordinária espiritualidade, uma
preocupação muito prolongada com os conceitos e com os procedimentos lógicos, sob a influência da qual
o instinto de personalidade submete-se à noção de “impessoalidade” (– ambos esses estados serão
familiares a alguns de meus leitores, os objetivistas, por experiência própria, assim como são para mim).
Esses estados fisiológicos produzem uma depressão, e Buda tentou combatê-la através de medidas
higiênicas. Prescreveu a vida ao ar livre, a vida nômade; moderação na alimentação e uma cuidadosa
seleção dos alimentos; prudência em relação ao uso de intoxicantes; igual cautela em relação a quaisquer
paixões que induzem comportamentos biliosos e aquecimento do sangue; finalmente, não se preocupar
nem consigo nem com os outros. Encoraja idéias que produzam serenidade ou alegria – e encontra meios
de combater as idéias de outros tipos. Entende o bem, o estado de bondade, como algo que promove a
saúde. A oração não está inclusa, e nem o asceticismo. Não há um imperativo categórico ou qualquer
disciplina, mesmo dentro dos monastérios (– dos quais é sempre permitido sair –). Todas essas coisas
seriam simplesmente meios para aumentar aquela excessiva sensibilidade supramencionada. Pelo mesmo
motivo não advoga qualquer conflito contra os incrédulos; seus ensinamentos não antagonizam nada
senão a vingança, a aversão, o ressentimento (– “inimizade nunca põe fim à inimizade”: o refrão que
move o budismo...) E nisso tudo estava correto, pois são precisamente essas paixões que, na perspectiva
de seu principal objetivo regimental, são insalubres. A fadiga mental que apresenta, já claramente
evidenciada pelo excesso de “objetividade” (isto é, a perda do interesse em si mesmo, a perda do
equilíbrio e do “egoísmo”), é combatida por vigorosos esforços a fim de levar os interesses espirituais de
volta ao ego. Nos ensinamentos de Buda o egoísmo é um dever. A “única coisa necessária”, a questão
“como posso me libertar do sofrimento”, é o que rege e determina toda a dieta espiritual (– talvez alguém
lembrar-se-á daquele ateniense que também declarou guerra ao “cientificismo” puro, a saber, Sócrates,
que também elevou o egoísmo à condição de princípio moral).
XXI
As necessidades do budismo são um clima extremamente ameno, muita gentileza e liberalidade
nos costumes, e nenhum militarismo; ademais, que seu início provenha das classes mais altas e
educadas. Alegria, serenidade e ausência de desejo são os objetivos principais, e eles são alcançados. O
budismo não é uma religião na qual a perfeição é meramente objeto de aspiração: a perfeição é algo
normal. – No cristianismo os instintos dos subjugados e dos oprimidos vêm em primeiro lugar: apenas os
mais rebaixados buscam a salvação através dele. Nele o passatempo prevalecente, a cura favorita para o
enfado, é a discussão sobre pecados, a autocrítica, a inquisição da consciência; nele a emoção produzida
pelo poder (chamada de “Deus”) é insuflada (pela reza); nele o bem mais elevado é considerado algo
inatingível, uma dádiva, uma “graça”. Também falta transparência: o encobrimento e os lugares
obscurecidos são cristãos. Nele o corpo é desprezado e a higiene é acusada de lascívia; a Igreja distanciase
até da limpeza (– a primeira providência cristã após a expulsão dos mouros foi fechar os banhos
públicos, dos quais havia 270 apenas em Córdoba). Também é cristã uma certa crueldade para consigo e
para com os outros; o ódio aos incrédulos; o desejo de perseguir. Idéias sombrias e inquietantes ocupam
o primeiro plano; os estados mentais mais estimados, portando os nomes mais respeitáveis, são
epileptiformes; a dieta é determinada com o fim de engendrar sintomas mórbidos e supra-estimulação
nervosa. Também é cristã toda a inimizade mortal aos senhores da terra, aos “aristocratas” – juntamente
com uma rivalidade secreta contra eles (– resignam-se do “corpo” – querem apenas a “alma”...). É cristão
todo o ódio contra o intelecto, o orgulho, a coragem, a liberdade, a libertinagem intelectual; o ódio aos
sentidos, à alegria dos sentidos, à alegria em geral, é cristão...
XXII
Quando o cristianismo abandonou sua terra natal, aqueles das classes mais baixas, o submundo
da Antigüidade, e começou a buscar poder entre os povos bárbaros, não tinha mais de se relacionar com
homens exauridos, mas homens ainda intimamente selvagens e capazes de sacrifícios – em suma,
homens fortes, mas atrofiados. Aqui, distintamente do caso dos budistas, a causa do descontentamento
consigo, do sofrimento por si, não é meramente uma sensibilidade extremada e uma suscetibilidade à
dor, mas, ao contrário, uma excessiva ânsia por infligir sofrimento aos outros, uma tendência a obter uma
satisfação subjetiva em feitos e idéias hostis. O cristianismo tinha de adotar conceitos e valorações
bárbaras para obter domínio sobre os bárbaros: assim como, por exemplo, o sacrifício do primogênito, a
ingestão de sangue como um sacramento, o desprezo pelo intelecto e pela cultura; a tortura sob todas as
suas formas, corporal e espiritual; toda a pompa do culto. O budismo é uma religião para pessoas em um
estágio mais adiantado de desenvolvimento, para raças que se tornaram gentis, amenas e demasiado
espiritualizadas (– a Europa ainda não está madura para ele –): é um convite de retorno à paz e à
felicidade, a um cuidadoso racionamento do espírito, a um certo enrijecimento do corpo. O cristianismo
visa dominar animais de rapina; sua estratégia consiste em torná-los doentes – enfraquecer é a receita
cristã para domesticar, para “civilizar”. O budismo é uma religião para o final, para os derradeiros
estágios de cansaço da civilização. O cristianismo surge antes da civilização mal ter começado – sob
certas circunstâncias cria as próprias fundações desta.
XXIII
O Budismo, eu repito, é uma centena de vezes mais austero, mais honesto, mais objetivo. Não
precisa mais justificar suas aflições, sua suscetibilidade ao sofrimento, interpretando essas coisas em
termos de pecado – simplesmente diz o que simplesmente pensa: “eu sofro”. Para o bárbaro, entretanto,
o sofrimento em si é pouco compreensível: o que necessita é, em primeiro lugar, uma explicação sobre o
porquê de seu sofrimento (o seu instinto leva-o a negar completamente seu sofrimento, ou a suportá-lo
em silêncio). Aqui a palavra “Diabo” era uma bênção: o homem devia possuir um inimigo onipotente e
terrível – não havia motivos para envergonhar-se por sofrer nas mãos de tal inimigo.
– No seu íntimo o cristianismo possui várias sutilezas que pertencem ao Oriente. Em primeiro
lugar, sabe que é de pouca relevância se uma coisa é verdadeira ou não, desde que se acredite que é
verdadeira. Verdade e fé: aqui temos dois mundos de idéias inteiramente distintas, praticamente dois
mundos diametralmente opostos – os seus caminhos distam milhas um do outro. Entender esse fato a
fundo – isso é quase o suficiente, no Oriente, para fazer de alguém um sábio. Os brâmanes sabiam disso,
Platão sabia disso, todo estudante de esoterismo sabe disso. Quando, por exemplo, um homem sente
qualquer prazer através da idéia de que foi redimido do pecado, não é necessário que seja realmente
pecador, mas que simplesmente sinta-se pecador. Mas quando a fé é exaltada acima de tudo, disso
segue-se necessariamente o descrédito à razão, ao conhecimento e à investigação meticulosa: o caminho
que leva à verdade torna-se proibido. – A esperança, em suas formas mais vigorosas, é um estimulante
muito mais poderoso à vida que qualquer espécie de felicidade efetiva. Para o homem resistir ao
sofrimento deve possuir uma esperança tão elevada que nenhum conflito com a realidade possa destruí-la
– de fato, tão elevada que nenhuma conquista possa satisfazê-la: uma esperança que alcança além deste
mundo (precisamente por causa do poder que a esperança tem de fazer os sofredores persistirem, os
gregos a consideravam o mal entre os males, como o mais maligno de todos males; permaneceu no fundo
da fonte de todo o mal(1)). – Para que o amor seja possível, Deus deve tornar-se uma pessoa; para que
os instintos mais baixos tenham seu espaço, Deus precisa ser jovem. Para satisfazer o ardor das
mulheres, um santo formoso deve aparecer na cena; para satisfazer o dos homens, deve haver uma
virgem. Tais coisas são necessárias se o cristianismo quiser assumir controle sobre um solo no qual o
culto de Afrodite ou de Adônis já tenha estabelecido a noção de como uma adoração deve ser. Insistir na
castidade aumenta grandemente a veemência e a subjetividade do instinto religioso – torna o culto mais
fervoroso, mais entusiástico, mais espirituoso. – O amor é o estado no qual o homem vê as coisas quase
totalmente como não são. A força da ilusão alcança seu ápice aqui, assim como a capacidade para a
suavização e para a transfiguração. Quando um homem está apaixonado sua tolerância atinge ao
máximo; tolera-se qualquer coisa. O problema consistia em inventar uma religião na qual se pudesse
amar: através disso o pior que a vida tem a oferecer é superado – tais coisas sequer serão notadas. –
Tudo isso se alcança com as três virtudes cristãs: fé, esperança e caridade: as denomino as três
habilidades cristãs. – O budismo encontra-se em um estágio de desenvolvimento demasiado avançado,
demasiado positivista para ter esse tipo de astúcia. –
1 – Ou seja, na caixa de Pandora. (H. L. Mencken)
XXIV
Aqui apenas toco superficialmente o problema da origem do cristianismo. A primeira coisa
necessária para resolver o problema é a seguinte: que o cristianismo deve ser compreendido apenas a
partir da análise do solo em que se originou – não é uma reação contra os instintos judaicos; é sua
conseqüência inevitável; é simplesmente mais um passo dentro da intimidante lógica dos judeus. Nas
palavras do Salvador: “a salvação vem dos judeus”(1). – A segunda coisa a ser lembrada é esta: que o
tipo psicológico do Galileu(2) ainda é reconhecível, mas que apenas em sua forma mais degenerada
(mutilado e sobrecarregado com características estrangeiras) pôde servir da maneira em que foi utilizado:
como tipo para Salvador da humanidade.
– Os judeus são o povo mais notável da História, pois quando foram confrontados com o dilema
do ser ou não ser, escolheram, através de uma deliberação excepcionalmente lúcida, o ser a qualquer
preço: esse preço envolvia uma radical falsificação de toda a natureza, de toda a naturalidade, de toda a
realidade, de todo o mudo interior e também o exterior. Colocaram-se contra todas aquelas condições sob
as quais, até agora, os povos foram capazes de viver, ou até mesmo tiveram o direito de viver; a partir
deles se desenvolveu uma idéia que se encontrava em direta oposição às condições naturais –
sucessivamente distorceram a religião, a civilização, a moral, a história e a psicologia até as transformar
em uma contradição de sua significação natural. Nós encontramos o mesmo fenômeno mais adiante, em
uma forma incalculavelmente exagerada, mas apenas como uma cópia: a Igreja cristã, comparada ao
“povo eleito”, exibe absoluta ausência de qualquer pretensão à originalidade. Precisamente por esse
motivo os judeus são o povo mais funesto de toda a história universal: sua influência causou tal
falsificação na racionalidade da humanidade que hoje um cristão pode sentir-se anti-semita sem se dar
conta de que ele próprio não é senão a última conseqüência do judaísmo.
Em minha “Genealogia da Moral” apresentei a primeira explicação psicológica dos conceitos
subjacentes a estas coisas antitéticas: uma moral nobre e uma moral do ressentimento, a segunda sendo
um mero produto da negação da primeira. O sistema moral judaico-cristão pertence à segunda divisão, e
em todos os sentidos. Para ser capaz de dizer Não a tudo que representa uma evolução ascendente da
vida – isto é, ao bem-estar, ao poder, à beleza, à auto-afirmação – os instintos do ressentimento, aqui
completamente transformados em gênio, tiveram de inventar outro mundo no qual a afirmação da vida
representasse as maiores malignidades e abominações imagináveis. Psicologicamente, os judeus são
pessoas dotadas da mais forte vitalidade, tanto que, quando se viram frente a condições onde a vida era
impossível, escolheram voluntariamente, e com um profundo talento para a autopreservação, tomar o
lado de todos os instintos que produzem a decadência – não por estarem dominados por eles, mas como
que adivinhando neles o poder através do qual “o mundo” poderia ser desafiado. Os judeus são
exatamente o oposto dos decadentes: simplesmente foram forçados se mostrar com esse disfarce, e com
um grau de habilidade próximo ao non plus ultra(3) do gênio histriônico conseguiram se colocar à frente
de todos of movimentos decadentes (– por exemplo, o cristianismo de Paulo –), e assim fazerem-se algo
mais forte que qualquer partido de afirmação da vida. Para o tipo de homens que aspiram ao poder no
judaísmo e no cristianismo – em outras palavras, a classe sacerdotal – a decadência não é senão um
meio. Homens desse tipo têm um interesse vital em tornar a humanidade enferma, em confundir os
valores de “bom” e “mau”, “verdadeiro” e “falso” de uma maneira que não é apenas perigosa à vida, mas
que também a falsifica.
1 – João 4:22.
2 – A palavra possui forte conotação histórica, pois assim era mais freqüentemente designado Cristo no séc IV, na época das
grandes lutas entre pagãos ou helenos, liderados pelo imperador Juliano, e os cristãos alcunhados depreciativamente Galileus,
fanáticos do Galileu. (Pietro Nasseti)
3 – Não mais além, isto é, algo inexcedível, que não se ultrapassa.
XXV
A história de Israel é inestimável como uma típica história de uma tentativa de deturpar todos os
valores naturais: exponho três fatos corroboram isso. Originalmente, e acima de tudo no tempo da
monarquia, Israel manteve uma atitude justa em relação às coisas, ou seja, uma atitude natural. O seu
Iavé(1) era a expressão da consciência de seu próprio poder, de sua alegria consigo mesmo, da
esperança que tinha em si: através dele os judeus buscavam a vitória e a salvação, através dele
esperavam que a natureza lhes desse tudo que fosse necessário para sua existência – acima de tudo,
chuva. Iavé é o Deus de Israel e, conseqüentemente, o Deus da justiça: essa é a lógica de toda raça que
possui poder em suas mãos e que o utiliza com a consciência tranqüila. Na cerimônia religiosa dos judeus
ambos aspectos dessa auto-afirmação ficam manifestos. A nação é grata pelo grande destino que a
possibilitou obter domínio; é grata pela benéfica regularidade na mudança das estações e por toda a
fortuna que favorece seus rebanhos e colheitas. – Essa visão das coisas permaneceu ideal por um longo
período, mesmo após ter sido despojada de validade tragicamente: dentro, a anarquia, fora, os assírios.
Mas o povo ainda conservou, como uma projeção de sua mais alta aspiração, a visão de um rei que era ao
mesmo tempo um galante guerreiro e um decoroso juiz – foi conservada sobretudo por aquele profeta
típico (ou seja, crítico e satírico do momento), Isaías. – Mas toda a esperança foi vã. O velho Deus não
podia mais fazer o que fizera noutros tempos. Deveria ter sido abandonado. Mas o que ocorreu de fato?
Simplesmente isto: sua concepção foi mudada – sua concepção foi desnaturalizada; esse foi o preço que
tiveram de pagar para mantê-lo. – Iavé, o Deus da “justiça” – não está mais de acordo com Israel, não
representa mais o egoísmo da nação; agora é apenas um Deus condicionado... A noção pública desse
Deus agora se torna meramente uma arma nas mãos de agitadores clericais, que interpretam toda
felicidade como recompensa e toda desgraça como punição em termos de obediência ou desobediência a
Deus, em termos de “pecado”: a mais fraudulenta das interpretações imagináveis, através da qual a
“ordem moral do mundo” é estabelecida e os conceitos fundamentais, “causa” e “efeito”, são colocados de
ponta cabeça. Uma vez que o conceito de causa natural é varrido do mundo por doutrinas de recompensa
e punição, algum tipo de causalidade inatural torna-se necessária: seguem-se disso todas as outras
variedades de negação da natureza. Um Deus que ordena – no lugar de um Deus que ajuda, que dá
conselhos, que no fundo é meramente um nome para cada feliz inspiração de coragem e autoconfiança...
A moral já não é mais um reflexo das condições que promovem vida sã e o crescimento de um
povo; não é mais um instinto vital primário; em vez disso se tornou algo abstrato e oposto à vida – uma
perversão dos fundamentos da fantasia, um “olhar maligno” contra todas as coisas. Que é a moral
judaica? Que é a moral cristã? A sorte despida de sua inocência; a infelicidade contaminada com a idéia
de “pecado”; o bem-estar considerado como um perigo, como uma “tentação”; um desarranjo fisiológico
causado pelo veneno do remorso...
1 – Uma das designações do Deus de Israel utilizadas nos Livros Sagrados. (Pietro Nasseti)
XXVI
O conceito de Deus falsificado; o conceito de moral falsificado; – mas mesmo aqui os feitos dos
padres judaicos não cessaram. – Toda a história de Israel não lhes tinha qualquer valor: então a
dispensaram! – Tais padres realizaram essa prodigiosa falsificação da qual grande parte da Bíblia é uma
evidência documentária; com um grau de desprezo sem paralelos, e em face de toda a tradição e toda a
realidade histórica, traduziram o passado de seu povo em termos religiosos, ou seja, converteram-no em
um mecanismo imbecil de salvação, através do qual todas ofensas contra Iavé eram punidas e toda
devoção recompensada. Nós consideraríamos esse ato de falsificação histórica algo muito mais
vergonhoso se a familiaridade com a interpretação eclesiástica da história por milhares anos não tivesse
embotado nossas inclinações à retidão in hitoricis(1). E os filósofos apóiam a Igreja: a mentira sobre a
“ordem moral do mundo” permeia toda a filosofia, mesmo a mais recente. O que significa uma “ordem
moral do mundo”? Significa que existe uma coisa chamada vontade de Deus, a qual determina o que o
homem deve ou não fazer; que a dignidade de um povo ou de um indivíduo deve ser medida pelo seu
grau de obediência ou desobediência à vontade de Deus; que os destinos de um povo ou de um indivíduo
são controlados por essa vontade de Deus, que recompensa ou pune de acordo com a obediência ou
desobediência manifestadas. – Em lugar dessa deplorável mentira, a realidade teria isto a dizer: o padre,
essa espécie parasitária que existe às custas da toda vida sã, usa o nome de Deus em vão: chama o
estado da sociedade humana no qual ele próprio determina o valor de todas as coisas de “o reino de
Deus”; chama os meios através dos quais esse estado é alcançado de “vontade de Deus”; com um
cinismo glacial, avalia todos povos, todas épocas e todos indivíduos através de seu grau de subserviência
ou oposição do poder da ordem sacerdotal. Observemo-lo em serviço: pelas mãos do sacerdócio judaico a
grande época de Israel transfigurou-se em uma época de declínio; a Diáspora, com sua longa série de
infortúnios, foi transformada em uma punição pela grande época – na qual os padres ainda não
significavam nada. Transformaram, de acordo com suas necessidades, os heróis poderosos e
absolutamente livres da história de Israel ou em fanáticos miseráveis e hipócritas, ou em homens
totalmente “ímpios”. Reduziram todos grandes acontecimentos à estúpida fórmula: “obedientes ou
desobedientes a Deus”. – E foram mais adiante: a “vontade de Deus” (em outras palavras, as condições
necessárias para a preservação do poder dos padres) tinha de ser determinada – e para tal fim
necessitavam de uma “revelação”. Dizendo de modo mais claro, uma enorme fraude literária teve de ser
perpetrada, “sagradas escrituras” tiveram de ser forjadas – e então, com grandiosa pompa hierática e
dias penitência e muita lamentação pelos longos dias de “pecado” agora terminados, foram devidamente
publicadas. A “vontade de Deus”, ao que parece, há muito já havia sido estabelecida; o problema foi que
a humanidade negligenciou as “sagradas escrituras”... Mas a “vontade de Deus” já havia sido revelada a
Moisés... O que ocorreu? Simplesmente isto: os padres tinham formulado, de uma vez por todas e com a
mais estrita meticulosidade, que tributos deveriam ser-lhe pagos, desde o maior até o menor (– não se
esquecendo dos mais apetitosos cortes de carne, pois o padre é um grande consumidor de bifes); em
suma, ele disse o que desejava ter, qual era a “vontade de Deus”... Desse tempo em diante as coisas se
organizam de tal modo que o padre tornou-se indispensável em todos os lugares; em todos os
importantes eventos naturais da vida, no nascimento, no casamento, na enfermidade, na morte, para não
falar no “sacrifício” (ou seja, na ceia), o sacro-parasita se apresenta para os desnaturalizar – na sua
linguagem, para os “santificar”... Pois é necessário salientar isto: que todo hábito natural, toda instituição
natural (o Estado, a administração da Justiça, o casamento, os cuidados prestados aos doentes e pobres),
tudo que é exigido pelo instinto vital, em suma, tudo que tem valor em si mesmo é reduzido a algo
absolutamente imprestável e até transformado no oposto ao que é valoroso pelo o parasitismo dos padres
(ou, se alguém preferir, pela “ordem moral do mundo”). O fato precisa de uma sanção – um poder para
criar valores faz-se necessário, e tal poder só pode valorar através da negação da natureza... O padre
deprecia e profana a natureza: esse é o preço para que possa existir. – A desobediência a Deus, ou seja,
a desobediência ao padre, à lei, agora porta o nome de “pecado”; os meios prescritos para a
“reconciliação com Deus” são, é claro, precisamente os que induzem mais eficientemente um indivíduo a
sujeitar-se ao padre; apenas ele “salva”. Considerados psicologicamente, os “pecados” são indispensáveis
em toda sociedade organizada sobre fundamentos eclesiásticos; são os únicos instrumentos confiáveis de
poder; o padre vive do pecado; tem necessidade de que existam “pecadores”... Axioma Supremo: “Deus
perdoa a todo aquele que faz penitência” – ou, em outras palavras, a todo aquele que se submete ao
padre.
1 – Nas questões históricas.
XXVII
O cristianismo se desenvolveu a partir de um solo tão corrupto que nele todo o natural, todo valor
natural, toda realidade se opunha aos instintos mais profundos da classe dominante – surgiu como uma
espécie de guerra de morte contra a realidade, e como tal nunca foi superada. O “povo eleito” que para
todas as coisas adotou valores sacerdotais e nomes sacerdotais, e que, com aterrorizante lógica, rejeitou
tudo que era terrestre como “profano”, “mundano”, “pecaminoso” – esse povo colocou seus instintos em
uma fórmula final que era conseqüente até o ponto da auto-aniquilação: como cristianismo, de fato negou
mesmo a última forma da realidade, o “povo sagrado”, o “povo eleito”, a própria realidade judaica. O
fenômeno tem importância de primeira ordem: o pequeno movimento insurrecional que levou o nome de
Jesus de Nazaré é simplesmente o instinto judaico redivivus(1) – em outras palavras, é o instinto
sacerdotal que não consegue mais suportar sua própria realidade; é a descoberta de um estado
existencial ainda mais abstrato, de uma visão da vida ainda mais irreal que a necessária para uma
organização eclesiástica. O cristianismo de fato nega a igreja...
Não sou capaz de determinar qual foi o alvo da insurreição da qual Jesus foi considerado – seja
isso verdade ou não – o promotor, caso não seja a Igreja judaica – a palavra “igreja” sendo usada aqui
exatamente no mesmo sentido que possui hoje. Era uma insurreição contra “os bons e os justos”, contra
os “Santos de Israel”, contra toda a hierarquia da sociedade – não contra a corrupção, mas contra as
castas, o privilégio, a ordem, o formalismo. Era uma descrença no “homem superior”, um Não
arremessado contra tudo que padres e teólogos defendiam. Mas a hierarquia que foi posta em causa por
esse movimento, ainda que por apenas um instante, era uma jangada que, acima de tudo, era necessária
à segurança do povo judaico em meio às “águas” – representava sua última possibilidade de
sobrevivência; era o último residuum(2) de sua existência política independente; um ataque contra isso
era um ataque contra o mais profundo instinto nacional, contra a mais tenaz vontade de viver de um povo
que jamais existiu sobre a Terra. Esse santo anarquista incitou o povo de baixeza abissal, os réprobos e
“pecadores”, os chandala do judaísmo a emergirem em revolta contra a ordem estabelecida das coisas – e
com uma linguagem que, se os Evangelhos merecem crédito, hoje o conduziria à Sibéria –, esse homem
certamente era um criminoso político, ao menos tanto quanto era possível o ser em uma comunidade tão
absurdamente apolítica. Foi isso que o levou à cruz: a prova consiste na inscrição colocada sobre ela.
Morreu pelos seus pecados – não há qualquer razão para se acreditar, não importa quanto isso seja
afirmado, que tenha morrido pelo pecado dos outros. –
1 – Que retornou à vida; ressuscitado.
2 – Resíduo.
XXVIII
Se ele próprio era consciente dessa contradição – ou se, de fato, essa era a única da qual tinha
conhecimento – essa é uma questão totalmente distinta. Aqui, pela primeira vez, toco o problema da
psicologia do Salvador. – Para começar, confesso que muitos poucos livros, para mim, são mais difíceis de
ler que os Evangelhos. Minhas dificuldades são bastante diferentes daquelas que possibilitaram à
curiosidade letrada da mente alemã perpetrar um de seus triunfos mais inesquecíveis. Faz um longo
tempo desde que eu, como qualquer outro jovem erudito, desfrutava da incomparável obra de Strauss(1)
com toda a sapiente laboriosidade de um meticuloso filólogo. Naquele tempo possuía vinte anos: agora
sou sério demais para esse tipo de coisa. Que me importam as contradições da “tradição”? Como alguém
pode chamar lendas de santos de “tradição”? As histórias de santos são a mais dúbia variedade de
literatura existente; examiná-las à luz do método científico na ausência total de documentos
corroborativos a mim parece condenar toda a investigação desde suas origens – isso seria simplesmente
uma divagação erudita...
1 – David Friedrich Strauss (1808-74), autor de “Das Leben Jesu” (1835-6), uma obra muito famosa em sua época. Nietzsche
se refere a ela. (H. L. Mencken)
XXIX
O que me importa é o tipo psicológico do Salvador. Esse tipo talvez seja descrito nos evangelhos,
apesar de que em uma forma mutilada e saturada de caracteres estrangeiros – isto é, a despeito dos
Evangelhos; assim como a figura de Francisco de Assis se apresenta em suas lendas a despeito de suas
lendas. A questão não é a veracidade das evidências sobre seus feitos, seus ditos ou sobre como foi sua
morte; a questão é se seu tipo ainda pode ser compreendido, se foi conservado. – Todas as tentativas de
que tenho conhecimento de se ler a história da “alma” nos Evangelhos revelam para mim apenas uma
lamentável leviandade psicológica. O Senhor Renan, esse arrivista in psychologicis(1), contribuiu às duas
noções mais inadequadas concernentes à explicação do tipo de Jesus: a noção de gênio e a de herói
(“heros”). Mas se existe alguma coisa essencialmente antievangélica, certamente é a noção de herói. O
que os Evangelhos tornam instintivo é precisamente o oposto de todo o esforço heróico, de todo o gosto
pelo conflito: a incapacidade de resistência converte-se aqui em algo moral: (“não resistas ao mal” – a
mais profunda sentença dos Evangelhos, talvez a verdadeira chave para eles) a saber, na bemaventurança
da paz, da bondade, na incapacidade para a inimizade. Qual o significado da “boa-nova”? –
Que verdadeira vida, a vida eterna foi encontrada – não foi meramente prometida, está aqui, está em
você; é a vida que se encontra no amor livre de todos os retraimentos e exclusões, livre de todas as
distâncias. Todos são filhos Deus, Jesus não reivindica nada apenas para si; como filhos de Deus, todos os
homens são iguais... Imagine fazer de Jesus um herói! – E que tremenda incompreensão escorre da
palavra “gênio”! Toda nossa concepção do “espiritual”, toda concepção de nossa civilização não possui
qualquer sentido no mundo em que Jesus viveu. Falando com o rigor de um fisiologista, uma palavra
bastante diferente deveria ser usada aqui... Todos sabemos que há uma sensibilidade mórbida dos nervos
táteis que faz com que os sofredores evitem todo o tocar, se retraiam ante a necessidade de agarrar um
objeto sólido. Infere-se disso que, em última instância, tal habitatus(2) fisiológico transforma-se em um
ódio instintivo contra toda a realidade, em uma fuga ao “intangível”, ao “incompreensível”; uma
repugnância por toda fórmula, por todas noções de tempo e espaço, por todo o estabelecido – costumes,
instituições, Igreja –; a sensação de estar em casa em um mundo sem contado com a realidade, um
mundo exclusivamente “interior”, um mundo “verdadeiro”, um mundo “eterno”... “O reino de Deus está
dentro de vós”...
1 – Em assuntos psicológicos.
2 – Comportamento.
XXX
O ódio instintivo contra a realidade: a conseqüência de uma extremada suscetibilidade à dor e
irritação – tão intensa que meramente ser “tocado” torna-se insuportável, pois cada sensação manifestase
muito profundamente.
A exclusão instintiva de toda aversão, toda hostilidade, todas as fronteiras e distâncias no
sentimento: a conseqüência de uma extremada suscetibilidade à dor e irritação – tão grande que sente
toda a resistência, toda a compulsão à resistência como uma angústia insuportável (– em outros termos,
como nocivo, como proibido pelo instinto de autopreservação), e considera a bem-aventurança (alegria)
como algo possível apenas após não ser mais necessário oferecer resistência a nada nem a ninguém, nem
mesmo ao mal e ao perigoso – amor como única, como a última possibilidade de vida...
Essas são as duas realidades fisiológicas a partir das quais e por causa das quais a doutrina da
salvação se desenvolveu. Denomino-as um sublime hedonismo superdesenvolvido assentado sobre um
solo completamente insalubre. O que fica mais próximo delas, apesar de misturado com uma grande dose
de vitalidade grega e força nervosa, é o epicurismo, a teoria da salvação do paganismo. Epicuro era um
típico decadente: fui o primeiro a reconhecê-lo. – O medo da dor, mesmo da dor infinitamente pequena –
o resultado disso não pode ser qualquer coisa exceto uma religião do amor...
XXXI
Antecipadamente dei minha resposta ao problema. Seu pré-requisito é a assunção de que o tipo
do Salvador chegou até nós com sua forma altamente distorcida. Tal distorção é muito provável: há
muitos motivos para que esse tipo não deva ser transmitido em sua forma pura, completa e livre de
acréscimos. O ambiente no qual esta estranha figura se movia deve ter deixado vestígios nela, e ainda
mais deve ter sido feito pela história, pelo destino das primeiras comunidades cristãs; a última, de fato,
deve ter embelezado o tipo retrospectivamente com caracteres que apenas podem ser compreendidos
enquanto finalidades de guerra e propaganda. Aquele mundo estranho e doentio ao qual os Evangelhos
nos conduzem – um mundo aparentemente vindo de uma novela russa, no qual a escória da sociedade,
as moléstias nervosas e a idiotice “pueril” se reúnem – deve, de qualquer modo, ter tornado o tipo
grosseiro: os primeiros discípulos, em particular, devem ter sido forçados a traduzir, com sua crueza
própria, um ser totalmente formado por símbolos e coisas ininteligíveis para poderem compreender
alguma coisa – na visão deles o tipo apenas existiu após ter sido reformado em moldes mais familiares...
O profeta, o messias, o futuro juiz, o professor de moral, o milagreiro, João Batista – todas simplesmente
chances de desfigurá-lo... Finalmente, não subestimemos o proprium(1) de todas as grandes venerações,
especialmente as sectárias: tendem a apagar dos objetos venerados todas as características originais e
idiossincrasias, não raro dolorosamente estranhas – nem mesmo os vê. Deve-se lamentar muito que
nenhum Dostoievski tenha vivido nas vizinhanças do mais interessante dos décadents – ou seja, alguém
que teria sentido o comovente encanto de tal mistura do sublime, do mórbido e do infantil. Em última
análise, o tipo, enquanto tipo da decadência, talvez possa realmente ter sido peculiarmente complexo e
contraditório: não se deve excluir essa possibilidade. Contudo, as probabilidades parecem estar em seu
desfavor, pois neste caso a tradição teria sido particularmente precisa e objetiva, enquanto temos razões
para admitir o contrário. Entretanto, existe uma contradição entre o pacífico pregador das montanhas,
dos lagos e dos campos, que parece como um novo Buda em um solo muito pouco indiano, e o fanático
agressivo, o inimigo mortal dos teólogos e dos eclesiásticos, que é glorificado pela malícia de Renan como
“lê grand maitre em ironie(2)”. Pessoalmente não tenho qualquer dúvida de que a maior parte desse
veneno (e não menos de esprit(3)) haja penetrado no tipo do Mestre apenas como um resultado da
agitada natureza da propaganda cristã: todos conhecemos a inescrupulosidade dos sectários quando
decidem fazer de seu líder uma apologia para si mesmos. Quando os primeiros cristãos precisaram de um
teólogo hábil, contencioso, pugnaz e maliciosamente sutil para enfrentar outros teólogos, criaram um
“Deus” para satisfazer tal necessidade, exatamente como também, sem hesitação, colocaram em sua
boca certas idéias que eram necessárias a eles, mas totalmente divergentes dos Evangelhos – “a volta de
Cristo”, “o juízo final”, todos os tipos de expectativas e promessas temporais. –
1 – Propriedade, qualidade.
2 – O grande mestre em ironia.
3 – Espírito, ironia.
XXXII
Repito que me oponho a todos os esforços para introduzir o fanatismo na figura do Salvador: a
própria palavra imperieux(1), usada por Renan, sozinha é suficiente para anular o tipo. A “boa-nova” nos
diz simplesmente que não existem mais contradições; o reino de Deus pertence às crianças; a fé
anunciada aqui não é mais conquistada por lutas – está ao alcance das mãos, existiu desde o princípio, é
um tipo de infantilidade que se refugiou no espiritual. Tal puberdade retardada e incompleta dos
organismos é familiar aos fisiologistas como sintoma da degeneração. A fé desse tipo não é furiosa, não
denuncia, não se defende: não empunha “espada” – não entende como poderia um dia colocar homem
contra homem. Não se manifesta através de milagres, recompensas, promessas ou “escrituras”: é, do
principio ao fim, seu próprio milagre, sua própria recompensa, sua própria promessa, seu próprio “reino
de Deus”. Essa fé não se formula – simplesmente vive, e assim guarda-se contra fórmulas. Com certeza,
a casualidade do ambiente, da formação educacional dá proeminência aos conceitos de certa espécie: no
cristianismo primitivo encontramos apenas noções de caráter judaico-semítico (– a de comer e beber em
comunhão pertence a esta categoria – uma idéia que, como tudo que é judaico, foi severamente fustigada
pela Igreja). Cuidemo-nos para não ver nisso tudo mais que uma linguagem simbólica, uma
semântica(2), uma oportunidade para falar em parábolas. A teoria de que nenhuma palavra deve ser
tomada ao pé da letra era um pressuposto para que este anti-realista pudesse discursar. Colocado entre
hindus teria usado os conceitos de Shanhya(3), e entre chineses os de Lao-Tsé(4) – e em ambos os casos
isso não faria qualquer diferença a ele. – Tomando uma pequena liberdade no uso das palavras, alguém
poderia de fato chamar Jesus de “espírito livre(5)” – não lhe importa o que está estabelecido: a palavra
mata(6), tudo aquilo que é estabelecido mata. A noção de “vida” como uma experiência, como apenas ele
a concebe, a seu ver encontra-se em oposição a todo tipo de palavra, fórmula, lei, crença e dogma. Fala
apenas de coisas interiores: “vida”, ou “verdade”, ou “luz”, são suas palavras para o mundo interior – a
seu ver todo o resto, toda a realidade, toda natureza, mesmo a linguagem, tem valor apenas como um
sinal, uma alegoria. – Aqui é de suprema importância não se deixar conduzir ao erro pelas tentações
existentes nos preconceitos cristãos, ou melhor, eclesiásticos: este simbolismo par excellence encontra-se
alheio a toda religião, todas noções de adoração, toda história, toda ciência natural, toda experiência
mundana, todo conhecimento, toda política, toda psicologia, todos livros, toda arte – sua “sabedoria” é
precisamente a ignorância pura(7) em relação a todas essas coisas. Nunca ouviu falar de cultura; não a
combate – nem mesmo a nega... O mesmo pode ser dito do Estado, de toda a ordem social burguesa, do
trabalho, da guerra – não tem motivos para negar o “mundo”, nem sequer tem conhecimento do conceito
eclesiástico de “mundo”... Precisamente a negação lhe era impossível. – De modo idêntico carece de
capacidade argumentativa, não acredita que um artigo de fé, que uma “verdade” possa ser estabelecida
através de provas (– suas provas são “iluminações” interiores, sensações subjetivas de felicidade e autoafirmação,
simples “provas de força” –). Tal doutrina não pode contradizer: não sabe que outras doutrinas
existem ou podem existir, é inteiramente incapaz de imaginar um juízo oposto... E se, porventura, o
encontra, lamenta por tal “cegueira” com uma sincera compaixão – pois somente ela vê a “luz” – no
entanto não fará quaisquer objeções...
1 – Imperioso.
2 – A palavra semiótica está no texto, mas é provável que semântica seja a palavra que Nietzsche tinha em mente. (H. L.
Mencken)
3 – Um dos seis grandes sistemas da filosofia hindu. (H. L. Mencken)
4 – Considerado o fundador do taoísmo. (H. L. Mencken)
5 – O nome que Nietzsche da aos que aceitam sua filosofia. (H. L. Mencken)
6 – Isto é, a rigorosa palavra da lei – o objetivo mais importante nas primeiras pregações de Jesus. (H. L. Mencken)
7 – Referência à “ignorância pura” (reine Thorheit) do Parsifal de Richard Wagner. (H. L. Mencken)
XXXIII
Em toda a psicologia dos Evangelhos os conceitos de culpa e punição estão ausentes, e o mesmo
vale para o de recompensa. O “pecado”, que significa tudo aquilo que distancia o homem de Deus, é
abolido – essa é precisamente a “boa-nova”. A felicidade eterna não está meramente prometida, nem
vinculada a condições: é concebida como a única realidade – todo o restante não são mais que sinais
úteis para falar dela.
Os resultados de tal ponto de vista projetam-se em um novo estilo de vida, um estilo de vida
especialmente evangélico. Não é a “fé” que o distingue do cristão; a distinção se estabelece através da
maneira de agir; ele age diferentemente. Não oferece resistência, nem em palavras, nem em seu coração,
àqueles que lhe são opositores. Não vê diferença entre estrangeiros e conterrâneos, judeus e pagãos
(“próximo”, é claro, significa correligionário, judeu). Não se irrita com ninguém, não despreza ninguém.
Não apela às cortes de justiça nem se submete às suas decisões (“não prestar juramento”(1)). Nunca,
quaisquer sejam as circunstâncias, se divorcia de sua esposa, mesmo que possua provas de sua
infidelidade. – No fundo, tudo isso é um princípio; tudo surge de um instinto. –
A vida do salvador foi simplesmente professar essa prática – e também em sua morte... Não
precisava mais de qualquer formula ou ritual em suas relações com Deus – nem sequer da oração.
Rejeitou toda a doutrina judaica do arrependimento e recompensa; sabia que apenas através da vivência,
de um estilo de vida alguém poderia se sentir “divino”, “bem-aventurado”, “evangélico”, “filho de Deus”.
Não é o “arrependimento”, não são a “oração e o perdão” o caminho para Deus: apenas o modo de viver
evangélico conduz a Deus – isso é justamente o próprio o “Deus”! – O que os Evangelhos aboliram foi o
judaísmo presente nas idéias de “pecado”, “remissão dos pecados”, “salvação através da fé” – toda a
dogmática eclesiástica dos judeus foi negada pela “boa-nova”.
O profundo instinto que leva o cristão a viver de modo que se sinta “no céu” e “imortal”, apesar
das muitas razões para sentir que não está “no céu”: essa é a única realidade psicológica na “salvação”. –
Uma nova vida, não uma nova fé.
1 – Mateus 5:34.
XXXIV
Se compreendo alguma coisa sobre esse grande simbolista, é isto: que considerava apenas
realidades subjetivas como reais, como “verdades” – que viu todo o resto, todo o natural, temporal,
espacial e histórico apenas como símbolos, como material para parábolas. O conceito de “Filho de Deus”
não designa uma pessoa concreta na história, um indivíduo isolado e definido, mas um fato “eterno”, um
símbolo psicológico desvinculado da noção de tempo. O mesmo é válido, no sentido mais elevado, para o
Deus desse típico simbolista, para o “reino de Deus” e para a “filiação divina”. Nada poderia ser mais
acristão que as cruas noções eclesiásticas de um Deus como pessoa, de um “reino de Deus” vindouro, de
um “reino dos céus” no além e de um “filho de Deus” como segunda pessoa da Trindade. Isso tudo –
perdoem-me a expressão – é como soco no olho (e que olho!) do Evangelho: um desrespeito aos
símbolos elevado a um cinismo histórico-mundial... Todavia é suficientemente óbvio o significado dos
símbolos “Pai” e “Filho” – não para todos, é claro –: a palavra “Filho” expressa a entrada em um
sentimento de transformação de todas as coisas (beatitude); “Pai” expressa esse próprio sentimento – a
sensação da eternidade e perfeição. – Envergonho-me de lembrar o que a Igreja fez com esse
simbolismo: ela não colocou uma história de Anfitrião(1) no limiar da “fé” cristã? E um dogma da
“imaculada conceição” ainda por cima?... – Com isso conseguiu apenas macular a concepção...
O “reino dos céus” é um estado de espírito – não algo que virá “além do mundo” ou “após a
morte”. Toda a idéia de morte natural está ausente nos Evangelhos: a morte não é uma ponte, não é uma
passagem; está ausente porque pertence a um mundo bastante diferente, um mundo apenas aparente,
apenas útil enquanto símbolo. A “hora da morte” não é uma idéia cristã – “horas”, tempo, a vida física e
suas crises são inexistentes para o mestre da “boa-nova”...
O “reino de Deus” não é uma coisa pela qual os homens aguardam: não teve um ontem nem terá
um amanhã, não virá em um “milênio” – é uma experiência do coração, está em toda parte e não está em
parte alguma...
1 – Mitologia grega. Anfitrião era o filho de Alceu. Alcmena era sua esposa. Durante sua ausência ela foi visitada por Zeus e
Heracles. (H. L. Mencken)
XXXV
O “portador da boa-nova” morreu assim como viveu e ensinou – não para “salvar a humanidade”,
mas para demonstrar-lhe como viver. Seu legado ao homem foi um estilo de vida: sua atitude ante os
juízes, ante os oficiais, ante seus acusadores – sua atitude perante a cruz. Não resiste; não defende seus
direitos; não faz qualquer esforço para evitar a maior das penalidades – ainda mais, a convida... E roga,
sofre e ama com aqueles, por aqueles que o maltratam. Não se defender, não se encolerizar, não culpar...
Mas igualmente não resistir ao mal – amá-lo...
XXXVI
– Nós, espíritos livres – nós somos os primeiros a possuir os pré-requisitos para entender o que,
por dezenove séculos, permaneceu incompreendido – temos aquele instinto e paixão pela integridade que
declara uma guerra muito mais ferrenha contra a “sagrada mentira” que contra todas as outras
mentiras... A humanidade estava indizivelmente distante de nossa benevolente e cautelosa neutralidade,
de nossa disciplina de espírito que sozinha torna possível solucionar coisas tão estranhas e sutis: o que os
homens sempre buscaram, com descarado egoísmo, foi sua própria vantagem; criaram a Igreja a partir
da negação dos Evangelhos...
Todos que procurassem por sinais de uma divindade irônica que maneja os cordéis por detrás do
grande drama da existência não encontrariam pequena evidência neste estupendo ponto de interrogação
chamado cristianismo. A humanidade ajoelha-se exatamente perante a antítese do que era a origem, o
significado e a lei dos Evangelhos – santificaram no conceito de “Igreja” justamente o que o “portador da
boa-nova” considerava abaixo si, atrás de si – seria vão procurar por um melhor exemplo de ironia
histórico-mundial –
XXXVII
– Nossa época orgulha-se de seu senso histórico: como, então, se permitiu acreditar que a
grosseira fábula do fazedor de milagres e Salvador constitui as origens do cristianismo – e que tudo nele
de espiritual e simbólico surgiu apenas posteriormente? Muito pelo contrário, toda a história do
cristianismo – da morte na cruz em diante – é a história de uma incompreensão progressivamente
grosseira de um simbolismo original. Com toda a difusão do cristianismo entre massas mais vastas e
incultas, até mesmo incapazes de compreender os princípios dos quais nasceu, surgiu a necessidade de
torná-lo mais vulgar e bárbaro – absorveu os ensinamentos e rituais de todos cultos subterrâneos do
imperium Romanum e as absurdidades engendradas por todo tipo de raciocínio doentio. Era o destino do
cristianismo que sua fé se tornasse tão doentia, baixa e vulgar quanto as necessidades doentias, baixas e
vulgares que tinha de administrar. O barbarismo mórbido finalmente ascende ao poder com a Igreja – a
Igreja, esta encarnação da hostilidade mortal contra toda a honestidade, toda grandeza de alma, toda
disciplina do espírito, toda humanidade espontânea e bondosa. – Valores cristãos – valores nobres:
apenas nós, espíritos livres, restabelecemos a maior das antíteses em matéria de valores!...
XXXVIII
– Não posso, neste momento, evitar um suspiro. Há dias em que sou visitado por um sentimento
mais negro que a mais negra melancolia – o desprezo pelos homens. Que não haja qualquer dúvida sobre
o que desprezo, sobre quem desprezo: é o homem de hoje, do qual desgraçadamente sou
contemporâneo. O homem de hoje – seu hálito podre me asfixia!... Em relação ao passado, como todos
estudiosos, tenho muita tolerância, ou seja, um generoso autocontrole: com uma melancólica precaução
atravesso milênios inteiros de mundo-manicômio, chamem isso de “cristianismo”, “fé cristã” ou “Igreja
cristã”, como desejaram – tomo o cuidado de não responsabilizar a humanidade por sua demência. Mas
um sentimento irrefreável irrompe no momento em que entro nos tempos modernos, nos nossos tempos.
Nossa época é mais esclarecida... O que era antigamente apenas doentio agora se tornou indecente – é
uma indecência ser cristão hoje em dia. E aqui começa minha repugnância. – Olho à minha volta: não
resta sequer uma palavra do que outrora se chamava “verdade”; já não suportamos mais que um padre
pronuncie tal palavra. Mesmo um homem com as mais modestas pretensões à integridade precisa saber
que um teólogo, um padre, um papa de hoje não apenas se engana quando fala, mas na verdade mente –
já não se isenta de sua culpa através da “inocência” ou da “ignorância”. O padre sabe, como todos sabem,
que não há qualquer “Deus”, nem “pecado”, nem “salvador” – que o “livre arbítrio” e a “ordem moral do
mundo” são mentiras –: a reflexão séria, a profunda auto-superação espiritual impedem que quaisquer
homens finjam não saber disso... Todas idéias da Igreja agora estão reconhecidas pelo que são – as
piores falsificações existentes, inventadas para depreciar a natureza e todos os valores naturais; o padre
é visto como realmente é – como a mais perigosa forma de parasita, como a peçonhenta aranha da
criação... – Nós sabemos, nossa consciência agora sabe – exatamente qual era o verdadeiro valor de
todas essas sinistras invenções do padre e da Igreja e para que fins serviram, com sua desvalorização da
humanidade ao nível da autopoluição, cujo aspecto inspira náusea – os conceitos de “outro mundo”, de
“juízo final”, de “imortalidade da alma”, da própria “alma”: não passam de instrumentos de tortura,
sistemas de crueldade através dos quais o padre torna-se mestre e mantém-se mestre... Todos sabem
disso, mas, mesmo assim, nada mudou. Para onde foi nosso último resquício decência, de auto-respeito
se nossos homens de Estado, no geral uma classe de homens não convencionais e profundamente
anticristãos em seus atos, agora se denominam cristãos e vão à mesa de comunhão?... Um príncipe à
frente de seus regimentos, magnificente enquanto expressão do egoísmo e arrogância de seu povo – e
mesmo assim declarando, sem qualquer vergonha, que é um cristão!...(1) Quem, então, o cristianismo
nega? O que ele chama “o mundo”? Ser soldado, ser juiz, ser patriota; defender-se a si mesmo; zelar
pela sua honra; desejar sua própria vantagem; ser orgulhoso... Toda prática trivial, todo instinto, toda
valoração convertida em ato agora é anticristã: que monstro de falsidade o homem moderno precisa ser
para se denominar um cristão sem envergonhar-se! –
1 – Nietzsche refere-se ao Kaiser Guilherme II, que subira ao trono da Alemanha em 15 de abril de 1888, cinco meses antes
da redação de O Anticristo. (Pietro Nasseti)
XXXIX
– Farei uma pequena regressão para explicar a autêntica história do cristianismo. – A própria
palavra “cristianismo” é um mal-entendido – no fundo só existiu um cristão, e ele morreu na cruz. O
“Evangelho” morreu na cruz. O que, desse momento em diante, chamou-se de “Evangelho” era
exatamente o oposto do que ele viveu: “más novas”, um Dysangelium(1). É um erro elevado à estupidez
ver na “fé”, e particularmente na fé na salvação através de Cristo, o sinal distintivo do cristão: apenas a
prática cristã, a vida vivida por aquele que morreu na cruz, é cristã... Hoje tal vida ainda é possível, e
para certos homens até necessária: o cristianismo primitivo, genuíno, continuará sendo possível em
quaisquer épocas... Não fé, mas atos; acima de tudo, um evitar atos, um modo diferente de ser... Os
estados de consciência, uma fé qualquer, por exemplo, a aceitação de alguma coisa como verdade – como
todo psicólogo sabe, o valor dessas coisas é perfeitamente indiferente e de quinta ordem se comparado
ao dos instintos: estritamente falando, todo o conceito de causalidade intelectual é falso. Reduzir o ato ser
cristão, o estado de cristianismo, a uma aceitação da verdade, a um mero fenômeno de consciência,
equivale a formular uma negação do cristianismo. De fato, não existem cristãos. O “cristão” – aquele que
por dois mil anos passou-se por cristão – é simplesmente uma auto-ilusão psicológica. Examinado de
perto, parece que, apesar de toda sua “fé”, foi apenas governado por seus instintos – e que instintos! –
Em todas as épocas – por exemplo, no caso de Lutero – “fé” nunca foi mais que uma capa, um pretexto,
uma cortina por detrás da qual os instintos faziam seu jogo – uma engenhosa cegueira à dominação de
certos instintos... Eu já denominei a “fé” uma habilidade especialmente cristã – sempre se fala de “fé”
mas se age de acordo com os instintos... No mundo de idéias do cristão não há qualquer coisa que sequer
toque a realidade: ao contrário, reconhece-se um ódio instintivo contra a realidade como força
motivadora, como único poder de motivação no fundo do cristianismo. Que se segue disso? Que mesmo
aqui, in psychologicis, há um erro radical, isto é, determinante da essência, ou seja, da substância.
Retire-se uma idéia e coloque-se uma realidade genuína em seu lugar – e todo o cristianismo reduz-se a
um nada! – Visto calmamente, este fenômeno é dos mais estranhos, uma religião não apenas dependente
de erros, mas inventiva e engenhosa apenas em criar erros nocivos, venenosos à vida e ao coração –
constitui um verdadeiro espetáculo para os Deuses – para aquelas divindades que também são filósofas,
as quais encontrei, por exemplo, nos célebres diálogos de Naxos. No momento em que a repugnância as
deixar (– e também a nós!) ficarão agradecidas pelo espetáculo proporcionado pelos cristãos: talvez por
causa desta curiosa exibição somente o miserável e minúsculo planeta chamado Terra mereça olhar
divino, uma demonstração de interesse divino... Portanto, não subestimemos os cristãos: o cristão, falso
até a inocência, está muito acima do macaco – uma teoria das origens bastante conhecida(2), quando
aplicada aos cristãos, torna-se simplesmente uma delicadeza...
1 – Um dos muitos neologismos de Nietzsche. Ele compõe este vocábulo angelium (cuja origem vem do grego e que significa
“nova”, “notícia”) fazendo oposição com os prefixos dys (mau, infeliz – “notícia má”) e eu (bom, feliz – “boa nova”, “boa
notícia”). (Pietro Nasseti)
2 – Referência à teoria de Charles Darwin sobre as origens do homem. (Pietro Nasseti)
XL
– O destino do Evangelho foi decidido no momento de sua morte – foi pendurado na “cruz”...
Somente a morte, essa inesperada e vergonhosa morte; somente a cruz, a qual geralmente era reservada
apenas à canalha – somente este assombroso paradoxo colocou os discípulos face a face com o
verdadeiro enigma: “Quem era este? O que era este?” – O sentimento de desalento, de profunda afronta
e injúria; a suspeita de que tal morte poderia constituir uma refutação de sua causa; a terrível questão
“Por que aconteceu assim?” – esse estado mental é facilmente compreensível. Aqui tudo precisa ser
considerado como necessário; tudo precisa ter um significado, uma razão, uma elevadíssima razão; o
amor de um discípulo exclui todo o acaso. Apenas então da fenda da dúvida bocejou: “Quem o matou?
Quem era seu inimigo natural?” – essa pergunta reluziu como um relâmpago. Resposta: o judaísmo
dominante, a classe dirigente. A partir desse momento revoltaram-se contra a ordem estabelecida,
começaram a compreender Jesus como um insurrecto contra a ordem estabelecida. Até então este
elemento militante, negador estava ausente em sua imagem; ainda mais, isso representava seu próprio
oposto. Decerto a pequena comunidade não havia compreendido o que era precisamente o mais
importante: o exemplo oferecido pela sua morte, a liberdade, a superioridade sobre todo o ressentimento
– uma plena indicação de quão pouco foi compreendido! Tudo que Jesus poderia desejar através de sua
morte, em si mesma, era oferecer publicamente a maior prova possível, um exemplo de seus
ensinamentos. Mas os discípulos estavam muito longe de perdoar sua morte – apesar de que fazê-lo seria
consoante ao evangelho no mais alto grau; e também não estavam preparados para se oferecerem, com
doce e suave tranqüilidade de coração, a uma morte similar... Muito pelo contrário, foi precisamente o
menos evangélico dos sentimentos, a vingança, que os possuiu. Parecia-lhes impossível que a causa
devesse perecer com sua morte: “recompensa” e “julgamento” tornaram-se necessários (– e o que
poderia ser menos evangélico que “recompensa”, “punição” e “julgamento”!). – Uma vez mais a crença
popular na vinda de um messias apareceu em primeiro plano; a atenção foi direcionada a um momento
histórico: o “reino de Deus” virá para julgar seus inimigos... Mas nisso tudo há um mal-entendido
gigantesco: conceber o “reino de Deus” como ato final, como uma simples promessa! O Evangelho havia
sido, de fato, a própria encarnação, o cumprimento, a realização desse “reino de Deus”. Foi apenas então
que todo o desprezo e acridez contra fariseus e teólogos começaram a aparecer no tipo do Mestre, que
com isso foi transformado, ele próprio, em fariseu e teólogo! Por outro lado, a selvagem veneração dessas
almas completamente desequilibradas não podia mais suportar a doutrina do Evangelho, ensinada por
Jesus, sobre os direitos iguais entre todos os homens à filiação divina: sua vingança consistiu em elevar
Jesus de modo extravagante, destarte separando-o deles: exatamente como, em tempos anteriores, os
judeus, para vingarem-se de seus inimigos, se separaram de seu Deus e o elevaram às alturas. Este Deus
único e este filho único de Deus: ambos foram produtos do ressentimento...
XLI
– E a partir desse momento surgiu um problema absurdo: “Como pôde Deus permiti-lo?” Para o
qual a perturbada lógica da pequena comunidade formulou uma resposta assustadoramente absurda:
Deus deu seu filho em sacrifício para a remissão dos pecados. De uma só vez acabaram com o Evangelho!
O sacrifício pelos pecados, e em sua forma mais obnóxia e bárbara: o sacrifício do inocente pelo pecado
dos culpados! Que paganismo apavorante! – O próprio Jesus havia suprimido o conceito de “culpa”,
negava a existência de um abismo entre Deus e o homem; ele viveu essa unidade entre Deus e o homem,
que era precisamente a sua “boa-nova”... E não como um privilégio! – Desde então o tipo do Salvador foi
sendo corrompido, pouco a pouco, pela doutrina do julgamento e da segunda vinda, a doutrina da morte
como sacrifício, a doutrina da ressurreição, através da qual toda a noção de “bem-aventurança”, a inteira
e única realidade dos Evangelhos é escamoteada – em favor de um estado existencial pós-morte!... Paulo,
com aquela insolência rabínica que permeia todos seus atos, deu um caráter lógico a essa concepção
indecente deste modo: “Se Cristo não ressuscitou de entre os mortos, então é vã toda a nossa fé” – E de
súbito converteu-se o Evangelho na mais desprezível e irrealizável das promessas, a petulante doutrina
da imortalidade do indivíduo... E Paulo a pregava como uma recompensa!...
XLII
Agora se começa a ver justamente o que terminava com a morte na cruz: um esforço novo e
totalmente original para fundar um movimento de pacifismo budístico, e assim estabelecer a felicidade na
Terra – real, não meramente prometida. Pois esta é – como já demonstrei – a diferença essencial entre as
duas religiões da decadência: o budismo não promete, mas de fato cumpre; o cristianismo promete tudo,
mas não cumpre nada. – A “boa nova” foi seguida rente aos calcanhares pela “péssima nova”: a de Paulo.
Paulo encarna exatamente o tipo oposto ao “portador da boa nova”; representa o gênio do ódio, a visão
do ódio, a inexorável lógica do ódio. O que esse disangelista(1) não ofereceu em sacrifício ao ódio! Acima
de tudo, o Salvador: ele pregou-o em sua própria cruz. A vida, o exemplo, o ensinamento, a morte de
Cristo, o significado e a lei de todo o Evangelho – nada disso restou após esse falsário, com seu ódio, ter
reduzido tudo ao que lhe tivesse utilidade. Certamente não a realidade, certamente não a verdade
histórica!... E uma vez mais o instinto sacerdotal do judeu perpetrou o mesmo grande crime contra a
História – simplesmente extirpou o ontem e o anteontem do cristianismo e inventou sua própria história
das origens do cristianismo. Ainda mais, fez da história de Israel outra falsificação, para que assim se
tornasse uma mera pré-história de seus feitos: todos os profetas falavam de seu “Salvador”... Mais
adiante a Igreja falsificou até a história da humanidade para transformá-la em uma pré-história do
cristianismo... A figura do Salvador, seus ensinamentos, seu estilo de vida, sua morte, o significado de
sua morte, mesmo as conseqüências de sua morte – nada permaneceu intocado, nada permaneceu
sequer semelhante à realidade. Paulo simplesmente deslocou o centro de gravidade daquela vida inteira
para um local detrás desta existência – na mentira do Jesus “ressuscitado”. No fundo, a vida do salvador
não lhe tinha qualquer utilidade – o que necessitava era de uma morte na cruz e de algo mais. Ver
qualquer coisa honesta em Paulo, cuja casa estava no centro da ilustração estóica, quando converteu uma
alucinação em uma prova da ressurreição do Salvador, ou mesmo acreditar na narrativa de que ele
próprio sofreu essa alucinação – isso seria uma genuína niaiserie(2) da parte de um psicólogo. Paulo
desejava o fim; logo, também desejava os meios. – Aquilo que ele próprio não acreditava foi prontamente
engolido por suficientes idiotas entre os quais disseminou seu ensinamento. – Seu desejo era o poder; em
Paulo o padre novamente quis chegar ao poder – só podia servir-se de conceitos, ensinamentos e
símbolos que tiranizam as massas e formam rebanhos. Qual parte do cristianismo Maomé tomou
emprestada mais tarde? A invenção de Paulo, sua técnica para estabelecer a tirania sacerdotal e organizar
rebanhos: a crença na imortalidade da alma – isto é, a doutrina do “julgamento”.
1 – “Portador da má notícia”
2 – Parvoíce, tolice.
XLIII
Quando centro de gravidade da vida é colocado, não nela mesma, mas no “além” – no nada –,
então se retirou da vida o seu centro de gravidade. A grande mentira da imortalidade pessoal destrói toda
razão, todo instinto natural – tudo que há nos instintos que seja benéfico, vivificante, que assegure o
futuro, agora é causa de desconfiança. Viver de modo que a vida não tenha sentido: agora esse é o
“sentido” da vida... Para que o espírito público? Para que se orgulhar pela origem e antepassados? Para
que cooperar, confiar, preocupar-se com o bem-estar geral e servir a ele?... Outras tantas “tentações”,
outros tantos desvios do “bom caminho”. – “Somente uma coisa é necessária”... Que todo homem, por
possuir uma “alma imortal”, tenha tanto valor quanto qualquer outro homem; que na totalidade dos seres
a “salvação” de todo indivíduo um possa reivindicar uma importância eterna; que beatos insignificantes e
desequilibrados possam imaginar que as leis da natureza são constantemente transgredidas em seu favor
– não há como expressar desprezo suficiente por tamanha intensificação de toda espécie de egoísmos ad
infinitum, até a insolência. E, contudo, o cristianismo deve o seu triunfo precisamente a essa deplorável
bajulação de vaidade pessoal – foi assim que seduziu ao seu lado todos os malogrados, os insatisfeitos, os
vencidos, todo o refugo e vômito da humanidade. A “salvação da alma” – em outras palavras: “o mundo
gira ao meu redor”... A venenosa doutrina dos “direitos iguais para todos” foi propagada como um
princípio cristão: a partir dos recônditos mais secretos dos maus instintos o cristianismo travou uma
guerra de morte contra todos os sentimentos de reverência e distância entre os homens, ou seja, contra o
primeiro pré-requisito de toda evolução, de todo desenvolvimento da civilização – do ressentimento das
massas forjou sua principal arma contra nós, contra tudo que é nobre, alegre, magnânimo sobre a terra,
contra nossa felicidade na Terra... Conceder a “imortalidade” a qualquer Pedro e Paulo foi a maior e mais
viciosa afronta à humanidade nobre já perpetrada. – E não subestimemos a funesta influência que o
cristianismo exerceu mesmo na política! Atualmente ninguém mais possui coragem para os privilégios,
para o direito de dominar, para os sentimentos de veneração por si e seus iguais – para o pathos da
distância... Nossa política está debilitada por essa falta de coragem! – Os sentimentos aristocráticos foram
subterraneamente carcomidos pela mentira da igualdade das almas; e se a crença nos “privilégios da
maioria” faz e continuará a fazer revoluções – é o cristianismo, não duvidemos disso, são as valorações
cristãs que convertem toda revolução em um carnaval de sangue e crime! O cristianismo é uma revolta de
todas as criaturas rastejantes contra tudo que é elevado: o Evangelho dos “baixos” rebaixa...
XLIV
– Os Evangelhos são inestimáveis como evidência da corrupção já arraigada dentro da
comunidade cristã primitiva. O que Paulo, com a cínica lógica de um rabino, posteriormente levou a cabo
era no fundo apenas um processo de degradação que se iniciou com a morte do Salvador. – Nenhum
esmero é demais na leitura dos Evangelhos; dificuldades se ocultam por detrás de cada palavra. Eu
confesso – espero que ninguém me leve a mal – que precisamente por essa razão oferecem um deleite de
primeira ordem a um psicólogo – como o oposto de toda corrupção ingênua, como um refinamento par
excellence, como uma arte da corrupção psicológica. Os Evangelhos, de fato, estão à parte. A Bíblia em
geral não deve ser comparada a eles. Estamos entre judeus: essa é a primeira coisa que devemos ter em
mente se não quisermos perder o fio do assunto. A genialidade empregada para criar a ilusão de
“santidade” pessoal permanece sem paralelos, tanto nos livros quanto nos homens; essa elevação da
falsidade na palavra e nos gestos ao nível de arte – isso tudo não se deve ao acaso de um talento
individual, de alguma natureza excepcional. O necessário aqui é a raça. Todo o judaísmo manifesta-se no
cristianismo como a arte de forjar mentiras sagradas, como a técnica judaica que após muitos séculos de
aprendizado e treinamento sério chegou à sua mais alta maestria. O cristão, essa ultima ratio(1) da
mentira, é o judeu mais uma vez – é triplicemente judeu... A vontade subjacente de utilizar somente
conceitos, símbolos e atitudes que convém à práxis sacerdotal, o repúdio instintivo a qualquer outra
perspectiva e a qualquer outro método para estimar valor e utilidade – isso não é somente uma tradição,
é uma herança: apenas como uma herança é capaz de operar com força natural. Toda a humanidade,
mesmo as maiores mentes das maiores épocas (com uma exceção que, talvez, mal fosse humana –),
deixou-se enganar. O Evangelho foi lido como um livro da inocência... certamente nenhuma modesta
indicação do alto grau de perícia com que o truque foi feito. – É claro, se pudéssemos de fato ver esses
carolas e santos falsos, mesmo que apenas por um instante, a farsa seria posta a fim – e precisamente
porque não consigo ler suas palavras sem também ver seus gestos que acabei com eles... Simplesmente
não consigo suportar a maneira com que levantam os olhos. – Para a maioria, felizmente, livros não
passam de literatura. – Que não nos deixemos induzir em erro: eles dizem “não julgueis”, mas condenam
ao inferno tudo que fica em seu caminho. Ao deixarem Deus julgar, são eles próprios que julgam; ao
glorificarem Deus, glorificam a si mesmos; ao exigirem que todos manifestem as virtudes para as quais
são aptos – mais ainda, das quais precisam para permanecer no topo –, assumem o aspecto de homens
em uma luta pela virtude, de homens engajados numa guerra para que a virtude prevaleça. “Nós
vivemos, morremos, sacrificamo-nos pelo bem” (– “a verdade”, “a luz”, “o reino de Deus”): na realidade,
simplesmente fazem o que não podem deixar de fazer. Forçados, como hipócritas, a serem furtivos, se
esconderem nos cantos, se esquivarem pelas sombras, convertem sua necessidade em dever: é como um
dever que surge sua vida humilde, e tal humildade converte-se em mais uma prova de devoção... Ah,
essa humilde, casta e misericordiosa fraude! “A própria virtude deve testemunhar em nosso favor”...
Leiam-se os Evangelhos como livros de sedução moral: essa gentinha insignificante se atrela à moral –
conhecem perfeitamente suas utilidades! A moral é o melhor meio para conduzir a humanidade pelo nariz!
– A verdade é que a mais consciente presunção dos eleitos disfarça-se de modéstia: desse modo
colocaram a si próprios, a “comunidade”, os “bons e justos”, de uma vez por todas, de um lado, do lado
da “verdade” – e o resto da humanidade, “o mundo”, do outro... Nisto observamos a espécie mais fatal de
megalomania que a Terra já testemunhou: pequenos abortos de beatos e mentirosos começam a
reivindicar direitos exclusivos sobre os conceitos de “Deus”, “verdade”, “luz”, “espírito”, “amor”,
“sabedoria”, “vida”, como se fossem sinônimos deles próprios, e através disso buscaram estabelecer o
limite entre si e o “mundo”; pequenos superjudeus, maduros para todo tipo de manicômio, viraram os
valores de cabeça para baixo para satisfazerem suas noções, como se somente o cristão fosse o
significado, o sal, a medida e também o juízo final de todo o resto... Todo esse desastre só foi possível
porque no mundo já existia uma megalomania similar, de mesma raça, a saber, a judaica: uma vez que
se abriu o abismo entre judeus e judeus-cristãos, a estes já não havia escolha senão empregar os
mesmos procedimentos de autoconservação que o instinto judaico lhes aconselhava, mesmo contra os
próprios judeus, ainda que judeus somente os tivessem empregado contra não-judeus. O cristão é
simplesmente um judeu de confissão “reformada”. –
1 – Última razão. Argumento decisivo.
XLV
– Ofereço alguns exemplos do tipo de coisa que essa gente insignificante tinha dentro de suas
cabeças – do que colocaram na boca do Mestre: a cândida crença de “belas almas”. –
E tantos quantos vos não receberem, nem vos ouvirem, saindo dali, sacudi o pó que estiver
debaixo dos vossos pés, em testemunho contra eles. Em verdade vos digo que haverá mais tolerância no
dia do juízo para Sodoma e Gomorra, do que para os daquela cidade” (Marcos, 6:11). – Quão evangélico!
“E qualquer que escandalizar um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora que lhe
pusessem ao pescoço uma mó de atafona, e que fosse lançado no mar” (Marcos, 9:42). – Quão
evangélico!
“E, se o teu olho te escandalizar, lança-o fora; melhor é para ti entrares no reino de Deus com um
só olho do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do inferno, onde o seu bicho não morre, e o fogo
nunca se apaga” (Marcos, 9:47-48). – Não é exatamente do olho que se trata...
“Dizia-lhes também: Em verdade vos digo que, dos que aqui estão, alguns há que não provarão a
morte sem que vejam chegado o reino de Deus com poder” (Marcos 9:1). – Bem mentido, leão!...(1)
“Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me. Porque...”
(Nota de um psicólogo: a moral cristã é refutada pelos seus porquês: suas razões a contrariam – isso a
faz cristã) (Marcos, 8:34). –
“Não julgueis, para que não sejais julgados ...com a medida com que tiverdes medido vos hão de
medir a vós” (Mateus 7:1-2). – Que noção de justiça, que juiz “justo”!...
“Pois, se amardes os que vos amam, que galardão tereis? Não fazem os publicanos também o
mesmo? E, se saudardes unicamente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os publicanos
também assim?” (Mateus 5:46-47). – Princípio do “amor cristão”: no fim das contas quer ser bem pago...
“Se, porém, não perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai vos não perdoará as
vossas ofensas” (Mateus 6:15). – Muito comprometedor para o assim chamado “pai”.
“Mas, buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão
acrescentadas” (Mateus 6:33). – Todas estas coisas: isto é, alimento, vestuário, todas necessidades da
vida. Um erro, para ser eufêmico... Um pouco antes esse Deus apareceu como um alfaiate, pelo menos
em certos casos.
“Folgai nesse dia, exultai; porque eis que é grande o vosso galardão no céu, pois assim faziam os
seus pais aos profetas” (Lucas 6:23). – Canalha indecente! Já se compara aos profetas...
“Não sabeis vós que sois o templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém
violar o templo de Deus, Deus o destruirá; porque o templo de Deus, que sois vós, é santo” (I Paulo aos
coríntios, 3:16-17). – Para coisas assim não há desprezo suficiente...
“Não sabeis vós que os santos hão de julgar o mundo? Ora, se o mundo deve ser julgado por vós,
sois porventura indignos de julgar as coisas mínimas?” (I Paulo aos coríntios, 6:2). – Infelizmente, não é
apenas o discurso de um lunático... Esse espantoso impostor assim prossegue: “Não sabeis vós que
havemos de julgar os anjos? Quanto mais as coisas pertencentes a esta vida?”...
“Porventura não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo? Visto como na sabedoria de Deus o
mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da
pregação... Não são muitos os sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos, nem muitos os nobres
que são chamados. Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; e Deus
escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes; e Deus escolheu as coisas vis deste
mundo, e as desprezíveis, e as que nada são, para aniquilar as que são; para que nenhuma carne se
glorie perante ele” (I Paulo aos coríntios, 1:20 e adiante(2)). – Para compreender esta passagem, um
exemplo de primeira linha da psicologia da moral de chandala, deve-se ler a primeira parte de minha
“Genealogia da Moral”: nela, pela primeira vez, foi evidenciado o antagonismo entre a moral nobre e a
moral de chandala, nascida do ressentimento e da vingança impotente. Paulo foi o maior dos apóstolos da
vingança...
1 – Paráfrase de Demétrio. “Bem rugido, leão!”, ato V, cena I de “Sonho de uma Noite de Verão”, por William Shakespeare. O
leão, obviamente, é o símbolo cristão para Marcos. (H. L. Mencken)
2 – 20, 21, 26, 27, 28, 29.
XLVI
– Que se infere disso? Que convém vestir luvas antes de ler o Novo Testamento. A presença de
tanta sujeira faz disso algo muito aconselhável. Tão pouco escolheríamos como companheiros os
“primeiros cristãos” quanto os judeus poloneses: não que tenhamos a necessidade de lhes fazer
objeções... Ambos cheiram mal. – Em vão procurei no Novo Testamento por um único traço de simpatia;
nele não há nada que seja livre, bondoso, sincero ou leal. Nele a humanidade nem mesmo dá seu
primeiro passo ascendente – o instinto de limpeza está ausente... Apenas maus instintos estão presentes,
e tais instintos nem ao menos são dotados de coragem. Nele tudo é covardia; tudo é um fechar os olhos,
um auto-engano. Após ler o Novo Testamento qualquer outro livro parece limpo: por exemplo,
imediatamente após Paulo, li com arrebatamento o mais encantador e insolente zombeteiro, Petrônio, do
qual poder-se-ia dizer o mesmo que Domenico Boccaccio escreveu sobre César Bórgia ao Duque de
Parma: “é tutto festo” – imortalmente saudável, imortalmente alegre e são... Estes santarrões miseráveis
erram no essencial. Atacam, mas tudo que atacam torna-se distinto. Quem é atacado por um “primeiro
cristão” certamente não é denegrido... Pelo contrário, é uma honra possuir um “primeiro cristão” como
oponente. Não se pode ler o Novo Testamento sem adquirir uma predileção por tudo que nele é
maltatrado – para não falar da “sabedoria deste mundo”, que um insolente fanfarrão tenta reduzir a nada
com a “loucura da pregação”... Mesmo os escribas e fariseus são beneficiados por tal oposição:
certamente deviam ter algum valor para merecerem ser odiados de maneira tão indecente. Hipocrisia –
como se essa fosse uma acusação que os “primeiros cristãos” ousassem fazer! – Afinal, eles eram os
privilegiados, e isso era suficiente: o ódio dos chandala não precisa de qualquer outro pretexto. O
“primeiro cristão” – e também, receio, o “último cristão”, que eu talvez viva tempo suficiente para ver – é
um rebelde por profundo instinto contra tudo que é privilégio – vive e guerreia sempre pela “igualdade de
direitos”... Estritamente falando, ele não tem escolha. Quando alguém pretende representar, ele próprio,
o “eleito de Deus” – ou “templo de Deus”, ou “juiz dos anjos” –, então qualquer outro critério de eleição,
quer seja baseado na honestidade, no intelecto, na virilidade e no orgulho, ou na beleza e liberdade de
coração, torna-se simplesmente “mundano” – o mal em si... Moral: toda palavra pronunciada por um
“primeiro cristão” é uma mentira, todos seus atos são instintivamente desonestos – todos seus valores,
todos seus fins são nocivos, mas todos que odeia, tudo que odeia, tem valor verdadeiro... O cristão, e
particularmente o padre cristão, é um critério de valores.
– Preciso acrescentar que, em todo o Novo Testamento, não aparece senão uma única figura
merecedora de honra: Pilatos, o governador romano. Levar assuntos judaicos a sério – ele estava muito
acima disso. Um judeu a mais ou a menos – que isso importa?... A nobre ironia do romano ante o qual a
palavra “verdade” foi cinicamente abusada enriqueceu o Novo Testamento com a única passagem que
tem qualquer valor – que é sua crítica e sua destruição: “Que é a verdade?”...
XLVII
– O que nos distingue não é nossa incapacidade de encontrar Deus, nem na história, nem na
natureza, nem por detrás da natureza – mas que consideramos tudo que foi honrado como sendo Deus,
não como algo “divino”, mas lastimável, absurdo, nocivo; não como um simples erro, mas como um crime
contra a vida... Negamos que esse Deus seja Deus... E se alguém nos mostrasse esse Deus cristão,
ficaríamos ainda menos inclinamos a crer nele. – Numa fórmula: Deus, qualem Paulus creavit, Dei
negatio.(1) – Uma religião como o cristianismo, que não possui um único ponto de contato com a
realidade, que se esfacela no momento em que a realidade impõe seus direitos, inevitavelmente será a
inimiga mortal da “sabedoria deste mundo”, ou seja, da ciência – nomeará bom tudo que serve para
envenenar, caluniar e depreciar toda disciplina intelectual, toda lucidez e retidão em matéria de
consciência intelectual, toda frieza nobre e liberdade de espírito. A “fé”, como um imperativo, veta a
ciência – in praxi(2), mentir a todo custo... Paulo compreendeu muito bem que a mentira – que a “fé” –
era necessária; e posteriormente a Igreja compreendeu Paulo. – O Deus que Paulo inventou, um Deus
que “reduz ao absurdo” a “sabedoria deste mundo” (especialmente as duas grandes inimigas da
superstição, a filologia e a medicina), é em verdade uma indicação da firme determinação de Paulo para
realizar isto: dar o nome de Deus à sua própria vontade, thora(3) – isso é essencialmente judaico. Paulo
quer desvalorizar a “sabedoria deste mundo”: seus inimigos são os bons filólogos e médicos da escola
alexandrina – a guerra é feita contra eles. De fato, nenhum homem pode ser filólogo e médico sem ao
mesmo tempo ser anticristo. O filólogo vê por detrás dos “livros sagrados”, o médico vê por detrás da
degeneração fisiológica do cristão típico. O médico diz “incurável”; o filólogo diz “fraude”...
1 – Deus, tal como Paulo o criou, é a negação de Deus.
2 – Na prática.
3 – Lei.
XLVIII
– Será que alguém já compreendeu claramente a célebre história que se encontra no início da
Bíblia – a do pavor mortal de Deus ante a ciência? Ninguém, de fato, a compreendeu. Este livro de padres
par excellence começa, como convém, com a grande dificuldade interior do padre: ele enfrenta um único
grande perigo, ergo, “Deus” enfrenta um único grande perigo. –
O velho Deus, todo “espírito”, todo grão-padre, todo perfeição, passeia pelo seu jardim: está
entediado e tentando matar tempo. Contra o enfado até os Deuses lutam em vão(1). O que ele faz? Cria
o homem – o homem é divertido... Mas então percebe que o homem também está entediado. A piedade
de Deus para a única forma da aflição presente em todos os paraísos desconhece limites: então em
seguida criou outros animais. Primeiro erro de Deus: para o homem esses animais não representavam
diversão – ele buscava dominá-los; não queria ser um “animal”. – Então Deus criou a mulher. Com isso
erradicou enfado – e muitas outras coisas também! A mulher foi o segundo erro de Deus. – “A mulher,
por natureza, é uma serpente: Eva” – todo padre sabe disso; “da mulher vem todo o mal do mundo” –
todo padre sabe disso também. Logo, igualmente cabe a ela a culpa pela ciência... Foi devido à mulher
que o homem provou da árvore do conhecimento. – Que sucedeu? O velho Deus foi acometido por um
pavor mortal. O próprio homem havia sido seu maior erro; criou para si um rival; a ciência torna os
homens divinos – tudo se arruína para padres e deuses quando o homem torna-se científico! – Moral: a
ciência é proibida per se; somente ela é proibida. A ciência é o primeiro dos pecados, o germe de todos os
pecados, o pecado original. Toda a moral é apenas isto: “Tu não conhecerás” – o resto deduz-se disso. –
O pavor de Deus, entretanto, não o impediu de ser astuto. Como se proteger contra a ciência? Por longo
tempo esse foi o problema capital. Resposta: expulsando o homem do paraíso! A felicidade e a ociosidade
evocam o pensar – e todos pensamentos são maus pensamentos! – O homem não deve pensar. – Então o
“padre” inventa a angústia, a morte, os perigos mortais do parto, toda a espécie de misérias, a
decrepitude e, acima de tudo, a enfermidade – nada senão armas para alimentar a guerra contra a
ciência! Os problemas não permitem que o homem pense... Apesar disso – que terrível! – o edifício do
conhecimento começa a elevar-se, invadindo os céus, obscurecendo os Deuses – que fazer? – O velho
Deus inventa a guerra; separa os povos; faz com que se destruam uns aos outros (– os padres sempre
necessitaram de guerras...). Guerra – entre outras coisas, um grande estorvo à ciência! – Inacreditável! O
conhecimento, a emancipação do domínio sacerdotal prosperam apesar da guerra! – Então o velho Deus
chega à sua resolução final: “O homem tornou-se científico – não existe outra solução: ele precisa ser
afogado”...
1 – Paráfrase de Schiller, “Contra a estupidez até os Deuses lutam em vão”. (H. L. Mencken)
XLIX
– Fui compreendido. No início da Bíblia está toda a psicologia do padre. – O padre conhece apenas
um grande perigo: a ciência – o conceito sadio de causa e efeito. Mas a ciência apenas floresce
totalmente sob condições favoráveis – um homem precisa de tempo, precisa possuir um intelecto
transbordante para poder “conhecer”... “Logo, é preciso tornar o homem infeliz” – essa foi, em todas as
épocas, a lógica do padre. – É fácil ver o que, a partir dessa lógica, surgiu no mundo: – o “pecado”... O
conceito de culpa e punição, toda a “ordem moral do mundo” foram direcionados contra a ciência – contra
a emancipação do homem do jugo sacerdotal... O homem não deve olhar para seu exterior; deve olhar
apenas para o interior. Não deve olhar as coisas com acuidade e prudência, não deve aprender sobre
elas; não deve olhar para nada; deve apenas sofrer... E sofrer tanto que sempre esteja precisando de um
padre. – Fora os médicos! O necessário é um Salvador. – O conceito de culpa e punição, incluindo as
doutrinas da “graça”, da “salvação”, do “perdão” – mentiras sem qualquer realidade psicológica – foram
inventadas para destruir o senso de causalidade do homem: são um ataque contra o conceito de causa e
efeito! – E não um ataque com punho, com faca, com honestidade no amor e no ódio! Longe disso, foi
inspirado pelo mais covarde, mais velhaco, mais ignóbil dos instintos! Um ataque de padres! Um ataque
de parasitas! O vampirismo de sanguessugas pálidas e subterrâneas!... Quando as conseqüências naturais
de um ato já não são mais “naturais”, mas vistas como obras de fantasmas da superstição – “Deus”,
“espíritos”, “almas” –, como conseqüências “morais”, recompensas, punições, sinais, lições, então tornase
estéril todo o solo para o conhecimento – e com isso perpetrou-se o maior dos crimes contra a
humanidade. – Repito que o pecado, essa autoprofanação par excellence, foi inventado para tornar
impossível ao homem a ciência, a cultura, toda a elevação e todo o enobrecimento; o padre reina graças
à invenção do pecado. –
L
– Não posso, aqui, prescindir de uma psicologia da “fé”, do “crente”, em proveito, como é justo,
dos próprios “crentes”. Se hoje há alguns que ainda não sabem quão indecente é ser “crente” – ou quanto
isso indica decadência, falta de vontade de viver –, amanhã eles o saberão. Minha voz alcança até os
surdos. – Parece-me que entre cristãos, se não compreendi mal, prevalece uma espécie de critério da
verdade chamado “prova de força”. A fé beatifica: logo, é verdadeira”. – Poderia-se objetar que a
beatitude não é demonstrada, mas apenas prometida: sustenta-se na “fé” enquanto condição – será
beatificado porque crê... Mas e aquilo que o padre promete ao crente, aquele “além” transcendental –
como isso pode ser demonstrado? – A “prova de força”, no fundo, não passa da crença de que os efeitos
prometidos pela fé se realizarão. – Numa fórmula: “Creio que a fé beatifica – logo, ela é verdadeira”...
Mas não podemos ir além disso. Esse “logo” já é o próprio absurdum transformado em critério da
verdade. – Contudo, por cortesia, admitamos que a beatificação através da fé tenha sido demonstrada (–
não meramente desejada, não meramente prometida pela suspeita boca de um padre): mesmo assim,
poderia a beatitude – dito em forma técnica, o prazer – ser uma prova da verdade? Dista tanto de sê-lo
que a influência das sensações de prazer sobre a resposta à questão “Que é a verdade?” praticamente
constitui uma objeção à verdade, ou, em todo caso, é suficiente para torná-la altamente suspeita. A prova
do “prazer” prova o “prazer” – nada mais; por que se deveria admitir que juízos verdadeiros geram mais
prazer que os falsos e que, em conformidade a alguma harmonia preestabelecida, necessariamente
trariam consigo sensações de prazer? – A experiência de todas as mentes profundas e disciplinadas
ensina o contrário. O homem teve de lutar bravamente por cada migalha da verdade; teve de sacrificar
quase tudo aquilo em que se agarra o coração humano, o amor humano, a confiança humana na vida.
Para isso é necessário possuir grandeza de alma: o serviço da verdade é o mais duro dos serviços. – O
que significa, então, a integridade intelectual? Significa ser severo com seu próprio coração, desprezar os
“belos sentimentos” e fazer de cada Sim e de cada Não uma questão de consciência! – A fé beatifica:
logo, ela mente...
LI
Que em certas circunstâncias a fé promove a bem-aventurança, que a bem-aventurança não faz
de uma idee fixe(1) uma idéia verdadeira, que a fé na realidade não move montanhas, mas as constrói
onde antes não existiam: tudo isso fica bastante evidente após uma breve visita a um hospício. Mas não,
é claro, para um padre: pois seus instintos o induzem a dizer que a doença não é doença e que hospícios
não são hospícios. O cristianismo necessita da doença, assim como o espírito grego necessitava de uma
saúde superabundante – o verdadeiro objetivo de todo o sistema de salvação da Igreja é tornar as
pessoas enfermas. E a própria Igreja – não considera ela um manicômio católico como o ideal último? –
Toda a Terra, um manicômio? – O tipo de homem religioso que a Igreja deseja é o típico decadente; a
época em que uma crise religiosa se apodera de um povo é sempre marcada por epidemias de desordem
nervosa; o “mundo interior” de um homem religioso assemelha-se tanto ao “mundo interior” de um
homem sobreexcitado e exausto que é difícil distinguir entre os dois; os estados mais “elevados”, que o
cristianismo colocou sobre a humanidade como valores supremos, são formas epileptóides – a Igreja
concedeu nomes sagrados apenas para lunáticos ou grandes impostores in majorem Dei honorem(2)...
Uma vez me aventurei a considerar todo o sistema cristão de training em penitência e salvação
(atualmente melhor estudado na Inglaterra) como um método para produzir uma folie circulaire(3) sobre
um solo já preparado, ou seja, um solo absolutamente insalubre. Nem todos podem ser cristãos: não se é
“convertido” ao cristianismo – antes é necessário estar suficientemente doente... Nós outros, nós que
temos coragem para a saúde e para o desprezo – temos o direito de desprezar uma religião que prega a
incompreensão do corpo! Que se recusa a dispensar a superstição da alma! Que da insuficiência alimentar
faz “virtude”! Que combate a saúde como alguma espécie de inimigo, de demônio, de tentação! Que se
convenceu de que é possível trazer uma “alma perfeita” em um corpo cadavérico, e que, para isso,
inventou um novo conceito de “perfeição”, um estado existencial pálido, doentio, fanático até a estupidez,
a chamada “santidade” – uma santidade que não passa de uma série de sintomas de um corpo
empobrecido, enervado e incuravelmente corrompido!... O movimento cristão, enquanto movimento
Europeu, desde o começo não foi mais que uma sublevação de toda espécie de elementos desterrados e
refugados (– que agora, sob a máscara do cristianismo, aspiram ao poder). – Não representa a
degeneração de uma raça; representa, pelo contrário, uma conglomeração de produtos da decadência
vindos de todas as direções, amontoando-se e buscando-se reciprocamente. Não foi, como se pensa, a
corrupção da Antigüidade, da Antigüidade nobre, que tornou o cristianismo possível; nunca será possível
combater com violência suficiente a imbecilidade erudita que atualmente sustém tal teoria. Quando as
enfermas e podres classes chandala de todo o imperium foram cristianizadas, o tipo oposto, a nobreza,
alcançou seu estágio de desenvolvimento mais belo e amadurecido. A maioria subiu ao poder; a
democracia, com seus instintos cristãos, triunfou... O cristianismo não era “nacional”, não estava baseado
em raça – apelou a todas as variedades de homens deserdados pela vida, tinha aliados em toda parte. O
cristianismo possui em seu âmago o rancor dos doentes – o instinto contra os sãos, contra a saúde. Tudo
que é bem-constituído, orgulhoso, galante e, acima de tudo, belo é uma ofensa aos seus olhos e ouvidos.
Novamente recordo as inestimáveis palavras de Paulo: “Deus escolheu as coisas fracas deste mundo, as
coisas loucas deste mundo, as coisas ignóbeis e as desprezadas”(4): essa era a fórmula; in hoc signo(5) a
décadence triunfou. – Deus na cruz – o homem nunca compreenderá o assustador significado que esse
símbolo encerra? – Tudo que sofre, tudo que está crucificado é divino... Nós todos estamos suspensos na
cruz, conseqüentemente somos divinos... Apenas nós somos divinos!... Neste sentido o cristianismo foi
uma vitória: uma mentalidade mais nobre pereceu por ele – o cristianismo continua sendo a maior
desgraça da humanidade. –
1 – Idéia fixa.
2 – Para maior honra de Deus.
3 – Loucura circular.
4 – I Coríntios 1:27-28.
5 – Com este sinal.
LII
O cristianismo também se encontra em oposição a toda boa constituição intelectual – somente a
razão enferma pode ser usada como razão cristã; toma o partido de tudo que é idiota; lança sua maldição
contra o “intelecto”, contra a soberba do intelecto são. Visto que a doença é inerente ao cristianismo,
segue-se disso que o estado típico do cristão, “a fé”, também é necessariamente uma forma de doença;
todos os caminhos retos, legítimos e científicos devem ser banidos pela Igreja como sendo caminhos
proibidos. A própria dúvida é um pecado... A completa ausência de limpeza psicológica no padre –
identificada por um simples olhar – é um fenômeno resultante da decadência – observando-se mulheres
histéricas e crianças raquíticas notar-se-á regularmente que a falsificação dos instintos, o prazer de
mentir por mentir e a incapacidade de olhar e caminhar direito são sintomas da decadência. “Fé” significa
não querer saber o que é a verdade. O padre, o devoto de ambos os sexos, é uma fraude porque é
doente: seus instintos exigem que a verdade jamais tenha direito em qualquer ponto. “Tudo que torna
doente é bom; tudo que surge da plenitude, da superabundância, do poder, é mau”: assim pensa o
crente. Uma compulsão para mentir – é através disso que reconheço todo teólogo predestinado. – Outra
característica do teólogo é sua incapacidade filológica. O que quero dizer com filologia é, de modo geral, a
arte de ler bem – a capacidade de absorver fatos sem interpretá-los falsamente, sem perder, na ânsia de
compreendê-los, a cautela, a paciência e a sutileza. Filologia como ephexis(1) na interpretação: trate-se
de livros, de notícias de jornal, dos mais funestos eventos ou de estatísticas meteorológicas – para não
mencionar a “salvação da alma”... A maneira como um teólogo, seja de Berlim ou Roma, explica,
digamos, uma “passagem bíblica”, ou um acontecimento, por exemplo, a vitória do exército nacional, sob
a sublime luz dos Salmos de Davi, é sempre tão ousada que faz um filólogo subir pelas paredes. E o que
dizer quando devotos e outras vacas da Suábia(2) usam o “dedo de Deus” para converter sua miserável
existência cotidiana e sedentária em um milagre da “graça”, da “providência”, em uma “experiência
divina”? O mais modesto exercício de intelecto, para não dizer de decência, deveria de certo ser suficiente
para convencer esses intérpretes da perfeita infantilidade e indignidade de tal abuso da destreza digital de
Deus. Apesar de sermos poucos compassivos, caso encontrássemos um Deus que curasse oportunamente
um constipado, ou que nos colocasse em uma carruagem no instante em que começasse a chover, ele
nos pareceria um Deus tão absurdo que, mesmo existindo, teríamos de aboli-lo. Deus como empregado
doméstico, como carteiro, como mensageiro – no fundo, Deus é simplesmente um nome dado para a mais
imbecil espécie de acaso... A “Divina Providência”, na qual terça parte da “Alemanha culta” ainda acredita,
é um argumento tão forte contra Deus que em vão se procuraria por um melhor. E em todo caso é um
argumento contra os alemães!...
1 – Ceticismo.
2 – Uma referência à Universidade de Tübingen e sua famosa escola de crítica Bíblica. O líder da escola era F. C. Baur, e um
dos homens que ele mais fortemente influenciou era uma abominação de Nietzsche, David F. Strauss, ele próprio, um suábio.
(H. L. Mencken)
LIII
– É tão pouco verdadeiro que mártires oferecem qualquer verossimilhança a uma causa que me
sinto inclinado a negar que qualquer mártir já teve alguma coisa a ver com a verdade. No tom com que
um mártir lança sua convicção à cara do mundo revela-se um grau tão baixo de probidade intelectual,
tamanha insensibilidade ao problema da “verdade”, que nunca chega a ser necessário refutá-lo. A
verdade não é algo que alguns homens têm e outros não: na melhor das hipóteses, só há camponeses e
apóstolos de camponeses, da classe de Lutero, que possam pensar assim da verdade. Pode-se ter certeza
de que, quanto maior for o grau de consciência intelectual de um homem, maior será sua modéstia, sua
discrição neste ponto. Ser competente em cinco ou seis coisas e se recusar, com delicadeza, a saber algo
mais... O entendimento que todos profetas, sectários, livres-pensadores, socialistas e homens de igreja
têm da palavra “verdade” é simplesmente uma prova cabal de que nem sequer foi dado o primeiro passo
em direção à disciplina intelectual e ao autocontrole necessários à descoberta da menor das verdades. –
Os mártires, diga-se de passagem, foram uma grande desgraça na história: seduziram... A conclusão a
que todos idiotas, mulheres e plebeus chegam é que deve haver algum valor em uma causa pela qual
alguém afronta a morte (ou que, como o cristianismo primitivo, engendra uma epidemia de gente à
procura da morte) – essa conclusão impede o exame os fatos, tolhe por inteiro o espírito investigativo e
circunspeto. Os mártires danificaram a verdade... Mesmo hoje, basta uma certa dose de crueldade na
perseguição para proporcionar uma honrável reputação ao mais vazio tipo de sectarismo. – Como? O
valor de uma causa é alterado pelo fato alguém ter se sacrificado por ela? – Um erro que se torna
honroso é simplesmente um erro que possui um encanto sedutor: julgais, senhores teólogos, que vos
daremos a chance de serdes martirizados por vossas mentiras? – Melhor se refuta uma causa colocandoa,
respeitosamente, no gelo – esse também é o melhor meio para refutar os teólogos... Foi precisamente
esta a estupidez histórico-mundial de todos os perseguidores: deram uma aparência honrosa à causa a
que se opuseram – deram-lhe de presente a fascinação do martírio... Mulheres ainda se ajoelham ante
um erro porque lhes disseram que um indivíduo morreu na cruz por ele. A cruz, então, é um argumento?
– Mas sobre todas essas coisas um, e somente um, disse aquilo de que há milhares de anos se tinha
necessidade – Zaratustra:
Traçaram sinais de sangue pelo caminho que percorreram, e sua loucura ensinava que a verdade
se prova através do sangue.
Mas o sangue é, de todas, a pior testemunha da verdade; sangue envenena até a doutrina mais
pura e a converte em insânia e ódio do coração.
E quando alguém atravessa o fogo por sua doutrina – que isso prova? Mais vale, em verdade, que
do nosso próprio incêndio venha a nossa doutrina!(1)
1 – “Assim falou Zaratustra”, parte II, “Dos Sacerdotes”.
LIV
Não nos enganemos: grandes intelectos são céticos. Zaratustra é um cético. A força e a liberdade
que surgem do vigor e da plenitude intelectual se manifestam através do ceticismo. Homens de convicção
estática não são levados em consideração quando se pretende determinar o que é fundamental em
matéria de valor e desvalor. Homens de convicção são prisioneiros. Não vêem longe o bastante, não vêem
abaixo de si: para um homem poder falar de valor e desvalor é necessário que veja quinhentas
convicções abaixo de si – atrás de si... Uma mente que aspira a algo grande, e que também deseja os
meios para isso, é necessariamente cética. A liberdade de qualquer tipo de convicção constitui parte da
força, da capacidade de possuir um ponto de vista independente... A grande paixão do cético, o
fundamento e a potência do seu ser, é mais esclarecida e mais despótica que ele próprio, coloca toda sua
inteligência a seu serviço; lhe torna inescrupuloso; lhe concede a coragem para empregar até meios
ímpios; sob certas circunstâncias, lhe permite convicções. A convicção enquanto um meio: muito só pode
ser alcançado por meio de uma convicção. A grande paixão usa, consome convicções, mas não se
submete a elas – sabe-se a soberana. – Pelo contrário, a necessidade de fé, de uma coisa não
subordinada ao sim e não, de carlylismo, se me permitem a expressão, é a necessidade da fraqueza. O
homem de fé, o “crente” de toda espécie, é necessariamente dependente – tal homem é incapaz de
colocar-se a si mesmo como objetivo, e tampouco é capaz determinar ele próprio seus objetivos. O
“crente” não se pertence; apenas pode ser o meio para um fim; precisa ser consumido; precisa de alguém
que o consuma. Seus instintos atribuem suprema honra à moral da despersonalização; tudo o persuade a
abraçar essa moral: sua prudência, sua experiência, sua vaidade. Todo tipo de fé é em si mesma a
expressão de uma despersonalização, de um alheamento de si... Após se ponderar sobre quão
necessários à maioria são os regulamentos restringentes; sobre quão necessária é a opressão, ou, em um
sentido mais elevado, a escravidão, para possibilitar o bem-estar ao homem de vontade fraca, e
especialmente à mulher, então finalmente se compreende o significado da convicção e da “fé”. Para o
homem de convicção a fé representa sua espinha dorsal. Deixar de ver muitas coisas, não possuir
imparcialidade alguma, ser sempre de um partido, estimar todos os valores com uma ótica severa e
infalível – essas são as condições necessárias à existência desse tipo de homem. Mas isso faz deles
antagonistas do homem veraz – da verdade... O crente não é livre pra responder à questão do
“verdadeiro” e do “falso”; segundo os ditames de sua consciência: a integridade, neste ponto, seria sua
própria ruína. A limitação patológica de sua ótica faz do homem convicto um fanático – Savonarola,
Lutero, Rousseau, Robespierre, Saint-Simon – o tipo desses encontra-se em oposição ao espírito forte,
emancipado. Mas as grandiosas atitudes desses intelectos doentes, desses epiléticos das idéias, exercem
influência sobre as grandes massas – os fanáticos são pitorescos, e a humanidade prefere observar poses
a ouvir razões...
LV
– Um passo adiante na psicologia da convicção, da “fé”. Agora já faz bastante tempo desde que
propus a questão de talvez as convicções serem inimigas mais perigosas à verdade que as mentiras
(“Humano, Demasiado Humano”, Aforismo 483(1)). Desta vez pretendo colocar a questão definitiva:
existe, de modo geral, alguma diferença entre uma mentira e uma convicção? – Todo o mundo acredita
que sim; mas no que esse mundo não acredita! – Toda convicção tem sua história, suas formas
primitivas, seus estágios de tentativa e erro: somente se transforma em convicção após não ter sido, por
um longo tempo, uma convicção, e, depois disso, por um tempo ainda mais longo, sofrivelmente uma
convicção. Não poderia também haver a falsidade nessas formas embrionárias de convicção? – Às vezes
apenas é necessária uma mudança de pessoas: o que era uma mentira para o pai torna-se uma convicção
para o filho. – Chamo de mentira o recusar-se a ver uma coisa que se vê, recusar-se a ver algo como de
fato é: se a mentira foi proferida perante testemunhas ou não, isso não possui relevância. A espécie mais
comum de mentira é aquela com a qual nos enganamos a nós mesmos: mentir aos outros é algo
relativamente raro. – Agora, este não querer ver o que se vê, este não querer ver como de fato é,
praticamente constitui o primeiro requisito para todos que pertencem a alguma espécie de partido: o
homem de partido inevitavelmente torna-se um mentiroso. Por exemplo, os historiadores alemães estão
convictos de que Roma era sinônimo de despotismo e que os povos germânicos trouxeram o espírito da
liberdade ao mundo: qual a diferença entre essa convicção e uma mentira? Pode alguém ainda se admirar
de que todos os partidos, incluindo os historiadores alemães, instintivamente se sirvam de frases morais –
que a moral quase deva sua sobrevivência ao fato de toda espécie de homem de partido necessitar dela a
cada instante? – “Esta é nossa convicção: proclamamo-la perante todo o mundo; vivemos e morremos
por ela – que sejam respeitados todos aqueles que possuem convicções!” – De fato, ouvi isso da boca dos
anti-semitas. Pelo contrário, senhores! Mentir por princípio certamente não torna um anti-semita mais
respeitável... Os padres, que possuem mais sutileza em tais questões, e que compreendem bem a
objeção existente contra a idéia de convicção, ou seja, de uma mentira que se transforma em princípio
porque serve a um propósito, tomaram emprestado dos judeus o artifício de introduzir nesses casos os
conceitos “Deus”, “vontade de Deus” e “revelação Divina”. Kant, com seu imperativo categórico, também
estava no mesmo caminho: isso era sua razão prática(2). Há questões relativas à verdade e à inverdade
que o homem não pode decidir; todas as questões capitais, todos problemas capitais de valoração estão
acima da razão humana... Conhecer os limites da razão – somente isso é filosofia genuína. Que finalidade
teve a revelação divina ao homem? Deus faria algo supérfluo? O homem não pode descobrir por si mesmo
o que é bom e o é ruim, então Deus lhe ensinou sua vontade... Moral: o padre não mente – não existe a
questão da “verdade” ou da “inverdade” entre as coisas de que falam os padres. É impossível mentir a
respeito de tais coisas, pois para mentir primeiramente seria necessário saber o que é verdade. Mas isso
está além do que o homem pode saber; logo, o padre é simplesmente um porta-voz de Deus. – Tal
silogismo de padre não é de modo algum somente judaico e cristão; o direito à mentira e à astuciosa
evasiva da “revelação” pertence ao tipo do padre em geral – tanto aos padres da decadência quanto aos
padres dos tempos pagãos (– pagãos são todos aqueles que dizem sim à vida, e para os quais “Deus” é
uma palavra que significa um sim a todas as coisas). – A “lei”, a “vontade de Deus”, o “livro sagrado”, a
“inspiração” – são todas palavras que designam as condições sob as quais o padre adquire e mantém o
poder – esses conceitos se encontram no fundo de todas organizações sacerdotais, de todos governos
eclesiásticos ou filosófico-eclesiásticos. A “santa mentira” – comum a Confúcio, ao código de Manu, a
Maomé e à Igreja cristã – não falta em Platão. “A verdade está aqui”: essas palavras significam, onde
quer que sejam pronunciadas, o padre mente...
1 – “Inimigos da verdade. – Convicções são inimigos da verdade mais perigosos que as mentiras.”
2 – Uma referência, é claro, à “Kritik der praktischen Vernunft” de Kant (Crítica da Razão Prática). (H. L. Mencken)
LVI
– Em última análise, chega-se a isto: qual a finalidade da mentira? O fato de que, no cristianismo,
os fins “sagrados” não são visíveis é minha objeção aos seus meios. Só existem maus fins: o
envenenamento, a calúnia, a negação da vida, o desprezo pelo corpo, a degradação e envilecimento do
homem através do conceito de pecado – logo, seus meios também são maus. – Tenho o sentimento
oposto quando leio o código de Manu, uma obra incomparavelmente mais intelectual e superior; seria um
pecado contra a inteligência simplesmente nomeá-lo juntamente com a Bíblia. É fácil ver o porquê: há
uma filosofia genuína por detrás dele, nele próprio, e não apenas uma mixórdia fétida de rabinismo
judaico e superstição – oferece, mesmo aos psicólogos mais delicados, algo saboroso. E não nos
esqueçamos do mais importante, ele difere fundamentalmente de toda espécie de Bíblia: através dele os
nobres, os filósofos e guerreiros preservam o domínio sobre a maioria; está cheio de valores nobres,
denota um sentimento de perfeição, de aceitação da vida, um ar triunfante em relação a si e à vida – o
sol brilha sobre o livro todo. – Todas as coisas sobre as quais o cristianismo descarrega sua inexaurível
vulgaridade – por exemplo, a procriação, as mulheres e o casamento – nele são tratadas seriamente, com
respeito, amor e confiança. Como alguém pode colocar nas mãos de crianças e mulheres um livro
contentor de palavras tão abjetas: “Para evitar a impudicícia, que cada homem tenha sua própria esposa
e que cada mulher tenha seu próprio marido; ...pois é melhor casar-se que queimar-se(1)”? E será
possível ser um cristão enquanto a origem do homem estiver cristianizada, isto é, maculada pela doutrina
da immaculata conceptio?... Não conheço qualquer outro livro em que sejam ditas tantas coisas boas e
ternas sobre a mulher quanto no código de Manu; aqueles velhos e santos possuíam um modo tão amável
de ser com as mulheres que talvez seja impossível superá-los. “A boca de uma mulher”, diz um trecho, “o
seio de uma donzela, a oração de uma criança e a fumaça de um sacrifício são sempre puros”. Noutro
trecho: “Não há nada mais puro que a luz do sol, a sombra de uma vaca, o ar, a água, o fogo e a
respiração de uma donzela”. Finalmente, esta última passagem – que talvez também seja uma mentira
sagrada –: “todos orifícios do corpo acima do umbigo são puros, todos os abaixo são impuros. Apenas na
donzela o corpo todo é puro”.
1 – I Coríntios 7:2 e 7:9.
LVII
Pega-se a irreligiosidade dos meios cristãos in flagranti simplesmente colocando os fins
tencionados pelo cristianismo ao lado dos tencionados pelo código de Manu – pondo essas duas
finalidades monstruosamente antitéticas sob uma forte luz. O crítico do cristianismo não pode evitar a
necessidade de torná-lo desprezível. – O código de Manu tem a mesma origem que todo bom livro de leis:
sumariza a prática, a sagacidade e a experimentação ética de longos séculos; chega às suas conclusões, e
então não cria mais nada. O pré-requisito para uma codificação dessa espécie é reconhecer que os meios
usados para estabelecer a autoridade de uma verdade adquirida dura e lentamente diferem
fundamentalmente dos que seriam utilizados para demonstrá-la. Um livro de leis nunca relata a utilidade,
as razões, a casuística de suas leis: com isso perderia o tom imperativo, o “tu deves”, no qual a
obediência se fundamenta. O problema encontra-se exatamente aqui. – Em um certo ponto da evolução
de um povo, sua classe mais judiciosa, ou seja, com melhor percepção do passado e do futuro, declara
que as séries experiências usadas para determinar como todos devem viver – ou podem viver – chegaram
ao fim. O objetivo agora é colher os frutos mais ricos possíveis desses dias de experimentação e
experiências difíceis. Em conseqüência, o que se deve evitar acima de tudo é o prolongamento da
experimentação – a continuação do estado no qual os valores são volúveis, sendo testados, escolhidos e
criticados ad infinitum. Contra isso se levantam duas paredes: de um lado, a revelação, isto é, a assunção
de que as razões subjacentes às leis não possuem origem humana, que não foram buscadas e
encontradas por um lento processo e após muitos erros, mas que possuem uma origem divina, foram
feitas completas, perfeitas, sem uma história, como um presente, um milagre...; do outro lado, a
tradição, isto é, a afirmação de que as leis permaneceram inalteradas desde tempos imemoriais, e que
seria um crime contra os antepassados colocá-las em dúvida. A autoridade da lei assenta-se sobre estas
duas teses: Deus a deu e os antepassados a viveram. – A razão superior desse procedimento está na
intenção de distrair a consciência, passo a passo, de suas preocupações sobre os modos corretos de viver
(isto é, aqueles que foram provados por uma vasta e minuciosamente considerada experiência), para que
o instinto atinja um automatismo perfeito – um pressuposto essencial a toda espécie de mestria, toda
perfeição na arte da vida. Confeccionar um código como o de Manu significa oferecer a um povo a chance
de ser mestre, de chegar à perfeição – de aspirar ao mais sublime na arte da vida. Para tal fim deve-se
torná-lo inconsciente: esse é o objetivo de toda mentira sagrada. – A ordem das castas, a lei suma e
dominante, é meramente uma ratificação de uma ordem natural, de uma lei natural de primeira ordem,
sobre a qual nenhum arbítrio, nenhuma “idéia moderna” exerce qualquer influência. Em toda sociedade
saudável há três tipos fisiológicos que gravitam à diferenciação, mas que se condicionam mutuamente;
cada qual tem sua própria higiene, sua própria esfera de trabalho, seu próprio sentimento de perfeição e
maestria. Não é manu, mas a natureza que separa em uma classe aqueles que preponderam
intelectualmente, em outra aqueles que são notáveis pela força muscular e temperamento, e numa
terceira aqueles que não se distinguem, que somente demonstram mediocridade – esta última representa
a grande maioria, as duas primeiras são a elite. A casta superior – que denomino a dos pouquíssimos –
tem, sendo a mais perfeita, privilégios correspondentes: representa a felicidade, a beleza e tudo de bom
sobre a Terra. Apenas os homens mais intelectuais têm direito à beleza, ao belo; apenas entre eles a
bondade não significa fraqueza. Pulchrum est paucorum hominum(1): ser bom é privilégio. Nada lhes é
mais impróprio que a rudeza, o olhar pessimista, os olhos afinados com a fealdade – ou a indignação por
causa do aspecto geral das coisas. A indignação é um privilégio dos chandala; assim como o pessimismo.
“O mundo é perfeito” – assim fala o instinto dos mais intelectuais, o instinto do homem que diz sim à
vida. “A imperfeição, tudo que é inferior a nós, a distância, o pathos da distância, os próprios chandala,
são parte dessa perfeição”. Os homens mais inteligentes, sendo os mais fortes, encontram sua felicidade
onde outros encontrariam apenas desastre: no labirinto, na dureza para consigo e para com os outros, no
esforço; seu prazer está na auto-superação; neles o ascetismo torna-se uma segunda natureza, uma
necessidade, um instinto. Consideram tarefas difíceis como um privilégio; para eles é um entretenimento
lidar com fardos que esmagariam todos os outros... Conhecimento – uma forma de ascetismo. –
Representam o tipo mais honroso de homens: mas isso não impede que também sejam os mais amáveis
e mais alegres. Dominam não porque querem, mas porque são; não possuem a liberdade de ser os
segundos. – A segunda casta: a esta pertencem os guardiões da lei, os mantenedores da ordem e da
segurança, os guerreiros mais nobres e, acima de tudo, o rei, como a mais elevada forma de guerreiro,
juiz e defensor da lei. Os segundos constituem o elemento executivo dos intelectuais; são aqueles que
lhes estão mais próximos, os aliviando de tudo que há de grosseiro no trabalho de liderar – são seu
séqüito, sua mão direita, os seus melhores discípulos. Nisso tudo, repito, nada é arbitrário, nada é
“artificial”; apenas o contrário é artificial – ele destrói a natureza... A ordem das castas, a hierarquia
simplesmente formula a lei suprema própria vida; a separação dos três tipos é necessária para conservar
a sociedade, para possibilitar o surgimento dos tipos mais elevados, mais sublimes – a desigualdade de
direitos é condição primordial para a existência de quaisquer direitos. – Um direito é um privilégio. Cada
qual tem seus privilégios de acordo com seu modo de ser. Não subestimemos os privilégios dos
medíocres. Quanto mais elevada, mais dura torna-se a vida – o frio aumenta, a responsabilidade
aumenta. Uma civilização elevada é uma pirâmide: somente subsiste com uma base larga; seu prérequisito
é uma mediocridade sã e fortemente consolidada. O ofício, o comércio, a agricultura, a ciência,
grande parte da arte, em suma, toda a gama de atividades ocupacionais, são apenas compatíveis com a
mediocridade no poder e no querer; tais coisas estariam fora de seu lugar entre homens excepcionais; o
instinto necessário encontrar-se-ia em contradição tanto com a aristocracia como com o anarquismo. O
fato de o homem ser publicamente útil, uma engrenagem, uma função, é evidência de uma predisposição
natural; não é a sociedade, mas o único tipo de felicidade de que são capazes, que faz deles máquinas
inteligentes. Para os medíocres a felicidade é a mediocridade; possuem um instinto natural para dominar
apenas uma coisa, para a especialização. Seria profundamente indigno da parte de um intelecto profundo
ver algo de condenável na mediocridade em si. Ela é, de fato, o primeiro pré-requisito ao surgimento das
exceções: é uma condição necessária a toda civilização elevada. Quando o homem excepcional trata o
homem medíocre com mais delicadeza que si próprio ou seus iguais, isso não se trata de uma gentileza –
é simplesmente seu dever... A quem odeio mais entre a ralé de hoje? A escumalha socialista, aos
apóstolos de chandala que minam o instinto do trabalhador, seu prazer, seu sentimento de
contentamento com uma existência pequena – que o tornam invejoso, que lhe ensinam a vingança... A
injustiça nunca está desigualdade de direitos, mas na exigência de direitos “iguais”... O que é mau? Mas
essa questão foi respondida: tudo que se origina da fraqueza, da inveja, da vingança. – O anarquista e o
cristão têm a mesma origem...
1 – A beleza é para poucos.
LVIII
Em verdade, o fim pelo qual se mente faz uma grande diferença: se com isso preserva ou destrói.
Há uma perfeita consonância entre o cristão e o anarquista: seus objetivos, seus instintos, direcionam-se
somente à destruição. Basta voltarmo-nos à história para encontrar a prova disso: ela aparece com
precisão espantosa. Já estudamos um código religioso cujo objetivo era converter as condições sob as
quais a vida prospera numa organização social “eterna” – a missão que o cristianismo encontrou foi
justamente destruir tal organização, porque com ela a vida prospera. Naquele, os benefícios que a razão
produziu durante longos períodos de experimentação e incerteza foram aplicados nos aspectos mais
remotos, fazia-se o todo esforço possível para colher os maiores, mais ricos e mais completos frutos;
aqui, pelo contrário, os frutos são envenenados durante a noite... Aquilo que se erigia aere perennius(1),
o imperium Romanum, a mais magnificente forma de organização sob condições adversas jamais
alcançada, em comparação com a qual todo o anterior e o posterior assemelham-se a uma grosseria, uma
imperfeição, um diletantismo – esses anarquistas santos fizeram da destruição do “mundo”, ou seja, do
imperium Romanum, uma questão de “devoção”, até que não restasse pedra sobre pedra – até ao ponto
em que os germanos e outros rústicos foram capazes de dominá-lo... O cristão e o anarquista: ambos são
decadentes; ambos são incapazes de qualquer ato que não seja dissolvente, venenoso, degenerativo,
hematófago; ambos têm por instinto um ódio mortal contra tudo que esta em pé, tudo que é grande, tudo
que é durável, tudo que promete futuro à vida... O cristianismo foi o vampiro do imperium Romanum –
destruiu do dia para a noite a vasta obra dos romanos: a conquista do solo para uma grande cultura que
poderia aguardar por sua hora. Será possível que isso ainda não foi compreendido? O imperium Romanum
que conhecemos, e que a história da província romana nos ensina a conhecer cada vez melhor – essa
admirável obra de arte em grande estilo, era apenas um começo, sua construção estava calculada para
provar seu valor por milhares de anos. Até hoje nada em escala semelhante sub specie aeterni(2) foi
construído, ou sequer sonhado! – Essa organização era forte o suficiente para resistir a maus
imperadores: o acaso da personalidade não pode fazer nada em tais coisas – primeiro princípio de toda
arquitetura genuinamente grande. Mas não era forte o suficiente para resistir contra a mais corrupta das
corrupções – contra cristãos... Esses vermes furtivos que, sob a proteção da noite, da névoa e da
duplicidade rastejam sobre todo indivíduo, sugando-lhe todo o interesse sério pelas coisas reais, todo o
instinto para a realidade – essa turba covarde, efeminada e melíflua gradualmente alienou todas as
“almas” desse edifício colossal – aquelas naturezas preciosas, virilmente nobres, que haviam encontrado
em Roma sua própria causa, sua própria seriedade, seu próprio orgulho. A dissimulação dos hipócritas, o
mistério dos conventículos, conceitos tão sombrios quanto o inferno, como o sacrifício do inocente, a unio
mystica(3) no beber sangue, e acima de tudo o fogo lentamente reavivado da vingança, da vingança de
chandala – isso dominou Roma: o mesmo tipo de religião que, numa forma preexistente, Epicuro
combateu. Leia-se Lucrécio para entender contra o que Epicuro fez guerra – não contra o paganismo, mas
contra o “cristianismo”, isto é, a corrupção das almas através dos conceitos de culpa, punição e
imortalidade. – Combateu os cultos subterrâneos, todo o cristianismo latente – naquele tempo negar a
imortalidade já era uma verdadeira salvação. – E Epicuro havia triunfado, todo intelecto respeitável em
Roma era epicúreo – foi quando Paulo apareceu... Paulo, o ódio de chandala encarnado, inspirado pelo
gênio, contra Roma, contra “o mundo” – o judeu, o judeu eterno par excellence... O que ele percebeu foi
como, com a ajuda de um pequeno movimento sectário cristão, à parte do judaísmo, uma “conflagração
mundial” poderia ser acesa; percebeu como, com o símbolo do “Deus na cruz”, poderia condensar todas
as sedições secretas, todos os frutos das intrigas anárquicas, em um imenso poder. “A salvação vem dos
judeus” – cristianismo é a fórmula para sobrepor e agregar os cultos subterrâneos de todas variedades,
por exemplo, o de Osíris, da Grande Mãe, de Mitra: era nisso que consistia o gênio de Paulo. Seu instinto
estava tão seguro disso que, com ousada violência contra a verdade, colocou as idéias que fascinavam
toda espécie de chandala na boca de sua invenção, do “salvador”, e não apenas na boca – fez dele algo
que até os sacerdotes de Mitra podiam entender... Foi esta sua revelação em Damasco: compreendeu que
precisava da crença na imortalidade para despojar o valor do “mundo”, que a idéia de “inferno” dominaria
Roma – que a noção de um “além” significa a morte da vida. Niilista e cristão: são coisas que rimam(4), e
não somente rimam...
1 – Mais duradouro que o bronze.
2 – Sob o aspecto do eterno.
3 – União sagrada ou mística.
4 – Rimam em alemão: “Nihilist und Christ”. (N. do T.)
LIX
Todo o esforço do mundo antigo em vão: não tenho palavras para descrever meu sentimento ante
tal monstruosidade. – E, considerando o fato de que esse era um trabalho meramente preparatório, que
com granítica autoconsciência lançou os fundamentos para um trabalho de milhares de anos, todo o
significado da antiguidade desaparece!... Para que serviram os gregos? Para que serviram os romanos? –
Todos os pré-requisitos para uma cultura sábia, todos métodos científicos já existiam; o homem já havia
aperfeiçoado a grande e incomparável arte de ler bem – essa é a primeira necessidade para a tradição da
cultura, para a unidade das ciências; as ciências naturais, aliadas às matemáticas e à mecânica,
palmilhavam o caminho certo – o sentido dos fatos, o último e mais precioso de todos os sentidos, tinha
suas escolas, e suas tradições possuíam séculos! Compreende-se isso? Tudo que era essencial ao começo
do trabalho estava pronto; – e o mais essencial, nunca será demais repeti-lo, são os métodos, que
também são o mais difícil de desenvolver e o que há mais tempo têm contra si os costumes e a
indolência. O que hoje reconquistamos com uma inexprimível vitória sobre nós mesmos – pois certos
maus instintos, certos instintos cristãos ainda habitam nossos corpos –, ou seja, o olhar afiado ante a
realidade, a mão prudente, a paciência e a seriedade nas menores coisas, toda a integridade no
conhecimento – tudo isso já existia há mais de dois mil anos! E mais, havia também bom gosto, um
excelente e refinado tato! Não como um adestramento de cérebros! Não como a cultura “alemã”, com
seus modos grosseiros! Mas como corpo, como gesto, como instinto – em suma, como realidade... Tudo
em vão! Do dia para a noite tornou-se memória! – Os gregos! Os romanos! A nobreza do instinto, o
gosto, a investigação metódica, o gênio para a organização e administração, a fé e a vontade para
assegurar futuro do homem, um grandioso sim a todas as coisas, visível sob a forma de imperium
romanum e palpável a todos os sentidos, um grande estilo que não era simplesmente arte, mas que havia
se transformado em realidade, verdade, vida... – Tudo destruído de um dia para outro, e não por uma
convulsão da natureza! Não pisoteado até a morte por teutônicos e outros búfalos! Mas vencido por
vampiros velhacos, furtivos, invisíveis e anêmicos! Não conquistado – apenas consumido!... A vingança
oculta, a inveja mesquinha, agora dominam! Tudo que é miserável, intrinsecamente doente, tomado por
maus sentimentos, todo o mundo de gueto da alma estava subitamente no topo! – Leia-se qualquer
agitador cristão, por exemplo, Santo Agostinho, para entender, para sentir o cheiro daquela gente imunda
que subiu ao poder. – Seria um erro, entretanto, presumir que havia falta de compreensão por parte dos
líderes do movimento cristão: – ah, eles eram espertos, espertos até à santidade, esses pais da Igreja! O
que lhes faltava era algo bastante diferente. A natureza deixou – talvez esqueceu-se – de dotá-los, ao
menos modestamente, de instintos respeitáveis, íntegros, limpos... Dito entre nós, eles não são sequer
homens... Se o islamismo despreza o cristianismo, tem mil razões para fazê-lo: o islamismo pressupõe
homens...
LX
O cristianismo nos fez perder todos os frutos da civilização antiga, e mais tarde nos fez perder os
frutos da civilização islâmica. A maravilhosa cultura dos mouros na Espanha, que era fundamentalmente
mais próxima aos nossos sentidos e gostos que Roma e Grécia, foi pisoteada (– não digo por que tipo de
pés –). Por quê? Porque devia sua origem aos instintos nobres e viris – porque dizia sim à vida, e a com a
rara e refinada luxuosidade da vida mourisca!... Mais tarde os cruzados combateram algo ante o qual
seria mais apropriado que rastejassem – uma civilização que faria mesmo o nosso século XIX parecer
muito pobre e “atrasado”. – O que queriam, obviamente, era saquear: o Oriente era rico... Coloquemos à
parte os preconceitos! As cruzadas: pirataria em grande escala, nada mais! A nobreza alemã, que no
fundo é uma nobreza de viking, estava em seu elemento com as cruzadas: a Igreja sabia muito bem
como ganhar a nobreza alemã.... A nobreza alemã, sempre a “guarda suíça” da Igreja, estava ao serviço
de todos maus instintos da Igreja – mas bem paga... Foi precisamente a ajuda das espadas, do sangue e
do valor alemães que permitiu à Igreja fazer sua guerra de morte contra tudo que é nobre sobre a Terra!
Aqui poderiam ser feitas perguntas bastante dolorosas. A nobreza alemã encontra-se fora da história das
civilizações elevadas: a razão é óbvia... Cristianismo, álcool – os dois grandes meios de corrupção... Em
suma, não havia mais escolha entre o islamismo e o cristianismo que há entre um árabe e um judeu. A
decisão já foi tomada; não há mais liberdade de escolha aqui. Ou bem se é chandala ou bem se não é...
“Guerra de morte a Roma! Paz e amizade com o islamismo!”: esse foi o sentimento, essa foi a ação do
grande espírito livre, do gênio entre os imperadores alemães, Frederico II. Como? Será preciso que um
alemão seja gênio, espírito livre, para possuir sentimentos decentes? Não consigo imaginar como um
alemão poderia sentir-se cristão...
LXI
Neste momento faz-se mister evocar uma memória cem vezes mais dolorosa aos alemães. Os
alemães impediram a Europa de colher os últimos grandes frutos de cultura – a Renascença.
Compreende-se finalmente, será que por fim compreende-se o que era a Renascença? A transmutação
dos valores cristãos – uma tentativa com todos os meios, todos os instintos e todos os recursos do gênio
para fazer triunfarem os valores opostos, os valores mais nobres... Até ao presente essa foi a única
grande guerra; nunca houve uma questão mais crítica que a da Renascença – que é minha questão
também –; nunca houve uma forma de ataque mais fundamental, mais direta, mais violentamente
desferida por toda uma frente contra o centro do inimigo! Atacar no lugar decisivo, no próprio assento do
cristianismo, e lá entronar os valores nobres – isto é, introduzi-los nos instintos, nas necessidades e
desejos mais fundamentais dos que ocupavam o poder... Vejo diante de mim a possibilidade de um
encantamento supraterreno: – parece-me que cintila com todas vibrações de uma beleza sutil e refinada,
dentro da qual há uma arte tão divina, tão diabolicamente divina, que em vão se procuraria através dos
milênios por semelhante possibilidade; vejo um espetáculo tão rico em significância e ao mesmo tempo
tão maravilhosamente paradoxal que daria a todas as divindades do Olimpo o ensejo de irromper numa
imortal gargalhada – César Bórgia como Papa!... Compreendem-me?... Pois bem, essa teria o sido a
espécie de vitória que hoje somente eu desejo –: com ela o cristianismo teria sido abolido! – Que
sucedeu? Um monge alemão, Lutero, chegou a Roma. Esse monge, com todos os instintos vingativos de
um padre malogrado no corpo, levantou uma rebelião contra a Renascença em Roma... Em vez de
compreender, com profundo reconhecimento, o milagre que havia ocorrido: a conquista do cristianismo
em sua sede – usou o espetáculo apenas para alimentar seu próprio ódio. O homem religioso pensa
apenas em si mesmo. – Lutero viu apenas a corrupção do papado, enquanto exatamente o oposto estava
tornando-se visível: a velha corrupção, o peccatum originale, o cristianismo já não ocupava mais o trono
papal! Em seu lugar havia vida! Havia o triunfo da vida! Havia um grande sim a tudo que é grande, belo e
audaz!... E Lutero restabeleceu a Igreja: a atacou... A Renascença – um evento sem sentido, uma grande
futilidade! – Ah, esses alemães, quanto já nos custaram! Tornar todas as coisas vãs – sempre foi esse o
trabalho dos alemães. – A Reforma; Leibniz; Kant e a assim chamada filosofia alemã; as guerras de
“independência”; o Império – sempre um substituto fútil para algo que existia, para algo irrecuperável...
Estes alemães, eu confesso, são meus inimigos: desprezo neles toda a sujidade nos valores e nos
conceitos, a covardia perante todo sim e não sinceros. Há quase mil anos embaraçam e confundem tudo
que seus dedos tocam; têm sobre suas consciências todas as coisas feitas pela metade, feitas nas suas
três oitavas partes, de que a Europa está doente – e também pesa sobre suas consciências a mais
imunda, incurável e indestrutível espécie de cristianismo – protestantismo... Se a humanidade nunca
conseguir livrar-se do cristianismo, os culpados serão os alemães...
LXII
– Com isto concluo e pronuncio meu julgamento: eu condeno o cristianismo; lanço contra a Igreja
cristã a mais terrível acusação que um acusador já teve em sua boca. Para mim ela é a maior corrupção
imaginável; busca perpetrar a última, a pior espécie de corrupção. A Igreja cristã não deixou nada
intocado pela sua depravação; transformou todo valor em indignidade, toda verdade em mentira e toda
integridade em baixeza de alma. Que se atrevam a me falar sobre seus benefícios “humanitários”! Suas
necessidades mais profundas a impedem de suprimir qualquer miséria; ela vive da miséria; criou a
miséria para fazer-se imortal... Por exemplo, o verme do pecado: foi a Igreja que enriqueceu a
humanidade com esta desgraça! – A “igualdade das almas perante Deus” – essa fraude, esse pretexto
para o rancor de todos espíritos baixos – essa idéia explosiva terminou por converter-se em revolução,
idéia moderna e princípio de decadência de toda ordem social – isso é dinamite cristã... Os “humanitários”
benefícios do cristianismo! Fazer da humanitas(1) uma autocontradição, uma arte da autopoluição, um
desejo de mentir a todo custo, uma aversão e desprezo por todos instintos bons e honestos! Para mim
são esses os “benefícios” do cristianismo! – O parasitismo como única prática da Igreja; com seus ideais
“sagrados” e anêmicos, sugando da vida todo o sangue, todo o amor, toda a esperança; o além como
vontade de negação de toda a realidade; a cruz como símbolo representante da conspiração mais
subterrânea que jamais existiu – contra a saúde, a beleza, o bem-estar, o intelecto, a bondade da alma –
contra a própria vida...
Escreverei esta acusação eterna contra o cristianismo em todas as paredes, em toda parte onde
houver paredes – tenho letras que até os cegos poderão ler... Denomino o cristianismo a grande
maldição, a grande corrupção interior, o grande instinto de vingança, para o qual nenhum meio é
suficientemente venenoso, secreto, subterrâneo ou baixo – chamo-lhe a imortal vergonha da
humanidade...
E conta-se o tempo a partir do dies nefastus(2) em que essa fatalidade começou – o primeiro dia
do cristianismo! – Por que não contá-lo a partir do seu último dia? – A partir de hoje? – Transmutação de
todos os valores!...
1 – Caráter humano, sentimento humano.
2 – Dia nefasto.
Lei contra o cristianismo
Datada do dia da Salvação: primeiro dia do ano Um (em 30 de Setembro de 1888, pelo falso
calendário).
Guerra de morte contra o vício: o vício é o cristianismo
Artigo Primeiro – Qualquer espécie de antinatureza é vício. O tipo de homem mais vicioso é o
padre: ele ensina a antinatureza. Contra o padre não há razões: há cadeia.
Artigo Segundo – Qualquer tipo de colaboração a um ofício divino é um atentado contra a moral
pública. Seremos mais ríspidos com protestantes que com católicos, e mais ríspidos com os protestantes
liberais que com os ortodoxos. Quanto mais próximo se está da ciência, maior o crime de ser cristão.
Conseqüentemente, o maior dos criminosos é filósofo.
Artigo Terceiro – O local amaldiçoado onde o cristianismo chocou seus ovos de basilisco deve ser
demolido e transformado no lugar mais infame da Terra, constituirá motivo de pavor para a posteridade.
Lá devem ser criadas cobras venenosas.
Artigo Quarto – Pregar a castidade é uma incitação pública à antinatureza. Qualquer desprezo à
vida sexual, qualquer tentativa de maculá-la através do conceito de “impureza” é o maior pecado contra o
Espírito Santo da Vida.
Artigo Quinto – Comer na mesma mesa que um padre é proibido: quem o fizer será excomungado
da sociedade honesta. O padre é o nosso chandala – ele será proscrito, lhe deixaremos morrer de fome,
jogá-lo-emos em qualquer espécie de deserto.
Artigo Sexto – A história “sagrada” será chamada pelo nome que merece: história maldita; as
palavras “Deus”, “salvador”, “redentor”, “santo” serão usadas como insultos, como alcunhas para
criminosos.
Artigo Sétimo – O resto nasce a partir daqui.
Nietzsche – O Anticristo

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