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avançam muito além de sua base racional, e outras, que positivamente a contradizem. Essa paciente, de que
estamos falando, alegou, como pretexto de suas precauções noturnas, que necessitava de silêncio para dormir
e devia abolir qualquer fonte de ruído. Com este fim em vista, fazia dois tipos de coisas. Parava o grande
relógio em seu quarto, todos os outros relógios eram removidos do quarto e sequer permitia que seu minúsculo
relógio de pulso ficasse dentro de sua mesinhadecabeceira.
Vasos de flores e outros vasos eram agrupados
na escrivaninha de modo que não pudessem cair e quebrarse
durante a noite e perturbarlhe
o sono. Ela se
apercebia de que estas medidas só podiam encontrar uma justificativa ostensiva na observância da regra do
silêncio; o tiquetaque
de seu pequenino relógio de pulso não poderia ter sido audível, ainda que fosse deixado
na mesadecabeceira,
e todos temos experiência do fato de que o tiquetaque
regular de um relógio de
pêndulo nunca perturba o sono, mas age, isto sim como soporífero. Admitiu também que seu medo de que os
vasos de flores e outros vasos, se deixados em seu lugares, pudessem cair e quebrarse
por si mesmos,
carecia de qualquer fundamento. No caso de outras especificações feitas pelo ritual, abandonavase
o pretexto
da necessidade de haver silêncio. Na verdade, a exigência de que a porta entre seu quarto e o quarto dos pais
devesse permanecer entreaberta — exigência que ela satisfazia colocando diversos objetos no vão da porta —
parecia, pelo contrário, agir como fonte de ruídos perturbadores. as especificações mais importantes referiamse,
todavia, à cama propriamente dita. O travesseiro, na parte superior da cama, não devia tocar o encosto de
madeira da cabeceira. O travesseiro pequeno devia repousar sobre o travesseiro grande, somente numa
posição específica — ou seja, de modo a configurar a forma de um diamante. A cabeça devia repousar, então,
exatamente no sentido do diâmetro maior do diamante. O edredom (ou ‘Duchent‘, como o chamamos na
Áustria) tinha de ser, antes de colocado sobre a cama, sacudido de tal maneira, que a parte inferior ficasse
muito volumosa; depois, no entanto, ela jamais deixava de aplainar esse acúmulo de penas, comprimindoo
para os lados.Com a permissão dos senhores, desprezarei os demais detalhes, muito banais, do ritual; não nos
ensinariam nada de novo e nos levariam para bem longe de nossos objetivos. Os senhores não devem,
contudo, negligenciar o fato de que tudo isso não se fazia sem dificuldades. Havia sempre apreensão de que as
coisas não tivessem sido feitas corretamente. Tudo tinha de ser verificado e repetido, dúvidas assaltavam ora
uma, outra outra das medidas de segurança, e o resultado era que se gastavam nisso duas ou três horas,
durante as quais a jovem não podia dormir, e também não haveria de permitir que dormissem os seus
atemorizados pais.A análise destes tormentos não se faz tão simplesmente assim, como a análise do ato
obsessivo de nossa paciente anterior. Fui obrigado a apresentar à jovem paciente determinadas alusões e
propor interpretações, as quais sempre eram rejeitadas com um decidido ‘não’ ou aceitas com dúvidas
desdenhosas. Passada essa primeira reação ou rejeição, seguiuse,
porém, uma época durante a qual ela se
ocupava com as possibilidades que se lhe apresentavam, juntava associações às mesmas, referia recordações
e estabelecia conexões, até que, por seu próprio esforço, passou a aceitar todas as interpretações. À medida
que isso aconteceu, ela abrandou a execução de suas medidas obsessivas, e, antes mesmo do fim do
tratamento, havia abandonado por completo o ritual. Os senhores devem entender também que o trabalho
analítico, tal como o efetuamos hoje em dia, praticamente exclui o tratamento sistemático de qualquer sintoma
isolado até ser inteiramente elucidado. Pelo contrário, vemonos
obrigados a abandonar repetidamente um
determinado tema, na expectativa certa de retornar a ele novamente, em outros contextos. A interpretação de
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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seus sintomas, que estou por mostrarlhes,
é, em consonância com isto, uma síntese de achados que foram
surgindo, interrompidos por outro trabalho, durante um período de semanas e meses.Nossa paciente
gradualmente veio a constatar que era devido à sua qualidade de símbolos dos genitais femininos que os
relógios eram retirados do meio de seus objetos de uso à noite. Os relógios — embora em outra parte
tenhamos encontrado outras interpretações simbólicas para os mesmos — assumiram a significação genital
devido à sua relação com processos periódicos e intervalos de tempo iguais. Uma mulher pode gabarse
de
que sua menstruação funciona com a regularidade de um relógio. A ansiedade de nossa paciente, porém,
estava voltada em especial contra a possibilidade de ela ter o seu sono perturbado pelo tiquetaque
de um
relógio. O tiquetaque
do relógio pode ser comparado com a pulsação ou latejamento do clitóris durante a
excitação sexual. Realmente ela havia, repetidas vezes, acordado durante a noite com essa sensação, que
agora se lhe tinha tornado desagradável; e expressou esse medo de uma ereção através da regra de que todos
os relógios em funcionamento deviam ser removidos de perto de si, durante a noite. Vasos de flores, assim
como todos os vasos [ver em [1]], também são símbolos sexuais. Tomar precauções para que não caíssem e
não se quebrassem durante a noite, portanto, não deixava de ter seu correto sentido. Conhecemos o costume
tão difundido de quebrar um vaso ou um prato nas cerimônias dos esponsais. Cada um dos homens presentes
apanha um dos fragmentos, e podemos considerar isto como sendo um sinal de sua renúncia à pretensão que
tinha em relação à noiva, em virtude de uma lei nupcial que remonta a uma época anterior ao estabelecimento
da monogamia. Com relação a esta parte de seu ritual, a jovem referiu uma lembrança e diversas associações.
Certa vez, quando era criança, sofreu uma queda no momento em que tinha nas mãos um vaso de vidro ou
porcelana, resultandolhe
um corte em um dedo e sangramento profuso. Quando cresceu e tomou
conhecimento dos fatos referentes ao ato sexual, desenvolveu uma angustiante idéia de que, na sua noite de
núpcias, ela não iria ter perda de sangue, e assim deixaria de mostrar que era virgem. Suas precauções com a
possibilidade de os vasos se quebrarem significavam, pois, um repúdio a todo o complexo referente à
virgindade e ao sangramento no primeiro coito — igualmente um repúdio ao medo de sangrar e, ao contrário,
medo de não
sangrar. Estas precauções, que ela subordinava à evitação do ruído, tinham apenas remota conexão
com tal complexo.Ela atinou, um dia, com a significação central de seu ritual, quando, subitamente,
compreendeu a significação da regra segundo a qual o travesseiro não devia tocar no encosto da cabeceira da
cama. O travesseiro, disse, sempre havia sido, para ela, uma mulher, e o encosto de madeira, ereto, um
homem. Assim, desejava — por meios mágicos, podemos acrescentar — manter homem e mulher separados
— isto é, separar seus pais um do outro, não lhes permitindo terem relação sexual. Anos antes, em época
anterior ao estabelecimento do ritual, havia procurado atingir o mesmo objetivo, de maneira mais direta. Havia
simulado medo (ou explorara uma tendência ao medo que já se encontrava presente), a fim de que as portas
comunicantes entre o quarto dos pais e seu quarto de criança não ficassem fechadas. Esta regra, com efeito,
tinha sido mantida em seu ritual atual. Dessa forma, deuse
a si mesma a oportunidade de ficar escutando seus
pais; entretanto, ao utilizála,
desenvolveu um insônia que durou meses. Não satisfeita com perturbar os pais
por este meio, conseguiu que lhe permitissem dormir, de tempos em tempos na cama dos pais, entre eles. O
travesseiro e o encosto de madeira, assim, não conseguiram aproximarse.
Por fim, quando já era tão grande
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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que se tornou fisicamente desconfortável para ela encontrar lugar, na cama, entre seus pais, conseguiu, por
uma consciente simulação de ansiedade, combinar com sua mãe uma troca de lugares com esta, à noite; a
mãe, então, cedialhe
o lugar, de modo que a paciente conseguia dormir ao lado do pai. Sem dúvida, essa
situação transformouse
no ponto de partida de fantasias, cujo efeito secundário se podia constatar no ritual.Se
um travesseiro era uma mulher, então o sacudir o edredom até todas as penas se localizarem na parte inferior e
causarem um abaulamento, também tinha um sentido. Significava um mulher ficar grávida; ela, contudo, nunca
deixava de desfazer novamente essa gravidez, pois durante anos temera que o coito de seus pais resultasse
em mais um filho e, desta forma, presenteassemna
com um rival. Por outro lado, se o travesseiro grande era
uma mulher, a mãe, o travesseiro menor somente podia representar a filha. Por que este travesseiro tinha de
ser colocado na forma de um diamante e a cabeça situarse
justamente ao longo da linha central? Foi fácil
recordarlhe
que essa forma de diamante é a figura desenhada em todos os muros para representar os genitais
femininos abertos. Sendo assim, ela própria estava representando o homem e substituindo o órgão masculino
por sua cabeça. (Cf. o simbolismo da decapitação como símbolo de castração.)
Pensamentos muito dissolutos, dirão os senhores, para estarem passando na cabeça de uma jovem
solteira. Admito que sim. Mas, não devem esquecerse
de que não criei essas coisas, apenas interpreteias.
Um
ritual de dormir igual a esse também é algo estranho, e os senhores não deixarão de constatar como o ritual
corresponde às fantasias reveladas pela interpretação. Atribuo, todavia, maior importância ao fato de notarem
que, no ritual, o que se verificou não foi o resultado de uma única fantasia, mas de diversas, embora tivessem
um ponto nodal em alguma parte, e, ademais, que as regras estabelecidas pelo ritual reproduziam os desejos
sexuais da paciente, num ponto positivamente, e noutro, negativamente — em parte representavam esses
desejos e em parte derivam de defesa contra os mesmos.Poderseia
também obter mais alguma coisa da
análise desse ritual, se este pudesse ser adequadamente vinculado aos demais sintomas da presente. Nossa
investigação, contudo, não segue esta direção. Os senhores devem contentarse
com um indício de que a
jovem estava dominada por uma ligação erótica com seu pai, ligação cujos começos remontavam à sua
infância. Talvez fosse por isso que ela se portava de forma tão inamistosa com sua mãe [ver em [1]]. E não
podemos deixar de atentar para o fato de que a análise deste sintoma nos levou de volta, mais uma vez, à vida
sexual de uma paciente. Talvez nos surpreendêssemos menos com isso, à medida que mais freqüentemente
compreendemos o sentido e a intenção dos sintomas neuróticos.Mostreilhes,
portanto, como base em dois
exemplos escolhidos, que os sintomas neuróticos, como as parapraxias e os sonhos, possuem um sentido e
têm íntima conexão com as experiências do paciente. Posso esperar que acreditarão nesta tese extremamente
importante, com as provas do dois exemplos? Não. Entretanto, podem os senhores exigir que eu continue a
darlhes
outros exemplos, até que se declarem satisfeitos? Novamente, não. Pois, tendo em vista a maneira
detalhada como abordo cada caso isoladamente, teria de dedicar um ciclo de conferência de cinco horas ao
estabelecimento de apenas este ponto da teoria das neuroses. Devo, assim, contentarme
com terlhes
dado
um prova experimental de minha asserção e, quanto ao restante, remetoos
aos relatos que a bibliografia
oferece sobre o assunto — às clássicas interpretações de sintomas do primeiro caso (de histeria), de Breuer, à
vívida luz lançada sobre os mais obscuros sintomas daquilo que se conhece como dementia praecox, por C. G.
Jung [1907], numa época em que ele era apenas psicanalista e ainda não aspirava a ser profeta; e a todos os
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trabalhos que desde então têm enchido os nossos periódicos. Não faltavam investigações, justamente sobre
esses assuntos. A análise, interpretação e tradução de sintomas psiconeuróticos provaram ser tão atraentes
para os psicanalistas, que estes, por um tempo, negligenciaram os demais problemas da neurose.Se algum dos
senhores empreender exercícios desta natureza, certamente terá uma poderosa impressão da quantidade de
provas documentais. Mas também se defrontará com uma dificuldade. O sentido de um sintoma, conforme
verificamos, possui determinada conexão com a experiência do paciente. Quanto mais individual for a forma
dos sintomas, mais motivos teremos para esperar que seremos capazes de estabelecer esta conexão. A tarefa,
então, consiste simplesmente em descobrir, com relação a uma idéia sem sentido e uma ação despropositada,
a situação passada em que a idéia se justificou e a ação serviu a um propósito. O ato obsessivo de nossa
paciente, que corria para a mesa e tocava a campainha para chamar a empregada, é um modelo perfeito dessa
espécie de sintomas. Existem, contudo — e são muito freqüentes — sintomas de tipo bem diferente. Devem ser
descritos como sintomas ‘típicos’ de uma doença; são quase os mesmos em todos os casos, as distinções
individuais neles desaparecem, ou pelo menos diminuem, de tal forma, que é difícil pôlos
em conexão com a
experiência individual dos pacientes e relacionálos
a situações particulares que vivenciaram. Voltemonos,
mais uma vez, para a neurose obsessiva. O ritual de dormir de nossa segunda paciente já tem, neste consenso,
muitos aspectos típicos, embora, ao mesmo tempo, tenha muitos traços individuais, de forma a tornar possível
aquilo que denomino interpretação ‘histórica’. Mas todos esses pacientes obsessivos têm uma tendência a
repetir, a executar seus atos ritmicamente e a mantêlos
isolados de outros atos. A maioria deles lavase
em
demasia. Pacientes que sofrem de agorafobia (topofobia ou medo de espaços), que não consideramos mais
como neurose obsessiva, mas descrevemos como ‘histeria de angústia’, freqüentemente repetem os mesmos
aspectos, em seus sintomas, com enfadonha monotonia: têm medo de espaços fechados, de amplas praças
descampadas, de estradas e ruas longas. Sentemse
protegidos quando acompanhados de um conhecido ou
seguidos por um veículo, e assim por diante. Com um background semelhante, diferentes pacientes, não
obstante, exibem suas exigências individuais — manhas, como se costuma dizer — que, em alguns casos, se
contradizem abertamente umas às outras. Um paciente evita apenas ruas estreitas, e um outro, somente ruas
largas; um consegue sair somente se houver poucas pessoas na rua, ao passo que um outro apenas sai se
existem muitas. Da mesma forma, a histeria, apesar da quantidade de traços individuais, possui em exagero
sintomas comuns, típicos, que parecem oporse
a qualquer derivação histórica fácil. E não devemos esquecer
que são estes sintomas típicos, na verdade, que nos dão a orientação com que fazemos nosso diagnóstico.
Suponhamos que, num caso de histeria, tenhamos realmente constatado um sintoma típico remontar a uma
experiência ou a uma seqüência de experiências semelhantes — um caso de vômito histérico, por exemplo,
relativo a uma série de recordações desagradáveis —; então ficamos na incerteza quando a análise de um caso
semelhante de vômitos revela uma série de experiências obviamente verdadeiras, de natureza muito diferente.
parece, pois, como se, por motivos desconhecidos, os pacientes histéricos não pudessem deixar de ter os
vômitos, e como se as causas históricas precipitantes reveladas pela análise fossem apenas pretextos que, no
caso de se comprovarem, são explorados por essa necessidade interna.
Assim sendo, defrontamonos
agora com a desanimadora descoberta de que, embora tenhamos a
capacidade de fornecer uma explicação satisfatória dos sintomas neuróticos individuais, mediante sua conexão
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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com as vivências, essa nossa capacidade deixanos
na incerteza quando chegamos aos sintomas típicos, muito
mais freqüentes. Ademais disso, estou longe de terlhes
apontado todas as dificuldades que surgem ao
intentarmos a sério efetuar a interpretação histórica dos sintomas. E nem pretendo fazêlo;
pois, embora seja
minha intenção não lhes explicar todas as coisas segundo uma perspectiva favorável, ou ocultálas,
não posso
atirálos
na perplexidade e na confusão justamente no início de nossos estudos em conjunto. É verdade que
apenas estamos no início de nossos esforços de compreender a significação dos sintomas; aternosemos,
porém, àquilo que conseguimos e seguiremos nosso caminho, passo a passo, até obtermos o domínio daquilo
que ainda não compreendemos. Portanto, tentarei consolálos
com o pensamento de que mal se pode pensar
que haja qualquer distinção fundamental entre um tipo de sintoma e outro. Se os sintomas, isoladamente, são
tão inequivocamente dependentes das experiências pessoais do paciente, resta a possibilidade de os sintomas
psíquicos remontarem a uma experiência que é típica em si mesma — comum a todos os seres humanos.
Outros aspectos ocorrentes com regularidade nas neuroses podem constituir relações gerais impostas aos
pacientes pela natureza de sua modificação patológica, como as repetições ou as dúvidas na neurose
obsessiva. Em resumo, não temos motivos para um desespero prematuro; veremos o que resta por ser
visto.Uma dificuldade semelhante se ergue diante de nós na teoria dos sonhos. Não pude abordála
antes,
quando discorremos a respeito de sonhos. O conteúdo manifesto dos sonhos possui a maior diversidade e
variedade individual, e mostramos detalhadamente o que é que derivamos deste conteúdo, por meio de uma
análise. Além destes, há, contudo, sonhos que igualmente merecem ser chamados de ‘típicos’, que acontecem
em todas as pessoas, da mesma forma; sonhos de conteúdo uniforme, que oferecem as mesmas dificuldades à
interpretação. São sonhos com cair, voar, flutuar, nadar, envergonharse,
estar nu, e alguns outros sonhos de
ansiedade — que conduzem, em pessoas diferentes, ora a esta, ora àquela interpretação, sem que se possa
elucidar sua uniformidade e ocorrência características. Mas também nesses sonhos observamos ser este
substrato comum enriquecido por acréscimos que variam de indivíduo para indivíduo; e é provável que, com a
ampliação de nossos conhecimentos, se torne possível, sem empecilhos, incluir também esses sonhos na
compreensão da vida onírica, que adquirimos de outros sonhos.
CONFERÊNCIA XVIII
FIXAÇÃO EM TRAUMAS — O INCONSCIENTE
SENHORAS E SENHORES:
Em minha conferência anterior, expressei o desejo de que nosso trabalho pudesse prosseguir com
base não em nossas dúvidas, mas sim em nossas descobertas. Não expusemos ainda nada sobre duas das
mais interessantes implicações decorrentes de nossas duas amostras de análise.
Comecemos pela primeira. Ambas as pacientes dãonos
a impressão de se terem ‘fixado’ em uma
determinada parte de seu passado, como se não conseguissem libertarse
dela, e estivessem, por essa razão,
alienadas do presente e do futuro. Assim, elas permaneceram enclausuradas em sua doença, da mesma forma
como, em épocas anteriores, as pessoas se retiravam para dento de um mosteiro, a fim de ali suportarem a
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carga de suas vidas desditosas. O que havia lançado esse destino sobre nossa primeira paciente era o
casamento que ela, na vida real, havia abandonado. Por meio de seus sintomas, continuava a manter seu
relacionamento com o marido. Pudemos compreender seus anseios que imploravam por ele, que o
desculpavam, que o colocavam num pedestal e que lamentavam a perda dele. Embora fosse jovem e desejável
para outro homens, havia tomado todas as precauções, reais e imaginárias (mágicas), para permanecer fiel a
ele. Não se mostrava a estranhos e negligenciava sua aparência pessoal; ademais, sempre que se sentava
numa cadeira, era incapaz de levantarse
rapidamente, recusavase
a assinar o nome e não podia dar nenhum
presente, com fundamento na suposição de que dela ninguém devia receber nada.O mesmo efeito se produzia
na vida de nossa segunda paciente, a jovem, por meio de uma ligação erótica com seu pai iniciada nos anos
anteriores à puberdade. A conclusão que ela mesma tirou foi não poder casarse
enquanto estivesse tão
doente. Entretanto, suspeitamos que ficara assim tão doente para não ter de casar e para permanecer com o
pai.Não podemos desprezar a questão de saber por que, de que forma e por qual motivo uma pessoa pode
chegar a uma atitude assim tão estranha perante a vida, uma atitude tão pouco prática — supondose
que esta
atitude seja uma característica geral das neuroses, e não uma peculiaridade especial dessas duas pacientes. E,
de fato, é um aspecto geral, de grande importância prática em toda neurose. A primeira paciente histérica de
Breuer [ver em [1], anterior], estava, de modo semelhante, fixada no período em que cuidava de seu pai
gravemente doente. Apesar da recuperação, essa paciente, em certo aspecto, permaneceu desligada da vida;
permaneceu sadia e eficiente, porém evitou o curso normal da vida de uma mulher. Em cada uma de nossas
pacientes, a análise nos mostra que elas foram conduzidas de volta a um determinado período de seu passado,
através dos sintomas de sua doença, ou pelas conseqüências desses sintomas. Na maior parte dos casos, com
efeito, escolheuse,
para este fim, uma fase muito precoce da vida — um período de sua infância ou, até
mesmo, por mais que isto pareça risível, um período de sua existência como criança de peito.A mais íntima
analogia com essa conduta de nossos neuróticos apresentase
nas doenças que se estão produzindo com
especial freqüência precisamente na época atual, por intermédio da guerra — o que se descreve como
neuroses traumáticas. Naturalmente, casos semelhantes aparecem também antes da guerra, após colisões de
trens e outros acidentes alarmantes envolvendo riscos fatais. As neuroses traumáticas não são, em sua
essência, a mesma coisa que as neuroses espontâneas que estamos acostumados a investigar e tratar pela
análise; até agora, não conseguimos harmonizálas
com nossos pontos de vista, e espero, em algum época,
poder explicarlhes
a razão desta limitação. No entanto, num aspecto devemos insistir em que existe completo
acordo entre elas. As neuroses traumáticas dão uma indicação precisa de que em sua raiz se situa uma fixação
no momento do acidente traumático. Esses pacientes repetem com regularidade a situação traumática, em seus
sonhos, onde correm ataques histeriformes que admitam uma análise, verificamos que o ataque corresponde a
uma completa transportação do paciente para a situação traumática. É como se esses pacientes não tivessem
findado com a situação traumática, como se ainda tivessem enfrentandoa
como tarefa imediata ainda não
executada; e levamos muito a sério esta impressão. Mostranos
o caminho daquilo que podemos denominar de
aspecto econômico dos processos mentais. Realmente, o termo ‘traumático’ não tem outro sentido senão o
sentido econômico. Aplicandoo
a uma experiência que, em curto período de tempo, aporta à mente um
acréscimo de estímulo excessivamente poderoso para ser manejado ou elaborado de maneira normal, e isto só
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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pode resultar em perturbações permanentes da forma em que essa energia opera.Esta analogia nos compele a
descrever como traumáticas também aquelas experiências nas quais nossos pacientes neuróticos parecem se
haver fixado. Isto nos proporia uma causa única para o início da neurose. Assim, a neurose poderia equivaler a
uma doença traumática, e apareceria em virtude da incapacidade de lidar com uma experiência cujo tom afetivo
fosse excessivamente intenso. Na verdade, foi esta realmente a primeira fórmula pela qual (em 1893 e 1895)
Breuer e eu explicamos teoricamente nossas observações. Um caso como aquele da primeira de minhas duas
pacientes, em minha conferência anterior — a jovem mulher casada separada de seu marido — ajustase
muito
bem a esta opinião. Ela não tinha superado o fracasso de seu casamento e permanecia ligada ao trauma. Mas
nosso segundo caso — o da jovem com uma fixação em seu pai — já nos mostra que a fórmula não
proporciona compreensão suficiente. Por um lado, uma menininha estar de tal forma apaixonada por seu pai é
algo tão comum e tão freqüentemente superado, que o termo ‘traumático’, aplicado a este fato, perderia todo o
seu significado; e, por outro lado, a história da paciente demonstrounos
que, numa primeira instância, sua
fixação erótica parecia haverse
dissipado sem causar qualquer dano, e foi somente alguns anos mais tarde
que reapareceu nos sintomas da neurose obsessiva. Aqui, pois, antevemos complicações, uma maior
quantidade de causas para o começo da doença; também podemos, contudo, suspeitar que não há por que
abandonar a linha de abordagem traumática como se fosse errônea; deve ser possível fazêla
adequarse
a isto
e incluíla
em algum outro lugar.
Aqui, pois, mais uma vez devemos interromper o trajeto que iniciamos. Por agora, não conduz a nada
mais, e teremos de nos instruir com outras coisas, antes de podermos encontrar sua correta continuação.
Quanto ao tema da fixação numa determinada fase do passado, podemos, porém, acrescentar que tal conduta
é muito mais difundida do que a neurose. Toda neurose inclui uma fixação desse tipo, mas nem toda fixação
conduz a uma neurose, coincide com uma neurose ou surge devido a uma neurose. Um perfeito modelo de
fixação afetiva em algo que é passado, é o que se nos apresenta no luto, que realmente envolve a mais
completa alienação do presente e do futuro. Mesmo o julgamento de um leigo, contudo, distinguirá com nitidez
entre luto e neurose. Existem, por outro lado, neuroses que podem ser descritas como forma patológica de
luto.Também pode acontecer que uma pessoa seja levada a uma parada tão completa, devido a um
acontecimento traumático que estremece os alicerces de sua vida, a ponto de abandonar todo o interesse pelo
presente e pelo futuro e manterse
permanentemente absorvida na concentração mental no passado. Uma
pessoa assim desafortunada, porém, não se torna, por isso, necessariamente neurótica. Não atribuiremos,
portanto, demasiado valor a este único aspecto ao caracterizar a neurose, embora ele esteja regularmente
presente e possa ser geralmente importante.Voltemonos
agora para a segunda das descobertas que
resultaram de nossas análises; e neste caso não precisamos temer a necessidade de fazer uma subseqüente
limitação em nossos pontos de vista. Descrevilhes
como nossa primeira paciente executava um ato obsessivo
carente de sentido e como referiu uma recordação íntima de sua vida passada que tinha alguma conexão com
ela: e como, a seguir, examinei a conexão entre esse ato e a lembrança, e descobri a intenção do ato obsessivo
a partir de sua relação com a lembrança. Existe, porém, um fator que omiti completamente, embora mereça
nossa mais completa atenção. Por mais que a paciente repetisse seu ato obsessivo, não sabia que este
derivava da experiência por que havia passado. A conexão entre o ato e a experiência estava oculta para ela;
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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apenas podia, muito fielmente, responder que não conhecia aquilo que a fazia executar seu ato. Então,
subitamente, um dia, sob a influência do tratamento, conseguiu descobrir a significação e a referiu a mim. No
entanto, ela ainda nada sabia da intenção com que executava o ato obsessivo — a intenção de retificar uma
parte desagradável do passado e colocar seu adorado esposo em melhor situação. Levou um tempo
consideravelmente longo e foi necessário muito trabalho, antes que compreendesse e admitisse para mim que
apenas tal motivo poderia ter sido a força determinada de seu ato obsessivo.
O elo entre a cena após sua infeliz noite de núpcias e o motivo afetuoso da paciente constituíram,
tomados em conjunto, o que temos chamado de ‘sentido’ do ato obsessivo. Mas, enquanto executava o ato
obsessivo, este sentido lhe tinha sido desconhecido em ambas as direções — tanto o por quê como o para quê.
[ver em [1] e [2], adiante.] Os processos mentais, portanto, tinham estado em operação dentro dela e o ato
obsessivo era o efeito deles; ela se apercebia deste efeito num estado mental normal, porém nenhum dos
predeterminantes deste efeito vieram ao conhecimento de sua consciência. Conduziase
exatamente da mesma
forma que uma pessoa hipnotizada que houvesse recebido de Bernheim a ordem de abrir um guardachuva,
na
enfermaria do hospital, cinco minutos após haver despertado. O homem executava esta ordem quando estava
acordado, mas não podia referir o motivo de sua ação. É uma situação semelhante que temos diante de nossos
olhos quando falamos na existência de processos mentais inconscientes. Podemos desafiar a quem quer que
seja, no mundo, que faça uma descrição científica mais correta desta situação e, se o fizer, de bom grado
renunciaremos à nossa hipótese de processos mentais inconscientes. Enquanto tal não acontecer, porém, nos
aferraremos à hipótese; e se alguém levantar a objeção de que aqui o inconsciente não constitui nada de real,
num sentido científico, que é um artifício, une façon de parler, podemos apenas sacudir os ombros
resignadamente, e não levar em conta o que diz, por ininteligível. Algo não real, que produz efeitos de uma
realidade tão tangível como um ato obsessivo!E encontramos na segunda paciente aquilo que, em essência, é
a mesma coisa. Ela estabelecera a regra de que o travesseiro não devia tocar o encosto da cabeceira da cama,
e tinha de obedecer a essa regra, ainda que não soubesse de onde esta se originava, o que significava, ou a
que motivos devia seu poder. A paciente considerar a regra como algo indiferente, ou lutar contra a mesma, ou
irritarse
com ela, ou decidir transgredila
— nada disso determinava qualquer modificação na sua execução.
Tinha de ser obedecida, e ela se perguntava em vão, por quê. Devemos reconhecer, entretanto, que esses
sintomas de neurose obsessiva, essas idéias e impulsos que emergem não se sabe de onde, que provam ser
resistentes a toda influência de uma mente sob outros aspectos normal, que dão ao paciente a impressão de se
tratar de convidados todopoderosos
de um outro mundo, seres imortais imiscuindose
no turbilhão da vida
mortal — esses sintomas oferecem a mais clara indicação de que existe uma região da mente, por completo
isolada do resto. Conduzem, por uma via que não se pode perder, a uma convicção da existência do
inconsciente na mente; e é precisamente por esta razão que a psiquiatria clínica, que está familiarizada apenas
com uma psicologia da consciência, não consegue abordar esses sintomas de nenhuma outra forma que não
seja qualificandoos
como sinais de um tipo especial de degeneração. Idéias obsessivas e impulsos obsessivos
naturalmente não são, em si mesmos, inconscientes, algo mais do que a realização de atos obsessivos escapa
à percepção consciente. Não se teriam tornado sintomas, se não tivessem forçado o caminho até à
consciência. Mas seus motivos predeterminantes, que inferimos por meio da análise, as conexões em que os
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inserimos, pela interpretação, são inconscientes, pelo menos enquanto não os tivermos tornado conscientes
para o paciente, através do trabalho da análise.
Ora, se os senhores considerarem mais atentamente que a situação que estabelecemos em nossos
dois casos se confirma em relação a todos os sintomas de toda doença neurótica — que sempre e em toda
parte o sentido dos sintomas é desconhecido para o paciente, e que a análise regularmente demonstra que
esses sintomas constituem derivados de processos inconscientes, contudo podendo, sujeitos a variadas
circunstâncias favoráveis, fazerse
conscientes — se considerarem isto, os senhores compreenderão que, na
psicanálise, não podemos prescindir daquilo que é, ao mesmo tempo, inconsciente e mental, e que estamos
habituados a operar com esse algo, como se se tratasse de alguma coisa perceptível pelos sentidos. Os
senhores, porém, também entenderão, talvez, quão incapazes de formar um julgamento desta questão são
todas essas outras pessoas familiarizadas apenas com o inconsciente enquanto conceito, que jamais efetuaram
uma análise e jamais interpretaram sonhos, ou encontraram sentido e intenção nos sintomas neuróticos. Vale
anunciar, mais uma vez, para nossos fins: a possibilidade de conferir um sentido aos sintomas neuróticos,
mediante interpretação analítica, é uma prova inarredável da existência — ou, se preferem, da necessidade de
manter a hipótese … de processos mentais inconscientes.
Isto não é tudo, porém. Graças a uma segunda descoberta de Breuer, que a mim parece mais
significativa ainda do que a outra [ver em [1]], a que ele empreendeu sozinho, aprendemos ainda mais acerca
da conexão entre os sintomas neuróticos e o inconsciente. Não apenas o sentido dos sintomas é, com
regularidade, inconsciente, mas também existe uma relação inseparável entre este fato de os sintomas serem
inconscientes e a possibilidade de eles existirem. Logo os senhores me compreenderão. Estou de acordo com
Breuer ao afirmar que sempre ao encontrarmos um sintoma, poderemos concluir existirem determinados
processos mentais definidos, no paciente, os quais contêm o sentido do sintoma. Mas, também é necessário
que este sentido seja inconsciente, para que o sintoma possa surgir. Jamais se constroem sintomas a partir de
processos conscientes; tão logo os processos inconscientes pertinentes se tenham tornado conscientes, o
sintoma deve desaparecer. Aqui os senhores prontamente percebem um meio de se chegar à terapia, uma
forma de fazer os sintomas desaparecerem. E, dessa maneira, Breuer realmente recuperou sua paciente
histérica — isto é, libertoua
de seus sintomas; encontrou uma técnica de trazer à consciência os processos
mentais inconscientes que continham o sentido dos sintomas, e os sintomas desapareceram.
Essa descoberta de Breuer não foi resultado de especulação, mas sim uma feliz observação que se
tornou possível pela cooperação da paciente. E nem devem os senhores atormentarse
com tentativas de
compreender essa descoberta atribuindoa
a algo anteriormente conhecido; devem reconhecer nela um fato
fundamental novo, com cujo auxílio muita coisa se tornará explicável. Permitamme,
portanto, repetirlhes
a
mesma coisa, de outro modo.A construção de um sintoma é o substituto de alguma outra coisa que não
aconteceu. Determinados processos mentais normalmente deveriam ter evoluído até um ponto em que a
consciência recebesse informações deles. Isto, porém, não se realizou, e, em seu lugar — a partir dos
processos interrompidos, que de alguma forma foram perturbados e obrigados a permanecer inconscientes — o
sintoma emergiu. Assim, passouse
algo semelhante a uma troca; se isso puder ser invertido, o tratamento dos
sintomas neuróticos terá atingido seus objetivos.A descoberta de Breuer ainda é o alicerce da terapia
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
24
psicanalítica. A tese, segundo a qual os sintomas desaparecem quando se fazem conscientes seus motivos
predeterminantes inconscientes, tem sido confirmada por todas as pesquisas subseqüentes, embora nos
defrontemos com as mais estranhas e inesperadas complicações ao tentarmos pôla
em prática. Nossa terapia
age transformando aquilo que é inconsciente em consciente, e age apenas na medida em que tem condições
de efetuar essa transformação.Devo fazer agora, rapidamente, uma breve digressão, a fim de evitar o risco de
os senhores imaginarem que este trabalho terapêutico seja realizado com muita facilidade. Daquilo que lhes
disse até aqui, uma neurose poderia resultar de uma espécie de ignorância — um nãosaber
acerca de
acontecimentos mentais de que se deveria saber. Isto seria uma aproximação mais efetiva a algumas
conhecidas doutrinas socráticas, segundo as quais até mesmo os vícios se baseiam na ignorância. Ora, via de
regra seria muito fácil, para um médico experiente em análise, compreender que impulsos mentais tivessem
permanecido inconscientes em determinado paciente. Então não lhe seria muito difícil, também, recuperar o
paciente, comunicado seu conhecimento a este e assim remediando a ignorância de seu paciente. Pelo menos
parte do sentido inconsciente do sintoma poderia ser abordada desta maneira, embora seja verdade que o
médico não pode adivinhar muito a respeito da outra parte — a conexão entre os sintomas e as experiências do
paciente — de vez que o médico desconhece essas experiências e deve esperar até que o paciente as recorde
e narre. Mesmo para isso, contudo, podese,
em alguns casos, encontrar um sucedâneo. Podese
indagar
acerca dessas experiências junto aos parentes do paciente, e estes amiúdes conseguirão reconhecer qual
delas teve um efeito traumático, podendo até mesmo, vez e outra, referir experiências de que o próprio paciente
nada conhece, porque ocorreram em uma época muito do início de sua vida. Combinando, então, estes dois
métodos, deveríamos ganhar a perspectiva de aliviar o paciente de sua ignorância patogênica, com pouco
dispêndio de tempo e de trabalho.Oxalá as coisas se passassem desta maneira! Chegaríamos a descobertas,
com relação a este tema, para as quais, de início, estávamos despreparados. Saber nem sempre é a mesma
coisa que saber: existem diferentes formas de saber, que estão longe de serem psicologicamente equivalentes.
‘Il y a fagots et fagots’, como disse Molière. O conhecimento do médico não é o mesmo que o do paciente, e
não pode causar os mesmos efeitos. Se o médico transferir seu conhecimento para o paciente, na forma de
informação, não se produz nenhum resultado. Não, seria incorreto dizer isso. Não resulta em remoção do
sintoma, mas tem um outro resultado — o de pôr em movimento a análise, do que um dos primeiros sinais,
freqüentemente, são as expressões de rechaço. O paciente sabe, depois disso aquilo que antes não sabia — o
sentido de seus sintomas; porém, sabe tanto quanto sabia. Com isso, aprendemos que existe mais de uma
espécie de ignorância. Necessitaremos ter uma compreensão mais profunda da psicologia, para que esta nos
mostre em que consistem essas diferenças. Malgrado isso, continua, porém, verdadeira a nossa tese segundo
a qual os sintomas desaparecem quando seu sentido se torna conhecido. Tudo quanto nos resta acrescentar é
que o conhecimento deve basearse
numa modificação interna no paciente, e esta só pode efetuarse
através
de uma parcela de trabalho psicológico orientado para um objetivo determinado. Aqui deparamos com
problemas que, presentemente, serão agrupados na dinâmica da construção dos sintomas.Agora devo
perguntar; senhores, se isto que estou dizendo não é demasiado obscuro e complicado. Não estaria eu
confundindoos
ao retomar, com tanta freqüência, coisas que já disse ou fazendo ressalvas às mesmas — ao
iniciar seqüências de idéias e depois abandonálas?
Lamentaria se isto acontecesse. Porém, desagradame
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
25
muito simplificar as coisas às custas da veridicidade. Não tenho o que objetar contra o fato de os senhores
receberem todo o impacto da multiplicidade e complexidade de nosso tema; e também penso que não lhes
causo prejuízo se em cada ponto lhes transmito mais do que os senhores podem utilizar. Afinal, estou
consciente de que todo ouvinte ou leitor, em sua mente, ordena, resume e simplifica tudo o que lhe é
apresentado, e de tudo isto seleciona o que gostaria de reter. Até certo ponto, sem dúvida, procede o fato de
que, quanto mais se tem à disposição, mais pode ser usufruído. Permitamse
esperar que, apesar de todos os
aspectos secundários, os senhores tenham apreendido nitidamente a parte essencial daquilo que lhes
comuniquei — a respeito do sentido dos sintomas, a respeito do inconsciente e a respeito da relação entre
ambos. Sem dúvida, também terão percebido que nossos esforços subseqüentes nos conduzirão em duas
direções: primeiro, nos levarão a descobrir a maneira pela qual as pessoas adoecem e como podem vir a adotar
a atitude neurótica em relação à vida — o que é um problema clínico; e, em segundo lugar, farnosão
entender
como os sintomas patológicos se desenvolvem a partir das causas da neurose — o que constitui um problema
de dinâmica mental. Ademais disso, deve haver algures um ponto em que os dois problemas convergem.
Por hoje, não prosseguirei mais nesse tópico. No entanto, como ainda temos algum tempo disponível,
gostaria de chamar sua atenção para um outra característica de nossas duas análises, que só será possível
apreciar novamente, de modo completo, mais adiante — para as lacunas nas recordações do paciente, suas
amnésias. Conforme já ouviram falar [ver em [1]], a tarefa do tratamento psicanalítico pode ser expressa nesta
fórmula: sua tarefa consiste em tornar consciente tudo o que é patogenicamente inconsciente. Os senhores
talvez se surpreenderão ao constatar, então, que esta fórmula pode ser substituída por uma outra: sua tarefa
consiste em preencher todas as lacunas da memória do paciente, em remover as amnésias [ver em [1]]. O que
corresponderia à mesma coisa. Com isso queremos dizer que as amnésias dos pacientes neuróticos possuem
importante conexão com a origem de seus sintomas. No entanto, se os senhores considerarem o caso de
nossa primeira análise, não encontrarão justificativa para esse conceito de amnésia. A paciente não havia
esquecido a cena da qual se derivava seu ato obsessivo; pelo contrário, tinha nítida recordação da mesma e
nenhuma outra coisa esquecida desempenhou qualquer papel na origem do sintoma. A situação no caso de
nossa segunda paciente (a jovem com o ritual obsessivo), embora menos clara, era, em seu conjunto, análoga.
Não se havia realmente esquecido de sua conduta de anos anteriores de sua vida — o fato de haver insistido
em que a porta entre o quarto de seus pais e seu quarto fosse mantida aberta, e de haver expulsado sua mãe
do lugar que ocupava na cama dos pais; recordavase
disto muito bem, embora com hesitação e contra a
vontade. A única coisa que podemos considerar surpreendente é que a primeira paciente, ao realizar seu ato
obsessivo em inúmeras ocasiões, nem uma vez sequer tenha percebido sua semelhança com a experiência da
noite de núpcias, e que a lembrança respectiva não lhe ocorresse quando se lhe faziam perguntas diretas no
sentido de encontrar os motivos de seu ato obsessivo. E o mesmo se aplica à adolescente cujo ritual e suas
causas estavam em conexão principalmente com uma situação que se repetia, de forma idêntica, todas as
noites. Em ambos estes casos, não havia amnésia verdadeira, não havia perda de memória; mas romperase
uma conexão que devia ter acarretado a reprodução ou a reemergência da lembrança.
Para a neurose obsessiva, basta uma perturbação da memória deste tipo; na histeria, porém, o caos é
diferente. Via de regra, esta neurose é marcada por amnésia em escala realmente grande. Ao analisar cada
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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sintoma histérico isoladamente, descobrese,
geralmente, toda uma seqüência de impressão de eventos que,
quando tornam a emergir, são descritos explicitamente pelo paciente como tendo sido esquecidos até então.
Por outro lado, essa seqüência remonta aos primeiros anos de vida, de forma que a amnésia histérica pode ser
reconhecida como continuação imediata da amnésia infantil que, para nós, pessoas normais, ocultou os
começos de nossa vida mental. [ver em [1] e seg., acima.] Ao seu lado, constatamos, com assombro, que até
mesmo as mais recentes experiências do paciente podem estar sujeitas a esquecimento, e que as
circunstâncias que precipitaram a irrupção da doença ou levaram à sua intensificação, são especialmente
invadidas, se não totalmente apagadas, pela amnésia. Acontece, com regularidade, que detalhes importantes
desaparecem do quadro total de uma recordação recente deste tipo, ou foram substituídos por falsificações da
memória. Com efeito, sucede, com regularidade quase igual, que determinadas lembranças de vivências
recentes apenas emergem um pouco antes do final de uma análise — lembranças que haviam sido retidas até
esse momento tardio, e deixado lacunas perceptíveis na continuidade do caso.
Essas limitações da capacidade da memória, conforme já disse, são características da histeria, na qual,
de fato, determinados estados também surgem como sintomas — os ataques histéricos —, que não deixam
atrás de si qualquer vestígio na memória. Se as coisas se passam diferentemente na neurose obsessiva, os
senhores podem concluir que nessas amnésias estamos lidando com uma característica psicológica da
modificação que ocorre na histeria, e não é um aspecto universal das neuroses em geral. A importância desta
distinção reduzse
com a seguinte consideração. Temos incluído duas coisas como ‘sentido’ de um sintoma: o
seu ‘de onde’ e seu ‘para quê’ ou sua ‘finalidade’ [pág. 25] — ou seja, as impressões e experiências das quais
surgiu e as intenções a que serve. Assim, o ‘de onde’ de um sintoma se reduz a impressões que vieram do
exterior, que uma vez forma necessariamente conscientes e podem, a partir daí, terse
tornado inconscientes
através do esquecimento. O ‘para quê’ de um sintoma, seu propósito, no entanto, é invariavelmente um
processo endopsíquico, que possivelmente teria sido consciente, no início, mas pode igualmente não ter sido
jamais consciente e ter permanecido no inconsciente desde o início. Por isso, não é de grande importância se a
amnésia influenciou também o ‘de onde’ — as experiências em que o sintoma se baseia — como acontece na
histeria; é no ‘para quê’, no propósito do sintoma que pode ter sido inconsciente desde o início, que se baseia
sua dependência do inconsciente — e não menos firmemente na neurose obsessiva do que na histeria.
Ao enfatizar desta maneira o inconsciente na vida mental, contudo, conjuramos a maior parte dos maus
espíritos da crítica contrário à psicanálise. Não se surpreendam com isso, e não suponham que a resistência
contra nós se baseia tãosomente
na compreensível dificuldade que constitui o inconsciente ou na relativa
inacessibilidade das experiências que proporcionam provas do mesmo. A origem dessa resistência, segundo
penso, situase
em algo mais profundo. No transcorrer dos séculos, o ingênuo amorpróprio
dos homens teve
de submeterse
a dois grandes golpes desferidos pela ciência. O primeiro foi quando souberam que a nossa
Terra não era o centro do universo, mas o diminuto fragmento de um sistema cósmico de uma vastidão que mal
se pode imaginar. Isto estabelece conexão, em nossas mentes, com o nome de Copérnico, embora algo
semelhante já tivesse sido afirmado pela ciência de Alexandria. O segundo golpe foi dado quando a
investigação biológica destruiu o lugar supostamente privilegiado do homem na criação, e provou sua
descendência do reino animal e sua inextirpável natureza animal. Esta nova avaliação foi realizada em nossos
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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dias, por Darwin, Wallace e seus predecessores, embora não sem a mais violenta oposição contemporânea.
Mas a megalomania humana terá sofrido seu terceiro golpe, o mais violento, a partir da pesquisa psicológica da
época atual, que procura provar o ego que ele não é senhor nem mesmo em sua própria casa, devendo, porém,
contentarse
com escassas informações acerca do que acontece inconscientemente em sua mente. Os
psicanalistas não foram os primeiros e nem os únicos que fizeram essa invocação à introspecção; todavia,
parece ser nosso destino conferirlhe
expressão mais vigorosa e apoiála
com material empírico que é
encontrado em todas as pessoas. Em conseqüência, surge a revolta geral contra nossa ciência, o desrespeito a
todas as considerações de civilidade acadêmica e a oposição se desvencilha de todas as barreiras da lógica
imparcial. Em ademais de tudo isso, perturbamos a paz deste mundo também de uma outra forma, conforme
em breve os senhores ouvirão.
CONFERÊNCIA XIX
RESISTÊNCIA E REPRESSÃO
SENHORAS E SENHORES:
Antes de empreendemos qualquer outro avanço em nossa compreensão das neuroses, necessitamos
de algumas observações novas. Aqui estão duas, ambas muito notáveis; quando de sua descoberta, causaram
muito surpresa. Nossas conferências realizadas no ano passado certamente os prepararam para ambas.Em
primeiro lugar, então, quando assumimos a tarefa de recuperar um paciente para a saúde, aliviálo
dos
sintomas de sua doença, ele nos enfrenta com uma resistência intensa e persistente, que se prolonga por toda
a duração do tratamento. Este é um fato tão estranho que não podemos esperar que as pessoas acreditem
muito nele. A este respeito é melhor nada dizer aos parentes dos pacientes, pois eles, invariavelmente,
consideramno
desculpa de nossa parte para o prolongamento ou fracasso de nosso tratamento. O paciente,
também, apresenta todos os fenômenos desta resistência, sem reconhecêla
como tal, e, se pudermos induzilo
a adotar nossa opinião a respeito dela e a contar com a existência da mesma, isto já se pode considerar como
grande êxito. Pensem apenas nisto: O paciente, que tanto sofre com os seus sintomas e tanto sofrimento causa
àqueles que convivem com ele, que está disposto a enfrentar tantos sacrifícios em tempo, dinheiro, esforço e
autodisciplina, a fim de se libertar desses sintomas — temos de acreditar que esse mesmo paciente empreende
uma luta no interesse da sua doença, contra a pessoa que o está ajudando. Como deve parecer improvável
esta afirmação!
E, no entanto, é verdadeira; e quando sua improbabilidade nos é apontada, podemos somente
responder que essa situação também tem analogias. Uma pessoa que vai ao dentista, por causa de uma dor de
dente insuportável, assim mesmo procurará afastar o dentista quando este se aproxima do dente doente, com
um boticão.
A resistência do paciente apresentase
sob muitíssimos tipos, extremamente sutis e freqüentemente
difíceis de detectar; e mostra mutações cambiantes nas formas em que se manifesta. O médico deve ser
incrédulo e manterse
em guarda contra ela.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
28
No tratamento psicanalítico, fazemos uso da mesma técnica que os senhores já conhecem da
interpretação de sonhos. Instruímos o paciente para se colocar em um estado de autoobservação
tranqüila,
irrefletida, e nos referir quaisquer percepções internas que venha a ter — sentimentos, pensamentos,
lembranças — na ordem em que lhe ocorrem. Ao mesmo tempo, advertimolo
expressamente a não deixar que
algum motivo leveo
a fazer uma seleção entre essas associações ou a excluir alguma dentre elas, seja porque
é muito desagradável ou muito indiscreta para ser dita, ou porque é muito banal ou irrelevante, ou que é
absurda e não necessita ser dita. Sempre insistimos com o paciente para seguir apenas a superfície de sua
consciência e pôr de lado toda crítica sobre aquilo que encontrar, qualquer que seja a forma que esta crítica
possa assumir; e asseguramoslhe
que o sucesso do tratamento, e sobretudo sua duração, depende da
conscienciosidade com que ele obedece a esta regra técnica fundamental da análise. Já sabemos, da técnica
da interpretação de sonhos, que aquelas associações que originam as dúvidas e objeções, que acabei de
enumerar, são justamente as que invariavelmente contêm o material que leva à descoberta do inconsciente.
[Cf. Conferência VII, ver em [1].]A primeira coisa que conseguimos ao estabelecer a regra técnica fundamental
é que ela se transforma no alvo dos ataques da resistência. O paciente procura, por todos os meios, livrarse
das exigências desta regra. Num momento, declara que não lhe ocorre nenhuma idéia; no momento seguinte,
que tantos pensamentos se acumulam dentro de si, que não pode apreender nenhum. Ora constatamos com
desgostosa surpresa que o paciente cedeu primeiro a uma e, depois a mais outra objeção crítica: nolo
revela
pelas longas pausas que introduz em seus comentários. E logo depois, admite que existe algo que de fato não
pode dizer — ele teria vergonha de dizer; e permite que este motivo prevaleça sobre sua promessa. Ou diz que
lhe ocorreu algo, mas que isto se refere a outra pessoa, e não a ele mesmo, e, em vista disso, não há por que
referilo.
Ou ainda, aquilo que agora lhe acudiu à mente é realmente sem importância, excessivamente tolo e
sem sentido: como é que eu poderia imaginar que ele enveredasse por pensamentos desse tipo. E assim
continua, com inumeráveis variações e apenas se pode replicar que ‘dizer tudo’ realmente significa ‘dizer
tudo’.Dificilmente haverseá
de encontrar um único paciente que não faça uma tentativa de reservar uma ou
outra região para si próprio, de modo a evitar que o tratamento tenha acesso a ela. Um homem, que só posso
descrever como possuidor da mais elevada inteligência, manteve um silêncio deste tipo, durante semanas, por
ocasião do término de um caso amoroso íntimo, e, solicitado a dar as razões de haver rompido a regra
estabelecida, defendeuse
com o argumento de que pensava que essa história especificamente constituía
assunto particular seu. O tratamento psicanalítico por certo não reconhece tal direito de asilo. Suponham que se
fizesse, numa cidade como Viena, a experiência de considerar uma praça, como a do Hoher Markt, ou uma
igreja, como a de Santo Estêvão, lugares em que nenhuma pessoa pudesse ser presa, e suponham que então
precisássemos apanhar um determinado criminoso. Poderíamos ter bastante certeza de encontrálo
num
desses refúgios. Certa vez, decidi permitir a um homem, de cuja eficiência muitas coisas dependiam no mundo
externo, o direito de fazer uma exceção dessa espécie porque ele estava obrigado, por dever de seu ofício, a
não fazer comunicação acerca de determinadas coisas a outras pessoas. É verdade que ele ficou satisfeito com
o resultado; mas eu não. Resolvi não repetir uma tentativa sob tais condições.
Os neuróticos obsessivos entendem perfeitamente de como tornar a regra técnica quase inútil,
aplicando nela sua superconscienciosidade e suas dúvidas. Pacientes que sofrem de histeria de angústia por
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
29
vezes conseguem seguir a regra ad absurdum, referindo apenas associações tão distantes daquilo que
andamos pesquisando, que não contribuem em nada para a análise. Não é, porém, minha intenção iniciálos
no
manejo dessas dificuldades técnicas. É suficiente dizerlhes
que, no fim com resolução e perseverança,
conseguimos extorquir à resistência certo grau de obediência à regra técnica fundamental — que, com isso,
passa para outra esfera.Por vezes, surge como resistência intelectual, luta com argumentos e explora todas as
dificuldades e improbabilidades que um pensar normal, porém não instruído, encontra nas teorias da análise.
Por vezes, somos obrigados a ouvir de uma só pessoa todas as críticas e objeções que assaltam nossos
ouvidos, em coro, na bibliografia científica referente ao assunto. E, por essa razão, nenhum desses clamores
que nos atingem de fora, nos soam desconhecidos. É uma regular tempestade em copo d’água. No entanto, o
paciente está desejoso de argumentar; anseia fazer como que passemos a instruílo,
ministrarlhe
ensinamentos, contradizêlo,
iniciálo
na literatura, de modo que possa adquirir mais conhecimentos. Está muito
disposto a tornarse
um adepto da psicanálise — com a condição de que a análise poupe a sua pessoa. Mas
reconhecemos esta curiosidade como sendo resistência, como manobra tendente a nos desviar de nossas
tarefas específicas, e repelimola.
No caso de um paciente obsessivo, haveremos de esperar táticas de
resistências especiais. Freqüentemente, permitirá que a análise prossiga sem empecilhos em seu caminho, de
modo que ela possa esclarecer, cada vez melhor, o enigma de sua doença. Começamos a nos admirar, por fim,
de este aclaramento não se acompanhar de nenhum efeito prático, nenhuma diminuição dos sintomas. Então
conseguimos perceber que a resistência se refugiou dentro da dúvida, que é própria da neurose obsessiva, e
desta posição ela consegue resistirnos.
É como se o paciente dissesse: ‘Sim, está tudo muito bem, muito
interessante, e terei muito satisfação em prosseguir ainda mais. Eu mudaria um bocado minha doença, se tudo
isto fosse verdade. Mas não acredito, nem um pouco, que seja verdade; e, na medida em que não acredito, não
faz qualquer diferença para minha doença.’ As coisas podem continuar assim por longo tempo, até que
finalmente a pessoa enfrenta diretamente essa atitude de reserva, e então se fere a batalha decisiva.As
resistências intelectuais não são as piores: sempre é possível superálas.
O paciente também sabe, contudo,
como erguer resistência sem sair de esquema de referência da análise, e a superação desta situação está entre
os problemas técnicos mais difíceis. Em vez de recordar, repete atitudes e impulsos emocionais o início de sua
vida, que podem ser utilizados como resistência contra o médico e tratamento, através do que se conhece
como ‘transferência’.Se o paciente é um homem, geralmente extrai este material de sua relação com seu pai,
em cujo lugar coloca o médico, e dessa forma constrói resistências que surgem a partir de seu esforço de se
tornar independente, em si próprio e em sua opiniões, a partir de sua ambição, cujo objetivo primeiro consistia
em fazer as coisas tão bem como seu pai, ou superálo;
ou a partir de sua aversão a se endividar, pela segunda
vez na vida, com uma carga de gratidão. Assim, às vezes, temse
a impressão de que o paciente substitui
inteiramente sua melhor intenção de pôr um fim à sua doença, pela intenção alternativa de negar que o médico
tenha razão, de fazer com que este reconheça sua impotência e de triunfar sobre ele. As mulheres têm um
talento de mestre para explorar, na relação com o médico, uma transferência afetuosa,com nuances eróticas,
destinada à resistência. Se esta ligação atinge determinado nível, desaparece todo o seu interesse pela
situação imediata do tratamento e todas as obrigações que assumiram no início; seu ciúme, que nunca está
ausente, e sua irritação ante a inevitável rejeição, embora expressos respeitosamente, não podem deixar de ter
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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como efeito um dano na harmonia entre paciente e médico, e assim inativam uma das mais poderosas forças
motrizes da análise.Resistências deste tipo não devem ser condenadas apressadamente. Incluem tanto
material importante do passado do paciente e trazemno
à lembrança de forma tão convincente, que elas se
tornam os melhores suportes da análise, se uma técnica habilidosa soube darlhes
o rumo apropriado. Não
obstante, devese
observar que esse material está sempre a serviço da resistência, em princípio, e revela uma
façade que é hostil ao tratamento. Também se pode dizer que aquilo que se mobiliza para lutar contra as
modificações que nos esforçamos por efetivar, são traços de caráter, atitudes do ego. Com referências a este
aspecto, descobrimos que esses traços de caráter foram formados em conexão com as causas da neurose e
como reação contra as exigências desta; e encontramos traços que normalmente não conseguem emergir ou
não podem emergir no mesmo grau, e que se poderia descrever como latentes. Ademais, não devem os
senhores ficar com a impressão de que consideramos o aparecimento dessas resistências um risco imprevisto
para o empreendimento analítico. Não; estamos conscientes de que essas resistências estão fadadas a vir à
luz; de fato, ficamos insatisfeitos quando não conseguimos fazêlas
surgir de maneira suficientemente clara e
quando somos incapazes de demostrálas
ao paciente. Na verdade, chegamos a compreender, finalmente, que
a superação dessas resistências constitui a função essencial da análise e é a única parte do nosso trabalho que
nos dá a segurança de havermos conseguido algo com o paciente.Se os senhores refletirem também que o
paciente transforma todos os eventos casuais, ocorrentes durante a análise, em interferências no tratamento;
que ele utiliza, como motivos para afrouxar seus esforços, todo acontecimento perturbador externo à análise,
todo comentário feito por uma pessoa ou autoridade, em seu ambiente, hostil à psicanálise, toda doença
orgânica eventual ou tudo aquilo que complica sua neurose, e até mesmo, na verdade, toda melhora em seu
estado — se considerarem tudo isto, terão obtido uma imagem aproximada, embora ainda incompleta, das
formas e dos métodos da resistência; e a luta contra esta resistência faz parte de toda análise.Abordei este
ponto de forma assim tão detalhada, porque agora devo informarlhes
que esta experiência nossa com a
resistência dos neuróticos à remoção de seus sintomas tornouse
a base de nosso ponto de vista dinâmico das
neuroses. Inicialmente, Breuer e eu empreendíamos a psicoterapia por meio da hipnose; a primeira paciente de
Breuer foi totalmente tratada sob
influência hipnótica, e, no início, eu o segui neste procedimento. Admito que, naquela época, o trabalho
avançava mais fácil e satisfatoriamente, e também em muito menos tempo. Os resultados eram, porém,
incertos e não duradouros, e por esse razão finalmente abandonei a hipnose. E então compreendi que não se
tornaria possível a compreensão da dinâmica destas doenças enquanto fosse empregada a hipnose. Este
estado era justamente capaz de subtrair à percepção do médico a existência da resistência. Ele fazia recuar a
resistência, tornando uma determinada área livre para o trabalho analítico e represavaa
nas fronteiras desta
área sob uma tal forma, que se tornava impenetrável, do mesmo modo como a dúvida age na neurose
obsessiva. Por esse motivo, tenho podido declarar que a psicanálise propriamente dita começou quando
dispensei o auxílio da hipnose.Se, entretanto, tornouse
tão importante reconhecer a resistência, faríamos bem
em deixar lugar para uma cautelosa dúvida quanto a saber se não estivemos despreocupados demais em
nossas suposições sobre a resistência. Com efeito, talvez haja casos de neurose em que as associações
falhem por outros motivos, talvez os argumentos contra nossas hipóteses realmente mereçam que seu
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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conteúdo seja examinado, e estejamos fazendo uma injustiça aos pacientes ao catalogar, tão
convenientemente, suas críticas intelectuais como sendo resistência. No entanto, senhores, não chegamos a
esta conclusão levianamente. Temos tido oportunidade de observar todos esses pacientes críticos no momento
da emergência de uma resistência e após o seu desaparecimento. Pois a resistência constantemente está
modificando sua intensidade durante o transcorrer do tratamento, cresce sempre quando nos aproximamos de
um novo assunto, alcança sua intensidade máxima quando estamos no clímax da abordagem desse assunto, e
se dissipa quando o assunto é posto de lado. E não temos por que encontrar, a menos que tenhamos sido
culpados de alguma incorreção especial em nossa técnica, a carga total de resistência de que um paciente é
capaz. Portanto, temos tido a possibilidade de nos convencer de que, em ocasiões incontáveis no decurso de
sua análise, a mesma pessoa abandonará sua atitude crítica e depois a reassumirá. Se estamos na iminência
de trazerlhe
à consciência uma parcela de material inconsciente especialmente desagradável, a pessoa se
torna extremamente crítica; pode ter empreendido e aceito muitas coisas previamente, agora, todavia, é
simplesmente como se aquelas aquisições tivessem sido anuladas; em seu esforço de se opor, a todo custo,
pode oferecer o quadro completo de um imbecil emocional. Se, contudo, conseguimos ajudála
a superar essa
nova resistência, ela recupera sua compreensão interna (insight) e entendimento. Sua faculdade crítica não é,
assim, uma função independente a ser respeitada como tal, é o instrumento de suas atitudes emocionais e
orientase
segundo sua resistência. Se existe alguma coisa de que não gosta, pode empreender contra esta
uma luta ferrenha e parecer extremamente crítica; mas se alguma coisa reza conforme sua cartilha, pode, pelo
contrário, mostrarse
muitíssimo crédula. Talvez nenhuma de nós seja muito diferente; alguém, que está sendo
analisado apenas revela esta subordinação do intelecto à vida afetiva tão claramente, porque na análise
exercemos sobre ele uma pressão assim tão grande.Como, pois, explicamos nossa observação, segundo a
qual o paciente luta com tamanha energia contra a remoção de seus sintomas e o estabelecimento de seus
processos mentais em um curso normal? Dizemos a nós mesmos que conseguimos descobrir, aqui, forças
poderosas que se opõem a qualquer modificação na condição do paciente; devem ser as mesmas que, no
passado, produziram esta condição. Durante a formação de seus sintomas, algo deve terse
passado, que
agora podemos reconstituir a partir de nossas experiências durante a resolução de seus sintomas. Já sabemos,
através da observação de Breuer, que há uma precondição para a existência de um sintoma: algum processo
mental deve não ter sido conduzido normalmente até seu objetivo normal — que era o objetivo de poder tornarse
consciente. O sintoma é o substituto daquilo que não aconteceu nesse ponto [ver em [1] e [2], acima]. Agora
sabemos em que ponto devemos localizar a ação da força que presumimos. Uma violenta oposição deve terse
iniciado contra o acesso à consciência do processo mental censurável, e, por este motivo, ele permaneceu
inconsciente. Por constituir algo inconsciente, teve o poder de construir um sintoma. Esta mesma oposição,
durante o tratamento psicanalítico, se insurge, mais uma vez, contra nosso esforço de tornar consciente aquilo
que é inconsciente. É isto o que percebemos como resistência. Propusemos dar ao processo patogênico, que é
demonstrado pela resistência, o nome de repressão.
Devemos, agora, formar idéias mais definidas acerca do processo de repressão. Esta é a precondição
da formação dos sintomas; também é, contudo, algo em relação ao qual não encontramos nada semelhante.
Tomemos como nosso modelo um impulso, um processo mental que tenta transformarse
em ação. Sabemos
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
32
que pode ser repelido por aquilo que denominamos rejeição ou condenação. Quando isto acontece, a energia à
sua disposição é retirada dele; o impulso tornase
impotente, ainda que possa persistir como lembrança. Todo o
processo de chegar a uma decisão referente ao mesmo segue seu curso no âmbito do conhecimento do ego.
Passase
algo muito diverso quando o mesmo impulso está sujeito à repressão. Nesse caso, ele conservaria
sua energia e dele não restaria nenhuma recordação; além disso, o processo de repressão seria realizado sem
ser percebido pelo ego. Esta comparação, portanto, não nos aproxima da natureza essencial da
repressão.Apresentarei aos senhores as únicas idéias teóricas que revelaram ser de alguma utilidade para dar
ao conceito de repressão um contorno mais definido. Sobretudo é essencial, para esse propósito, que
passemos da significação puramente descritiva da palavra “inconsciente’ à significação sistemática da mesma
palavra. Isto é, decidiremos dizer que o fato de um processo psíquico ser consciente ou inconsciente é apenas
um de seus atributos, e não necessariamente um atributo isento de ambigüidade. Se um processo desse tipo
permaneceu inconsciente, o fato de ser ele mantido afastado da consciência talvez possa ser apenas uma
indicação de alguma vicissitude por que passou, e não a vicissitude mesma. A fim de formar uma imagem
dessa vicissitude, suponhamos que todo processo mental — devemos admitir uma exceção que
mencionaremos numa fase posterior — exista, inicialmente, em um estádio ou fase inconsciente, e que é
somente dali que o processo se transporta para a fase consciente, da mesma forma como uma imagem
fotográfica começa como negativo e só se torna fotografia após haverse
transformado em positivo. Nem todo
negativo transformase,
contudo, necessariamente em positivo; e não é necessário que todo processo mental
inconsciente venha a se tornar consciente. Isto pode ser vantajosamente expresso com dizermos que um
processo isoladamente pertence, no início, ao sistema de inconsciente, podendo, depois, em determinadas
circunstâncias, passar ao sistema do consciente.A concepção mais aproximada desses sistemas, a mais
conveniente para nós, é a espacial, Comparemos, portanto, o sistema do inconsciente a um grande salão de
entrada, no qual os impulsos mentais se empurram uns aos outros, como indivíduos separados. Junto a este
salão de entrada existe uma segunda sala, menor — uma espécie de sala de recepção — na qual, ademais, a
consciência reside. Mas, no limiar entre as duas salas, um guarda desempenha sua função; examina os
diversos impulsos mentais, age como censor, e não os admitirá na sala de recepção se eles lhe desagradarem.
De pronto, os senhores verão que não faz muita diferença se o guarda impede a entrada de determinado
impulso no próprio limiar ou se ele o faz recuar através do limiar, após o impulso ter entrado na sala de
recepção. Isto é apenas uma questão de grau de sua vigilância e de quão prontamente efetua sua ação de
reconhecimento. Se mantivermos esta imagem, poderemos ampliar ainda mais nossa terminologia. Os impulsos
do inconsciente, no salão de entrada do inconsciente, estão fora das vistas do consciente, que está na outra
sala; em princípio, devem permanecer inconscientes. Se já se infiltraram até o limiar e foram afastados pelo
guarda, então eles são inadmissíveis para a consciência; dizemos que eles são reprimidos. Entretanto, os
próprios impulsos que o guarda permitiu que cruzassem o limiar, não são, também, só por causa disso,
necessariamente conscientse; podem vir a sêlo
somente se conseguissem chamar a atenção da consciência.
Portanto, justificase
que chamemos a esta segunda sala, de sistema do préconsciente.
Nesse caso, tornarse
consciente mantém seu sentido meramente descritivo. Para qualquer impulso, porém, a vicissitude da
repressão consiste em o guarda não lhe permitir passar do sistema do inconsciente para o do préconsciente.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
33
Tratase
do mesmo guarda que vimos a conhecer como resistência, quando tentamos suprimir a repressão por
meio do tratamento analítico.Ora, sei que dirão que estas idéias são ao mesmo tempo toscas e fantásticas e
bastante inadmissíveis em assuntos científicos. Sei que são toscas; e, mais do que isso, que são incorretas; e,
se não estou muito equivocado, já tenho algo melhor que tome o lugar delas. Se os senhores também as
julgarão fantásticas, não sei dizer. São hipóteses de trabalho preliminares, à semelhança do manequim de
Ampère nadando na corrente elétrica, e não devem ser desprezadas, na medida em que são úteis para tornar
inteligíveis nossas observações. Gostaria de afirmarlhes
que essas toscas hipóteses das duas salas, do
guarda no limiar entre elas e da consciência como um expectador no fim da segunda sala, devem ser, ainda
assim, aproximações de longo alcance dos fatos reais. Ademais, gostaria de ouvir os senhores admitirem que
nossos termos inconsciente’, ‘préconsciente’
e ‘consciente’ prejulgam muito menos as coisas e são muito mais
fáceis de explicar do que outros termos que foram propostos ou estão em uso, tais como ‘subconsciente’,
‘paraconsciente’, ‘intraconsciente’ e outros.Assim, será mais importante para mim admitirem que uma
concepção do aparelho mental, conforme esta que aqui proponho para explicar os sintomas neuróticos, deve
necessariamente exigir uma validade geral e darnos
informações também a respeito do funcionamento normal.
Naturalmente, nisto os senhores terão toda a razão. No momento, não podemos avançar com esta implicação,
mas nosso interesse na psicologia da formação dos sintomas não pode senão aumentar em grau
extraordinário, se existir uma perspectiva, através do estudo de situações patológicas, de se obter acesso aos
eventos mentais normais que se ocultam tão bem.
Talvez os senhores também possam reconhecer qual o elemento que apóia nossa hipótese relativa aos
dois sistemas, a relação entre estes dois sistemas e a relação de ambos com a consciência. Porque o guarda
colocado entre o inconsciente e o préconsciente
não é senão a censura; a esta, conforme sabemos, subordinase
a forma que assume o sonho manifesto. [Cf. Conferência IX, ver em [1], acima.] Os resíduos diurnos, que
sabemos serem os elementos deflagradores do sonho, foram material préconsciente
que, tanto no período
noturno como no estado de sono, tinha estado sob a influência de impulsos plenos de desejos, inconsciente e
reprimidos; tais resíduos diurnos, combinandose
com estes impulsos e graças à energia destes, foram capazes
de construir o sono latente. Sob o domínio do sistema inconsciente, esse material havia sido trabalhado (pela
condensação e pelo deslocamento) segundo uma forma que é desconhecida ou apenas excepcionalmente
permissível na vida normal — isto é, no sistema préconsciente.
Chegamos a considerar que essa diferença na
forma de operar é o que caracteriza os dois sistemas: achamos que a relação que o préconsciente
tem para
com a consciência é simplesmente uma indicação de que o processo pertence a um ou a outros dos dois
sistemas. Os sonhos não são fenômenos patológicos; podem surgir em qualquer pessoa sadia, nas condições
do estado de sono. Nossa hipótese referente à estrutura do aparelho mental, que nos permite compreender a
formação análoga dos sonhos e dos sintomas neuróticos, tem o inquestionável direito de ser aceita como
adequada à explicação da vida mental normal, também.Isso é tudo o que temos a dizer, no momento, a
respeito da repressão. Ela, contudo, é apenas a precondição da formação dos sintomas. Os sintomas,
conforme sabemos, são um substituto de algo que foi afastado pela repressão. Entretanto, vai uma longa
distância, ainda, dede a repressão à compreensão dessa estrutura substitutiva. Quanto a este outro aspecto do
problema, surgem de nossas observações sobre a repressão as seguintes perguntas: que espécie de impulsos
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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está sujeita à repressão? por que forças ela se efetua? e por que motivos? Até agora, temos somente uma
parcela de informação a respeito destes pontos. Ao investigar a resistência, constatamos que ela emana de
forças do ego, de traços de caráter conhecidos e latente [ver em [1], acima]. São estes, pois, os responsáveis
pela repressão, ou, pelo menos, têm uma participação nela. Presentemente, não sabemos de nada mais.Neste
ponto, a segunda das duas observações que lhes mencionei anteriormente [na abertura desta Conferência]
vem em nosso auxílio. Quase sempre a análise facultanos
compreender a intenção dos sintomas neuróticos.
Isso também não será novidade alguma para os senhores. Já lho demonstrei em dois casos de neurose. Mas,
afinal, de que lhes valem dois casos? Os senhores têm razão para insistir em que este aspecto lhes seja
demonstrado em duzentos casos — em inumeráveis casos. O único problema é que não posso fazêlo.
Mais
uma vez, em lugar disso, o que lhes deve servir é sua experiência própria, ou sua crença, a qual, neste ponto,
pode apelar para os relatos unânimes de todos os psicanalistas.
Os senhores recordarseão
de que, nos dois casos, cujos sintomas submetemos a uma investigação
minuciosa, a análise nos levou à mais íntima vida sexual dessas duas pacientes. No primeiro caso, ademais,
reconhecemos com especial clareza a intenção ou o propósito do sintoma em exame; no segundo caso, talvez,
este aspecto de certa forma foi ocultado por um fator que será mencionado posteriormente [ver em [1], adiante].
Pois bem, qualquer outro caso que submetêssemos à análise nos mostraria a mesma coisa que encontramos
nesses dois exemplos. Em cada caso, iríamos tomar conhecimento, mediante a análise, das experiências e
desejos sexuais do paciente; e, em cada caso, não poderíamos deixar de verificar que os sintomas servem à
mesma intenção. Verificamos que esta intenção é a satisfação de desejos sexuais; os sintomas servem de
satisfação sexual do paciente; são um substituto da satisfação sexual, de que os pacientes se privam em suas
vidas.
Pensem no ato obsessivo de nossa primeira paciente. A mulher estava sem seu marido, a quem ela
amava intensamente, mas com quem não podia compartilhar sua vida devido às deficiências e fraquezas dele.
Tinha de permanecerlhe
fiel; não podia colocar nenhuma outra pessoa no lugar dele. O sintoma obsessivo
deulhe
o que ela desejava, colocar o marido num pedestal; negou e corrigiu sua fraquezas e, acima de tudo,
sua impotência. Este sintoma era fundamentalmente uma realização de desejo, tal qual um sonho — e,
ademais disso, o que nem sempre acontece com um sonho, uma realização de desejos eróticos. No caso de
nossa segunda paciente, os senhores puderam pelo menos depreender que seu ritual procurava impedir o coito
dos pais ou evitar que ele desse origem a um novo bebê. Os senhores, provavelmente, também perceberam
que, no fundo, esse ritual procurava colocála
no lugar de sua mãe. Mais uma vez, portanto, tratavase
de
eliminar algo que interferia na satisfação sexual e na realização dos desejos sexuais da própria paciente. Em
breve, falarei da complicação que mencionei.
Gostaria de antecipar, senhores, as restrições que terei de fazer posteriormente à validade universal
destas afirmações. Portanto, assinalarei aos senhores que tudo aquilo que disse aqui sobre repressão e a
formação e significação dos sintomas derivou de três formas de neurose — histeria de angústia, histeria de
conversão e neurose obsessiva, e que, numa primeira instância, só é válido para estas formas. Este três
distúrbios, que estamos acostumados a agrupar conjuntamente como “neuroses de transferência’ também
circunscrevem a região em que a terapia psicanalítica pode funcionar. As demais neuroses têm sido estudadas
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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de forma muito menos completa pela psicanálise; num grupo delas a impossibilidade de influência terapêutica
foi uma das razões desse abandono. E os senhores não devem esquecer que a psicanálise ainda é uma
ciência muito jovem, que prepararse
para ela demanda muita preocupação e tempo, e que absolutamente, não
faz muito tempo, vinha sendo praticada por uma só pessoa. Apesar disso, estamos, em toda parte, a ponto de
penetrar na compreensão dessas outras perturbações além das neuroses de transferência. Espero poder
mostrarlhes,
posteriormente, o alcance de nossas hipóteses e de nossas descobertas que resultam da
adaptação a este novo material, e mostrarlhes
que estes outros estudos não levaram a contradições, mas ao
estabelecimento de uma coerência ainda maior. Se, pois, tudo o que estou dizendo aqui se aplica às neuroses
de transferência, permitamme
que acentue o valor dos sintomas com uma nova informação. Isso porque o
estudo comparativo das causas determinantes do adoecer conduz a um resultado que pode ser expresso na
fórmula: essas pessoas adoecem, de uma forma ou de outra, de frustrações, quando a realidade as impede de
satisfazer seus desejos sexuais. Os senhores verificam com que perfeição estas duas descobertas se
harmonizam entre si. Apenas assim é que os sintomas podem ser adequadamente visualizados, como
satisfações substitutivas daquilo que se perde na vida.Sem dúvida, podese
ainda levantar toda classe de
objeções à asserção de que os sintomas neuróticos são substitutos de satisfações sexuais. Hoje, mencionarei
duas dessas objeções. Quando os senhores mesmos houverem efetuado estudos analíticos de um grande
número de neuróticos, os senhores talvez me digam, meneando a cabeça, que, em muitos casos, minha
asserção simplesmente não é verdadeira; os sintomas parecem ter, isto sim, o propósito contrário, o de excluir
ou paralisar a satisfação sexual. Não discutirei a correção da sua interpretação. Em psicanálise, os fatos
costumam ser mais complicados do que gostaríamos. Se fossem tão simples como todos os demais, talvez não
fosse necessário que a psicanálise os esclarecesse. Na verdade, alguns dos aspectos do ritual de nossa
segunda paciente mostram sinais desse caráter ascético, com sua hostilidade voltada contra a satisfação
sexual: quando, por exemplo, ela suprimia os relógios [ver em [1]], o que tinha a significação de evitar ereções
durante a noite [ver em [1]], ou quando procurava precaverse
contra a queda e a quebra de vasos de flores
[ver em [1]], o que equivalia a proteger sua virgindade [ver em [1]]. Em alguns outros casos de rituais da hora de
dormir, que pude analisar, esse caráter negativo era muito mais evidente; o ritual podia consistir exclusivamente
em medidas defensivas contra recordações e tentações sexuais. Entretanto, já constatamos, vezes sem conta,
que, em psicanálise, os contrários não importam em contradição. Poderíamos ampliar nossa tese e dizer que os
sintomas objetivam ou uma satisfação sexual ou o rechaço da mesma, e que, na totalidade, o caráter positivo
de realização de desejo prevalece na histeria e o negativo, ascético, na neurose obsessiva. Se os sintomas
podem servir tanto à satisfação sexual como ao seu oposto. Existe uma excelente base para esta bilateralidade
ou polaridade numa parte do seu mecanismo, que até o momento não pude mencionar. Pois, conforme
veremos, elas são o produto de um acordo e surgem da recíproca interferência entre duas correntes opostas;
representam não só o reprimido, mas também a força repressora que compartilhou de sua origem. Um ou outro
lado pode estar representado com mais força; mas é raro uma das forças em jogo estar totalmente ausente. Na
histeria, geralmente ambas as intenções conseguem convergir no mesmo sintoma. Na neurose obsessiva, as
duas partes freqüentemente estão separadas; o sintoma então se torna bifásico [dividese
em dois estádios] e
consiste em duas ações, uma depois da outra, as quais se anulam reciprocamente.Não poderemos desprezar
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
36
tão facilmente uma segunda objeção. Se os senhores observarem uma série razoavelmente longa de
interpretações de sintomas, provavelmente começarão a pensar que nelas o conceito de satisfação sexual
substitutiva foi ampliado aos seus limites máximos. Não deixarão de assinalar o fato de que tais sintomas não
oferecem nada de real em termos de satisfação, que eles, muitíssimas vezes, limitamse
a reviver uma
sensação ou a representação de uma fantasia derivada de um complexo sexual. E, ademais, os senhores
notarão que estas supostas satisfações sexuais assumem, às vezes, uma forma pueril e vergonhosa, próxima,
talvez, de um ato de masturbação, ou relembram formas indecentes de travessuras, que são proibidas até a
crianças — hábitos que foram erradicados. E, prosseguindo, os senhores também expressarão surpresa por
estarmos apresentando como satisfação sexual aquilo que seria mais adequado descrever como satisfação de
desejos cruéis ou horríveis, ou mesmo teriam de ser chamados de antinaturais. Não chegaremos a um acordo,
senhores, quanto a este último ponto, enquanto não houvermos feito uma investigação meticulosa da vida
sexual dos seres humanos e, com isso, enquanto não tivermos decidido sobre o que justificadamente podemos
denominar ‘sexual’.
CONFERÊNCIA XX
A VIDA SEXUAL DOS SERES HUMANOS
SENHORAS E SENHORES:
Certamente suporseia
que não pudesse haver dúvidas quanto ao que se entende por ‘sexual’.
Primeiro e acima de tudo, aquilo que é sexual é algo impróprio, algo de que não se deve falar. Contaramme
que os alunos de um conceituado psiquiatra certa vez fizeram uma tentativa de convencer seu professor de
quão freqüentemente os sintomas de pacientes histéricos representam coisas sexuais. Com este propósito,
levaramno
à beira da cama de uma mulher histérica, cujos ataques eram uma inconfundível imitação do
processo de parto. Sacudindo a cabeça, ele observou: ‘Bem, não há nada de sexual com relação ao parto.’
Muito certo. O parto não necessita, em todo caso, ser algo impróprio.
Vejo que os senhores se ofendem por eu gracejar com coisas tão sérias. Isso não é contudo,
totalmente, um gracejo. Falando sério, não é fácil delimitar aquilo que abrange o conceito de ‘sexual’. Talvez a
única definição acertada fosse ‘tudo o que se relaciona com a distinção entre os dois sexos’. Os senhores
acharão, no entanto, que esta conceituação é neutra e excessivamente imprecisa. Se tomarem o fato do ato
sexual como ponto central, talvez definissem como sexual tudo aquilo que, com vistas a obter prazer, diz
respeito ao corpo e, em especial, aos órgãos sexuais de uma pessoa do sexo oposto, e que, em última
instância, visa à união dos genitais e à realização do ato sexual. Com isto, os senhores não estarão, todavia,
muito longe da equação segundo a qual aquilo que é sexual é impróprio, e o parto não constituirá algo sexual.
Se, por outro lado, tomarem a função de reprodução como núcleo da sexualidade, correm o risco de excluir
toda uma série de coisas que não visam à reprodução, mas certamente são sexuais, como a masturbação, e
até mesmo o beijo. Mas já estamos preparados para constatar que as tentativas de definição sempre conduzem
a dificuldades; portanto, renunciemos à idéia de pretender algo melhor neste caso particular. Podemos
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
37
suspeitar que, no transcurso da evolução do conceito de ‘sexual’, algo aconteceu que resultou naquilo que
Silberer apropriadamente chamou de ‘erro de superposição’.De modo geral, com efeito, quando pensamos
neste aspecto, não temos dúvidas sobre o que as pessoas chamam de sexual. Algo que reúne uma referência
ao contraste entre os sexos, à busca de prazer, à função reprodutora e à características de algo que é
impróprio e deve ser mantido secreto — algumas destas combinações servirão para todos os fins práticos da
vida de todo dia. Mas para a ciência, isto não basta. Através de cuidadosas investigações (somente
possibilitadas, na verdade, por uma autodisciplina desinteressada), vimos a saber de grupos de indivíduos cuja
‘vida sexual’ se desvia, da maneira mais supreendente, do quadro habitual da média. Algumas dessas pessoas
‘pervertidas’, poderíamos dizer assim, riscaram de seu programa a diferença entre os sexos. Somente pessoas
de seu próprio sexo podem excitar seus desejos sexuais; pessoas do outro sexo, e especialmente os órgãos
sexuais destas pessoas absolutamente não constituem para eles objeto sexual e, em casos extremos, são
objetos de repulsa. Isto implica, naturalmente, que abandonaram qualquer participação na reprodução. Tais
pessoas denominamos homossexuais ou invertidas. São homens e mulheres que, freqüentemente, mas não
sempre, conduzindose
irrepreensivelmente, em outros aspectos, possuindo elevado desenvolvimento
intelectual e ético, são vítimas apenas deste único desvio fatídico. Pela boca de seus portavozes
científicos,
eles se apresentam como variedade especial da espécie humana — um ‘terceiro sexo’ que tem o direito de se
situar em pé de igualdade com os outros dois. Talvez tenhamos oportunidade de examinar criticamente suas
reivindicações. [ver em [1] e seg., adiante.] Naturalmente, eles não são, como também gostam de afirmar, uma
‘élite‘ da humanidade; entre eles, há pelo menos tantos indivíduos inferiores e inúteis como os há entre pessoas
de tipo sexual diferente.Esta classe de pervertidos, de qualquer modo, se comporta em relação a seus objetos
sexuais aproximadamente da mesma forma como as pessoas normais o fazem com os seus. Agora, porém,
chegamos a uma longa série de pessoas anormais cuja atividade sexual diverge cada vez mais amplamente
daquilo que parece desejável para uma pessoa racional. Na sua mulplicidade e estranheza, somente podem ser
comparadas aos monstros grotescos, pintados por Breughel para a tentação de Santo Antônio, ou à longa
procissão de deuses e crentes desaparecidos, que Flaubert faz desfilar ante os olhos de seu piedoso penitente.
Uma tal miscelânea requer algum tipo de ordenamento para que não venha a confundir nossos sentidos. Por
conseguinte, nós os dividimos naqueles em que, como os homossexuais, o objeto sexual foi modificado, e em
outros nos quais a finalidade sexual é que foi primariamente modificada. O primeiro grupo inclui aqueles que
renunciaram à união dos dois genitais e que substituem os genitais de um dos parceiros envolvidos no ato
sexual por alguma outra parte ou região do corpo; com isto, eles desprezam a falta de dispositivos orgânicos
adequados, assim como todo impedimento oriundo de sentimentos de repulsa. (Por exemplo, substituem a
vulva pela boca ou pelo ânus.) Outros há que, realmente, ainda mantêm os genitais como um objeto — não,
porém, por causa da função destes, mas de outras funções em que o genital desempenha um papel, seja por
motivos anatômicos, seja por causa de sua proximidade. Neles, constatamos que as funções excretórias, que
foram postas de lado como impróprias, durante a educação das crianças, conservam a capacidade de atrair a
totalidade do interesse sexual. E ainda há outros que abandonaram totalmente o genital como objeto, e
tomaram alguma outra parte do corpo como o objeto que desejam — um seio de mulher, um pé, ou uma trança
de cabelos. Depois há outros para os quais as partes do corpo não têm nenhuma importância, mas todos os
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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seus desejos se satisfazem com uma peça de roupa, um sapato, uma peça de roupa íntima — são de
fetichistas. Ainda mais atrás, nesse séquito, se enfileiram essas pessoas que requerem de fato o objeto total,
mas fazem a este exigências muito definidas — estranhas e horríveis exigências — até mesmo a de que esse
objeto devesse tornarse
um cadáver indefeso e de que, usando de uma violência criminosa, transformemno
num objeto no qual possam encontrar prazer. Mas basta com essa espécie de horror!O segundo grupo é
formado por pervertidos que transformaram em finalidade de seus desejos sexuais aquilo que normalmente
constitui apenas um ato inicial ou preparatório. São pessoas cujo desejo consiste em olhar outras pessoas, ou
palpálas,
ou espiálas
durante a execução de atos íntimos, ou pessoas que expõem partes do corpo que
deveriam estar encobertas, na obscura expectativa de poderem ser recompensadas, em troca, por uma ação
correspondente. Depois vêm os sádicos, essas pessoas enigmáticas, cujas tendências carinhosas não têm
outro fim senão o de causar sofrimento e tormento a seus objetos, indo desde a humilhação até as lesões
físicas graves; e, como que para contrabalançálos,
seus equivalentes opostos, os masoquistas, cujo único
prazer consiste em sofrer toda espécie de tormentos e humilhações de seu objeto amado, seja simbolicamente,
seja na realidade. Ainda existem outros em que diversas dessas precondições anormais estão unidas e
entrelaçadas; e, por fim, devemos nos lembrar de que cada um destes grupos pode ser encontrado sob duas
formas: ao lado daqueles que procuram sua satisfação sexual na realidade, estão os que se contentam
simplesmente com imaginar essa satisfação, que absolutamente não necessitam de um objeto real, mas podem
substituílo
por suas fantasias.
Ora, não pode haver a menor dúvida de que todas essas coisas loucas, excêntricas e horríveis
realmente constituem a atividade sexual dessas pessoas. Não só elas próprias consideram essas coisas como
tais e estão conscientes de que são substitutas umas das outras, como também devemos admitir que, em suas
vidas, essas coisas desempenham o mesmo papel que, em nossas vidas, desempenha a satisfação sexual
normal; tais pessoas fazem por essas coisas os mesmos sacrifícios, às vezes excessivos, e podemos, nos
detalhes mais visíveis assim como nos mais sutis, determinar os pontos em que essas anormalidades se
baseiam naquilo que é normal e os pontos em que divergem da normalidade. E os senhores não podem deixar
de perceber que, aqui, mais uma vez, aquilo que se refere à atividade sexual tem essa característica de
impropriedade, embora aqui, na sua maior parte, isto se intensifique ao ponto de ser abominável.
Pois bem, senhoras e senhores, que atitude adotaremos para com essas formas incomuns de
satisfação sexual? Indignação, expressão de nossa repugnância pessoal e garantia de que nós próprios não
compartilhamos de semelhantes sensualidades, obviamente não proporcionarão qualquer ajuda. Na realidade,
não foi para isso que fomos solicitados. Porque, afinal de contas, o que temos de encarar neste assunto é um
campo de fenômenos como qualquer outro. Seria fácil refutar alguém que negasse sua importância, propondo
evasivamente que, afinal, isto são somente raridades e curiosidades. Pelo contrário, estamos tratando de
fenômenos muito comuns e difundidos. Se, entretanto, alguém argumentar que não temos por que permitir que
nossas opiniões acerca da vida sexual sejam confundidas por essas anormalidades, porque estas não são mais
que aberrações e desvios do instinto sexual, então o que se requer é uma resposta séria. A menos que
possamos compreender essas formas patológicas de sexualidade e correlacionálas
com a vida sexual normal,
não poderemos nem mesmo entender a sexualidade normal. Para resumir, persiste a tarefa inescapável de
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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darmos uma explicação teórica completa da maneira como essas perversões ocorrem e da sua conexão com
aquilo que se descreve como sexualidade normal.Nessa tarefa, prestarnosão
auxílio uma informação e duas
observações recentes. A primeira, devemola
a Iwan Bloch [19023].
Corrige a opinião de que todas essas
perversões são ‘sinais de degeneração’, mostrando que tais aberrações do fim sexual, esses afrouxamentos do
nexo com o objeto sexual, ocorreram desde tempos imemoriais, em todas as épocas conhecidas, entre todos os
povos, os mais primitivos e os mais civilizados, e, em algumas ocasiões, foram tolerados e difusamente
reconhecidos. As duas observações derivaram da investigação psicanalítica em neuróticos; ela
necessariamente têm uma decisiva influência sobre nossa visão das perversões sexuais.Eu disse que os
sintomas neuróticos são substitutos da satisfação sexual [pág. 305] e lhes indiquei que a confirmação desta
assertiva pela análise dos sintomas viria a defrontarse
com numerosas dificuldades. Pois somente será válida
se na ‘satisfação sexual’ incluirmos a satisfação daquilo que se chama necessidades sexuais pervertidas, de
vez que, com freqüência surpreendente, se nos impõe uma interpretação de sintomas dessa espécie. A
reivindicação que fazem os homossexuais ou invertidos de serem uma exceção, desfazse
imediatamente ao
constatarmos que os impulsos homossexuais são encontrados invariavelmente em cada um dos neuróticos e
que numerosos sintomas dão expressão a essa inversão latente. Aqueles que se proclamam homossexuais são
apenas invertidos conscientes e manifestos e seu número nada é em comparação com os dos homossexuais
latentes. Entretanto, somos forçados a encarar a escolha de um objeto do mesmo sexo como um desvio na vida
erótica, desvio cuja ocorrência é positivamente freqüente, e cada vez aprendemos mais sobre isso, atribuindolhe
importância particularmente elevada. Sem dúvida, isso não elimina as diferenças entre o homossexualismo
manifesto e uma atitude normal; permanece a importância prática dessas diferenças, mas seu valor teórico
diminui muito. Temos até mesmo verificado que determinada doença, a paranóia, que não deve ser incluída
entre as neuroses de transferência, originase
habitualmente de uma tentativa no sentido de o doente libertarse
de impulsos homossexuais excessivamente intensos. Os senhores talvez se recordem de que uma de nossas
pacientes (pág. 270), em seu ato obsessivo, comportavase
como homem, como se fora o próprio marido de
quem se separara; mulheres neuróticas muito freqüentemente produzem sintomas assim, à feição de um
homem. Ainda que isso não se deva considerar homossexualismo, relacionase
muito de perto com as
precondições destas.
Como provavelmente sabem, a neurose histérica pode produzir seus sintomas em qualquer sistema de
órgãos e, assim, perturbar qualquer função. A análise demonstra que, desse modo, manifestaramse
todos os
chamados impulsos pervertidos, que procuram substituir o órgão genital por algum outro órgão: este órgãos,
então, comportamse
como genitais substitutivos. Os sintomas da histeria realmente nos levaram a considerar
que os órgãos corporais, além do papel funcional que desempenham, devem ser reconhecidos como
possuidores de uma significação sexual (erógena) e que a execução da primeira dessas tarefas é perturbada se
a segunda fizer exigências demasiadas. Inúmeras sensações e inervações, que encontramos como sintomas
de histeria, em órgãos que não possuem conexão evidente com a sexualidade, revelamse
a nós, assim, como
tendo o caráter de realização de impulsos sexuais pervertidos em relação aos quais outros órgãos adquiriram a
significação das partes sexuais. Também verificamos em que graus os órgãos destinados à tomada de alimento
e à excreção têm particular facilidade de se tornarem veículos de excitação sexual. Aqui, pois, temos a mesma
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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coisa que constatamos nas perversões; só que, no caso destas, isto era fácil e inconfundivelmente visível, ao
passo que, na histeria, temos de tomar um caminho indireto, através da interpretação dos sintomas, e, depois,
não atribuímos à consciência da pessoa os impulsos sexuais pervertidos, mas os localizados em seu
inconsciente.Entre os muitos quadros sintomáticos em que aparece a neurose obsessiva, os mais importantes
vêm a ser aqueles provocados pela pressão de impulsos sexuais sádicos excessivamente intensos (pervertidos,
portanto, quanto ao seu fim). Os sintomas, na verdade, de acordo com a estrutura de uma neurose obsessiva,
servem predominantemente como defesa contra esses desejos, ou expressam a luta entre a satisfação e a
defesa. A satisfação de tais desejos sádicos, contudo, também não sai perdendo tanto assim; obtém êxito,
através de vias transversas, ao realizarse
na conduta dos pacientes, e se volta preferentemente contra eles
mesmos, e os torna autoatormentadores.
Outras formas desta neurose, as formas cismáticas, correspondem a
uma excessiva sexualização de ações que comumente se efetuam como prévias com vistas à satisfação sexual
normal — uma excessiva sexualização do querer olhar, tocar ou explorar. Aqui temos a explicação da grande
importância do temor de tocar e da obsessão de lavarse.
Uma quantidade incrivelmente grande de atos
obsessivos pode remontar à masturbação, da qual constituem repetições e modificações disfarçadas; sabese
muito bem que a masturbação, embora sendo uma ação única e uniforme, acompanha as mais diversas formas
do fantasiar sexual.Eu não teria muita dificuldade em apresentarlhes
um quadro muito mais pormenorizado das
relações entre perversão e neurose; penso, porém, que aquilo que já lhes disse servirá aos nossos propósitos.
Entretanto, devemos acautelarnos,
a fim de não nos desorientarmos com aquilo que lhes referi, ou seja, o
significado dos sintomas não deve nos levar a superestimar a freqüência e a intensidade das inclinações
pervertidas das pessoas. Conforme ouviram falar [ver em [1]], é possível adoecer de neurose em conseqüência
de uma frustração da satisfação sexual normal. Entretanto, quando ocorre uma frustração real como esta, a
necessidade lançase
a métodos anormais de excitação sexual. Mais adiante os senhores saberão como é que
isso acontece [ver em [1] e segs.] Em todo caso, perceberão, contudo, que, como resultado desse
represamento ‘colateral’ [da corrente sexual normal], os impulsos pervertidos devem emergir com mais
intensidade do que emergiriam se a satisfação sexual normal não tivesse encontrado obstáculo no mundo real.
Ademais, podese
reconhecer que uma influência semelhante também afeta as perversões manifestas. Em
alguns caos, elas são provocadas ou postas em atividade se a satisfação normal do instinto sexual encontra
dificuldades excessivas, por motivos temporários ou em virtude de regras sociais permanentes. Em outros
casos, é fato, a inclinação às perversões é bastante independente de tais condições favorecedoras; poderíamos
dizer que constituem o tipo normal de vida sexual para essas pessoas em particular.Talvez, por agora, os
senhores possam ter a impressão de que confundi mais do que explanei a relação entre sexualidade normal e
pervertida. Mas devem ter em mente a seguinte consideração. Se procede o fato de que um aumento de
dificuldade em obter satisfação sexual normal da vida real, ou a privação desta satisfação, põe à mostra as
inclinações pervertidas de pessoas que, anteriormente, nada disso tinham demonstrado, devemos supor que
nessas pessoas havia algo que já se encontrava a meiocaminho
das perversões; ou, se preferirem, as
perversões devem ter estado presentes, nessas pessoas, em forma latente.E isto nos traz a segunda novidade
que lhes anunciei (ver em [1]). Pois a investigação psicanalítica teve de ocuparse
também com a vida sexual
das crianças, e isto porque as lembranças e associações emergentes durante a análise de sintomas de adultos
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
41
remetiamse
regularmente aos primeiros anos da infância. O que inferimos destas análises mais tarde se
confirmou, ponto por ponto, nas observações diretas de crianças. E, com isso, verificouse
que todas essas
inclinações à perversão tinham suas raízes na infância, que as crianças têm uma predisposição a todas elas e
põemnas
em execução numa medida correspondente à sua imaturidade — em suma, que a sexualidade
pervertida não é senão uma sexualidade infantil cindida em seus impulsos separados.Em todo caso, agora os
senhores verão as perversões sob um novo prisma, e já não mais deixarão de perceber sua conexão com a
vida sexual dos seres humanos: mas à custa de quanta surpresa e de quanto sentimento de desagrado para
com estas incongruências! Sem dúvida, sentirseão
inclinados a negar todo este assunto: o fato de que as
crianças possuem tudo aquilo que se pode descrever como vida sexual, a justeza de nossas observações e a
explicação para o fato de encontrarmos tantas afinidades entre a conduta das crianças e aquilo que mais tarde
é condenado como perversão. Por isso, permitamme
que comece explicandolhes
os motivos da oposição dos
senhores e, depois, lhes apresente a totalidade de nossas observações. Supor que as crianças não têm vida
sexual — excitações e necessidades sexuais e alguma forma de satisfação —, mas adquiremna
subitamente,
entre os doze e os quatorze anos de idade, seria (abstraindo de todas as observações) biologicamente tão
improvável, e, na verdade, tão sem sentido, como supor que viessem ao mundo desprovidas de genitais e que
estes só aparecessem na época da puberdade. O que de fato desperta nas crianças, nessa idade, é a função
reprodutiva, que, para seus fins, faz uso dos componentes físicos e mentais já anteriormente presentes. Os
senhores estão cometendo o erro de confundir sexualidade com reprodução, e com isto estão bloqueando seu
caminho para a compreensão da sexualidade, das perversões e das neuroses. Este é, contudo, um erro
tendencioso. Estranhamente, originase
no fato de que os senhores mesmos uma vez foram crianças e,
enquanto eram crianças, estiveram sob a influência da educação. Pois a sociedade deve assumir como uma de
suas mais importantes tarefas educadoras domar e restringir o instinto sexual quando este irrompe como
impulso à reprodução, e sujeitálo
a uma vontade individual que é idêntica à ordem da sociedade. Esta também
se preocupa em adiar o pleno desenvolvimento do instinto até que a criança tenha atingido certo grau de
maturidade intelectual, de vez que, aí, com a completa irrupção do instinto sexual, a educabilidade, para fins
práticos, chega a seu fim. De outro modo, o instinto romperia todos os diques e arrasaria todo o trabalho da
civilização laboriosamente construído. Ademais, nunca é fácil a tarefa de dominar o instinto; seu êxito, por
vezes, é muito pequeno, por vezes, muito grande. O móvel da sociedade humana é, em última análise,
econômico; como não possui provisões suficientes para manter vivos todos os seus membros, a menos que
trabalhem, ela deve limitar o número de seus membros e desviar suas energias da atividade sexual para o
trabalho. Em suma, defrontase
com as eternas e primevas exigências da vida, que nos assediam até o dia de
hoje.Sem dúvida, a experiência deve ter ensinado aos educadores que a tarefa de docilizar a tendência sexual
da nova geração só poderia ser efetuada se começassem a exercer sua influência muito cedo, se não
esperassem pela tempestade da puberdade, mas interviessem logo na vida sexual das crianças, que é
preparatória para a puberdade. Por essa razão, todas as atividades sexuais foram proibidas às crianças e vistas
com maus olhos; erigiuse
o ideal de tornar a vida das crianças assexual, e, no decorrer do tempo, as coisas
chegaram ao ponto de as pessoas realmente acreditarem que as crianças sejam assexuais e, subseqüente, de
a ciência proclamar isto como doutrina. Para evitar que sejam contraditas suas crenças e suas intenções, a
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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partir daí as pessoas passam por alto as atividades sexuais das crianças (que não são de se desprezar) ou se
mostram contentes quando a ciência assume um ponto de vista diferente com relação a tais atividades. As
crianças são puras e inocentes, e todo aquele que as descreve de outra maneira, pode ser acusado de ser um
blasfemador infame dos ternos e sagrados sentimentos da humanidade.
As crianças são as únicas a não concordar com essas convenções. Afirmam seus direitos animais com
total naïveté e dão constantes provas de que ainda terão de trilhar o caminnho da pureza. É por demais
estranho que as pessoas que negam a existência da sexualidade nas crianças nem por isso se tornam mais
brandas em seus esforços educacionais, mas perseguem as manifestações daquilo que negam que exista, com
a máxima severidade — descrevendo tais manifestações como ‘traquinagens pueris.’ É também do maior
interesse teórico o período de vida que contradiz mais flagrantemente o preconceito de uma infância assexual
— os anos de vida de uma criança até os cinco ou seis —, ser posteriormente, na maioria das pessoas, coberto
pelo véu da amnésia, o qual só é completamente desfeito pela investigação analítica, embora anteriormente
tenha sido permeável à construção de alguns sonhos. [ver em [1] e [2], acima.]
Mostrarei aos senhores, agora, aquilo que se conhece de mais definido acerca da vida sexual das
crianças. Permitamme,
ao mesmo tempo, por motivos de conveniência, apresentar o conceito de ‘libido’. Em
exata analogia com a ‘fome’, empregamos ‘libido’ como nome da força (neste caso, a força do instinto sexual,
assim como, no caso da fome, a força do instinto de nutrição) pela qual o instinto se manifesta. Outros
conceitos, como os de ‘excitação’ e ‘satisfação’ sexual, não requerem explicação. Os senhores mesmos
facilmente perceberão que as atividades sexuais de crianças de colo são principalmente uma questão de
interpretação, ou, então, provavelmente usarão isso como motivo para objeções. A essas interpretações chegase
através do exame analítico retrospectivo baseado nos sintomas. Numa criança da tenra idade, os primeiros
impulsos da sexualidade têm seu aparecimento ligado a outras funções vitais. Seu principal interesse, como
sabem, voltase
para a ingestão de alimentos; quando as crianças adormecem, após se haverem saciado ao
seio, mostram uma expressão de bemaventurada
satisfação, que se repetirá, posteriormente na vida, após a
experiência do orgasmo sexual. Isto seria muito pouco para servir de base a uma conclusão. Constatamos,
todavia, como um bebê repetirá o ato de tomar alimento sem exigir mais comida; a isto, portanto, o bebê não é
levado devido a fome. Descrevemolo
como sucção sensual, e o fato de que, ao fazêlo,
o bebê adormece,
igualmente, com uma expressão beatífica, mostranos
que o ato da sucção sensual lhe proporcionou, por si só,
uma satisfação. Conforme sabemos, muito cedo as coisas chegam a um ponto em que não pode adormecer
sem haver sugado. Um pediatra de Budapest, Dr. Lindner [1879], foi o primeiro a apontar, há muito tempo, a
natureza sexual dessa atividade. Aqueles que cuidam de crianças, e que não têm opiniões teóricas sobre o
assunto, parecem formar um juízo semelhante a respeito da sucção. Não têm dúvidas de que esta somente tem
a finalidade de obter prazer, classificamna
como uma das ‘traquinagens’ da criança e obrigamna
a abandonála,
causandolhe
desprazer, no caso de a própria criança não se decidir a deixála.
Assim, aprendemos que o
bebês executam ações que não têm outro propósito senão o de obter prazer. Acreditamos que elas primeiro
experimentam esse prazer em conexão com a tomada do alimento, porém logo aprendem a separar esse
prazer da condição que o acompanha. Só podemos atribuir esse prazer a uma excitação das áreas da boca e
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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dos lábios; a estas partes do corpo denominamos ‘zonas erógenas’ e descrevemos como sexual o prazer
derivado da sucção. Sem dúvida, haveremos de discutir, posteriormente, se esta descrição se justifica.
Se um bebê pudesse falar, ele indubitavelmente afirmaria que o ato de sugar o seio materno é de longe
o ato mais importante de sua vida. E nisto o bebê não se engana muito, pois nesse único ato está satisfazendo
de uma só vez as duas grandes necessidades vitais. Por isso, não nos surpreenderemos ao saber, por meio da
psicanálise, quanta importância psíquica conserva esse ato durante toda a vida. Sugar ao seio materno é o
ponto de partida de toda a vida sexual, o protótipo inigualável de toda satisfação sexual ulterior, ao qual a
fantasia retorna muitíssimas vezes, em épocas de necessidade. Esse sugar importa em fazer o seio materno o
primeiro objeto do instinto sexual. Não posso darlhes
idéia da importante relação entre esse primeiro objeto e a
escolha de todos os objetos subseqüentes, dos profundos efeitos que ele tem em suas transformações e
substituições até mesmo nas mais remotas regiões de nossa vida sexual. A princípio, contudo, o bebê, em sua
atividade de sucção, abandonada esse objeto e o substitui por uma parte do seu próprio corpo. Começa a sugar
o polegar ou a própria língua. Desse modo, tornase
independente do consentimento do mundo externo, no que
tange à obtenção de prazer, e, ademais disso, aumentaa,
acrescentando a excitação de uma segunda área de
seu corpo. As zonas erógenas não são todas igualmente generosas em proporcionar prazer; ocorre, pois, uma
importante experiência quando o lactente, conforme relata Lindner, descobre, no decorrer de suas buscas, as
regiões especialmente excitáveis representadas por seus genitais e, com isso, passa da sucção à masturbação.
Ao formarmos esta opinião referente à sucção sensual, já passamos a conhecer duas características
decisivas da sexualidade infantil. Ela surge ligada à satisfação das principais necessidades orgânicas e se
comporta de maneira autoerótica
— isto é, procura seus objetos no próprio corpo da criança. O que ficou
demonstrado tão claramente com relação à tomada de alimentos repetese,
em parte, com as excreções.
Concluímos que os bebês têm sensações prazerosas no processo de evacuação da urina e das fezes, e que
logo conseguem dispor destes atos de maneira que estes lhes tragam a máxima produção de prazer possível,
através das correspondentes excitações das zonas erógenas da membrana mucosa. É aqui que, pela primeira
vez (conforme sutilmente percebeu Lou AndreasSalomé
[1916]), os bebês se defrontam com o mundo externo
como força inibidora, hostil, ao seu desejo de prazer, e têm certa antevisão dos futuros conflitos externos e
internos. Um bebê não deve eliminar suas excreções em qualquer momento de sua escolha, e sim quando
outras pessoas decidem que deve fazêlo.
Para induzilo
a renunciar a essas fontes de prazer, élhes
dito que
tudo aquilo que se relaciona com essas funções é vergonhoso e deve ser mantido em segredo. Então, pela
primeira vez, a criança é obrigada a trocar o prazer pela respeitabilidade social. No início, sua atitude para com
suas excreções é muito diferente. Não sente repugnância por suas fezes, valorizaas
como parte de seu próprio
corpo, da qual não se separa facilmente, e usaas
como seu primeiro ‘presente’ com que distingue as pessoas
a quem preza de modo especial. Mesmo depois de a educação ter atingido seu objetivo de tornar essas
tendências incompatíveis com a criança, esta continua a atribuir elevado valor às fezes, considerandoas
‘presentes’ e ‘dinheiro’. Por outro lado, parece considerar com especial orgulho a proeza de urinar.Sei que, há
muito, os senhores estavam esperando para interromperme
e exclamar: ‘Chega de barbaridades! O senhor nos
diz que defecar é uma fonte de satisfação sexual explorada já na infância! que as fezes são uma substância
valiosa e que o ânus é uma espécie de genital! Absolutamente não acreditamos nisso — mas compreendemos
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
44
por que os pacientes e educadores se têm mantido à distância da psicanálise e de suas descoberta.’ Não,
senhores. Os Senhores simplesmente se esqueceram de que estive procurando apresentarlhes
os fatos da
vida sexual infantil em relação aos fatos das perversões sexuais. Por que os senhores não haveriam de se
aperceber de que, para um grande número de adultos, tanto homossexuais como heterossexuais, o ânus
assume, na relação sexual, o papel de vagina? E que há muitas pessoas que conservam, durante toda a vida,
uma voluptuosa sensação ao defecar, e a caracterizam como não sendo nada desprezível? Quanto ao
interesse pelo ato de defecar e ao prazer de olhar uma outra pessoa defecando, os senhores podem conseguir
que as próprias crianças confirmem o fato quando elas tiverem alguns anos mais de idade, e forem capazes de
lhes falar a respeito. Naturalmente, os senhores não deverão têlas
intimidado sistematicamente, de antemão,
pois, nesse caso, elas compreenderão muito bem que devem silenciar sobre o assunto. Quando às demais
coisas nas quais os senhores tanto desejam não acreditar, remetoos
às descobertas da análise e à
observação direta de crianças, e acrescento que realmente é necessário ser ingênuo para não ver tudo isso, ou
vêlo
de modo diferente. E não me queixo se os senhores consideram muito surpreendente esta semelhança
entre atividade sexual infantil e perversões sexuais. Esta semelhança, contudo, é evidente: se de fato uma
criança tem vida sexual, esta não pode ser senão uma vida sexual de tipo pervertido; pois, exceto quanto a
alguns detalhes obscuros, as crianças são desprovidas daquilo que transforma a sexualidade em função
reprodutiva. Por outro lado, o abandono da função reprodutiva é o aspecto comum de todas as perversões.
Realmente consideramos pervertida uma atividade sexual, quando foi abandonando o objetivo da reprodução e
permanece a obtenção de prazer, como objetivo independente. Portanto, conforme poderão ver, a brecha e o
ponto crítico da evolução da vida sexual situamse
no fato de esta permanecer subordinada aos propósitos da
reprodução. Tudo o que acontece antes dessa mudança de rumo, e igualmente tudo o que a despreza, e que
visa somente a obter prazer, recebe o nome pouco lisonjeiro de ‘pervertido’, e como tal é proscrito.Permitamme,
portanto, que eu prossiga com minha breve descrição da sexualidade infantil. O que já relatei com
referência aos dois sistemas de órgãos [digestivo e excretório] poderia ser confirmado em relação aos outros. A
vida sexual de uma criança é, de fato, inteiramente constituída das atividades de determinado número de
instintos parciais que, independentes uns dos outros, buscam a obtenção de prazer, em parte, do próprio corpo
do indivíduo e, em parte, já de um objeto externo. Entre esses órgãos muito cedo assumem relevo os genitais.
Existem pessoas nas quais a obtenção de prazer de seus próprios genitais, sem a participação de quaisquer
outros genitais de algum objeto, continua ininterruptamente desde a masturbação infantil até a masturbação
inevitável da puberdade e persiste indefinidamente em épocas posteriores. Aliás, o tema da masturbação não é
um tema que se possa solucionar tão facilmente: é algo que exige ser examinado a partir de diferentes
ângulos.Embora esteja desejoso de abreviar ainda mais esta exposição, devo, no entanto, dizerlhes
algumas
coisas a respeito das investigações sexuais feitas por crianças: são por demais características da sexualidade
infantil, e de importância suficientemente grande para a sintomatologia das neuroses, para que as deixemos
passar sem um exame. As investigações sexuais das crianças começam muito precocemente, às vezes antes
do terceiro ano de vida. Não se referem à distinção entre os sexos, de vez que isto nada significa para as
crianças, já que estas (ao menos quanto aos meninos) atribuem a ambos os sexos o mesmo genital masculino.
Se, depois, um menino faz a descoberta da vagina ao ver sua irmãzinha ou uma menina, companheira de
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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brinquedos, ele procura, inicialmente, negar a evidência dos seus sentidos, pois não pode imaginar uma
criatura humana, como ele próprio, desprovida de uma parte tão preciosa. Mais tarde, amedrontase
com a
possibilidade que assim se lhe apresenta; e quaisquer ameaças que lhe tenham sido feitas anteriormente,
porque tomou demasiado interesse por seu pequeno órgão, agora produzem um efeito retardado. Cai sob o
domínio do complexo de castração, assumindo uma forma que desempenhará um grande papel na construção
do seu caráter se permanecer normal, na sua neurose se adoecer, e em suas resistências, se vier a se tratar
analiticamente. No que se refere às meninas de tenra idade, podemos dizer que se sentem em grande
desvantagem devido à sua falta de um pênis grande, visível, que elas invejam os meninos por estes o
possuírem e que, principalmente por este motivo, desenvolvem o desejo de serem homem — desejo que torna
a emergir, mais tarde, em todas as neuroses e que pode surgir se lhes ocorrer algum revés no desempenho do
papel feminino. Ademais disso, na infância, o clitóris da menina assume inteiramente o papel de pênis:
caracterizase
por especial excitabilidade e se situa na área em que é obtida a satisfação autoerótica.
O
processo pelo qual uma menina se transforma em mulher depende muitíssimo da possibilidade de o clitóris
ceder sua sensibilidade ao orifício vaginal, na época oportuna e de forma completa. Nos casos conhecidos
como de anestesia sexual das mulheres, o clitóris reteve obstinadamente sua sensibilidade.O interesse sexual
das crianças começa, certamente, quando elas se voltam para o problema de saberem de onde é que vêm os
bebês — o mesmo problema subjacente à pergunta feita pela esfinge de Tebas — e na maior parte dos casos
este problema surge por causa dos temores egoístas da chegada de um novo bebê. A resposta, que já está
pronta e diz que os bebês são trazidos pela cegonha [ver em [1]], esbarra na descrença até mesmo de crianças
pequenas, numa freqüência muito maior do que percebemos. O sentimento de que a verdade está sendo
falseada pelos adultos contribui em muito para fazer com que as crianças se sintam sós e desenvolvam sua
independência. Uma criança não tem, contudo, condições de solucionar este problema por seus próprios meios.
Sua constituição sexual não desenvolvida estabelece limites precisos à sua capacidade de percepção. Começa
por supor que os bebês vêm de pessoas que ingerem algo de especial no alimento, e não sabe que apenas as
mulheres podem ter bebês. Depois percebe esta limitação e deixa de considerar o comer como sendo a origem
dos bebês — embora tal teoria persista em contos de fadas. Com o aumento de sua idade, a criança logo
percebe que seu pai deve ter algum papel nessa história de ter bebês, mas não consegue adivinhar qual. Se
ocorre a criança presenciar um ato sexual, encarao
como tentativa de subjugação, como luta, e isto constitui a
compreensão deformada, em termos sádicos, do coito. Entretanto, no início, não correlaciona este ato com o
surgimento de um bebê. Assim, também, se a criança encontra vestígios de sangue na cama da mãe, ou nas
roupas íntimas desta, toma isto como sinal de que ela foi ferida por seu pai. Ainda mais tarde, na infância, a
criança sem dúvida suspeita que o órgão sexual do homem tem uma parte essencial na produção de bebês,
mas a única função que consegue atribuir a esse órgão do corpo é a micção.
Bem desde o início, as crianças são unânimes em pensar que os bebês devem nascer da barriga;
devem aparecer assim como uma massa uniforme ou como as fezes. Esta teoria não é abandonada senão
quando todos os interesses anais tivessem sido destituídos de seu valor, e é então substituída pela hipótese de
que o umbigo se abre ou que a área do peito entre as mamas é o lugar em que se dá o nascimento. Desse
modo, a criança, no transcurso de suas investigações, aproximase
dos fatos referentes ao sexo, ou, sentindoConferências
Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
46
se embaraçada devido a sua ignorância, passa por eles até que, geralmente nos anos que precedem a
puberdade, recebe uma explicação, via de regra incompleta e depreciativa, que, muitas vezes, produz efeitos
traumáticos.Sem dúvida terão ouvido falar, senhores, que, na psicanálise, o conceito daquilo que é sexual foi
indevidamente ampliado, a fim de dar suporte às teses da causação sexual das neuroses e do significado
sexual dos sintomas. Agora os senhores estão em condições de julgar por si mesmos se essa ampliação é
injustificada. Ampliamos o conceito de sexualidade apenas o bastante para podermos compreender a vida
sexual dos pervertidos e das crianças. Isto é, restituímoslhe
sua dimensão verdadeira. Fora da psicanálise, o
que se denomina sexualidade referese
apenas a uma vida sexual restrita, que serve ao propósito da
reprodução e é descrita como normal.
CONFERÊNCIA XXI
O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS ORGANIZAÇÕES SEXUAIS
SENHORES:
Tenho a impressão de que não alcancei êxito em convencêlos
muito profundamente da importância
das perversões para nossa visão da sexualidade e, portanto, gostaria, até onde me for possível, de aprimorar e
suplementar aquilo que disse.
Não é o caso de apenas as perversões, isoladamente, ternos
obrigado a realizar a modificação no
conceito de sexualidade que levantou tantas objeções contra nós. O estudo da sexualidade infantil teve muito
mais influência sobre esse fato, e foi o concurso desses dois fatores que se tornou decisivo para nós. As
manifestações da sexualidade infantil, por mais inequívocas que possam ser num período ulterior da infância,
contudo parecem mergulhadas na indefinição pelos inícios da infância. Todo aquele que resolver desprezar a
história de sua evolução e de seu contexto analítico, negará que elas possuem características sexuais e, em
vez disso, lhes atribuirá alguam característica indiferenciada. Os senhores devem não se esquecer de que, por
agora, não possuímos nenhum critério universalmente reconhecido da natureza sexual de um processo, salvo,
novamente, uma conexão com a função reprodutiva, que devemos rejeitar por ser um critério demasiadamente
limitado. Os critérios biológicos, como os de periodicidades de vinte e três e de vinte e oito dias, postulados por
Wilhelm Fliess [1906], são ainda altamente controvertidos; as características químicas do processo sexual, que
podemos supor, continuam aguardando a sua descoberta. Por outro lado, as perversões sexuais dos adultos
constituem algo tangível e inequívoco. Como já o demonstra o nome pelo qual são universalmente conhecidas,
elas são inquestionavelmente sexuais. Se descritas como indicações de degeneração, ou o que quer que seja,
ninguém ainda teve a coragem de classificálas
como algo que não sejam fenômenos da vida sexual. Apenas
em virtude delas justificase
afirmarmos que sexualidade e reprodução não coincidem, pois é óbvio que todas
as perversões negam o objetivo da reprodução. Aqui encontro um paralelo não destituído de interesse.
Enquanto, parra a maioria das pessoas, ‘consciente’ e ‘psíquico’ são a mesma coisa, fomos obrigados a ampliar
o conceito de ‘psíquico’ e reconhecer como ‘psíquico’ algo que não é ‘consciente’. Exatamente do mesmo
modo, enquanto outras pessoas declaram serem idênticos o ‘sexual’ e o ‘referente à reprodução’ (ou, se
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
47
preferem resumir mais, o ‘genital’), não podemos evitar de postular a existência de algo ‘sexual’ que não é
‘genital’ — que não tem nenhuma relação com a reprodução. Aqui, a similitude é apenas formal, mas não deixa
de ter um fundamento mais profundo.Se, contudo, a existência das perversões sexuais é um argumento tão
decisivo nessa questão, por que depois de tanto tempo ainda não deu resultado e definiu a questão?
Realmente, não sei dizer. Acredito que se relaciona com o fato de essas perversões sexuais estarem sujeitas a
uma condenação muito especial, que chegou mesmo a afetar a teoria e se opôs à avaliação científica delas. É
como se ninguém pudesse esquecer que elas não são apenas algo repulsivo, mas também algo monstruoso e
perigoso — como se as pessoas as sentissem como sedutoras e, no fundo, tivessem de sufocar uma secreta
inveja daqueles que as experimentam. É o caso de se lembrar a confissão feita pelo Landgraf condenador, na
famosa paródia de Tannhäuser:‘Im Venusberg vergass er Ehr und Pflicht!—Merkwürdig, unser einem passiertso
etwas nicht.’Na realidade, os pervertidos são, antes, uns pobres diabos, que têm de pagar extremamente caro
pela satisfação que obtêm a duras penas.O que torna a atividade dos pervertidos tão inconfundivelmente
sexual, por mais estranhos que sejam seus objetos e fins, é o fato de, via de regra, um ato de satisfação
pervertida ainda assim terminar em orgasmo completo e emissão de produtos genitais. Naturalmente, só há
esse resultado quando se trata de pessoas adultas. Em crianças, o orgasmo e a excreção genital raramente
são possíveis; em lugar disso, há elementos que certamente não são reconhecidos como sendo nitidamente
sexuais.Existe algo mais que devo acrescentar a fim de completar nosso ponto de vista referente às perversões
sexuais. Por mais infames que possam ser, por mais nítido que se faça o contraste com a atividade sexual
normal, uma reflexão tranqüila mostrará que um ou outro traço de perversão raramente está ausente da vida
sexual das pessoas normais. Podese
alegar que até mesmo um beijo seria considerado ato pervertido, de vez
que consiste na junção de duas zonas erógenas orais em vez de dois genitais. No entanto ninguém o rejeita
como pervertido; pelo contrário, é permitido, nas representações teatrais, como velada referência ao ato sexual.
Mas, precisamente o beijar pode facilmente tornarse
perversão completa — ou seja, se se torna tão intenso,
que uma descarga genital e o orgasmo sobrevêm diretamente, coisa nada rara. Podemos verificar, também,
serem precondições indispensáveis do prazer sexual que a pessoa sinta e veja o objeto; sabemos que a
pessoa poderá beliscar ou morder, no auge da excitação sexual, que o ponto máximo de excitação dos
amantes nem sempre é provocado pelos genitais, mas por alguma outra região do corpo do objeto, e
numerosas outras coisas semelhantes. Não faz sentido excluir da classe dos normais essas pessoas com
traços isolados desse tipo e situálas
entre os pervertidos. Ao contrário, reconheceremos, cada vez com maior
nitidez, que a essência das perversões não está na extensão do objetivo sexual, nem na substituição dos
genitais, e, mesmo, nem sempre na escolha diferente do objeto, mas sim unicamente na exclusividade com a
qual se efetuam esses desvios e em conseqüência dos quais o ato sexual a serviço do objetivo de reprodução é
posto de lado. Na medida em que as ações pervertidas se inserem na realização do ato sexual normal, como
contribuições preparatórias ou intensificadoras, não constituem, na realidade, absolutamente perversões. O
abismo entre sexualidade normal e pervertida é, naturalmente, em muito diminuído por fatos dessa espécie. É
fácil concluir que a sexualidade normal surgiu de algo que existia antes dela, eliminando determinados aspectos
desse material como inservíveis e reunindo o restante a fim de subordinálo
a uma nova finalidade, a da
reprodução.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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Antes de utilizarmos nosso conhecimento das perversões, para nos atirarmos novamente ao estudo da
sexualidade infantil com base em premissas mais claras, devo chamar a atenção dos senhores para uma
importante diferença entre elas. A sexualidade pervertida é, via de regra, muito bem centrada: todas as suas
ações se dirigem para um fim — geralmente um único fim: um dos instintos componentes assumiu
predominância, e, ou é o único instinto observável, ou submeteu os outros a seus propósitos. Nesse aspecto,
não há diferença alguma entre sexualidade pervertida e normal, a não ser o fato de que seus instintos
componentes dominantes e, conseqüentemente, seus fins sexuais são diferentes. Em ambas, podese
dizer,
estabeleceuse
uma bem organizada tirania, mas, em cada uma das duas, uma família diferente tomou as
rédeas do poder. À sexualidade infantil, por outro lado, falando genericamente, falta essa centralização; seus
instintos componentes separados possuem iguais direitos, cada um dos quais seguindo seus próprios rumos na
busca de prazer. Naturalmente, tanto a ausência como a presença da centralização harmonizamse
bem com o
fato de que tanto a sexualidade pervertida como a normal surgiram da sexualidade infantil. Aliás, também
existem casos de sexualidade pervertida que têm uma semelhança muito maior com o tipo infantil, pois, nestes,
numerosos instintos componentes levaram a cabo (ou, mais corretamente, persistiram em) seus fins,
independentemente um dos outos. Em tais casos, é melhor falar em infantilismo da vida sexual, e não em
perversão.
Assim premunidos, podemos prosseguir com o exame de uma observação da qual certamente não
seremos poupados. ‘Por que’, perguntarnosão,
‘o senhor é tão obstinado em descrever como já constituindo
sexualidade aquilo que, segundo as evidências que o senhor mesmo mostrou, são indefiníveis manifestações
da infância, a partir das quais se desenvolve posteriormente a vida sexual? Por que, em vez disso, o senhor
não se contenta com darlhes
uma descrição fisiológica e dizer simplesmente que, num lactente, já observamos
atividades, como a sucção sensual ou a retenção das excreções, que nos mostram que ele procura o “prazer do
órgão”? Dessa forma, o senhor teria evitado a hipótese, tão repugnante para todo os sentimentos, de os bebês
da mais tenra idade terem uma vida sexual.’ Com efeito, senhores, não tenho em absoluto qualquer objeção ao
prazer do órgão. Sei que mesmo o supremo prazer da união sexual apenas é um prazer do órgão, vinculado à
atividade dos genitais. Podem os senhores, porém, dizer quando esse prazer do órgão, originalmente
indiferente, adquire o caráter sexual que indubitavelmente possui em fases posteriores do desenvolvimento?
Sobre o ‘prazer do órgão’ sabemos mais do que a respeito da sexualidade? Os senhores responderão que ele
adquire caráter sexual precisamente quando os genitais começam a desempenhar seu papel; ‘sexual’ coincide
com ‘genital’. Os senhores rejeitarão até mesmo a objeção levantada pelas perversões, assinalando a mim que,
na maioria das perversões, visase,
afinal de contas, a um orgasmo genital, ainda que a este se chegue por
outro método que não o da união dos genitais. Os senhores certamente estarão assumindo uma posição muito
mais sólida na determinação das características do sexual, se deste eliminarem a referência à reprodução, que
se torna indefensável nas perversões, e, em seu lugar, colocarem a atividade genital. Mas se assim for, já não
nos distanciamos para muito mais longe: é apenas uma questão de órgãos genitais versus outros órgãos. Que
julgarão os senhores, entretanto, das numerosas experiências que lhes mostram poderem os genitais ser
representados, relativamente à sua produção de prazer, por outros órgãos, como no caso do beijo, ou das
práticas pervertidas dos sibatibas, ou dos sintomas da histeria? Nessa neurose, é muito comum acontecer que
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
49
os sinais de estimulação, as sensações e as inervações e até mesmo os processos de ereção, que pertencem
propriamente aos genitais, se desloquem para outras regiões remotas do corpo — como, por exemplo,
deslocaremse
para cima, para a cabeça e a face. Estando dessa forma convencidos de que não têm onde se
apoiarem para sua caracterização daquilo que é sexual, os senhores, sem dúvida, terão de se decidir a seguir
meu exemplo, e estender a descrição de ‘sexual’ também às atividades do início da infância que buscam o
prazer do órgão.
Agora, para justificação minha, existem mais duas considerações que devo pedir para levarem em
conta. Como sabem, dizemos serem sexuais as atividades imprecisas e indefiníveis do início da infância,
porque, no decurso da análise, chegamos a elas a partir dos sintomas, após examinarmos material
indiscutivelmente sexual. Não quer dizer que devam ser, por isso, necessariamente sexuais — de acordo!
Tomem, porém, um caso análogo. Suponham que não temos meios de observar o desenvolvimento, desde as
suas sementes, de duas plantas dicotiledôneas, a macieira e o feijoeiro, mas que nos seria possível rastrear
retrospectivamente o desenvolvimento de ambos, desde a planta inteiramente desenvolvida até o primeiro
embrião com dois cotilédones. Os dois cotilédones têm uma aparência neutra; são muito semelhantes em
ambos os casos. Devo supor, então, que sejam realmente semelhantes, e que a diferença específica entre a
macieira e o feijoeiro somente seja introduzida nas plantas mais tarde? Ou é biologicamente mais correto
acreditar que essa diferença já está presente no embrião da planta, embora eu não possa observar qualquer
distinção nos cotilédones? Ora, estamos fazendo a mesma coisa quando dizemos que é sexual o prazer obtido
nas atividades do lactente. Aqui, não posso discutir se todo prazer do órgão deva ser chamado de sexual, ou
se, além do sexual, há um outro que não merece ser chamado assim. É muito pouco meu conhecimento a
respeito de prazer do órgão e de suas causas; e, em vista do caráter regressivo da análise em geral, não ficarei
surpreso se, bem no final, eu atingir aquilo que, por ora, são fatores indefiníveis.E mais outra coisa! Na
totalidade os senhores terão lucrado muito pouco com o que querem afirmar — a pureza sexual das crianças —
, ainda que consigam convencerme
de que seria melhor considerar nãosexuais
as atividades do lactente. A
vida sexual das crianças não comportaria mais todas essas dúvidas, do terceiro ano de vida em diante: por
essa época, aproximadamente, os genitais já começam a excitarse,
um período de masturbação infantil — da
satisfação genital, portanto — iniciase,
talvez regularmente. Os fenômenos mentais e sociais da vida sexual
não necessitam mais estar ausentes; a escolha de um objeto, uma preferência carinhosa por determinadas
pessoas, até mesmo uma decisão a favor de um dos dois sexos, ciúme — tudo isso foi estabelecido por
observações imparciais, feitas independentemente da psicanálise e antes que esta surgisse, podendo ser
confirmadas por qualquer observador que tenha o cuidado de verificálas.
Os senhores objetarão que jamais
duvidaram do surgimento precoce da afeição; apenas duvidaram se essa afeição se revestia de um caráter
‘sexual’. É verdade que as crianças já aprenderam a ocultar esse fato na idade entre três e oito anos. Se os
senhores estiverem, porém, atentos, poderão, mesmo assim, reunir provas suficientes dos fins ‘sensuais’ dessa
afeição, e tudo quanto lhes faltar, depois disso, poderão facilmente obter em profusão nas investigações da
análise. Os fins sexuais, nesse período da vida, estão intimamente relacionados com as investigações sexuais
que a criança, por essa época, empreende, das quais apresenteilhes
alguns exemplos [ver em [1] e [2]]. O
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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caráter pervertido de alguns desses fins depende, naturalmente, da imaturidade constitucional da criança, pois
esta ainda não descobriu o objetivo do ato da cópula.
Aproximadamente do sexto ao oitavo ano de vida em diante, podemos observar uma parada e um
retrocesso no desenvolvimento sexual, que, nos casos em que culturalmente há mais condições, podemos
chamar de período de latência. O período de latência também pode estar ausente: não acarreta
necessariamente qualquer interrupção da atividade sexual e dos interesses sexuais por toda a extensão da
linha. A maior parte das experiências e dos impulsos mentais anteriores ao início do período da latência agora
sucumbe à amnésia infantil — o esquecimento (sobre o qual já discorremos [ver em [1] e segs.]) que nos oculta
nossa primeira juventude e nos torna estranhos a ela. Em toda psicanálise, colocase
diante de nós a tarefa de
trazer novamente à memória esse período esquecido da vida. É impossível evitar a suspeita de que o
despontar da vida sexual, que se inclui nesse período, tenha dado motivo a que fosse esquecido — que este
esquecimento, de fato, é o resultado da repressão.
A partir do terceiro ano de vida, a vida sexual da criança mostra muita semelhança com a do adulto.
Difere desta, conforme já sabemos, por lhe faltar uma organização estável sob a primazia dos genitais, por seus
inevitáveis traços de perversão e, também, naturalmente, pela intensidade muito menor de toda a tendência
sexual. Do ponto de vista da teoria, contudo, as fases mais interessantes do desenvolvimento sexual, ou, como
diremos, do desenvolvimento libidinal, situamse
em época anterior a esta. Esse curso do desenvolvimento
realizase
com tanta rapidez, que, talvez, jamais pudéssemos conseguir, pela observação direta, apreender
firmemente os seus quadros fugazes. Foi apenas com a ajuda da investigação psicanalítica das neuroses que
se tornou possível descobrir as fases ainda mais precoces do desenvolvimento da libido. Para dizer a verdade,
estas não são senão hipóteses; mas, se os senhores efetuarem a psicanálise na prática, verificarão que são
hipóteses necessárias e úteis. Em breve irão saber como sucede a patologia poder, aqui, revelarnos
a
existência de conexão que inevitavelmente deixaríamos de perceber em uma pessoa normal.
Por conseguinte, posso agora descreverlhes
a forma que toma a vida sexual da criança, antes do
estabelecimento da primazia dos genitais: essa primazia já tem seus preparativos no primeiro período da
infância, prévio ao período de latência, e se organiza, permanentemente, da puberdade em diante. Uma
espécie de organização frouxa, que pode ser chamada ‘prégenital’,
existe durante esse período inicial. Durante
essa fase, o que está em primeiro plano não são os instintos componentes genitais, mas os sádicos e anais. O
contraste entre ‘masculino’ e ‘feminino’ ainda não desempenha, aqui, nenhum papel. Em lugar disso, o
contraste se estabelece entre ‘ativo’ e ‘passivo’, que pode ser descrito como precursor da polaridade sexual e
que, daí em diante, se solda a essa polaridade. O que se nos apresenta como masculino, nas atividades dessa
fase, quando o consideramos do ponto de vista da fase genital, vem a ser expressão de um instinto de domínio
que facilmente pode transformarse
em crueldade. As tendências que visam a um fim passivo vinculamse
à
zona erógena do orifício anal, que é muito importante nesse período. Os instintos de olhar e de adquirir
conhecimento [instintos escopofílico e epistemológico] estão funcionando poderosamente; os genitais realmente
desempenham seu papel na vida sexual apenas como órgãos de excreção da urina. Os instintos componentes
parciais dessa fase não existem sem objetos, mas esses objetos não convergem necessariamente em um único
objeto. A organização sádicoanal
é o precursor imediato da fase de primazia genital. Um estudo detalhado
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
51
mostra quanto dele se mantém na forma definitiva e ulterior das coisas, e, também, revela a forma em que seus
instintos parciais são compelidos a tomar seu lugar na nova organização genital. Anterior à fase sádicoanal
do
desenvolvimento libidinal, podemos divisar um estádio de organização ainda mais precoce e primitivo, no qual a
zona erógena da boca desempenha o papel principal. Como podem perceber, a atividade sexual da sucção [ver
em [1] e [2]] pertence a esse estádio. Devemos admirar a compreensão dos antigos egípcios que, na sua arte,
representavam as crianças, inclusive o deus Hórus, com um dedo na boca. Apenas recentemente, Abraham
[1916] deu exemplo dos vestígios que essa fase oral primitiva deixa após si na vida sexual posterior.
Facilmente posso supor, senhores, que essa última descrição das organizações sexuais serviu mais
para confundilos
do que para instruílos,
e pode ser que mais uma vez eu tenha entrado em demasiados
detalhes. Os senhores devem, contudo, ter paciência. O que acabaram de ouvir lhes será de grande valor a
partir de suas ulteriores aplicações. Por agora, devem reter firme em mente que a vida sexual (ou, conforme
dizemos, a função libidinal) não emerge como algo pronto e nem tem seu desenvolvimento ulterior ditado pelo
seu próprio aspecto inicial, mas passa por uma série de fases sucessivas que não se parecem entre si; sua
evolução repetese,
portanto, várias vezes — como o da lagarta em borboleta. O ponto crítico desse
desenvolvimento é a subordinação de todos os instintos parciais à primazia dos genitais e, com isso, a sujeição
da sexualidade à função reprodutiva. A esta precede uma vida sexual que poderia ser descrita como anárquica
— a atividade independente dos diferentes instintos parciais buscando o prazer do órgão. Tal anarquia é
mitigada por inícios infrutíferos de organizações ‘prégenitais’
— uma fase sádicoanal
precedida por uma fase
oral que é, talvez, a mais primitiva. Ademais, existem os processos variados, ainda incompletamente
conhecidos, que levam um estádio de organização ao estádio subseqüente, mais elevado. Posteriormente
saberemos quão importantes são os esclarecimentos que se obtêm, a respeito das neuroses, com o fato de a
libido passar através de um percurso evolutivo tão longo e sujeito a tantas interrupções.
Hoje, seguiremos um outro aspecto desse desenvolvimento — isto é, a relação entre os instintos
sexuais parciais e seu objeto. Ou melhor, faremos um rápido apanhado dessa evolução e nos deteremos um
pouco mais em uma de suas conseqüências relativamente tardias. Alguns dos componentes do instinto sexual
têm, portanto, desde o início, um objeto e aderem a este — por exemplo o instinto de domínio (sadismo) e os
instintos escopofílico e epistemológico. Outros, mais definidamente vinculados a determinadas zonas erógenas
do corpo, têm, inicialmente, apenas um objeto, enquanto estiverem ainda ligados às funções nãosexuais
[ver
em [1], acima], e o abandonam quando se separam dessas funções nãosexuais.
Assim, o primeiro objeto do
componente oral do instinto sexual é o seio materno, que satisfaz a necessidade de alimento do bebê. O
componente erótico, que é satisfeito simultaneamente durante a sucção [nutricional], tornase
independente
com o ato da sucção sensual [lutschen]; abandona o objeto externo e o substitui por uma área do corpo do
próprio bebê. O instinto oral tornase
autoerótico,
como o são, no início, os instintos anais e outros instintos
erógenos. O desenvolvimento subseqüente, para dar ao assunto toda a concisão possível, tem dois objetivos:
primeiro, o abandono do autoerotismo,
logo, a substituição do corpo da própria criança por um objeto externo;
e, em segundo lugar, a unificação dos diversos objetos dos instintos separados e sua substituição por um único
objeto. Naturalmente isto só pode ser realizado se o objeto, de novo, for um corpo total, semelhante ao do
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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próprio sujeito. E não pode ser efetuado, a menos que alguns impulsos instintuais autoeróticos
sejam
abandonados como inservíveis.
Os processos referentes ao encontro de um objeto são muito complexos, e até agora ainda não se fez
nenhuma descrição completa dos mesmos. Para nossos propósitos, podese
assinalar especialmente que, nos
anos da infância anteriores à puberdade, quando o processo atingiu alguma definição, o objeto encontrado vem
a ser quase idêntico ao primeiro objeto do instinto de prazer oral, que foi obtido por ligação [ao instinto
nutricional]. Embora esse objeto não seja realmente o seio materno, pelo menos é a mãe. Dizemos que a mãe
é o primeiro objeto de amor. Pois falamos em amor quando trazemos para o primeiro plano o lado mental da
tendências sexuais e quando queremos repelir as exigências instintuais ‘sensuais’ ou físicas subjacentes, ou
esquecêlas
no momento. Na época em que a mãe se torna o objeto de amor da criança, nesta o trabalho
psíquico da repressão já começou, trabalho que consiste em uma parte dos fins sexuais subtrairse
ao
conhecimento consciente. A essa escolha que a criança faz, ao tornar sua mãe o primeiro objeto de seu amor,
vinculase
tudo aquilo que, sob o nome de ‘complexo de Édipo’, veio a ter tanta importância na explicação
psicanalítica das neuroses e tem tido uma parte não menor, talvez, na resistência à psicanálise (ver em [1]).
Ouçam este episódio ocorrido no transcurso da guerra atual. Um dos bravos discípulos da psicanálise
foi designado oficial médico no front alemão, em algum lugar da Polônia. Ele chamou a atenção de seus
colegas pelo fato de, ocasionalmente, exercer inesperada influência sobre algum paciente. Indagado a respeito,
reconheceu que estava empregando os métodos da psicanálise e declarouse
disposto a transmitir seu
conhecimento a seus colegas. Depois disso, todas as noites os oficiais médicos da tropa, seus colegas e
superiores, reuniamse
a fim de aprender as doutrinas secretas da análise. Tudo correu bem, durante algum
tempo; quando, porém, falou ao seu auditório a respeito do complexo de Édipo, um de seus superiores
levantouse,
declarou que não acreditava nisso, que constituía um ato vil, por parte do conferencista, falarlhes
a respeito de tais coisas, a homens honestos que estavam lutando por seu país e que eram pais de família; e
que proibia a continuação das conferências. Este foi o final do caso. O analista viuse
transferido para outra
parte do front. Pareceme
mau, entretanto, se uma vitória alemão exige que a ciência se ‘organize’ dessa
maneira, e a ciência alemã não reagirá bem a uma organização dessa espécie.
E, agora, os senhores estarão ávidos por ouvir o que esse terrível complexo de Édipo contém. Seu
nome o diz. Todos os senhores conhecem a lenda grega do rei Édipo, fadado pelo destino a matar seu pai e a
desposar sua mãe, que fez todo o possível para escapar à decisão do oráculo e puniuse
a si próprio cegandose,
ao saber que, apesar de tudo, havia, sem querer, cometido ambos os crimes. Suponho que muito dos
senhores devem ter sentido o efeito avassalador da tragédia em que Sófocles abordou essa história. A obra do
dramaturgo atenienese mostra a maneira como o feito de Édipo, realizado num passado já remoto, é
gradualmente trazido à luz por uma investigação engenhosamente prolongada e restituído à vida por meio de
sempre novas séries de provas. Nesse aspecto, tem certa semelhança com o progresso de uma psicanálise. No
decorrer do diálogo, Jocasta, a iludida mãe e esposa, declarase
contrária à continuação da investigação. Apela
para o fato de que muitas pessoas sonharam com dormir com a própria mãe, mas que os sonhos devem ser
menosprezados. Não menosprezamos os sonhos — muito menos os sonhos típicos que muitas pessoas
sonham; e não duvidamos que o sonho a que Jocasta se referia tem íntima conexão com o estranho e terrível
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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conteúdo da lenda. Uma coisa surpreendente é que a tragédia de Sófocles não suscita um repúdio indignado
na platéia — uma reação semelhante à do nosso sincero médico militar, contudo muito mais justificada.
Basicamente, tratase,
pois, de uma obra amoral: absolve os homens de responsabilidade moral, mostra os
deuses como promotores do crime e demonstra a importância dos impulsos morais dos homens que lutam
contra o crime. Facilmente poderseia
supor que o conteúdo da lenda tivesse em vista incriminar os deuses e o
destino; e , nas mãos de Eurípides, crítico e inimigo dos deuses, provavelmente terseia
tornado uma
incriminação. Com o devoto Sófocles, todavia, não há lugar para uma aplicação dessa espécie. A dificuldade
então é superada através do piedoso sofisma segundo o qual submeterse
à vontade dos deuses constitui a
mais elevada moralidade, mesmo quando isto conduza ao crime. Não consigo pensar que essa moralidade seja
um ponto forte na peça; aliás, não tem nenhuma influência em seu efeito. Não é a ela que o expectador reage,
mas ao sentido e ao conteúdo secreto da lenda. Reage como se, por autoanálise,
tivesse reconhecido o
complexo de Édipo em si próprio e desvendado a vontade dos deuses e do oráculo como disfarces enaltecidos
de seu próprio inconsciente. É como se fosse obrigado a recordar os dois desejos — eliminar o pai e, em lugar
deste, desposar a mãe — e horrorizarse
com esses mesmos desejos. E o espectador compreende as palavras
do dramaturgo, como se elas fossem dirigidas a ele: ‘Tu estás lutando em vão contra a tua responsabilidade, e
estás declarando em vão o que fizeste em oposição a essas intenções criminosas. És culpado por não teres
conseguido destruílas;
elas ainda persistem em ti, inconscientemente.’ E existe verdade psicológica encerrada
nessa frase. Conquanto um homem tenha reprimido seus maus impulsos para dentro do inconsciente e prefira
dizer a si mesmo, posteriormente, que não é responsável por eles, ele, não obstante, tem de reconhecer essa
responsabilidade na forma de um sentimento de culpa cuja origem lhe é desconhecida.Não pode haver dúvida
de que o complexo de Édipo pode ser considerado uma das mais importantes fontes do sentimento de culpa
com que tão freqüentemente se atormentam os neuróticos. E mais do que isso: em um estudo sobre o início da
religião e da moralidade humanas, que publiquei em 1913 sob o título de Totem e Tabu [Freud, 191213],
apresentei a hipótese de que a humanidade como um todo pode ter adquirido seu sentimento de culpa, a
origem primeira da religião e da moralidade, no começo de sua história, em conexão com o complexo de Édipo.
Eu teria muita satisfação em dizerlhes
mais a esse respeito, prefiro, porém, deixálo
de lado. Sempre que se
começa com esse assunto, é difícil interromper; devemos, contudo, retornar à psicologia individual.
O que, então, se pode reunir acerca de complexo de Édipo, a partir da observação direta das crianças,
na época em que fazem sua escolha de um objeto, antes do período de latência? Pois bem, é fácil verificar que
o homenzinho quer ter sua mãe toda para si mesmo, que sente a presença de seu pai como um estorvo, que
fica ressentido quando o pai dispensa qualquer sinal de afeição à mãe, e que mostra satisfação quando o pai
saiu de viagem ou está ausente. Amiúde expressará seus sentimentos diretamente em palavras e prometerá à
sua mãe casar com ela. Pensarseá
que isto assume proporções modestas, se comparando com os feitos de
Édipo; na realidade, porém, é, nada mais nada menos, basicamente a mesma coisa. A observação é
freqüentemente obscurecida pela circunstância de, em outras ocasiões, a própria criança dar mostras de
grande afeição pelo pai. Atitudes emocionais contrárias — ou, seria melhor dizer, ‘ambivalentes’ — que, em
adultos, conduziriam a um conflito, permanecem, porém, compatíveis uma com a outra, por longo tempo, nas
crianças, como também, mais tarde, encontram um lugar permanente, lado a lado, no inconsciente. Do mesmo
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
54
modo, haverseá
de objetar que a conduta do menino originase
em motivos egoísticos e não oferece base
para se postular um complexo erótico: a mãe satisfaz todas as necessidades da criança, de modo que esta tem
interesse em evitar que ela venha a dispensar cuidados a uma outra pessoa. Esse fato também é procedente;
mas, logo tornarseá
claro que, nessa situação, como em outras semelhantes, o interesse egoístico
simplesmente oferece um ponto de apoio ao qual a tendência erótica se vincula. O menino pode mostrar a mais
indisfarçada curiosidade sexual para com sua mãe, pode insistir em dormir ao seu lado, à noite, pode impor sua
presença, junto a ela quando ela está se vestindo, ou, mesmo fazer tentativas reais de seduzila,
conforme sua
mãe divertidamente perceberá e relatará — tudo isso demonstra inequivocamente a natureza erótica de sua
ligação com a mãe. E não se deve esquecer que a mãe dedica a mesma atenção à sua filhinha, sem produzir
igual resultado, e que seu pai amiúde compete com a mãe em proporcionar cuidados ao menino, e, no entanto,
não lhe é atribuída a mesma importância que a ela. Em resumo, não existe crítica que possa eliminar dessa
situação o fator da preferência sexual. Do ponto de vista do interesse egoístico, seria simplesmente uma tolice
o homenzinho não preferir suportar o fato de ter duas pessoas a seu serviço, a ter apenas uma delas.Como
vêem, descrevilhes
apenas a relação de um menino para com seu pai e sua mãe. As coisas se passam de
modo exatamente igual com as meninas, com as devidas modificações: uma afetuosa ligação com o pai, uma
necessidade de eliminar a mãe, por julgála
supérflua, e de tomarlhe
o lugar, um coquetismo que já utiliza os
métodos da futura feminilidade — tudo isso oferece um quadro encantador, especialmente em meninas, o que
nos faz esquecer as conseqüências possivelmente graves que se escondem nessa situação infantil. Não
devemos deixar de acrescentar que os próprios pais freqüentemente exercem uma influência decisiva no
despertar da atitude edipiana da criança, ao cederem ao empuxo da atração sexual, e que, onde houver
diversas crianças, o pai dará definidas provas de sua maior afeição por sua filhinha e a mãe, por seu filho. Mas
a natureza espontânea do complexo de Édipo nas crianças não pode ser seriamente abalada até mesmo por
esse fator.Quando outras crianças aparecem em cena, o complexo de Édipo avolumase
em um complexo de
família. Este, com novo apoio obtido a partir do sentimento egoístico de haver sido prejudicado, dá fundamento
a que os novos irmãos e irmãs sejam recebidos com aversão, e faz com que, sem hesitações, sejam, em
desejos, eliminados. Também é verdade que, via de regra, as crianças são muito mais capazes de expressar
verbalmentes esses sentimentos de ódio, do que aqueles decorrentes do complexo parental. Se um desejo
desse tipo se realiza, e se o irmão que se acrescentou à família desaparece novamente, logo depois, devido à
sua morte, podemos descobrir, numa análise subseqüente, quão importante foi para a criança essa experiência
referente à morte, embora ela não tenha necessariamente permanecido fixada em sua memória. Uma criança
que tenha sido posta em segundo lugar pelo nascimento de um irmão ou irmã, e que agora, pela primeira vez, é
quase isolada de sua mãe, não perdoa a esta, com facilidade, sua perda de lugar; sentimentos que, em um
adulto, seriam descritos como de intenso ressentimento, surgem na criança e freqüentemente constituem a
base de permanente desavença. Já mencionamos [ver em [1]] que as investigações sexuais da criança, com
todas as suas conseqüências, geralmente se originam dessa experiência vital sua. À medida que esses irmãos
e irmãs crescem, a atitude do menino para com eles sofre transformações muito significativas. Pode tomar sua
irmã como objeto de amor, à maneira de substituta da mãe infiel. Onde há diversos irmãos, todos cortejando
uma irmã mais nova, surgem, já na época infantil, situações de rivalidade hostil que são tão importantes, na
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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vida, mais tarde. Uma menina pode encontrar em seu irmão, mais velho, um substituto para seu pai, que não
mantém mais um interesse afetuoso por ela como o fazia em anos anteriores. Ou pode tomar uma irmã mais
nova como substituta da criança que ela, em vão, desejou ter de seu pai.
Isto e muito mais de natureza semelhante serlheá
demonstrado pela observação direta de crianças e
pelo exame de recordações nitidamente retidas desde a infância, não influenciadas pela análise. Disto os
senhores concluirão, entre outras coisas, que a posição que uma criança ocupa na seqüência da família é fator
de extrema importância na determinação da forma de sua vida posterior, e deve merecer consideração em toda
anamnese. Mas, o que é mais importante, em vista dessas informações, que podem ser obtidas tão facilmente:
os senhores não poderão recordar sem um sorriso os pronunciamentos da ciência ao explicar a proibição do
incesto. [Cf. pág. 211, acima.] Não tem fim o que já se inventou sobre o assunto. Tem sido dito que a tendência
sexual é desviada de membros da mesma família pertencentes ao sexo oposto, pelo fato de terem vivido juntos
desde a infância; ou ainda, que um propósito biológico de evitar a consangüinidade é representado
psiquicamente por um inato horror ao incesto. Nisso tudo, deixase
de atentar para o fato de que uma proibição
tão peremptória não seria necessária nas leis e nos costumes, se houvesse barreiras naturais seguras contra a
tentação do incesto. A verdade é justamente o oposto. A primeira escolha objetal de um ser humano é
regularmente incestuosa, dirigida, no caso do homem, à sua mãe e à sua irmã; e necessita das mais severas
proibições para impedir que essa tendência infantil persistente se realize. Entre raças primitivas viventes ainda
nos dias atuais, entre selvagens, as proibições contra o incesto são ainda muito mais estritas do que entre nós,
e Theodor Reik, ainda recentemente, num brilhante trabalho [Reik, 191516]
demonstrou que os ritos da
puberdade dos selvagens, que representam um renascimento, têm o sentido de liberar o menino de seus laços
incestuosos com sua mãe e de reconciliálo
com seu pai.A mitologia lhes ensinará que o incesto que se pensa
ser tão rechaçado pelos seres humanos, é inequivocamente permitido aos deuses. E, na história antiga, podem
constatar que o casamento incestuoso com a irmã era um preceito santificado imposto à pessoa do soberano
(entre os faraós egípcios e os incas do Peru). O que estava em jogo, portanto, era um privilégio proibido ao
homem comum.
Um dos crimes de Édipo foi o incesto com a mãe, o outro foi o parricídio. Podese
observar, de
passagem, que estes são também os dois grandes crimes proscritos pelo totemismo, a primeira instituição
socialreligiosa
da humanidade.Retornemos, agora, da observação direta das crianças ao exame analítico dos
adultos que se tornaram neuróticos. Que ajuda nos proporciona a análise para um melhor conhecimento do
complexo de Édipo? Isto pode ser respondido numa palavra. A análise confirma tudo o que a lenda descreve.
Mostra que cada um desses neuróticos também tem sido um Édipo, ou, o que vem a dar no mesmo, como
reação ao complexo, tornouse
um Hamlet. A explicação analítica do complexo de Édipo é, naturalmente, uma
ampliação e uma versão mais crua do esboço infantil. O ódio ao pai, os desejos de morte contra ele, já não são
mais insinuados timidamente, a afeição pela mãe admite que seu objetivo é possuíla
como mulher. Devemos
realmente atribuir esses impulsos emocionais turbulentos e externos aos tenros anos da infância, ou será que a
análise nos engana com a mistura de algum fator novo? Não é difícil achar um desses fatores. Sempre que
alguém faz um relato de um acontecimento passado, ainda que seja um historiador, devemos ter em mente o
que é que ele intencionalmente faz recuar do presente, ou de alguma época intermediária, para o passado,
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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falsificando, com isso, o seu quadro referente ao fato. No caso de um neurótico, até mesmo surge a questão de
saber se esse recuar para o passado é totalmente nãointencional;
de ora em diante, teremos de descobrir as
razões disso, e teremos de, no geral, considerar atentamente o fato do ‘fantasiar retrospectivo’. Facilmente
podemos verificar também que o ódio ao pai é reforçado por diversos fatores que surgem de épocas e
circunstâncias posteriores, e que os desejos sexuais dirigidos à mãe assumem formas tais, que devem ter sido
estranhos até mesmo para uma criança. Entretanto, seria um esforço vão procurar explicar a totalidade do
complexo de Édipo através do fantasiar retrospectivo e vinculála
a épocas posteriores. Seu núcleo infantil e, no
geral, seus aspectos acessórios permanecem do modo como foram confirmados pela observação direta de
crianças.O fato clínico que se nos apresenta sob a forma do complexo de Édipo, tal como é estabelecido pela
análise, é da mais alta significação prática. Constatamos que, na puberdade, quando os instintos sexuais, pela
primeira vez, fazem suas exigências com toda a sua força, os velhos objetos incestuosos familiares são
retomados mais uma vez e novamente catexizados com a libido. A escolha objetal infantil era apenas uma
escolha débil, mas já era um começo que indicava a direção para a escolha objetal na puberdade. Nesse ponto,
desenrolamse,
assim, processos emocionais muito intensos que seguem a direção do complexo de Édipo ou
reagem contra ele, processos que, entretanto, de vez que suas premissas se tornaram intoleráveis, devem, em
larga escala, permanecer apartados da consciência. Dessa época em diante, o indivíduo humano tem de se
dedicar à grande tarefa de desvincularse
de seus pais e, enquanto essa tarefa não for cumprida, ele não não
pode deixar de ser uma criança para se tornar membro da comunidade social. Para o filho, essa tarefa consiste
em desligar seus desejos libidinais de sua mãe e empregálos
na escolha de um objeto amoroso real externo e
em reconciliarse
com o pai, se permaneceu em oposição a este, ou em liberarse
da pressão deste, se, como
reação à sua rebeldia infantil, tornouse
subserviente a ele. Essas tarefas são propostas a todas as pessoas; e
é de causar espécie quão raramente as pessoas enfrentam tais tarefas de maneira ideal — isto é, de maneira
tal que seja correta, tanto psicológica como socialmente. Os neuróticos, porém, não chegam absolutamente a
nenhuma solução: o filho permanece por toda a vida subjugado à autoridade do pai e é incapaz de transferir
sua libido a um objeto sexual externo. Com o relacionamento modificado, o mesmo destino pode esperar a filha.
Nesse sentido, o complexo de Édipo justificadamente pode ser considerado como o núcleo das neuroses.
Conforme podem imaginar, senhores, passei em revista, muito rapidamente, grande número de
considerações de importância prática e teoria relacionadas com o complexo de Édipo. E não adentrarei suas
variações e suas possíveis inversões. Entre suas conexões mais remotas, apenas mencionarei para os
senhores um detalhe que gerou um efeito de alta importância na produção literária. Em um valioso trabalho,
Otto Rank [1912b] mostrou que os dramaturgos de todos os tempos escolheram o seu material, geralmente, a
partir do complexo de Édipo e do incesto, bem como das suas variações e disfarces. E não se deve deixar
passar despercebido que os dois desejos criminosos do complexo de Édipo foram reconhecidos como os
verdadeiros representantes da vida irrestrita dos instintos, muito antes da época da psicanálise. Entre os
escritos do enciclopedista Diderot, os senhores encontrarão um diálogo notável, le neveu de Rameau, que foi
traduzido para o alemão por uma pessoa do porte de Goethe. Ali os senhores podem ler esta frase
extraordinária: ‘Si le petit sauvage était abandonné à luimême,
qu’il conservât toute son imbécillité, et qu’il
réunît au peu de raison de l’enfant au berceau la violence des passions de l’homme de trente ans, il tordrait le
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
57
col à son père et coucherait avec sa mére.’Existe, porém, algo mais, que não posso omitir. Não se deve permitir
que reste infrutífera a advertência referente aos sonhos, que nos faz a mãe e esposa de Édipo. Recordamse
os senhores do resultado de nossas análises de sonhos — como os desejos que formam os sonhos são tão
freqüentemente de natureza pervertida ou incestuosa, ou revelam uma insuspeitada hostilidade para com
aqueles que são mais chegados e mais caros ao sonhador? Naquela ocasião [ver em [1] e [2]] não demos
nenhuma explicação da origem desses impulsos maus. Agora os senhores mesmos podem encontrála.
São
arranjos da libido e das catexias objetais que datam do início da infância e que, desde então, foram
abandonadas no que respeita à vida consciente, mas que provam estar ainda presentes, no período noturno, e
ser capazes de funcionar em certo sentido. No entanto, de vez que todos, e não apenas os neuróticos,
experimentam esses sonhos pervertidos, incestuosos e assassinos, podemos concluir que as pessoas que são
normais, atualmente, percorreram um caminho evolutivo que passou pelas perversões e catexias objetais do
complexo de Édipo, que este é o caminho do desenvolvimento normal e que os neuróticos simplesmente nos
mostram, de forma ampliada e grosseira, aquilo que a análise dos sonhos nos revela também em pessoas
sadias. E esta é uma das razões por que abordei o estudo dos sonhos antes do estudo dos sintomas
neuróticos.
CONFERÊNCIA XXII
ALGUMAS IDÉIAS SOBRE DESENVOLVIMENTO E REGRESSÃO — ETIOLOGIA
SENHORAS E SENHORES:
Ouviram dizer que a função libidinal sofre uma prolongada evolução, até que possa, segundo o que se
descreve como forma normal, ser posta a serviço da reprodução. Gostaria de atrair sua atenção, agora, para a
importância desse fato na causação das neuroses.
Penso que estamos de acordo com as teorias da patologia geral ao supormos que um desenvolvimento
dessa espécie envolve dois perigos: primeiro, de inibição, e, segundo, de regressão. Isto é, em vista da
tendência geral dos processos biológicos à variação, não há como fugir ao fato de que nem todas as fases
preparatórias são ultrapassadas com igual êxito e superadas completamente: partes da função serão retidas
permanentemente nesses estádios iniciais e o quadro total do desenvolvimento será limitado por determinada
quantidade de inibição de desenvolvimento.
Procuremos algumas analogias com esses processos em outras áreas de conhecimento. Quando,
conforme tantas vezes aconteceu nos períodos iniciais da história do homem, um povo inteiro abandonou seu
local de morada e procurou um novo, podemos ter a certeza de que nem todos os indivíduos desse povo
chegaram à nova localidade. Afora outras perdas, deve ter acontecido, regularmente, que pequenos grupos ou
bandos de migrantes pararam no caminho e se fixaram nesses locais de parada, enquanto o grosso da massa
prosseguia adiante. Ou, conforme é do conhecimento dos senhores, voltando a uma comparação mais próxima,
nos mamíferos superiores as glândulas sexuais masculinas, que inicialmente se situam profundamente na
cavidade abdominal, iniciam uma migração, em determinado estádio da vida intrauterina,
que as traz quase
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
58
diretamente sob a pele da extremidade pélvica. Em conseqüência dessa migração, constatamos, em alguns
indivíduos masculinos, que um desses órgãos pares ficou para trás, dentro da cavidade pélvica, ou que ficou
alojado permanentemente dentro do que se conhece como canal inguinal, através do qual ambos os órgãos
devem passar no decurso de sua migração; ou, pelo menos, que esse canal permaneceu aberto, embora
normalmente devesse fecharse
após as glândulas haverem completado sua mudança de localização. Uma
vez, quando eu era um jovem estudante, dediqueime,
sob a direção de von Brücke, a meu primeiro trabalho
científico e interesseime
pela origem das raízes nervosas posteriores da medula espinal de um pequeno peixe
de estrutura muito primitiva; constatei que as fibras nervosas dessas raízes tinham sua origem em células
grandes do corno posterior da substância cinzenta, o que já não acontece mais com outros vertebrados. Mas
também descobri, logo depois, que células nervosas desse tipo estão presentes fora da substância cinzenta,
por toda a extensão do chamado gânglio espinal da raiz posterior; e desse fato concluí que as células dessas
massas ganglionares migraram da medula espinal ao longo das raízes dos nervos. Isto também é demonstrado
pela sua história evolutiva. Nesse pequeno peixe, porém, todo o percurso de sua migração foi demonstrado
pelas células que ficaram para trás.Se os senhores se aprofundarem mais no assunto, não terão dificuldade em
detectar os pontos fracos dessas comparações. Portanto, declaro, sem mais delongas, que, no caso de cada
uma das tendências sexuais, considero possível que algumas partes das mesmas tenham ficado para trás, em
estádios anteriores de seu desenvolvimento, embora outras partes possam ter atingido o objeto final. Aqui os
senhores reconhecerão que estamos delineando cada uma dessas tendências como uma corrente que tem sido
contínua desde o começo da vida, a qual, porém, dividimos, em certa medida artificialmente, em sucessivos
avanços separados. Justificase
a sua impressão de que essas idéias necessitam de maior esclarecimento;
contudo, ao tentálo,
afastarnosíamos
demais do tema. Permitamme
ainda esclarecer que nos propomos
descrever o retardamento de uma tendência parcial num estádio anterior como sendo uma fixação — isto é,
uma fixação do instinto.O segundo perigo em um desenvolvimento por etapas desse tipo reside no fato de que
as partes que prosseguiram adiante podem também, com facilidade, retornar retrocessivamente a um desses
estádios precedentes — o que descrevemos como regressão. A tendência verseà
conduzida a uma regressão
desse tipo, se o exercício de sua função — isto é, a obtenção do seu objetivo de satisfação — depara, em sua
forma posterior ou mais altamente desenvolvida, com poderosos obstáculos externos. É plausível supor que a
fixação e a regressão não sejam independentes uma da outra. Quanto mais intensas as fixações em seu rumo
ao desenvolvimento, mais prontamente a função fugirá às dificuldades externas, regressando às fixações —
portanto, mais incapaz se revela a função desenvolvida de resistir aos obstáculos externos situados em seu
caminho. Considerem que, se um povo em migração deixou atrás de si fortes destacamentos nos locais de
parada de seu deslocamento, é provável que os escalões mais avançados tenderão a se retirar para esses
locais de parada quando forem derrotados ou quando se defrontarem com um inimigo superior. Mas, também
estarão em maior perigo de serem derrotadas, quanto maior for o número deles, que ficou para trás na
migração.
Para compreenderem as neuroses, é importante não perderem de vista essa relação entre fixação e
regressão. Isto lhes dará maior segurança ao enfrentarem a questão da formação das neuroses — a questão
da etiologia das neuroses, que em breve haveremos de abordar.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
59
No momento atual, deternosemos
um pouco mais na regressão. Após essas coisas que os senhores
aprenderam a respeito do desenvolvimento da função libidinal, estarão preparados para saber que há
regressão de dois tipos: um retorno aos objetos que inicialmente foram catexizados pela libido, os quais,
conforme sabemos, são de natureza incestuosa; e um retorno da organização sexual como um todo a estádios
anteriores. Ambos os tipos de regressão são encontrados nas neuroses de transferência [ver em [1]] e
desempenham importante papel no seu mecanismo. Particularmente, um retorno aos primeiros objetos
incestuosos da libido é um aspecto que se encontra nos neuróticos com regularidade realmente fatigante. Há
muito mais coisas a dizer acerca das regressões da libido, quando levamos em consideração também outros
grupos de neuroses, as narcísicas, que, por ora, não pretendemos abordar. Esses distúrbios dãonos
acesso a
outros processos de desenvolvimento da função libidinal que ainda não mencionamos, e nos mostram, por
conseguinte, ainda outras formas de regressão. Acima de tudo, penso, todavia, que devo advertilos
para não
confundirem regressão com repressão e ajudálos
a formar uma idéia clara das relações entre os dois
processos. A repressão, como se recordam [ver em [1] e segs], é o processo pelo qual um ato admissível à
consciência, portanto um ato que pertence ao sistema Pcs., é tornado inconsciente — é repelido para dentro do
sistema Ics. E igualmente falamos em regressão se o ato mental inconsciente é de todo impedido de ter acesso
ao vizinho sistema préconsciente
e é repelido, no limiar, pela censura. Assim, o conceito de repressão não
implica nenhuma relação com a sexualidade: devo pedirlhes
que tomem especial nota disto. Indica um
processo puramente psicológico, que podemos caracterizar mais bem ainda se o denominarmos processo
‘topográfico’. Com isso queremos dizer que repressão diz respeito às regiões psíquicas que supomos existirem
ou, se abandonamos essa desajeitada hipótese de trabalho, à construção do aparelho mental a partir dos
diferentes sistemas psíquicos.
A comparação que propusemos chamou nossa atenção, pela primeira vez, para o fato de que até então
não estivemos usando a palavra ‘regressão’ em seu sentido geral, mas sim em um sentido muito especial. Se
lhe damos um sentido geral — o de um retorno desde um nível de desenvolvimento mais elevado para um nível
inferior — então a repressão também pode ser enquadrada no conceito de regressão, de vez que também a
repressão pode ser descrita como um retorno a um estádio anterior e mais profundo na evolução de um ato
psíquico. No caso da repressão, porém, esse movimento retrocessivo não nos interessa, já que falamos
também em repressão, no sentido dinâmico, quando um ato psíquico é detido no estádio inferior, inconsciente.
O fato é ser a repressão um conceito topográficodinâmico,
ao passo que a regressão é um conceito puramente
descritivo. O que até agora tratamos como regressão, entretanto, e temos relacionado à fixação, significou
exclusivamente um retorno da libido a anteriores pontos de interrupção de seu desenvolvimento — isto é, algo
inteiramente diferente, em sua natureza, da repressão, e inteiramente independente desta. E não podemos
chamar de regressão da libido um processo puramente psíquico, nem podemos dizer onde deveríamos localizálo
no aparelho mental. E, embora seja verdade que ele exerce a mais poderosa influência sobre a vida mental,
o fator mais importante nele é o fator orgânico.Senhores, exposições como esta estão fadadas a se tornarem
um tanto áridas. Voltemos, pois, ao material clínico, a fim de encontrarmos aplicações que serão mais
interessantes. Como sabem, a histeria e a neurose obsessiva são as duas principais representantes do grupo
das neuroses de transferência. Ora, é verdade que, na histeria, operase
uma regressão da libido aos primitivos
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
60
objetos sexuais incestuosos e que isto ocorre muito regularmente; contudo, não existe, a bem dizer, nenhuma
regressão a um estádio anterior da organização sexual. Para contrabalançar isso, a parte principal do
mecanismo da histeria é desempenhada pela repressão. Se pudesse aventurarme
a completar aquilo que já
temos por certo a respeito dessa neurose, fazendo alguma hipótese, tentaria explicar a situação da seguinte
maneira. A unificação dos instintos parciais sob a primazia dos genitais foi conseguida; seus resultados, porém,
se defrontam com a resistência do sistema préconsciente
que se vincula com a consciência. Assim, a
organização genital é válida para o inconsciente, mas não da mesma forma para o préconsciente;
e essa
rejeição por parte do préconsciente
configura um quadro que tem determinadas semelhanças com a situação
existente antes da primazia genital. Não obstante, é algo muito diferente.
Dos dois tipos de regressão da libido, a regressão que se faz a uma fase anterior da organização
sexual é, de longe, a mais surpreendente. Como esta se encontra ausente na histeria, e de vez que nossa
completa visão das neuroses ainda está excessivamente influenciada pelo estudo da histeria, cronologicamente
a primeira a ser estudada, assim a significação da regressão libidinal também se nos tornou compreensível
muito depois de compreendermos a importância da repressão. Devemos estar preparados para constatar que
nossos pontos de vista estarão sujeitos ainda a outras ampliações a reavaliações, quando pudermos levar em
consideração não apenas a histeria e a neurose obsessiva, como também as outas neuroses, as neuroses
narcísicas.
Na neurose obsessiva, pelo contrário, é a própria regressão da libido ao estádio preliminar da
organização sádicoanal
o fato mais marcante e o fato decisivo para aquilo que se manifesta nos sintomas. A
impulsão de amor, quando isto aconteceu, é obrigada a disfarçarse
em impulsão sádica. A idéia obsessiva ‘Eu
gostaria de te matar’, quando despojada de determinados acréscimos, não casuais, contudo indispensáveis,
não significa, no fundo, outra coisa senão. ‘Eu gostaria de me deleitar com amor’. Se, ademais, considerarem
que houve simultaneamente uma regressão referente ao objeto, de modo que essas impulsões se apliquem
apenas àqueles objetivos mais chegados e mais caros ao paciente, os senhores poderão formar uma idéia do
horror que essas obsessões causam no paciente e, ao mesmo tempo, da aparência estranha que elas
conferem a essa percepção consciente. Também a repressão desempenha, porém, importante papel no
mecanismo dessas neuroses, embora isto, numa introdução sumária como a nossa, não possa ser
demonstrado com facilidade. Uma regressão da libido, sem repressão, jamais produziria uma neurose, mas
levaria a uma perversão. Assim, os senhores podem ver que a repressão é o processo mais característico das
neuroses e é de todos os mecanismos o mais característico. Talvez, mais adiante, venha a ter a oportunidade
de dizerlhes
o que sabemos a respeito do mecanismo das perversões, e verão que, também no caso destas,
as coisas não são tão simples como nós preferíamos imaginar.Senhores, penso que a melhor maneira de
chegarem a um acordo com tudo isso que acabaram de ouvir acerca de fixação e regressão da libido, é
consideraremno
como preparação para a pesquisa da etiologia das neuroses. Até agora, fornecilhes
apenas
uma parcela de informação a respeito desse assunto, ou seja: que as pessoas adoecem de neurose quando
impedidas da possibilidade de satisfazer sua libido — que adoecem devido à ‘frustração’, conforme costumo
dizer — e que seus sintomas são justamente um substituto para sua satisfação frustrada [ver em [1]].
Naturalmente, supõese
que isto não queira dizer que toda frustração da satisfação libidinal torne neurótica a
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
61
pessoa atingida dessa forma, e sim, simplesmente, que o fator frustração possa ser constatado em qualquer
caso de neurose que for examinado. Assim [conforme diriam os lógicos] a proposição não é convertível. E,
também, não há dúvida de que os senhores compreendem que essa afirmação não pretende revelar todo o
segredo da etiologia das neuroses, mas apenas ressaltar um fator importante e indispensável.Prosseguindo a
discussão dessa tese, deveríamos considerar a natureza da frustração, ou a característica peculiar daquelas
pessoas afetadas pela frustração? Afinal, é extremamente raro darse
o caso de a frustração ser universal e
absoluta. A fim de atuar patogenicamente, ela deve, sem dúvida, afetar o modo de satisfação que é o único
desejado pela pessoa, o único de que a pessoa é capaz. Em geral, há muitíssimas maneiras de suportar a
privação de satisfação libidinal, sem adoecer em conseqüência da privação. Em primeiro lugar, conhecemos
pessoas capazes de suportar uma privação dessa espécie, sem serem lesadas: não são felizes, sofrem devido
aos seus anseios, porém não adoecem. E depois, devemos ter em mente que os impulsos instintuais sexuais,
em particular, são extraordinariamente plásticos, se é que posso expressarme
dessa maneira. Um deles pode
assumir o lugar do outro, um pode assumir a intensidade do outro; no caso de a realidade frustrar a satisfação
de um deles, a satisfação de outro pode proporcionar compensação completa. Relacionamse
uns com os
outros à semelhança de uma rede de canais intercomunicantes cheios de líquido; e isto se processa assim,
apesar de estarem eles sujeitos à primazia dos genitais — um estado de coisas que absolutamente não se
combina com facilidade e um quadro único. Ademais, os instintos parciais da sexualidade, bem como a
tendência sexual que deles se compõe, revelam grande capacidade de mudar de objeto, de tomar um objeto
por outro — e de tomar, portanto, um objeto que seja mais facilmente acessível. A deslocabilidade e a facilidade
de aceitar um substituto deve atuar poderosamente contra o efeito patogênico da frustração Entre esses
processos protetores contra o adoecer devido à privação, existe um que adquiriu especial significação cultural.
Consiste no fato de a inclinação sexual abandonar seu fim de obter um prazer parcial ou reprodutivo e de
adotar um outro, que genericamente se relaciona àquele que foi abandonado, mas que, por si mesmo, já não
possui mais um caráter sexual, devendo ser descrito como social. A esse processo chamamos ‘sublimação’,
segundo o consenso geral que situa os objetivos sociais acima dos objetivos sexuais, que no fundo, visam aos
próprios interesses próprios do indivíduo. Aliás, a sublimação é apenas um caso especial da maneira pela qual
as inclinações sexuais se vinculam a outras, nãosexuais
[ver em [1]]. Haveremos de discorrer a esse respeito,
novamente, em outro contexto.Ora, os senhores poderão ter a impressão de que a privação foi reduzida à
insignificância devido a todos esses métodos de tolerála.
Contudo, não é assim; ela conservou sua capacidade
patogênica. As contramedidas são, em sua totalidade, insuficientes. Há um limite à quantidade de libido não
satisfeita que os seres humanos, em média, podem suportar. A plasticidade ou livre mobilidade da libido não se
mantém absolutamente preservada em todas as pessoas, e a sublimação jamais tem a capacidade de manejar
senão determinada parcela de libido; acrescese
o fato de que muitas pessoas são dotadas apenas de uma
escassa capacidade de sublimar. A mais importante dessas limitações é, evidentemente, aquela referente à
mobilidade da libido, de vez que isto faz com que a satisfação da pessoa dependa da obtenção de apenas um
número muito reduzido de fins e de objetos. Basta os senhores recordarem que um desenvolvimento imperfeito
da libido deixa atrás de si fixações libidinais muito férteis e, talvez, também, muito numerosas, em fases
precoces da organização e da busca de objetos, as quais, em sua maior parte, são incapazes de prover
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
62
satisfação real; e, com isso, os senhores poderão reconhecer na fixação libidinal o segundo poderoso fator que,
juntamente com a frustração, é causa de doença. Podem afirmar, numa abreviação esquemática, que a fixação
libidinal representa o fator interno, predisponente, da etiologia das neuroses, ao passo que a frustração
representa o fator externo, acidental.
A esse ponto, aproveito o oportunidade para alertálos
contra a possibilidade de tomarem partido em
uma disputa muito desnecessária. Em assuntos científicos, as pessoas mantêm muito essa tendência de
selecionar uma parte da verdade, colocandose
a favor dessa parte somente. Foi justamente dessa forma que
diversas correntes de opinião já se cindiram do movimento psicanalítico, algumas delas reconhecendo os
instintos egoísticos e negando os sexuais, e outras atribuindo importância à influência das incumbências reais
da vida e desprezando o passado do indivíduo — e outras mais. Ora, aqui encontramos mais uma ocasião para
assinalar um contraste e iniciar uma controvérsia. São as neuroses doenças exógenas ou endógenas? São elas
o resultado inevitável de determinada constituição, ou são produto de determinadas experiências de vida
prejudiciais (traumáticas)? Mais particularmente, são elas causadas pela fixação da libido (e pelos outros
aspectos da constituição sexual) ou pela pressão da frustração? Pareceme
que esse dilema, em sua
totalidade, não se reveste de sensatez maior do que um outro dilema que eu poderia apresentarlhes:
um bebê
surge por ter sido gerado por seu pai, ou por ter sido concebido por sua mãe? Ambos os fatores são igualmente
indispensáveis, conforme certamente responderão os senhores. No que tange à causação das neuroses, a
relação, se não precisamente a mesma, pelo menos é muito similar. Quanto à sua causação, os casos de
doença neurótica enquadramse
numa série, dentro da qual os dois fatores — constituição sexual e
experiência, ou, se preferirem, fixação da libido e frustração — estão representados de tal modo que, quando
um dos fatores é mais forte, o outro o é menos. Em um dos limites da série estão os casos extremos dos quais
os senhores poderiam dizer convictamente: essas pessoas, em conseqüência do singular desenvolvimento de
sua libido, teriam adoecido de qualquer maneira, quaisquer que tivessem sido suas experiências e por mais que
suas vidas tivessem sido protegidas. No outro limite da série, estão os casos que, pelo contrário, os senhores
deveriam supor tivessem certamente escapado de adoecer, se suas vidas não os tivessem conduzido a esta ou
àquela situação. Nos casos intermediários da série, um maior ou menor grau de predisposição na constituição
sexual se combina com um grau menor ou maior de experiências nocivas na vida das pessoas. Sua
constituição sexual não as teria levado à neurose, se não tivessem tido essas experiências, e essas
experiências não teriam tido um efeito traumático sobre tais pessoas se sua libido tivesse sido disposta de outra
forma. Nessa série posso, com certeza, admitir uma preponderância na importância dos fatores predisponentes;
porém, admitir isto também depende de saber até onde os senhores resolvem ampliar as fronteiras da doença
neurótica.Proponho, senhores, que denominemos a uma série desse tipo ‘série complementar’, e previnoos
de
que terão oportunidade de formar outras da mesma espécie.A tenacidade com que a libido adere a
determinadas tendências e objetos — o que se pode descrever como ‘adesividade’ da libido — surge como
fator independente, variando de indivíduo para indivíduo, e suas causas nos são praticamente desconhecidas;
contudo, sua importância na etiologia das neuroses certamente não mais subestimaremos. Por outro lado, não
devemos superestimar a complexidade dessa relação: uma ‘adesividade’ semelhante ocorre (por motivos
desconhecidos), sob numerosas condições, em pessoas normais, e é encontrada como fator determinante em
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
63
pessoas que são, em certo sentido, o oposto dos neuróticos — nos pervertidos. Sabiase,
já antes da era da
psicanálise (cf. Binet [1888]), que, na anamnese de pervertidos, muito amiúde encontravase
uma marca muito
precoce de alguma tendência instintual ou de alguma escolha objetal anormal a que a libido da pessoa
permanecia ligada por toda a vida. Muitas vezes, é impossível dizer o que é que possibilitou a essa marca
exercer uma atração tão intensa sobre a libido. Descreverei um caso dessa ordem, que eu próprio
observei.Tratase
de um homem que, hoje, é praticamente indiferente aos genitais e a outros atrativos das
mulheres, mas que pode ser tomado de irresistível excitação sexual apenas por causa de um pé que tenha
determinada forma, e que calce um sapato. Pode recordar um acontecimento do seu sexto ano de vida,
decisivo para a fixação de sua libido. Estava sentado num banquinho, ao lado da governanta que lhe ia
ministrar lições de inglês. A governanta, uma solteirona de meiaidade,
seca, sem atrativos especiais, com
olhos azulclaros
e nariz arrebitado, naquele dia estava com algum problema no pé e, por causa disso,
mantinhao
calçado num chinelo de veludo, estendido sobre uma almofada. Sua perna, propriamente, estava
com decência recoberta com a roupa. Um pé fino, magricela, como aquele que vira pertencendo à sua
governanta, desde então se tornou (após tímida tentativa de atividade sexual normal na puberdade) seu único
objeto sexual; e o homem se sentia irresistivelmente atraído se um pé assim se associava mais a outros
aspectos, do que lembrassem a figura da governanta inglesa. Essa fixação de sua libido, porém, fazia dele não
um neurótico mas um pervertido — o que denominamos fetichista do pé. Portanto, os senhores constatam que,
embora uma fixação excessiva e, acima de tudo, prematura da libido seja indispensável para a causação das
neuroses, a área de seus efeitos se estende muito além do campo das neuroses. Esse fator é, também, por si
mesmo, tão pouco decisivo quanto o é a frustração, sobre a qual já falamosAssim, o problema da causação das
neuroses parece tornarse
mais complicado. De fato, a investigação psicanalítica nos familiariza com um fator
novo, que não é levado em conta em nossa série etiológica e que podemos reconhecer muito facilmente em
casos nos quais aquilo que até então constituiu condição sadia, é subitamente perturbado por um início de
doença neurótica. Nessas pessoas regularmente encontramos indícios de um luta entre impulsos plenos de
desejos, ou segundo costumamos expressálo,
um conflito psíquico. Uma parte da personalidade defende a
causa de determinados desejos, enquanto outra parte se opõe a eles e os rechaça. Sem tal conflito não existe
neurose. Pareceria não haver nada de característico nisto. Nossa vida mental, conforme sabem, é
permanentemente agitada por conflitos que temos de resolver. Sem dúvidas, por conseguinte, condições
especiais devem ser preenchidas para que um conflito se torne patogênico. Devemos perguntar que condições
são essas, entre que poderes mentais se desenrolam esses conflitos patogênicos, e qual é a relação entre o
conflito e os demais fatores causais.
Espero poder darlhes
respostas adequadas a essas questões, conquanto as respostas possam
reduzirse
a dimensões esquemáticas. O conflito surge pela frustração, em conseqüência da qual a libido,
impedida de encontrar satisfação, é forçada a procurar outros objetos e outros caminhos. A precondição
necessária do conflito é que esses outros caminhos e objetos suscitem desaprovação em um parte da
personalidade, de forma que se impõe um veto que impossibilita o novo método de satisfação, tal como se
apresenta. A partir desse ponto, a formação dos sintomas prossegue seu curso, que seguiremos mais tarde. As
tendências libidinais rechaçadas conseguem, não obstante, abrir caminho por algumas vias indiretas, embora,
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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verdadeiramente, não sem levar em conta a objeção, submetendose
a algumas deformações e atenuações. As
vias indiretas são aquelas que toma a formação dos sintomas; estes constituem a satisfação nova ou substituta,
que se tornou necessária devido ao fato de frustração.O significado do conflito psíquico pode ser
adequadamente expresso de outro modo, dizendose
que, para uma frustração externa tornarse
patogênica, é
preciso acrescentarlhe
uma frustração interna. Nesse caso, naturalmente, as frustrações externa e interna
referemse
a diferentes vias e objetos. A frustração externa remove uma possibilidade de satisfação e a
frustração interna procura excluir uma outra possibilidade; e em torno disto irrompe, então, o conflito. Prefiro
essa forma de representar o assunto, porque possui um conteúdo secreto. Aponta para a probabilidade de os
impedimentos internos terem surgido de obstáculos externos reais durante os períodos préhistóricos
da
evoluçao do homem.Mas, quais são as forças das quais surge a objeção à tendência libidinal? Qual é a outra
parte do conflito patogênico? Essas forças, genericamente falando, são as forças instintuais nãosexuais.
Classificamolas
conjuntamente como ‘instintos do ego’. A psicanálise das neuroses de transferência não nos
dá um acesso fácil a um exame detalhado das mesmas; quando muito, chegamos a conhecêlas,
em certa
medida, através das resistências que se opõem à análise. O conflito patogênico é, pois, um conflito entre os
instintos do ego e os instintos sexuais. Em muitos casos, parece haver como que um conflito também entre
diferentes tendências puramente sexuais. Em essência, isto, porém, é a mesma coisa; pois das duas
tendências sexuais em conflito, uma sempre é, poderíamos dizer assim, ‘egossintônica’, ao passo que a outra
provoca a defesa do ego. Portanto, ainda continua sendo um conflito entre o ego e a sexualidade.Senhores,
sempre que a psicanálise tem afirmado que algum evento mental é produto dos instintos sexuais, temselhe
argumentado, indignadamente, a modo de defesa, que os seres humanos não se resumem apenas em
sexualidade, que existem na vida mental instintos e interesses outros além dos sexuais, que não se deve
derivar ‘tudo’ da sexualidade, e assim por diante. Pois bem, é muito gratificante, vez por outra, verificar que
estamos de acordo com nossos opositores. A psicanálise jamais se esqueceu de que há também forças
instintuais que não sexuais. Ela se baseou numa nítida distinção entre os instintos sexuais e os instintos do
ego, e, apesar de todas as objeções, sustentou não que as neuroses derivavam da sexualidade, mas sim, que,
sua origem se deve a um conflito entre o ego e a sexualidde. E enm possui qualquer motivo concebível para
contestar a existência ou a importância dos instintos do ego, enquanto rastreia a parte executada pelos instintos
sexuais na doença e na vida corrente. Simplesmente a psicanálise teve o destino de começar por interessarse
pelos instintos sexuais, de vez que as neuroses de transferência os tornaram os de mais fácil acesso ao exame,
e porque é psicanálise coube a tarefa de estudar aquilo de que outras pessoas haviam descurado.E não se
trata de a psicanálise não haver prestado atenção alguma à parte não sexual da personalidade. É precisamente
a distinção entre ego e sexualidade que nos possibilitou reconhecer com especial clareza que os instintos do
ego passam por um importante processo de evolução, uma evolução que não é nem completamente
independente da libido, nem desprovida de um efeito secundário sobre a mesma. Contudo, estamos muito
menos familiarizados com o desenvolvimento do ego do que com a evolução da libido, de vez que apenas o
estudo das neuroses narcísicas é que promete darnos
uma compreensão interna (insight) da estrutura do ego.
Entretanto, já temos diante de não uma notável tentativa empreendida por Ferenczi [1913] de estabelecer uma
formulação teórica dos estádios de desenvolvimento. Não acreditamos que os interesses libidinais de uma
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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pessoa estejam, desde o início, em oposição a seus interesses de autopreservações; pelo contrário, o ego
esforçase,
em cada estádio, por permanecer em harmonia com sua organização sexual, tal como esta se
apresenta na época, e por ajustarse
a ela. A sucessão das diferentes fases do desenvolvimento libidinal
provavelmente segue um programa estabelecido. Não se pode, contudo, afastar a possibilidade de esse curso
dos acontecimentos pode ser influenciado pelo ego, e podemos igualmente esperar encontrar algum
paralelismo, determinada correspondência, entre a fases do desenvolvimento do ego e da libido; na verdade,
um distúrbio dessa correspondência poderia originar um fator patogênico. Com isso, defrontamonos
com a
importante consideração relativa à maneira como se comporta o ego no caso de sua libido deixar após si uma
intensa fixação em algum ponto de seu desenvolvimento (da libido). O ego pode aceitar isto e, em
conseqüência, tornarse,
nesse sentido, pervertido, ou, o que é a mesma coisa, infantil. No entanto, o ego pode
adotar uma atitude nãocomplacente
com a acomodação da libido nessa posição, e, nesse caso, o ego
experimenta uma repressão ali onde a libido sofreu uma fixação.
Assim, descobrimos que o terceiro fator na etiologia das neuroses, a tendência ao conflito, depende
tanto do desenvolvimento do ego como do da libido. Com isso fazse
mais completa nossa compreensão
interna (insight) da causação das neuroses. Primeiro, existe a precondição mais geral — a frustração; e, a
seguir, a fixação da libido que a força em determinadas direções; e terceiro, a tendência ao conflito, surgida do
desenvolvimento do ego, a qual rejeita esses impulsos libidinais. A situação, por conseguinte, parece não ser
tão difícil de compreender como provavelmente lhes parecia no transcorrer de minhas observações. É verdade,
porém, que verificaremos não haver ainda completado sua descrição. Existe algo novo a acrescentar e algo já
conhecido a ser mais detidamente examinado.A fim de demonstrarlhes
a influência que o desenvolvimento do
ego exerce sobre a formação dos conflitos e sobre a causação das neuroses, gostaria de apresentarlhes
um
exemplo — um exemplo que, verdade seja dita, é uma completa invenção, mas que não está, de modo algum,
isento de probabilidade. Descrevêloei
(com base no título de uma das farsas de Nestroy) como ‘No Subsolo e
no Primeiro Andar’. O zelador da casa mora no subsolo e seu patrão, um cavalheiro rico e respeitável, no
primeiro andar. Ambos têm filhos, e podemos supor que a filhinha do proprietário pode brincar, sem qualquer
supervisão, com a menina proletária. Muito facilmente poderia acontecer, então, que as brincadeiras das
crianças assumissem um caráter ‘arteiro’ — digamos, sexual —, e que brincassem de ‘papai e mamãe’, se
olhassem uma à outra no que têm de mais íntimo e uma excitasse os genitais da outra. A filha do zelador,
embora apenas com cinco ou seis anos de idade, teria tido oportunidade de observar um bocado de coisas a
respeito da sexualidade adulta, e nisso tudo ela bem que poderia desempenhar o papel da sedutora. Essas
experiências, conquanto não continuadas por longo período de tempo, seriam suficientes para pôr em atividade
determinados impulsos sexuais nas duas crianças; e depois que houvessem cessado as brincadeiras
conjuntas, esses impulsos, durante diversos anos subseqüentes, encontrariam expressão na masturbação. Isto
no que se refere às experiências em comum; o resultado final nas duas crianças será muito diferente. A filha do
zelador continuará a masturbarse,
talvez, até começarem seus períodos menstruais e, então, sem dificuldade,
abandonará a masturbação. Uns anos depois, encontrará um companheiro e, talvez, terá um filho. Assumirá
uma ou outra ocupação, possivelmente se torne uma figura popular no palco e termine como aristocrata. Sua
carreira não será, com bastante probabilidade, das mais brilhantes; no entanto, em todo caso, passará a vida
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
66
sem ter sido prejudicada por aqueles primeiros exercícios de sua sexualidade e ficará isenta de neurose. Com a
filhinha do proprietário as coisas serão diferentes. Numa fase inicial, e enquanto é ainda uma criança, terá uma
idéia de haver feito algo de errado; após curto período, talvez, porém apenas após uma luta intensa,
abandonará sua satisfação masturbatória; não obstante, terá em si certo sentimento de opressão.
Posteriormente, em sua meninice, quando estiver em condições de aprender algo da relação sexual humana,
se afastará desta com inexplicável aversão e preferirá manterse
na ignorância a respeito do assunto. E, agora,
provavelmente estará sujeita a nova emergência de uma pressão irresistível de se masturbar, da qual não
ousará queixarse.
Durante os anos em que deveria exercer uma atração feminina sobre algum homem,
irrompe nela um neurose que frustra o casamento e defrauda suas esperanças na vida. Se, após isso, uma
análise conseguir obter uma compreensão interna (insight) de sua neurose, se constatará que a moça bem
educada, inteligente, que aspirava a coisas elevadas, reprimiu completamente seus impulsos sexuais, mas que
estes, inconscientes para ela, ainda estão vinculados às experiências insignificantes tidas com sua amiga de
infância.
A diferença entre as vidas dessas duas pessoas, malgrado tenham tido a mesma experiência, reside no
fato de que o ego de uma delas sofreu um desenvolvimento que o da outra jamais atingiu. Para a filha do
zelador, a atividade sexual pareceu tão natural e inofensiva na vida posterior como o havia sido na infância. A
filha do senhorio submeteuse
à influência da educação e aceitou suas exigências. A partir das idéias que lhe
foram vinculadas, seu ego formou ideais de pureza feminina e abstinência incompatíveis com a atividade
sexual; sua educação intelectual reduziu seu interesse pelo papel feminino que estava destinada a
desempenhar. Devido à sua moral mais elevada e ao desenvolvimento intelectual de seu ego, ela entrou em
conflito com as exigências de sua sexualidade.
Hoje, determeei
um pouco em outro ponto do desenvolvimento do ego, em parte porque tenho em
vista alguns objetivos mais remotos, contudo, também porque o que se segue destinase
a precisamente
justificar a nítida separação entre os instintos do ego e os instintos sexuais, que reafirmamos, não sendo,
porém, evidente por si mesma. Ao estabelecer nosso critério das duas linhas de desenvolvimento — a do ego e
a da libido — devemos ressaltar uma consideração que até agora não foi levada em conta. Ambas são, no
fundo, heranças, recapitulações abreviadas do desenvolvimento pelo qual toda a humanidade passou, desde
épocas primitivas, por longos períodos de tempo. No caso do desenvolvimento da libido, essas origem
filogenética é, conforme ouso pensar, uma evidência imediata. Considerem como numa classe de animais o
aparelho genital põese
em íntima relação com a boca, ao passo que, em outra, não pode ser diferenciado do
aparelho excretor, e, ainda em outras, está vinculado aos órgãos motores — e tudo isso os senhores
encontrarão em atraente apresentação no valioso livro de W. Bölsche [191113].
Entre os animais, podese
encontrar, por assim dizer, em forma petrificada todos os tipos de perversão da organização sexual. No caso
dos seres humanos, entretanto, esse ponto de vista filogenético é parcialmente velado pelo fato de que aquilo
que, no fundo, é herdado, não obstante é de aquisição recente no desenvolvimento do indivíduo, provavelmente
porque as mesmas condições que impuseram sua aquisição persistem e continuam a operar em cada indivíduo.
Gostaria de acrescentar que, originalmente, a operação dessas condições era criativa; agora, contudo, é
evocativa. Ademais não há dúvida de que o curso estabelecido do desenvolvimento pode ser perturbado e
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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alterado em todo indivíduo, através de influências externas recentes. Mas conhecemos a força que impôs à
humanidade um desenvolvimento dessa ordem e mantém sua pressão na mesma direção nos dias atuais. Essa
força, é, mais uma vez, a frustração advinda da realidade, ou, se quisermos darlhe
o nome verdadeiro, o nome
de peso, as ‘exigências da vida’ — Necessidade (‘
e tem exigido muito de nós. Os neuróticos estão entre aqueles de seus filhos aos quais seu rigor causou maus
resultados; este, porém, é um risco que se corre em qualquer educação. Essa valorização da importância das
necessidades da vida, aliás, não necessita pesar contra a importância das ‘tendências internas de
desenvolvimento’, se se pode demonstrar que isto está presente.Ora, é digno de nota o fato de que os instintos
sexuais e os instintos de autopreservação não se comportam da mesma maneira para com a necessidade real.
Os instintos de autopreservação, e tudo o que com eles se relaciona, são muito mais fáceis de educar: cedo
aprendem a adaptarse
à necessidade e a moldar seus desenvolvimentos de acordo com as instruções da
realidade. Isto se compreende, pois eles não poderiam obter os objetos de que necessitam, se agissem de
alguma outra maneira; e sem esses objetos, o indivíduo inevitavelmente pereceria. Os instintos sexuais são
mais difíceis de educar, de vez que, no início, não precisam de objeto. Como estão ligados, à semelhança de
parasitas, por assim dizer, às outras funções corporais e conseguem sua satisfação autoeroticamente
no
próprio corpo da pessoa, eles estão, de início, retirados da influência educadora da necessidade real, e
conservam essa característica de serem rebeldes e inacessíveis à influência (isto descrevemos como sendo
‘irracional’) na maioria das pessoas, em certo sentido, por toda a vida. Ademais, via de regra, a educabilidade
de pessoas jovens chega ao fim quando suas necessidades sexuais surgem em toda a sua plenitude. Os
educadores sabem disso e agem de acordo; mas as descobertas da psicanálise talvez possam induzilos
a
deslocar a impacto principal da educação para os anos da meninice, partindo da infância propriamente dita. A
pequena criatura, freqüentemente, já esta completa ao redor do quarto ou quinto ano de vida, e, depois disso,
simplesmente revela o que já está dentro de si.
A fim de avaliar a plena significação da diferença que assinalei entre os dois grupos de instintos,
devemos retroceder por um longo caminho e introduzir uma dessas dimensões que merece ser descrita como
econômica [ver em [1], acima]. Isto nos leva a uma das mais importantes, mas, infelizmente, também uma das
mais obscuras regiões da psicanálise. Podemos nos perguntar se, no funcionamento de nosso aparelho mental,
pode ser evidenciado um propósito principal, e podemos responder, como proposição inicial, que esse propósito
se orienta pela obtenção de prazer. É como se a totalidade de nossa vida mental fosse dirigida para obter o
prazer e evitar o desprazer — que é automaticamente regulada pelo princípio de prazer. Gostaríamos de saber,
dentre todas as coisas, o que é que determina a geração do prazer e do desprazer; isto, contudo, ignoramos.
Podemos apenas arriscarnos
a dizer o seguinte: que o prazer está de alguma forma relacionado com a
diminuição, redução ou extinção das cargas de estímulos reinantes no aparelho mental e que, de maneira
semelhante, o desprazer está em conexão com o aumento dessas cargas. Um exame do prazer mais intenso
acessível aos seres humanos, o prazer de efetuar o ato sexual, deixa pouca dúvida quanto a esse ponto. De
vez que, em tais processos relativos ao prazer, a questão é saber o que acontece com as quantidades de
excitação ou energia mental, damos a essa nova dimensão o nome de econômica. Notarseá
que podemos
descrever as atribuições e realizações do aparelho mental de outra forma mais geral do que simplesmente
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
68
enfatizando a objeção de prazer. Podemos dizer que o aparelho mental serve ao propósito de dominar e
eliminar as cargas de estímulo e as somas de excitação que incidem sobre ele, provenientes de fora e de
dentro. É imediatamente óbvio que os instintos sexuais, do começo ao fim de seu desenvolvimento, atuam com
vistas à obtenção de prazer; eles mantêm inalterada sua função original. Os outros instintos, os instintos do
ego, têm, inicialmente, o mesmo objetivo. Sob a influência da instrutora Necessidade, porém, logo aprendem a
substituir à princípio de prazer por uma modificação do mesmo. Para eles, a tarefa de evitar desprazer vem a
ser tão importante como a de obter prazer. O ego descobre que lhe é inevitável renunciar à satisfação imediata,
adiar a obtenção de prazer, suportar um pequeno desprazer e abandonar inteiramente determinadas fontes de
prazer. Um ego educado dessa maneira tornouse
‘racional’; não se deixa mais governar pelo princípio de
prazer, mas obedece ao princípio de realidade que, no fundo, também busca obter prazer, mas prazer que se
assegura levando em conta a realidade, ainda que seja um prazer adiado ou diminuído.A transição do princípio
de prazer para o princípio de realidade é um dos mais importantes passos na direção do desenvolvimento do
ego. Já sabemos que é só tardia e relutantemente que os instintos sexuais se reúnem a essa parte do
desenvolvimento, e mais adiante ouviremos falar nas conseqüências, para os seres humanos, do fato de sua
sexualidade se contentar com laços tão frouxos com a realidade externa. E agora, para terminar, um último
comentário a respeito dessw assunto. Se o ego do homem tem seu próprio processo de desenvolvimento,
assim como a libido tem o seu, os senhores não se surpreenderão ao ouvir que também há ‘regressões do
ego’, e estarão desejosos de saber também qual o papel que pode ser desempenhado, nas doenças
neuróticas, por esse retorno do ego a fases anteriores de seu desenvolvimento.
CONFERÊNCIA XXIII
OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DOS SINTOMAS
SENHORAS E SENHORES:
Para os leigos, os sintomas constituem a essência de uma doença, e a cura consiste na remoção dos
sintomas. Os médicos atribuem importância à distinção entre sintomas e doença, e afirmam que eliminar os
sintomas não equivale a curar a doença. A única coisa tangível que resta da doença, depois de eliminados os
sintomas, é a capacidade de formar novos sintomas. Por esse motivo, no momento adotaremos a posição do
leigo e suporemos que decifrar os sintomas significa o mesmo que compreender a doença.
Os sintomas — e, naturalmente, agora estamos tratando de sintomas psíquicos (ou psicogênicos) e de
doença psíquica — são atos, prejudiciais, ou, pelo menos, inúteis à vida da pessoa, que por vez, deles se
queixa como sendo indesejados e causadores de desprazer ou sofrimento. O principal dano que causam reside
no dispêndio mental que acarretam, e no dispêndio adicional que se torna necessário para se lutar contra eles.
Onde existe extensa formação de sintomas, esses dois tipos de dispêndio podem resultar em extraordinário
empobrecimento da pessoa no que se refere à energia mental que lhe permanece disponível e, com isso, na
paralisação da pessoa para todas as tarefas importantes da vida. Como esse resultado depende principalmente
da quantidade da energia que assim é absorvida, os senhores verão facilmente que ‘ser doente’ é, em
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
69
essência, um conceito prático. Se, contudo, assumirem um ponto de vista teórico e não considerarem essa
questão de quantidade, os senhores podem muito bem dizer que todos nós somos doentes — isto é, neuróticos
—, pois as precondições da formação dos sintomas também podem ser observadas em pessoas normais.
Já sabemos que os sintomas neuróticos são resultado de um conflito, e que este surge em virtude de
um novo método de satisfazer a libido [ver em [1]]. As duas forças que entraram em luta encontramse
novamente no sintoma e se reconciliam, por assim dizer, através do acordo representado pelo sintoma formado.
É por essa razão, também, que o sintoma é tão resistente: é apoiado por ambas as partes em luta. Também
sabemos que um dos componentes do conflito é a libido insatisfeita, que foi repelida pela realidade e agora
deve procurar outras vias para satisfazerse.
Se a realidade se mantiver intransigente, ainda que a libido esteja
pronta a assumir um outro objeto em lugar daquele que lhe foi recusado, então a mesma libido, finalmente, será
compelida a tomar o caminho da regressão e a tentar encontrar satisfação, seja em uma das organizações que
já havia deixado para trás, seja em um dos objetos que havia anteriormente abandonado. A libido à induzida a
tomar o caminho da regressão pela fixação que deixou após si nesses pontos do seu desenvolvimento.O
caminho que leva à perversão se destaca nitidamente daquele que leva à neurose. Se essas regressões não
suscitam objeção por parte do ego, não surgirá neurose alguma; e a libido chegará a alguma satisfação real,
embora não mais uma satisfação normal. Entretanto, se o ego, que tem sob seu controle não só a consciência,
mas também o acesso à inervação motora e, por conseguinte, à realização dos desejos mentais, não concordar
com essas regressões, seguirseá
o conflito. A libido, por assim dizer, é interceptada e deve procurar escapar
em alguma direção na qual, de acordo com as exigências do princípio de prazer, possa encontrar uma
descarga para suas catexias de energia. Ela deve retirarse
do ego. Uma saída dessa espécie élhe
oferecida
pelas fixações situadas na trajetória do seu desenvolvimento, na qual agora entrou regressivamente — fixações
das quais o ego se havia protegido, no passado, por meio de repressões. Catexizando essas posições
reprimidas, à medida que se desloca para trás, a libido se retirou do ego e afastouse
de suas leis e, ao mesmo
tempo, renunciou a toda a educação que adquiriu sob influência do ego. Era dócil somente enquanto a
satisfação lhe acenava; mas, sob a dupla pressão da frustração externa e interna, tornase
refratária e relembra
épocas anteriores e melhores. Tal é o caráter fundamentalmente imutável da libido. As idéias, às quais agora
transfere sua energia em forma de catexia, pertencem ao sistema do inconsciente e estão sujeitas aos
processos que ali são possíveis, sobretudo condensação e deslocamento. Estabeleceuse,
assim, condições
que se assemelham totalmente àquelas existentes na construção onírica. O sonho propriamente dito, que foi
completado no inconsciente e que é a realização de uma fantasia inconsciente constituída de um desejo,
enfrenta uma parcela de atividade (pré)
consciente que exerce o papel de censura e que, quando foi
preservada, permite a formação do sonho manifesto em forma de um acordo. Do mesmo modo, aquilo que
representa a libido no inconsciente tem de contar com a força do ego préconsciente.
A oposição formada
contra ela no ego perseguea
como se fora uma ‘anticatexia’e compelea
a escolher uma forma de expressão
da própria oposição. Assim, o sintoma emerge como um derivado múltiplasvezesdistorcido
da realização de
desejo libinal inconsciente, uma peça de ambigüidade engenhosamente escolhida, com dois significados em
completa contradição mútua. Quando a esse último aspecto, porém, há uma distinção entre a construção de um
sonho e a de um sintoma. Isso porque, na formação onírica, o propósito préconsciente
visa simplesmente a
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
70
preservar o sono, não permitir que algo que venha a perturbálo
possa irromper na consciência; não insiste em
bradar claramente: ‘Não, pelo contrário!’ ao impulso inconsciente pleno de desejos. Consegue ser mais
tolerante porque a situação de alguém que dorme é menos perigosa. O estado de sono, por si mesmo, impede
qualquer saída em direção à realidade.
Os senhores percebem, então, que o escape da libido, em condições de conflito, se torna possível pela
presença de fixações. A catexia regressiva dessas fixações consegue contornar a repressão e leva à descarga
(ou satisfação) da libido, sujeita às condições de um acordo a serem observadas. Pelo caminho indireto, via
inconsciente e antigas fixações, a libido finalmente consegue achar sua saída até uma satisfação real —
embora seja uma satisfação extremamente restrita e que mal se reconhece como tal. Permitamme
acrescentar
dois comentários a essa conclusão. Primeiro, gostaria que os senhores percebessem como aqui se mostram
estreitamente interligados a libido e o inconsciente, de um lado, e, de outro lado, o ego, a consciência e a
realidade, embora, de início, eles não sejam da mesma espécie, absolutamente. E, segundo, devo solicitarlhes
que tenham em mente que tudo quando eu disse a esse respeito e acerca do que vem a seguir, referese
apenas à formação dos sintomas na neurose de histeria.
Onde, pois, encontra a libido as fixações necessárias para romper as repressões? Nas atividades e
experiências da sexualidade infantil, nas tendências parciais abandonadas, nos objetos da infância que foram
abandonados. É a estes, por conseguinte, que a libido retorna. A significação desse período da infância é
dupla: por um lago, durante esse período, pela primeira vez se tornam manifestas as tendências instintuais que
a criança herdou com sua disposição inata; e, em segundo lugar, outros instintos seu são, pela primeira vez,
despertados e postos em atividade pelas impressões externas e experiências casuais. Penso não haver dúvida
de que existe justificativa para estabelecermos essa dúplice divisão. A manifestação das disposições inatas
realmente não está sujeita a objeções críticas, mas a experiência analítica de fato nos leva a supor que
experiências puramente casuais, na infância, são capazes de deixar atrás de si fixações da libido. E nisto não
vejo nenhuma dificuldade teórica. As disposições da constituição também são indubitavelmente efeitos
secundários de experiências vividas pelos ancestrais no passado; também elas, em alguma ocasião, foram
adquiridas. Sem essa aquisição, não haveria hereditariedade. E é concebível que uma aquisição dessa
espécie, que conduz à herança, chegaria ao fim justamente na geração que estamos considerando? A
importância das experiências infantis não deve ser totalmente negligenciada, como as pessoas preferem, em
comparação com as experiências dos ancestrais da pessoa e com sua própria maturidade; pelo contrário, as
experiências infantis exigem uma consideração especial. Elas determinam as mais importantes conseqüências,
porque ocorrem numa época de desenvolvimento incompleto e, por essa mesma razão, são capazes de ter
efeitos traumáticos. Os estudos sobre os mecanismos do desenvolvimento, feitos por Roux e outros, têm
mostrado que a picada de uma agulha em uma camada geminal de um embrião no ato da divisão celular
resulta em grave distúrbio do desenvolvimento. A mesma lesão infligida a um animal larvar ou inteiramente
desenvolvido não causaria dano.A fixação da libido de um adulto, que introduzimos na equação etiológica da
neurose como representando o fator constitucional [ver em [1] e [2]], agora se desdobra, para nosso propósitos,
em mais dois componentes: a constituição herdade e a disposição adquirida no início da infância. Como todos
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
71
sabemos, um diagrama tem certamente uma acolhida simpática junto aos estudantes. Por isso, vou resumir a
situação com um diagrama:
A constituição sexual hereditária apresentanos
uma grande variedade de disposições, conforme seja
herdado, com particular intensidade, um ou outro dos instintos parciais, sozinho ou em combinação com os
outros. A constituição sexual forma, portanto, junto com o fator da experiência infantil, uma ‘série complementar’
exatamente semelhante àquela que já sabemos existir entre disposição e experiência casual do adulto [ver em
[1]]. Em ambas as séries complementares encontramos os mesmos casos extremos e as mesmas relações
entre os dois fatores considerados. E aqui levantase
a questão de saber se os mais marcantes tipos de
regressões libidinais — os que se fazem aos primeiros estádios da organização sexual — não poderiam ser
predominantemente determinados pelo fator constitucional hereditário. Contudo, é melhor adiar a resposta a
essa questão, até havermos sido capazes de apreciar uma série mais ampla de formas de doença neurótica.
Consideramos agora, detidamente, o fato de a investigação analítica mostrar que a libido dos
neuróticos está ligada às suas experiências sexuais infantis. Assim, ela confere a essas experiências uma
dimensão de grande importância para a vida e a doença dos seres humanos. Elas mantêm, sem qualquer
redução, essa importância, no que concerne ao trabalho terapêutico. Se, todavia, nos abstrairmos dessa tarefa,
podemos, assim mesmo, ver facilmente que existe nesse ponto o perigo de um equívoco que poderia levarnos
a basear nossa visão da vida, com demasiada unilateralidade, na situação neurótica. Devemos, afinal, deduzir
da importância das experiências infantis o fato de que a libido a elas retornou regressivamente, após haver sido
expulsa de suas posições posteriores. Nesse caso, tornase
muito tentadora a conclusão inversa — a de que
essas experiências libidinais não tiveram absolutamente nenhuma importância na época em que ocorreram, e
apenas regressivamente a adquiriram. Os senhores se recordarão de que já consideramos uma alternativa
similar em nossa discussão sobre o complexo de Édipo [ver em [1] e [2]].Outrossim, não acharemos difícil
chegar a uma decisão. A assertiva de que a catexia libidinal (e, portanto, a significação patogênica) das
experiências infantis intensificouse
grandemente pela regressão da libido, é indubitavelmente correta, porém
induziria a erro se fôssemos considerála,
isoladamente, decisiva. Devese
permitir também a apreciação de
outras considerações.
Em primeiro lugar, a observação mostra, de uma forma que exclui qualquer dúvida, que as experiências
infantis possuem uma importância toda peculiar, e disto elas dão provas já na infância. Também as crianças
têm suas neuroses, nas quais o fator do deslocamento para trás, no tempo, é necessariamente muitíssimo
reduzido ou até mesmo está completamente ausente, pois nelas o início da doença advém imediatamente após
as experiências traumáticas. O estudo dessas neuroses infantis protegenos
de mais um equívoco perigoso
relativo às neuroses de adultos, na mesma medida em que os sonhos de crianças nos deram a chave da
compreensão dos sonhos de adultos. As neuroses de crianças são muito comuns, muito mais comuns do que
se supõe. Muitas vezes, elas deixam de ser notadas, são consideradas sinais de uma criança má ou arteira,
muitas vezes, também, são mantidas em estado de sujeição pelas autoridades responsáveis pelas crianças;
porém, sempre podem ser reconhecidas, retrospectivamente, com facilidade. Em geral, surgem sob a forma de
histeria de angústia. Em ocasião subseqüente, saberemos o que isto significa [ver em [1], adiante]. Se uma
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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neurose emerge posteriormente na vida, a análise revela, regularmente, que ela é continuação direta da doença
infantil, que pode ter aparecido como sendo apenas um indício velado. Entretanto, conforme eu disse, há casos
em que esses sinais de neurose na infância continuam ininterruptamente numa doença que dura toda a vida.
Pudemos analisar alguns exemplos dessas neuroses infantis na própria infância — quando estavam realmente
presentes; muito mais amiúde tivemos, porém, de contentarnos
com o caso de alguém que adoeceu na vida
adulta, possibilitandonos
obter uma compreensão diferida de sua neurose da infância. Em tais casos, não
devemos deixar de fazer algumas correções e de tomar determinadas precauções.Em segundo lugar, devemos
pensar que seria inconcebível a libido regredir de forma tão regular ao período da infância, a menos que haja ali
algo que exerça sobre ela uma atração. A fixação, que supusemos estar presente em determinados pontos do
curso do desenvolvimento, só tem significado se considerarmos que ela consiste na retenção de determinada
quantidade de energia libidinal. E, finalmente, posso assinalarlhes
que, entre a intensidade e importância
patogênica das experiências infantis e das experiências posteriores, existe uma relação complementar
semelhante à série de que já tratamos. Existem casos em que todo o peso da causação recai nas experiências
sexuais da infância, casos em que essas impressões exercem um efeito definidamente traumático e não exigem
nenhum outro apoio, nessa ação patogênica, além do que lhes pode proporcionar uma constituição sexual
médica e a circunstância de seu desenvolvimento incompleto. Paralelamente a esses casos, existem outros nos
quais todo o acento recai nos conflitos posteriores; e verificamos, na análise, que a ênfase dada às impressões
da infância aparece como sendo inteiramente obra da regressão. Assim, temos extremos de ‘inibição de
desenvolvimento’ e de ‘regressão’, e, entre estes, todos os graus de combinação entre os dois fatores.Esses
fatos têm algum interesse do ponto de vista da educação, que planeja a prevenção das neuroses intervindo
num estádio inicial do desenvolvimento sexual das crianças. Contanto que se dirija a atenção principalmente
para as experiências sexuais infantis, devese
supor que se tem feito tudo pela profilaxia das doenças nervosas
mediante o cuidado de se adiar o desenvolvimento da criança e de esta ser poupada de experiências de tal
espécie. Entretanto, já sabemos que as precondições para a causação das neuroses são complexas e não
podem ser influenciadas em seu todo, se tomarmos em consideração apenas um dos fatores. Uma proteção
estrita da criança carece de validade por ser impotente contra o fator constitucional. Ademais, efetuar essa
proteção é mais difícil do que a imaginam os educadores, e encerra dois novos perigos que não devem ser
subestimados: o fato de ela pode ir fundo demais — de encorajar um excesso de repressão sexual com
resultados prejudiciais — e o fato de ela poder enviar a criança ao encontro da vida sem qualquer defesa contra
a avalanche de exigências sexuais que são de se esperar na puberdade. Assim, continua sendo extremamente
duvidoso saber até onde a profilaxia na infância possa ser executada com vantagens, e se uma modificação de
atitudes para com a situação imediata não poderia oferecer um melhor ângulo de abordagem à prevenção das
neuroses.Retornemos agora aos sintomas. Estes criam, portanto, um substituto das satisfação frustrada,
realizando uma regressão da libido a épocas de desenvolvimento anteriores, regressão a que necessariamente
se vincula um retorno a estádios anteriores de escolha objetal ou de organização. Descobrimos, há algum
tempo, que os neuróticos estão ancorados em algum ponto do seu passado; agora sabemos que esse ponto é
um período do seu passado, no qual sua libido não se privava de satisfação, no qual eram felizes. Buscam na
história de sua vida, até encontrarem um período dessa ordem, ainda que tenham de retroceder tanto, que
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atinjam a época em que eram bebês de colo — tal como dela se lembram ou a imaginam, a partir de indícios
posteriores. De algum modo, o sintoma repete essa forma infantil de satisfação, deformada pela censura que
surge no conflito, via de regra transformada em uma sensação de sofrimento e mesclada com elementos
provenientes da causa precipitante da doença. O tipo de satisfação que o sintoma consegue, tem em si muitos
aspectos estranhos ao sintoma.Podemos desprezar o fato de que o sintoma se constitui em algo irreconhecível
para o indivíduo que, pelo contrário, sente a suposta satisfação como sofrimento e se queixa deste. Essa
transformação é uma função do conflito psíquico sob pressão, do qual o sintoma veio a se formar. Aquilo que
para o indivíduo, em determinada época, constituía uma satisfação, na realidade passa, hoje, necessariamente
a originar resistência e repugnância. Conhecemos bem um modelo banal, porém instrutivo, de uma tal mudança
de atitude. A mesma criança que em determinada época sugava com avidez o seio materno, alguns anos
depois, provavelmente, mostrará uma intensa aversão a tomar leite, o que causa dificuldade na sua criação. A
aversão aumenta até à repugnância, no caso de se formar uma película sobre o leite ou sobre a mistura que
contenha leite. Talvez não possamos excluir a possibilidade de a película reviver a lembrança do seio materno,
outrora tão ardentemente desejado. Entretanto, entre as duas situações colocase
a experiência do desmame,
com seus efeitos traumáticos.Existe algo mais, além disso, que faz com que os sintomas nos pareçam
estranhos e incomprensíveis como meio de satisfação libidinal. Eles não se parecem absolutamente com nada
de que tenhamos o hábito de normalmente auferir satisfação. Em geral, eles desprezam os objetos e, com isso,
abandonam sua relação com a realidade externa. Podemos verificar que esta é uma conseqüência de se haver
rejeitado o princípio de realidade e se haver retornado ao princípio de prazer. Também é, contudo, um retorno a
um tipo de autoerotismo difuso, do tipo que proporcionava o instinto sexual nas primeiras satisfações. Em lugar
de uma modificação no mundo externo, essas satisfações substituemna
por uma modificação no próprio corpo
do indivíduo: estabelecem um ato interno em lugar de um externo, uma adaptação em lugar de uma ação —
uma vez mais, algo que corresponde, filogeneticamente, a uma regressão altamente significativa. Isto somente
compreenderemos em conexão com algo novo que ainda teremos de aprender das pesquisas analíticas da
formação dos sintomas. Ademais, devemos lembrar que os mesmos processos pertencentes ao inconsciente
têm seu desempenho na formação dos sintomas, tal qual o fazem na formação dos sonhos — ou seja,
condensação e deslocamento. Um sintoma, tal qual um sonho, representa algo como já tendo sido satisfeito:
uma satisfação à maneira infantil. Mediante uma condensação extrema, porém, essa satisfação pode ser
comprimida em uma só sensação ou inervação, e, por meio de um deslocamento extremo, ela pode se restringir
a apenas um pequeno detalhe de todo o complexo libidinal. Não é de causar surpresa se também nós, muitas
vezes, temos dificuldade em reconhecer num sintoma a satisfação libidinal, de cuja presença suspeitamos e
que invariavelmente se confirma.Eu os avisei de que ainda tínhamos algo novo para aprender; tratase
realmente de algo surpreendente e desconcertante. Por meio da análise, conforme sabem, partindo dos
sintomas chegamos ao conhecimento das experiências infantis, às quais a libido está fixada e das quais se
formam os sintomas. Pois bem, a surpresa reside em que essas cenas da infância nem sempre são
verdadeiras. Com efeito, não são verdadeiras na maioria dos casos, e, em alguns, são o posto direto da
verdade histórica. Conforme os senhores verão, essa descoberta está fadada, mais que qualquer outra, a
desacreditar tanto a análise, que chegou a tal resultado, como os pacientes, em cujas declarações se
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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fundamentam a análise e todo o nosso entendimento das neuroses. Existe, contudo, mais alguma coisa
singularmente desconcertante em tudo isso. Se as experiências infantis trazidas à luz pela análise fossem
invariavelmente reais, deveríamos sentir estarmos pisando em chão firme; se fossem regularmente falsificadas
e mostrassem não passar de invenções de fantasias do paciente, seríamos obrigados a abandonar esse
terreno movediço e procurar salvação noutra parte. Mas, aqui, não se trata nem de uma nem de outra coisa:
podese
mostrar que se está diante de uma situação em que as experiências da infância construídas ou
recordadas na análise são, às vezes, indiscutivelmente falsas e, às vezes, por igual, certamente corretas, e na
maior parte do casos são situações compostas de verdade e de falsificação. Às vezes, portanto, os sintomas
representam eventos que realmente ocorreram, e aos quais podemos atribuir uma influência na fixação da
libido, e, por vezes, representam fantasias do paciente, não talhadas para desempenhar um papel etiológico. É
difícil achar uma saída nesses casos. Talvez possamos iniciar por uma descoberta semelhante — ou seja, a de
que lembranças infantis isoladas, que as pessoas têm possuído conscientemente desde os tempos imemoriais
e antes que houvesse qualquer coisa semelhante à análise [ver em [1], acima], podem igualmente ser
falsificadas, ou, pelo menos, podem combinar verdade e adulteração, em abundância. No caso destas,
raramente existe qualquer dificuldade em demonstrar sua inexatidão; assim, ao menos temos a garantia de
saber que a responsabilidade por esse inesperado desapontamento não está na análise, e sim, de algum modo,
nos pacientes.Após alguma reflexão facilmente poderemos entender o que é que existe nessa situação que
tanto nos confunde. É o reduzido valor concedido à realidade, é a desatenção à diferença entre realidade e
fantasia. Somos tentados a nos sentir ofendidos com o fato de o paciente haver tomado nosso tempo com
histórias inventadas. A realidade parecenos
ser algo como um mundo separado da invenção, e lhes atribuímos
um valor muito diferente. Ademais, também o paciente enxerga as coisas por esse prisma, em seu pensar
normal. Quando apresenta o material que conduz desde os sintomas às situações de desejo modeladas em
suas experiências infantis, ficamos em dúvida, no início, se estamos lidando com a realidade ou com fantasias.
Posteriormente, determinadas indicações nos possibilitam chegar a uma conclusão, e nos defrontamos com a
tarefa de transmitila
ao paciente. Isto, porém, invariavelmente causa dificuldades. Se começarmos por dizerlhe
diretamente que agora está disposto a trazer à luz as fantasias com as quais deturpou a história de sua infância
(assim como toda nação adultera sua préhistória
esquecida, construindo lendas), podemos observar que o
interesse do paciente em continuar a desenvolver o assunto subitamente diminui de uma forma indesejável.
Ele, também, quer experimentar as situações reais e desdenha tudo aquilo que é simplesmente ‘imaginário’.
Todavia, se até a conclusão dessa parte do trabalho o deixarmos na crença de que estamos ocupados em
investigar os eventos reais de sua infância, corremos a risco de, posteriormente, ele acusarnos
de estarmos
equivocados e de rirse
de nós, por nossa aparente credulidade. Levará um bom tempo até pode assimilar a
nossa proposição de que podemos igualar fantasia e realidade; e não nos importaremos, em princípio, com qual
seja esta ou aquela das experiências da infância que estão sendo examinadas. Ademais, esta é,
evidentemente, a única atitude correta a adotar para com esses produtos mentais. Também eles possuem
determinada realidade. Subsiste o fato de que o paciente criou essas fantasias por si mesmo, e essa
circunstância dificilmente terá, para a sua neurose, importância menor do que teria se tivesse realmente
experimentado o que contêm suas fantasias. As fantasias possuem realidade psíquica, em contraste com a
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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realidade material,, e gradualmente aprendemos a entender que, no mundo das neuroses, a realidade psíquica
é a realidade decisiva. Entre as ocorrências que aparecem repetidamente na história dos anos iniciais da vida
dos neuróticos — recordações que raramente estão ausentes — existem algumas de especial importância, as
quais, por esta razão, penso, merecem maior relevo que o restante. Como exemplos dessa categoria, enumero
as seguintes: observação do coito dos pais, sedução por um adulto e ameaça de ser castrado. Seria um erro
supor que essas recordações nunca se caracterizam pela realidade material; ao contrário, amiúde está é
comprovada de modo inconteste por meio de indagação junto a membros mais velhos da família do paciente.
Por exemplo, não é nada raro que um menininho que começa a brincar de modo arteiro com seu pênis e ainda
não tem noção de que se deve esconder tal atividade, seja ameaçado, por um dos pais ou pela babá, de lhe
serem cortados o pênis ou a mão pecaminosa. Os pais, quando lhes perguntam a esse respeito, admitem
haverse
passado esse fato, pois pensam haver realizado algo de útil ao fazerem tal ameaça; numerosas
pessoas têm uma memória consciente correta de tal ameaça, sobretudo se foi feita em período um tanto
posterior. Quando a ameaça parte da mãe, ou de alguma outra pessoa do sexo feminino, esta geralmente diz
que sua execução ficará a cargo do pai — ou do médico. Em Struwwelpeter, a famosa obra de Hoffamann,
pediatra de Frankfurt, (a qual deve sua popularidade justamente à compreensão dos complexos sexuais e de
outros complexos da infância), os senhores verão a castração atenuada em amputação dos polegares, como
castigo pela obstinação em sugálos.
É altamente improvável, porém, que as crianças sejam ameaçadas com
castração com tanta freqüência como aparece na análise de neuróticos. Énos
suficiente perceber que a
criança, em sua imaginação, capta uma ameaça desse tipo, com base em indícios e com a ajuda de um vago
conhecimento de que a satisfação autoerótica
lhe é proibida, e sob a impressão de sua descoberta dos
genitais femininos. [ver em [1], acima.] Não apenas em famílias proletárias é perfeitamente possível que uma
criança, enquanto ainda não se julga possuir compreensão ou memória, seja testemunha do ato sexual dos
pais ou de outras pessoas adultas; e não se pode rejeitar a possibilidade de que a criança será capaz de
entender e reagir a essa impressão retrospectivamente. Se, entretanto, o coito é descrito em seus mínimos
detalhes, os quais seriam difíceis de observar, ou como sucede muito amiúde, se se revela como sendo um
coito por trás, more ferarum [à maneira dos animais], não pode subsistir qualquer dúvida de que a fantasia se
baseia numa observação do coito de animais (como o de cães) e que o motivo foi a escopofilia insatisfeita da
criança, durante a puberdade. O máximo de realização nesses assuntos é uma fantasia de observar o coito dos
pais quando a pessoa ainda era criança não nascida, no útero. As fantasias de ser seduzido encerram interesse
especial, de vez que muito freqüentemente não são fantasias, mas recordações reais. Felizmente, apesar de
tudo elas não são reais, como pareceu tantas vezes, no início, ser demonstrado pelas descobertas da análise.
A sedução por uma criança de mais idade ou por alguém da mesma idade é ainda mais freqüente do que por
um adulto; e, no caso de meninas, que relatam um evento dessa ordem na sua infância, no qual o pai figura
com muita regularidade como o sedutor, não pode haver dúvida alguma quanto à natureza imaginária da
acusação, nem quanto ao motivo que levou a formulála.
Uma fantasia de ser seduzido, quando não ocorreu
sedução nenhuma, geralmente é utilizada por uma criança para encobrir o período autoerótico
de sua atividade
sexual. Fantasiando retrospectivamente dentro dessas épocas mais primitivas um objeto desejado, a criança se
poupa da vergonha de se haver masturbado. No entanto, os senhores não devem supor que o abuso sexual de
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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uma criança por algum dos parentes masculinos mais próximos pertença inteiramente ao reino da fantasia. A
maioria dos analistas terá tratados casos nos quais esses eventos foram reais e poderiam ser constatados
inquestionavelmente; o mesmo em tais casos, contudo, esses fatos se referiam a anos posteriores da infância e
tinham sido transpostos para épocas mais precoces.A única impressão que nos fica é esses eventos da
infância serem de certo modo exigidos como uma necessidade, incluíremse
entre os elementos essenciais de
uma neurose. Se ocorreram na realidade, não há o que acrescentar; mas, se não encontram apoio na
realidade, são agregados a partir de determinados indícios e suplementados pela fantasia. O resultado é o
mesmo, e, até o presente, não conseguimos assinalar, por qualquer diferença nas conseqüências, se foi a
fantasia ou a realidade aquela que teve a participação maior nesses eventos da infância. Aqui, de novo temos
simplesmente uma das relações complementares que mencionei tantas vezes; ela, principalmente, é a mais
estranha de todas que já encontramos. De onde procede a necessidade dessas fantasias, e o material para
elas? Não pode haver dúvida de que suas fontes situamse
nos instintos; contudo, está ainda por ser explicado
por que sempre são geradas as mesmas fantasias com o mesmo conteúdo. Tenho pronta uma resposta, a qual
sei que lhes parecerá audaciosa. Acredito que essas fantasias primitivas, como prefiro denominálas,
e, sem
dúvida, também algumas outras, constituem um acervo filogenético. Nelas, o indivíduo se contacta, além de sua
própria experiência, com a experiência primeva naqueles pontos nos quais sua própria experiência foi
demasiado rudimentar. Pareceme
bem possível que todas as coisas que nos são relatadas hoje em dia, na
análise, como fantasia — sedução de crianças, surgimento da excitação sexual por observar o coito dos pais,
ameaça de castração (ou, então, a própria castração) — foram, em determinada época, ocorrências reais dos
tempos primitivos da família humana, e que as crianças, em suas fantasias, simplesmente preenchem os claros
da verdade individual com a verdade préhistórica.
Repetidamente tenho sido levado a suspeitar que a
psicologia das neuroses tem acumuladas em si mais antiguidades da evolução humana do que qualquer outra
fonte.As coisas que acabei de descrever, senhores, compelemme
a examinar mais de perto a origem e a
significação da atividade mental que se classifica como ‘fantasia’ [ou ‘imaginação’]. Conforme os senhores
sabem, ela desfruta de uma reputação universalmente elevada, sem que sua posição na vida mental tenha sido
esclarecida. A seu respeito tenho observações a fazer. O ego humano, como sabem, é, pela pressão da
necessidade externa, educado lentamente no sentido de avaliar a realidade e de obedecer ao princípio de
realidade; no decorrer desse processo, é obrigado a renunciar, temporária ou permanentemente, a uma
variedade de objetos e de fins aos quais está voltada sua busca de prazer, e não apenas de prazer sexual. Os
homens, contudo, sempre acharam difícil renunciar ao prazer; não podem deixarse
levar a fazêlo
sem alguma
forma de compensação. Por isso, retiveram uma atividade mental na qual todas aquelas fontes de prazer e
aqueles métodos de conseguir prazer, que haviam sido abandonados, têm assegurada sua sobrevivência —
uma forma de existência na qual se livram das exigências da realidade e aquilo que chamamos ‘teste de
realidade’. Todo desejo tende, dentro de pouco tempo, a afigurarse
em sua própria realização; não há dúvida
de que ficar devaneando sobre imaginárias realizações de desejos traz satisfação, embora não interfira com o
conhecimento de que se trata de algo nãoreal.
Desse modo, na atividade da fantasia, os seres humanos
continuam a gozar da sensação de serem livres da compulsão externa, à qual há muito tempo renunciaram, na
realidade. Idearam uma forma de alternar entre permanecer um animal que busca o prazer, e ser, igualmente,
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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uma criatura dotada de razão. Na verdade, os homens não podem subsistir com a escassa satisfação que
podem obter da realidade. ‘Simplesmente não podemos passar sem construções auxiliares’, conforme disse,
certa vez, Theodor Fontane. A criação do reino mental da fantasia encontra um paralelo perfeito no
estabelecimento das ‘reservas’ ou ‘reservas naturais’, em locais onde os requisitos apresentados pela
agricultura, pelas comunicações e pela indústria ameaçam acarretar modificações do aspecto original da terra
que em breve o tornarão irreconhecível. Uma reserva natural preserva seu estado original que, em todos os
demais lugares, para desgosto nosso, foi sacrificado à necessidade. Nesses locais reservados, tudo, inclusive o
que é inútil e até mesmo nocivo, pode crescer e proliferar como lhe apraz. O reino mental da fantasia é
exatamente uma reserva desse tipo, apartada do princípio de realidade.As mais conhecidas produções da
fantasia são os chamados ‘devaneios’, que já examinamos [ver em [1]], satisfações imaginárias de desejos
ambiciosos, megalomaníacos, eróticos, que florescem com tanto mais exuberância, quanto mais a realidade
aconselha modéstia e contenção. A essência da felicidade da fantasia — tornar a obtenção de prazer, mais
uma vez, livre da aprovação da realidade — mostrase
inequivocamente nesses desejos. Sabemos que tais
devaneios são o núcleo e o protótipo dos sonhos noturnos. Um sonho noturno é, no fundo, nada mais do que
um devaneio que se tornou aproveitável devido à liberação dos impulsos instintuais à noite, e devido ao fato de
haver sido distorcido pela forma que assume a atividade mental à noite. Já nos familiarizamos com a idéia de
que mesmo um devaneio não é necessariamente consciente — de que há também devaneios inconscientes
[ver em [1]]. Tais devaneios inconscientes são, assim, a fonte não apenas dos sonhos noturnos, mas também
dos sintomas neuróticos.A importância do papel que desempenha a fantasia na formação dos sintomas tornarseá
evidente para os senhores através disso que tenho a dizerlhes.
Expliquei [ver em [1]] como, em caso de
frustração, a libido reveste de catexias, regressivamente, as posições que abandonou, às quais, porém,
permaneceram aderentes determinadas parcelas da mesma libido. O que já expliquei, não retiro nem corrijo;
porém, devo inserir, aqui, um elo de ligação. Como encontra a libido o caminho para chegar a esses pontos de
fixação? Todos os objetos e tendências que a libido abandonou, ainda não foram abandonados em todos os
sentidos. Tais objetos e tendências, ou seus derivados, ainda são mantidos, com alguma intensidade, nas
fantasias. Assim, a libido necessita apenas retirarse
para as fantasias, a fim de encontrar aberto o caminho que
conduz a todas as fixações reprimidas. Essas fantasias gozaram de determinado grau de tolerância: não
entraram em conflito com o ego, por mais fortes que possam ter sido os contrastes entre ele, desde que seja
observada uma certa condição. Essa condição é de natureza quantitativa e é agora perturbada pelo
deslocamento da libido para trás, em direção às fantasias. Em conseqüência desse acréscimo, a catexia de
energia das fantasias é de tal modo aumentada, que elas começam a estabelecer exigências e desenvolvem
uma pressão no sentido de se tornarem realizadas. Mas isto torna inevitável um conflito entre elas e o ego.
Tendo sido anteriormente préconscientes
ou inconscientes, agora estão sujeitas à repressão por parte do ego
e ficam à mercê da atração por parte do inconsciente. Partindo daquilo que, agora, são fantasias inconscientes,
a libido movimentase
para trás, até às origens dessas fantasias no inconsciente — aos seus próprios pontos
de fixação.A retração da libido para a fantasia é um estádio intermediário no caminho da formação dos
sintomas e parece que ela requer um nome especial. C.G. Jung introduziu o nome apropriado de ‘introversão’;
mas depois, muito desacertadamente, deulhe
também um outro significado. Continuaremos a considerar que a
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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introversão denota o desvio da libido das possibilidades de satisfação real e a hipercatexia das fantasias que
até então foram toleradas como inocentes. Um introvertido não é bem um neurótico, porém se encontra em
situação instável: seguramente desenvolverá sintomas na próxima modificação da relação de força, a menos
que encontre algumas outras saídas para sua libido represada. O caráter irreal da satisfação neurótica e a
desatenção à diferença entre fantasia e realidade já são, por outro lado, determinados pelo fato de ter havido
uma demora no estádio de introversão.Sem dúvida, terão observado que, nessas últimas explanações, introduzi
um fator novo na estrutura da série etiológica — ou seja, a quantidade, a magnitude das energias em questão.
Ainda temos de levar em conta esse fator em tudo o mais. Não basta uma análise puramente qualitativa dos
determinantes etiológicos. Ou, expressandoo
de outra maneira, é insuficiente uma visão simplesmente
dinâmica desses processos mentais; requerse
também uma linha de abordagem econômica. Devemos dizer
para nós mesmos que o conflito entre duas tendências não irrompe senão quando foram atingidas
determinadas intensidades de catexias, ainda que por muito tempo tenham estado presentes os fatores
determinantes do conflito e referentes ao seu próprio tema. Da mesma forma, a significação patogênica dos
fatores constitucionais deve ser avaliada em relação ao quanto mais de um instinto parcial, do que de outro,
está presente na disposição herdada. Podese
mesmo supor que a disposição de todos os seres humanos é
qualitativamente semelhante e apenas difere em virtude dessas condições quantitativas. O fator quantitativo
não é menos decisivo no que respeita à capacidade de resistência à doença neurótica. É uma questão de saber
que quota de libido nãoutilizada
uma pessoa é capaz de manter em suspensão, e uma questão do tamanho da
fração de libido que a pessoa é capaz de desviar dos fins sexuais para os fins sublimados. O objetivo
fundamental da atividade mental, que pode ser descrito qualitativamente como um esforço para obter prazer e
evitar desprazer quando examinado do ponto de vista econômico, surge como tarefa que consiste em dominar
as quantidades de excitação (massa de estímulos) que atuam no aparelho mental e em conter sua acumulação,
capaz de gerar desprazer.Era isto, pois, o que eu desejava dizerlhes
acerca da formação dos sintomas nas
neuroses. Não posso, contudo, deixar de mais uma vez acentuar expressamente o fato de que tudo aquilo que
disse, aqui, aplicase
apenas à formação dos sintomas na histeria. Na própria neurose obsessiva existe muita
coisa diferente — excetuando aspectos fundamentais que permanecem inalterados — que será encontrada. As
anticatexias que se opõem às exigências dos instintos (que também já abordamos, no caso da histeria [ver em
[1]]) tornamse
proeminentes na neurose obsessiva e dominam o quadro clínico, assumindo a forma daquilo
que se conhece como ‘formações reativas’. Nas demais neuroses descobrimos divergências semelhantes e de
maior profundidade ainda, e nelas nossas investigações dos mecanismos de formação dos sintomas ainda não
estão concluídas em ponto algum.Antes de deixálos
ir, gostaria, contudo, de chamarlhes
um pouco mais a
atenção para um aspecto da vida de fantasia que merece o mais amplo interesse. Isto porque existe um
caminho que conduz da fantasia de volta à realidade — isto é, o caminho da arte. Um artista é, certamente, em
princípio um introvertido, uma pessoa não muito distante da neurose. É uma pessoa oprimida por necessidades
instintuais demasiado intensas. Deseja conquistar honras, poder, riqueza, fama e o amor das mulheres; mas
faltamlhe
os meios de conquistar essas satisfações. Conseqüentemente, assim como qualquer outro homem
insatisfeito, afastase
da realidade e transfere todo o seu interesse, e também toda a sua libido, para as
construções, plenas de desejos, de sua vida de fantasia, de onde o caminho pode levar à neurose. Sem dúvida,
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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deve haver uma convergência de todos os tipos de coisas, para que tal não se torne o resultado completo de
sua evolução; na verdade, sabese
muito bem com quanta freqüência os artistas, em especial, sofrem de uma
inibição parcial de sua eficiência devido à neurose. Sua constituição provavelmente conta com uma intensa
capacidade de sublimação e com determinado grau de frouxidão nas repressões, o que é decisivo para um
conflito. Um artista encontra, porém, o caminho de retorno à realidade da maneira expressa a seguir. A dizer a
verdade, ele não é o único que leva uma vida de fantasia. O acesso à região eqüidistante da fantasia e da
realidade é permitido pelo consentimento universal da humanidade, e todo aquele que sofre privação espera
obter dela alívio e consolo. Entretanto, para aqueles que não são artistas, é muito limitada a produção de prazer
que se deriva das fontes da fantasia. A crueldade de suas repressões forçaos
a se contentarem com esses
estéreis devaneios aos quais é permitido o acesso à consciência. Um homem que é um verdadeiro artista, tem
mais coisa à sua disposição. Em primeiro lugar, sabe como dar forma a seus devaneios de modo tal que estes
perdem aquilo que neles é excessivamente pessoal e que afasta as demais pessoas, possibilitando que os
outros compartilhem do prazer obtido nesses devaneios. Também sabe como abrandálos
de modo que não
traiam sua origem em fontes proscritas. Ademais, possui o misterioso poder de moldar determinado material até
que se torne imagem fiel de sua fantasia; e sabe, principalmente, pôr em conexão uma tão vasta produção de
prazer com essa representação de sua fantasia inconsciente, que, pelo menos no momento considerado, as
repressões são sobrepujadas e suspensas. Se o artista é capaz de realizar tudo isso, possibilita a outras
pessoas, novamente, obter consolo e alívio a partir de suas próprias fontes de prazer em seu inconsciente, que
para elas se tornaram inacessíveis; granjeia a gratidão e a admiração delas, e, dessa forma, através de sua
fantasia conseguiu o que originalmente alcançara apenas em sua fantasia — honras, poder e o amor das
mulheres.
CONFERÊNCIA XXIV
O ESTADO NEURÓTICO COMUM
SENHORAS E SENHORES:
Agora que eliminamos essa parte difícil de nosso trabalho, em nossa últimas explanações, proponho
que, por algum tempo, abandonemos o assunto e nos voltemos para os senhores mesmos.
Isto porque estou ciente de que os senhores estão insatisfeitos. Imaginaram uma ‘Introdução à
Psicanálise’ muito diferente. O que esperavam ouvir eram exemplos vívidos, não teoria. Em determinada
ocasião, dizem os senhores, quando lhes contei a parábola ‘No Subsolo e no Primeiro Andar’ [ver em [1] e [2]],
os senhores apreenderam algo da forma como são causadas as neuroses; as observações deveriam ter sido,
porém, observações reais, e não histórias inventadas. Ou quando, no início, descrevilhes
dois sintomas
(esperemos que desta vez não tenham sido inventados), e sua solução e sua relação com a vida das pacientes
[ver em [1]], o ‘sentido’ dos sintomas se revelou aos senhores. Os senhores esperavam que eu prosseguisse
nessa linha. Em vez disso, contudo, apresenteilhes
teorias prolixas, difíceis de compreender, que jamais
estiveram completas e sempre tiveram algo de novo a ser acrescentado; operei com determinados conceitos
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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que ainda não lhes havia explanado; passei de uma apreciação descritiva das coisas a uma apreciação
dinâmica, e, daí, àquilo que chamei de conceituação econômica; tornei difícil para os senhores entender
quantos dos termos técnicos que usei significavam a mesma coisa ou eram substituídos apenas por motivos de
eufonia; apresentei conceitos de tão longo alcance, tais como os conceitos dos princípios de prazer e de
realidade e o das dotações filogeneticamente herdadas. E, sem lhes apresentar previamente nada, fiz desfilar
diante de seus olhos coisas que se tornaram cada vez mais distanciadas dos senhores.Por que não iniciei
minha introdução à teoria das neuroses com aquilo que os senhores mesmos conhecem a respeito do estado
neurótico e que há muito atraiu o interesse dos senhores — as peculiares características das pessoas
neuróticas, suas incompreensíveis reações ao relacionamento humano e às influências externas, sua
irritabilidade, sua conduta imprevisível e desarrazoada? Por que não os conduzi, passo a passo, desde um
entendimento das formas mais simples e mais encontradiças do estado neurótico até os problemas de suas
manifestações extremas, enigmáticas?
Em verdade, não posso nem mesmo discordar dos senhores. Não estou assim tão enamorado de
minha habilidade expositiva, a ponto de poder declarar que cada uma das falhas de minha exposição constitui
um encanto especial. Penso comigo que poderia ter feito mais em benefício dos senhores, se tivesse agido de
outro modo; e, com efeito, esta era minha intenção. No entanto, nem sempre se pode levar a cabo as intenções
racionais. Freqüentemente, no próprio material existe algo que toma conta de nós e nos desvia de nossas
intenções iniciais. Mesmo uma realização banal como a organização de determinada quantidade de material
não depende inteiramente da escola do autor; as coisas podem tomar o rumo que lhes apraz, e tudo quanto se
pode fazer é perguntarse,
após os fatos, por que estes se passaram desta e não daquela maneira.
Um dos motivos é, provavelmente, que o título ‘Introdução à Psicanálise’ já não mais se aplica à
presente seção, que supomos estar tratando das neuroses. Uma introdução à psicanálise compõese
do estudo
das parapraxias e dos sonhos; a teoria das neuroses é psicanálise propriamente dita. Acredito que não teria
sido possível ministrarlhes
conhecimentos sobre o tema da teoria das neuroses em tempo tão curto, a não ser
em forma resumida. Era uma questão de apresentarlhes
uma exposição interligada do sentido e da
significação dos sintomas, das causas externas e internas e dos mecanismos de sua formação. Isto é o que
procurei fazer; e mais ou menos o que atualmente a psicanálise tem a ensinar. Importava em dizer muito coisa
sobre a libido e sua evolução, e também um pouco a respeito do desenvolvimento do ego. Nossa introdução já
os havia preparado com antecedência para as premissas de nossa técnica e para os importantes pontos de
vista relativos ao inconsciente e à repressão (à resistência). Em uma das conferência seguintes [Conferências
XXVI], os senhores descobrirão os pontos a partir dos quais o trabalho da psicanálise realiza progressos
fundamentais. Até agora não tenho mantido em segredo o fato de que tudo aquilo que lhes disse se deriva do
estudo de um único grupo de distúrbios nervosos — aqueles que se denominam ‘neurose de transferência’. Na
verdade, determinei o mecanismo da formação dos sintomas apenas no caso da neurose histérica. Ainda que
os senhores não tenham adquirido um sólido conhecimento e não tenham retido todos os detalhes, eu, não
obstante, espero que tenham formado um quadro dos métodos com os quais a psicanálise trabalha, dos
problemas que ela acomete e dos resultados aos quais ela chegou atribuí aos senhores o desejo de que
poderia ter começado minha descrição das neuroses a partir do comportamento das pessoas neuróticas, de um
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
81
relato da maneira pela qual elas sofrem com a neurose, de como se defendem contra ela e de como entram em
um acordo com ela. Sem dúvida, é um tópico interessante, merece ser investigado; e não seria muito difícil sua
abordagem. Seria, porém, discutível esse critério de começar a partir daí. Haveria o risco de não descobrir o
inconsciente e, ao mesmo tempo, de não atentar para a grande importância da libido, e de julgar todas as
coisas conforme elas se afiguram ao ego da pessoa neurótica. É evidente que esse ego não é uma instância
digna de confiança ou imparcial. O ego é, realmente, o poder que nega e desacredita o inconsciente mantendoo
reprimido; assim, como podemos confiar em que seja justo para com o inconsciente? Os elementos mais
importantes naquilo que dessa forma está reprimido, são as exigências da sexualidade rechaçadas, e fica
bastante evidente que, partindo dos pontos de vista próprios do ego, jamais conseguiríamos imaginar a
extensão e importância das mesmas. A partir do momento em que a noção de repressão se torna clara para
nós, somos advertidos para que não façamos uma das duas partes litigantes (e, com isso, o lado vitorioso)
tornarse
juiz da questão. Estamos preparados para verificar que as assertivas do ego nos desorientarão. Se
quisermos acreditar no ego, levemos em conta que ele teve a iniciativa em cada etapa do processo e ele
próprio desejou e construiu os sintomas. Mas sabemos que ele suporta uma boa dose de passividade que,
depois, ele tenta disfarçar e encobrir. É verdade que nem sempre ele se arrisca a uma tal tentativa; nos
sintomas da neurose obsessiva, o ego é obrigado a admitir que existe algo de estranho com que se defronta e
contra o qual pode defenderse
apenas com dificuldade.
Quem quer que não se deixe coibir por essa advertência e resolva tomar as falsificações do ego por
moeda legítima, vai passar bem, evitará todas as resistências que se opõem à ênfase dada pela psicanálise ao
inconsciente, à sexualidade e à passividade do ego. Poderá declarar, como Alfred Adler, que o ‘caráter
neurótico’ é a causa das neuroses, em vez de ser sua conseqüência; mas não estará em condições de explicar
um único detalhe da formação dos sintomas, ou um único sonho. Os senhores
perguntarão se não será possível, porém, fazer justiça ao papel que o ego desempenha nos estados neuróticos
e na formação dos sintomas, sem simultaneamente desprezar por completo os fatores revelados pela
psicanálise. Minha resposta é que isso deve ser possível, certamente, e, mais cedo ou mais tarde, será feito; o
caminho seguido pelo trabalho da psicanálise, porém, não comporta que realmente se comece a partir disso.
Naturalmente, é possível prever que um dia a psicanálise se defrontará com semelhante tarefa. Há neuroses
em que o ego desempenha um papel muito mais marcante do que naquelas que investigamos até o momento;
nós as denominamos neuroses ‘narcísicas’. A investigação desses distúrbios nos possibilitará formar um
julgamento imparcial e fidedigno da contribuição do ego ao desencadeamento das neuroses.Uma das formas
pelas quais o ego se relaciona com suas neuroses, entretanto, é tão óbvia que foi possível considerála
desde o
início. Parece jamais estar ausente; e é reconhecível com bastante nitidez em um distúrbio que, ainda hoje em
dia, estamos longe de compreender — a neurose traumática. Os senhores devem saber que os mesmo fatores
sempre entram em jogo na causação e no mecanismo de todas as possíveis formas de neurose; mas a
importância principal na construção dos sintomas recai ora num, ora noutro desses fatores. A situação
assemelhase
à dos membros de uma companhia teatral. Cada um deles recebe regularmente a tarefa de
desempenhar um papel fundamental — herói, confidente, vilão, e assim por diante; cada qual, porém, escolherá
uma peça diferente para sua própria representação beneficente. Da mesma forma, as fantasias, que se
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transformam em sintomas, em nenhuma outra neurose são mais evidentes do que na histeria; as anticatexias
das formações reativas do ego dominam o quadro nas neuroses obsessivas; aquilo que, no caso dos sonhos,
denominamos ‘elaboração secundária’ [ver em [1]] situase
em primeiro plano na paranóia, sob a forma de
delírios, e assim por diante.Nas neuroses traumáticas, e particularmente naquelas causadas pelos horrores da
guerra, inequivocamente deparamonos,
assim, com um motivo egoísta, por parte do ego, à procura de
proteção e vantagem — um motivo que não pode, talvez, produzir por si mesmo a doença, mas que
condescende com ela e a mantém, uma vez que ela tenha surgido. Esse motivo procura preservar o ego dos
perigos cuja ameaça foi a causa precipitante da doença, e não permitirá que ocorra a recuperação enquanto a
repetição desses perigo ainda pareça possível, ou enquanto não tenha recebido a compensação pelo perigo
que foi suportado.O ego, porém, assume um interesse semelhante no desenvolvimento e na manutenção da
neurose em todos os outros casos. Já demonstrei [ver em [1]] que os sintomas também são apoiados pelo ego,
porque possuem um aspecto com o qual oferecem satisfação ao propósito repressor do ego. Ademais,
apaziguar um conflito construindo um sintoma é a solução mais conveniente e mais agradável para o princípio
de prazer: inquestionavelmente, poupa ao ego uma grande quantidade de trabalho interno que é sentido como
penoso. Na verdade, há casos em que até mesmo o médico deve admitir que um conflito terminar em neurose
constitui a solução mais inócua e socialmente mais tolerável. Os senhores não devem surpreenderse
ao ouvir
dizer que o próprio médico, às vezes, pode tomar o partido da doença que está combatendo. Não é sua função
limitarse,
em todas as situações da vida, a ser um fanático defensor da saúde. Ele sabe que não há apenas
miséria neurótica no mundo, mas também sofrimento real, irremovível, que a necessidade pode mesmo exigir
que uma pessoa sacrifique sua saúde; e aprende que um sacrifício dessa espécie, feito por uma única pessoa,
pode evitar incomensurável infelicidade para muitas outras. Portanto, se podemos dizer que sempre que um
neurótico enfrenta um conflito ele empreende uma fuga para a doença, assim mesmo devemos admitir que, em
determinados casos, tal fuga se justifica plenamente, e um médico que tenha reconhecido a maneira como se
configura a situação, haverá de se retirar, silencioso e apreensivo.Abandonemos, entretanto, esses casos
excepcionais e prossigamos com nossa exposição. Em circunstâncias comuns, reconhecemos que, refugiandose
na neurose, o ego obtém internamente um certo ‘ganho proveniente da doença’. Em algumas circunstâncias
da vida, isto se acompanha, ademais, de uma apreciável vantagem externa que assume um valor real maior ou
menor. Considerem o exemplo mais comum desse tipo. É muito comum uma mulher, tratada com rudeza e
explorada de forma desumana por seu marido, encontrar uma saída na neurose, se sua constituição o
possibilita, se é excessivamente covarde ou excessivamente honrada para procurar um consolo secreto com
outro homem, se em virtude de todos os empecilhos externos não é suficientemente forte para separarse
de
seu marido, se não tem perspectivas de se sustentar a si própria ou de conseguir um marido melhor, e se, além
do mais, ainda está, através de seus sentimentos sexuais, vinculada a seu cruel marido. Então a sua doença se
converte em arma na batalha contra o marido dominador — arma que ela pode usar para sua defesa e da qual
pode abusar para sua vingança. É permissível ela queixarse
de sua doença, embora provavelmente não fosse
permissível lamentar o casamento. Ela encontra no médico um aliado, força o marido, habitualmente
indiferente, a cuidar dela, a gastar dinheiro com ela, a permitirlhe
que de tempos em tempos se afaste de casa
e com isso se liberte da opressão de estar casada. Quando semelhante ganho externo ou secundário
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proveniente da doença atinge essas proporções e não há nenhum substituto real disponível, os senhores não
devem contar com possibilidades muito grande de influenciar a neurose por meio do tratamento que
empreenderem.
Os senhores protestarão, agora, que aquilo que lhes disse a respeito do ganho proveniente da doença,
fala completamente em favor do ponto de vista que rejeitei — o de que o próprio ego deseja e cria a neurose
[ver em [1]]. Devagar, senhores! Talvez não signifique senão que o ego tolera a neurose, que, afinal, não pode
evitar; e que ele faz o melhor que pode, se é que, no final das contas, algo pode ser feito. Este é apenas um
dos lados da questão, o lado agradável, para dizer a verdade. Na medida em que a neurose traz vantagens, o
ego, sem dúvida, aceitaa;
porém, não traz apenas vantagens. Via de regra, logo se verifica que o ego fez mau
negócio ao optar pela neurose. Ele pagou caro demais por um alívio do conflito, e os sofrimentos ligados aos
sintomas são, talvez, um substituto equivalente dos tormentos do conflito, mas provavelmente importam em
aumento de desprazer. O ego preferiria libertarse
desse desprazer dos sintomas, sem desistir do ganho que
lhe dá a doença, e isto é justamente o que não pode obter. Isto mostra, então, que o ego não era tão
completamente ativo como imaginava ser; devemos considerar atentamente esse aspecto.
Senhores, em seu contato com as neuroses, na qualidade de médicos, logo desistirão de esperar que
aqueles que exibem as maiores lamentações e queixas acerca de sua doença sejam os mais desejosos de
cooperar e mostrem a menor resistência. É bem o inverso disso. Naturalmente, os senhores, contudo,
reconhecerão com facilidade que tudo aquilo que contribui para o ganho proveniente da doença haverá de
intensificar a resistência devido repressão e aumentará as dificuldades do tratamento. À parcela de ganho
decorrente da doença que, por assim, dizer, nasceu com a doença, temos de acrescentar uma outra parcela
que surge posteriormente. Quando uma organização psíquica semelhante a uma doença durou algum tempo,
ela termina por funcionar como mecanismo independente; manifestase
um tanto como instinto de
autopreservação; estabelece uma espécie de modus vivendi entre si e as outras partes da mente, mesmo
aquelas outras partes que lhe são hostis; e raramente deixa de haver ocasiões em que se comprova que a
doença, repetidas vezes, se torna útil e adequada, e adquire, por assim dizer, uma função secundária que
reforça novamente sua estabilidade. Em vez de um exemplo extraído da patologia, tomemos um exemplo
flagrante da vida diária. Um operário, que com sua capacidade ganha sua vida, vem a sofrer uma mutilação
num acidente ocorrido durante o trabalho. Esse homem, assim aleijado, não pode mais trabalhar; porém, afinal,
consegue uma pequena pensão por invalidez e aprende como explorar sua mutilação pedindo esmolas. Seu
novo, embora piorado, meio de vida se baseia justamente naquela mesma coisa que o privou de seu meio de
vida anterior. Se os senhores pudessem pôr fim à sua mutilação, poderiam fazer, inicialmente, com que ele
ficasse sem seu meio de vida; surgiria então a questão de saber se ele ainda seria capaz de retomar seu
trabalho anterior. No caso das neuroses, o que corresponde a uma semelhante exploração secundária de uma
doença pode ser descrito como ganho secundário da doença em contraste com o ganho primário.Em geral,
porém, gostaria de recomendar que, conquanto não subestimando a importância prática do ganho proveniente
da doença, os senhores não devem deixarse
impressionar pelo mesmo, teoricamente. Afinal, à parte as
exceções que apontei anteriormente [ver em [1]], isto sempre leva a pensar nos exemplos de ‘inteligência
animal’ ilustrados por Oberländer em Fliegende Blätter.Uma árabe ia montado em seu camelo, percorrendo
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uma trilha estreita cortada na encosta íngreme de uma montanha. Numa curva da trilha, subitamente se viu
frente a frente com um leão que já se preparava para dar o salto. Ele não via escapatória: de um lado, um
rochedo perpendicular e, de outro, um precipício; fuga e luta eram impossíveis. Considerouse
perdido. Mas o
camelo pensou diferente. De um salto, lançouse
com o árabe ao abismo — e o leão ficou sem nada. A ajuda
que proporciona uma neurose não representa, geralmente, melhor solução para o paciente. Isto pode suceder
porque lidar com um conflito produzindo sintomas é, afinal, um processo automático que não pode se mostrar
adequado para arrostar as exigências da vida e no qual a pessoa abandonou o uso das sua melhores e mais
elevadas capacidades. Se houvesse uma escolha, seria preferível descer à liça para uma honrosa luta com o
destino.
Entretanto, ainda lhes devo outros esclarecimentos do motivo por que não iniciei minha exposição da
teoria das neuroses com o estado neurótico comum. Os senhores podem supor, talvez, que isto sucedeu
porque, nesse caso, eu teria tido maior dificuldade de provar a causação sexual das neuroses. Mas nisso os
senhores poderiam estar enganados. No caso das neuroses de transferência, devese
achar a solução através
da interpretação dos sintomas, antes de se poder chegar a essa descoberta. Nas formas comuns daquilo que
se conhece como ‘neuroses atuais’ a significação etiológica da vida sexual é um fato indisfarçado que salta aos
olhos do observador. Encontreia
há mais de vinte anos, quando, certo dia, indagava a mim próprio da razão
por que, no exame dos neuróticos, suas atividades sexuais são tão regularmente excluídas de qualquer
consideração. Naquela época, sacrifiquei minha popularidade junto a meus pacientes, em benefício dessas
investigações; bastou apenas um breve esforço para que pudesse declarar que, ‘se a vita sexualis é normal,
não pode haver neurose’ — e, como isso, eu quis dizer ‘neurose atual’. Sem dúvida, essa afirmação passa
muito de leve sobre as diferenças individuais das pessoas; e padece, também, da imprecisão, que é
inseparável do julgamento daquilo que é ‘normal’. Vista como diretriz geral, mantém, contudo, o seu valor até
hoje. Naquela época, eu chegara a estabelecer relações específicas entre determinadas formas de neuroses e
determinadas influências nocivas sexuais; e não tenho dúvidas de que poderia, hoje, repetir as mesmas
observações, se ainda estivesse à minha disposição um material patológico parecido. Muitíssimas vezes
verifiquei que um homem que se excedeu em determinado tipo de satisfação sexual incompleta (por exemplo,
masturbação manual) havia adoecido de determinada forma de ‘neurose atual’, e que essa neurose
prontamente dava lugar a uma outra, se substituísse seu regime sexual por outro igualmente nada
irrepreensível. Naquele tempo, estava em situação de concluir que, no paciente, havia se operado uma
mudança na sua vida sexual, a partir de uma modificação em sua condição. Também aprendi, nessa época, a
manter obstinadamente minha hipótese, até haver vencido a insinceridade dos pacientes e havêlos
compelido
a confirmar meus pontos de vista. É verdade que, depois disso, eles preferiram ir a outros médicos que não
fizeram essas indagações meticulosas sobre sua vida sexual.Mesmo nessa época, não pude deixar de
perceber que a causação da doença nem sempre aponta para a vida sexual. Uma pessoa, é fato, adoeceu por
uma influência nociva sexual direta; mas uma outra adoeceu porque perdeu sua fortuna ou porque sofreu uma
doença orgânica exaustiva. A explicação dessas diferenças veio posteriormente, quando compreendemos as
interrelações,
de que já suspeitávamos, entre o ego e a libido, e a explicação se tornou mais satisfatória à
medida que essa compreensão se aprofundava. Uma pessoa somente adoece de uma neurose se seu ego
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perdeu a capacidade de diversificar, de algum modo, sua libido. Quanto mais forte é seu ego, mais fácil lhe será
executar essa tarefa. Qualquer enfraquecimento do seu ego por qualquer causa deve ter o mesmo efeito,
agindo como um aumento excessivo das exigências da libido, e, por isso, lhe possibilitará adoecer de uma
neurose. Existem outras relações, mais íntimas, entre o ego e a libido; estas, porém, ainda não se enquadram
em nosso objetivo, de modo que não as abordarei como parte desta minha presente explanação. O que
continua essencial e nos esclarece coisas é que, em todos os casos, e seja qual for o modo como a doença se
pôs em marcha, os sintomas da neurose são mantidos pela libido, e, por conseguinte, são prova de que ela
está sendo utilizada anormalmente.
Agora, entretanto, devo chamar a atenção dos senhores para a decisiva diferença entre os sintomas
das neuroses ‘atuais’ e os das psiconeuroses, das quais o primeiro grupo, as neuroses de transferência, nos
manteve tão ocupados até agora. Em ambos os casos, os sintomas se originam da libido, e constituem,
portanto, empregos anormais da mesma; são satisfações substitutivas. Mas os sintomas das neuroses ‘atuais’
— pressão intracraniana, sensações de dor, estado de irritação em um órgão, enfraquecimento ou inibição de
uma função — não têm nenhum ‘sentido’, nenhum significado psíquico. Não só se manifestam
predominantemente no corpo (como, por exemplo, os sintomas histéricos, entre outros), como também
constituem, eles próprios, processos inteiramente somáticos, em cuja origem estão ausentes todos os
complicados mecanismos mentais que já conhecemos. Assim, realmente são a mesma coisa que há tanto
tempo acreditavase
serem os sintomas psiconeuróticos. Mas, sendo assim, com podem eles corresponder a
empregos da libido, que reconhecemos como força que opera na mente? Bem, senhores, isto é algo muito
simples. Permitamme
lembrarlhes
uma das primeiras objeções levantadas contra a psicanálise. Foi dito,
então, que esta se ocupava em encontrar uma teoria puramente psicológica dos fenômenos neuróticos, e que
isso era uma causa perdida, de vez que as teorias psicológicas jamais poderiam explicar uma doença. As
pessoas haviam optado por esquecer que a função sexual não é uma coisa puramente psíquica, da mesma
forma como não é uma coisa puramente somática. Influencia igualmente a vida corporal e mental. Se, nos
sintomas das psiconeuroses, nos familiarizamos com as manifestações de distúrbios na atuação psíquica da
função sexual, não nos surpreenderemos ao encontrar nas neuroses ‘atuais’ as conseqüências somáticas
diretas dos distúrbios sexuais.A clínica médica deunos
uma indicação valiosa para uma interpretação desses
distúrbios, uma indicação que foi objeto de considerações por vários investigadores. As neuroses ‘atuais’, nos
detalhes de seus sintomas e também em sua característica de exercer influência em todo sistema orgânico e
toda função, mostram uma inconfundível semelhança com os estados patológicos que surgem da influência
crônica de substâncias tóxicas externas e de uma suspensão brusca das mesmas — as intoxicações e as
situações de abstinência. Os dois grupos de distúrbios se aproximam mais intimamente por meio de condições
intermediárias, tal como a doença de Grave, que sabemos ser, também ela, devida à ação de substâncias
tóxicas, porém de toxinas não introduzidas no corpo, mas originadas no próprio metabolismo da pessoa. Em
vista dessa analogias, penso que não podemos evitar considerarmos as neuroses resultado de distúrbios no
metabolismo sexual, seja porque se produzem mais toxinas do que o indivíduo pode metabolizar, seja porque
as condições internas, e até mesmo as condições psíquicas, limitam o emprego adequado dessas substâncias.
Desde tempos imemoriais, a concepção popular tem prestado homenagem a hipóteses dessa espécie a
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