sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Sigmund Freud - Conferências introdutórias sobre psicanálise - Parte 2

trazia a correspondência e dava uma longa explicação do motivo pelo qual tivéramos que esperar tanto tempo
pela correspondência: ele a havia despachado para o endereço errado e só pudera recuperá-la com grande
dificuldade. Naturalmente, sonhávamos com coisas ainda mais impossíveis. Mas havia uma falta muito grande
de imaginação, evidenciada por quase todos os sonhos que eu próprio sonhei, ou de que ouvi falar. Certamente
seria de grande interesse psicológico se todos esses sonhos pudessem ser registrados. E facilmente se pode
compreender quanto desejávamos o sono, pois este podia oferecer a cada um de nós tudo o que mais
ardentemente era desejado.’ Assim também, de acordo com Du Prel [1885, 231], ‘Mungo Park, quando estava a
ponto de morrer de sede, em uma de suas viagens pela África, sonhava incessantemente com os vales
ricamente irrigados e com as campinas de sua terra natal. Em forma semelhante, o barão Trenck, sofrendo os
tormentos da fome, à época em que esteve encarcerado na fortaleza de Magdeburg, sonhava que se via
rodeado de refeições abundantes; e George Back, que tomou parte na primeira expedição de Franklin, quando
estava quase morrendo de inanição em conseqüência de suas terríveis privações, sonhava constante e
regularmente com lautas refeições.’
Todo aquele que come algum prato altamente condimentado no jantar e sente sede durante a noite,
provavelmente sonha que está bebendo. Naturalmente, é impossível desfazer-se de uma necessidade muito
premente de comer e beber, por meio de um sonho. Acorda-se de um sonho dessa natureza ainda com a
sensação de sede e tem-se de tomar água, realmente. O efeito produzido pelo sonho é insignificante, neste
caso, sob o ponto de vista prático; não obstante, é evidente que ele aconteceu com o objetivo de despertar e
fazer agir. Quando a necessidade não é tão intensa, os sonhos de satisfação de necessidades amiúde ajudam
a superá-las.
Da mesma forma, proporcionam satisfação os sonhos sob a influência de estímulos sexuais; contudo,
estes mostram particularidades que convém mencionar. Como constitui característica do instinto sexual ser um
pouco menos dependente do seu objeto do que a fome e a sede, pode constituir uma satisfação real aquela
que advém de sonhos de ejaculação; e, como conseqüência de determinadas dificuldades (que terei de
mencionar mais adiante) em sua relação com o objeto, acontece, com especial freqüência, que a satisfação real
é, ainda assim, vinculada a um obscuro ou distorcido conteúdo do sonho. Essa característica dos sonhos de
ejaculação (como foi assinalado por Otto Rank [1912a]) faz deles assunto especialmente favorável ao estudo
da deformação onírica. Ademais, todos os sonhos de adultos, originários em necessidades corporais,
geralmente contêm junto com a satisfação um outro material; este deriva de fontes de estimulação puramente
psíquicas e exige interpretação para que possa ser compreendido.Além disso, não desejo afirmar que os
sonhos de realização de desejos, em adultos, construídos segundo padrões infantis, somente aparecem como
reações a necessidades imperiosas, que mencionei. Conhecemos também sonhos breves, claros, do tipo que,
sob a influência de alguma situação dominante, inquestionavelmente se originam em fontes psíquicas de
estimulação. Existem, por exemplo, sonhos de impaciência: se alguém fez preparativos para uma viagem, para
uma representação teatral importante para ele, para ir a uma conferência, ou fazer uma visita, pode sonhar com
uma satisfação antecipada de sua expectativa; durante a noite anterior ao evento, poderá ver-se a si mesmo
chegando ao seu destino, presente no teatro, em conversação com a pessoa que vai visitar. Existem, ainda,
aqueles que são apropriadamente chamados de sonhos de conveniência, nos quais uma pessoa que deseja
dormir mais, sonha que já está de pé e se lavando, ou que já está na escola, ao passo que, na realidade, ainda
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está dormindo e preferiria levantar-se num sonho a fazê-lo na realidade. O desejo de dormir, que temos
reconhecido como um dos constantes componentes da construção dos sonhos, aparece abertamente nesses
sonhos e se revela como o principal construtor onírico. Existem bons motivos para situar a necessidade de
dormir em condições de igualdade com as outras grandes necessidades corporais.Aqui está uma reprodução
de um quadro de Schwind, exposto na Galeria Schack, de Munique [ver frontispício], que mostra com que
perfeição o artista captou a maneira como os sonhos surgem da situação dominante. Seu título é ‘O Sonho do
Prisioneiro’, um sonho cujo conteúdo só pode ser sua fuga. Constitui uma solução feliz dar-se sua fuga através
da janela, porque é o estímulo da luz entrando pela janela que põe fim ao sono do prisioneiro. Os gnomos, que
estão subindo um em cima do outro, sem dúvida representam as posições sucessivas que ele próprio teria de
tomar, à medida que subisse até o nível da janela. E, se não me engano, e se não estou atribuindo demasiada
deliberação ao artista, o gnomo que se situa mais em cima, que está serrando as grades — isto é, que está
fazendo o que o prisioneiro gostaria de fazer — tem semblante igual ao deste.Em todos os sonhos que não
sejam os de crianças nem os de tipo infantil, nosso caminho, como disse, está obstruído pela deformação
onírica. De início, não podemos dizer se esses outros sonhos também são realizações de desejos conforme
suspeitamos, não podemos determinar, a partir do seu conteúdo manifesto, a que estímulo psíquico devem sua
origem, e não podemos provar que também eles se esforçam por eliminar esse estímulo, ou, de algum modo,
manejá-lo. Devem ser interpretados — isto é, traduzidos —, sua deformação deve ser desfeita, e seu conteúdo
manifesto substituído pelo conteúdo latente antes de podermos julgar se aquilo que encontramos nos sonhos
infantis pode ser considerado válido para todos os sonhos.
CONFERÊNCIA IX - A CENSURA DOS SONHOS
SENHORAS E SENHORES:
O estudo dos sonhos de crianças nos ensinou a origem, a natureza essencial e a função dos sonhos.
Os sonhos são coisas que eliminam, pelo método da satisfação alucinatória, estímulos (psíquicos)
perturbadores do sono. No entanto, conseguimos explicar apenas um grupo dos sonhos de adultos — aqueles
que descrevemos como sonhos de tipo infantil. O que se passa com os demais, ainda não sabemos dizer,
contudo também não os entendemos. Assim mesmo, chegamos a um dado provisório cuja importância não
devemos subestimar. Sempre que um sonho se nos tornou inteiramente inteligível, veio a se revelar como
realização de um desejo em forma alucinatória. Essa coincidência não pode ter surgido do acaso, deve ter um
significado.Com base em considerações diversas e na analogia com nossa opinião acerca das parapraxias,
supusemos, a propósito de sonhos de uma outra espécie [ver em [1] e seg.], que eles seriam um substituto
deformado de um conteúdo desconhecido, e que a primeira coisa seria correlacioná-los com esse conteúdo.
Nossa tarefa imediata, portanto, consiste em uma investigação que nos leva a compreender essa deformação
nos sonhos.Deformação onírica é aquilo que faz com que um sonho nos pareça estranho e ininteligível. A
respeito dela queremos saber diversas coisas: primeiro, de onde vem — sua dinâmica — ; segundo, o que faz;
e, por último, como faz. Também podemos dizer que a deformação onírica é obra da elaboração onírica; é
necessário descrevermos a elaboração onírica e explicarmos as forças que nela operam.E agora, ouçam este
sonho. Foi registrado por uma senhora pertencente ao nosso grupo, e, conforme ela nos conta, provém de uma
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senhora de idade avançada, altamente conceituada e instruída. Não foi feita nenhuma análise do sonho; nossa
informante observa que para um analista ele não requer interpretação. E a pessoa que o sonhou também não o
interpretou, porém o julgou e o condenou como se compreendesse a maneira de interpretá-lo; pois, a respeito
do mesmo, ela disse: ‘E uma coisa chocante e estúpida como esta foi sonhada por uma mulher de cinqüenta
anos, que dia e noite não tem outros pensamentos senão os de se preocupar com seu filho!’Aqui, pois, está o
sonho — que trata de ‘serviços de amor’ em época de guerra. ‘A paciente dirigiu-se ao Hospital da Guarnição
N° 1 e informou ao sentinela do portão que precisava falar com o Chefe do Serviço Médico (mencionando um
nome que lhe era desconhecido) visto desejar oferecer seus serviços como voluntária no hospital. Ela
pronunciou a palavra “serviço” de tal forma, que o sub-oficial imediatamente compreendeu que ela queria dizer
“serviço de amor”. Como se tratava de uma senhora idosa, após alguma hesitação, permitiu que ela passasse.
Em vez de encontrar o Chefe do Serviço Médico, contudo, chegou ela a um aposento grande e sombrio no qual
estava grande número de oficiais e médicos do exército, alguns de pé e outros sentados em torno de uma longa
mesa. Aproximou-se de um cirurgião da equipe com o seu pedido, e ele compreendeu o que ela queria dizer
depois de ter esta pronunciado apenas algumas palavras. O fraseado real de seu discurso no sonho foi: “Eu e
muitas outras mulheres e moças de Viena estamos prontas para…” nesta altura do sonho, suas palavras se
transformaram num sussurro ininteligível “…para as tropas — oficiais e outras patentes, sem distinção.” Ela
pôde compreender pela expressão do rosto dos oficiais em parte com uma expressão de constrangimento e em
parte de malícia que todos haviam compreendido suas palavras corretamente. Prosseguiu a senhora: “Estou
cônscia de que nossa decisão pode parecer surpreendente, mas nossa intenção é realmente séria. Ninguém
pergunta a um soldado no campo de batalha se ele deseja morrer ou não.” Seguiu-se um incômodo silêncio de
alguns minutos. O médico pôs então um braço em torno de sua cintura e disse: ‘Suponha, madame, que isso
realmente viesse a… (murmúrio).” Ela afastou-se dele dizendo com os seus botões: “Ele é como todos os
demais”, e retrucou: “Deus do Céu, sou uma velha e nunca poderia chegar a esse ponto. Além disso, há uma
condição que deve ser observada: idade deve ser respeitada. Jamais deve acontecer que uma mulher idosa…
(murmúrio) … um mero garoto. Isso seria terrível.” “Compreendo perfeitamente”, respondeu o médico. Alguns
dos oficiais, e entre eles um que tinha sido pretendente à sua mão quando ela era jovem, riram alto. A seguir, a
senhora pediu para ser levada à presença do Chefe do Serviço Médico, pessoa do seu conhecimento, de modo
que todo o assunto pudesse ser deslindado, mas verificou, para sua consternação que não podia recordar-lhe o
nome. Não obstante, o médico, com o máximo de cortesia e respeito, indicou-lhe o caminho até o segundo
andar por uma escada de ferro em caracol muito estreita, que conduzia diretamente da sala até aos andares
superiores do edifício. Quando subia, ouviu um oficial dizer: “Essa é uma tremenda decisão a tomar — não
importa que uma mulher seja moça ou velha! Belo gesto o dela!” Sentindo simplesmente que estava cumprindo
com seu dever ela subiu por uma interminável escada.’‘O sonho se repetiu por duas vezes no decurso de
poucas semanas, conforme comentou a senhora, com apenas algumas modificações sem importância e
carentes de sentido.’Por sua continuidade, este sonho se assemelha a uma fantasia diurna: nele há poucas
interrupções, e alguns dos detalhes de seu conteúdo poderiam ter sido explicados se tivessem sido
investigados; porém, como sabem, isto não foi feito. Do nosso ponto de vista, contudo, o que é notável e
interessante é que o sonho apresenta diversas lacunas — lacunas não na memória da mulher que o sonhou,
mas no conteúdo do próprio sonho. Em três pontos o conteúdo do sonho foi, por assim dizer, extinto; onde
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ocorrerem essas lacunas o falar foi interrompido por um murmúrio. Como não foi realizada nenhuma análise,
estritamente falando, não temos o direito de dizer algo sobre o sentido do sonho. Não obstante, há indícios nos
quais podem se fundamentar determinadas conclusões (por exemplo, na expressão ‘serviço de amor’); porém,
acima de tudo, as partes do discurso imediatamente anteriores aos murmúrios exigem que sejam preenchidas
as lacunas, e de forma nada ambígua. Ao fazermos as inserções, o conteúdo da fantasia se revela como sendo
o seguinte: a mulher que teve o sonho, atendendo a uma obrigação patriótica, está apta a colocar-se à
disposição das tropas, tanto de oficiais como de outras categorias, para satisfação das necessidades eróticas
dos mesmos. Naturalmente, isso é muito censurável, é o modelo de uma fantasia libidinal desavergonhada —
tal, porém, absolutamente não aparece no sonho. Precisamente nos pontos onde o contexto exigiria que isso
fosse admitido, o sonho manifesto contém um murmúrio indistinto: algo se perdeu ou foi suprimido.
Os senhores pensarão, assim espero, que seja plausível supor que foi justamente a natureza
censurável dessas passagens que constituiu o motivo de sua supressão. Onde encontraremos um paralelo de
tal evento? Nos dias atuais, não é preciso ir longe. Tomem qualquer jornal político e verificarão que aqui e ali o
texto está ausente e, em seu lugar, não se vê nada mais que papel em branco. Isto, como sabem, é obra da
censura da imprensa. Nos espaços vazios havia algo que só agradou às autoridades superiores da censura, e
por este motivo foi removido — é uma pena, como vêem, pois sem dúvida era o que de mais interessante havia
no jornal — o ‘melhor pedaço’.
Noutras ocasiões a censura não funcionou em uma passagem depois de esta já estar pronta. O autor
viu com antecedência quais as passagens que se podia esperar suscitassem objeções da censura e, por esta
causa, antecipadamente moderou o tom das mesmas, modificou-as ligeiramente ou se contentou com
aproximações ou alusões àquilo que originalmente teria fluido de sua pena. Neste caso, não há espaços em
branco no papel, contudo as circunlocuções e obscuridades de expressão que aparecem em certos pontos,
possibilitarão aos senhores perceber onde houve prévio acatamento à censura.
Pois bem, podemos manter esta comparação. Pensamos que as partes omitidas do discurso do sonho,
que foram ocultadas por um murmúrio, de forma semelhante foram sacrificadas a uma censura. Queremos nos
referir a uma ‘censura de sonhos’, à qual se deve atribuir uma parcela da deformação onírica. Em qualquer
parte onde existem lacunas no sonho manifesto, a censura é responsável por elas. Devemos ir mais adiante e
considerar como manifestação da censura toda passagem em que um elemento onírico é recordado de maneira
especialmente indistinta, indefinida, duvidosa, em meio a outros elementos construídos mais claramente. No
entanto, apenas muito raramente essa censura se manifesta tão indisfarçadamente — tão ingenuamente, se
poderia dizer — como nesse exemplo do sonho dos ‘serviços de amor’. A censura age muito mais
freqüentemente de acordo com o segundo método, produzindo atenuações, aproximações e alusões, em vez
da coisa original. Nas atuações da censura de imprensa não conheço nada semelhante à terceira forma de
funcionamento da censura de sonhos; posso, porém, demonstrá-la justamente com o exemplo de um sonho
que antes já analisamos. Os senhores se recordam do sonho dos ‘três bilhetes de entrada ruins por 1,50 florim’
[ver em [1]]. Nos pensamentos latentes desse sonho, o elemento ‘superapressadamente, cedo demais’ estava
em primeiro plano. Portanto: foi absurdo casar tão cedo — também foi absurdo adquirir os bilhetes de ingresso
tão cedo — foi ridículo a cunhada sair tão apressada com o dinheiro para comprar jóias. Nada desse elemento
central dos pensamentos oníricos transpareceu no sonho manifesto; neste, a posição central é ocupada por ‘ir
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ao teatro’ e ‘comprar os ingressos’. Como conseqüência desse deslocamento da ênfase, com esse novo
agrupamento dos elementos de conteúdo, o sonho manifesto ficou tão diferente dos pensamentos oníricos
latentes, que ninguém suspeitaria da presença destes atrás daquele. Esse deslocamento da tônica é um dos
principais instrumentos da deformação onírica e é o que confere ao sonho sua estranheza, que faz com que a
própria pessoa que teve o sonho não se mostre inclinada a reconhecê-lo como obra sua.
Omissão, modificação, novo agrupamento do material — são estas, pois, as atividades da censura de
sonhos e os instrumentos da deformação onírica. A censura de sonhos, por si mesma, é o agente ou um dos
agentes da deformação onírica que agora estamos examinando. Estamos habituados a combinar os conceitos
de modificação e reajuste sob o termo ‘deslocamento’.
Após estes comentários sobre as atividades da censura de sonhos, passemos agora à sua dinâmica.
Espero que os senhores não tomem o termo antropomorficamente demais e não imaginem o ‘censor dos
sonhos’ como um severo homúnculo; contudo, também espero que não assumam muito o termo num sentido
de ‘localização’, e não pensem em um centro cerebral do qual proceda uma influência censora dessa ordem,
uma influência que chegaria ao fim se esse ‘centro’ fosse lesado ou removido. Por agora, não é nada mais que
um termo útil para descrever a relação dinâmica. A palavra não nos impede de perguntarmos por quais
intenções é exercida essa influência censora e contra que intenções ela é exercida. E não nos
surpreenderemos ao constatar que mais uma vez nos defrontamos com a censura de sonhos, embora, talvez,
sem reconhecê-la.Pois é este realmente o caso. Os senhores se recordam de que, ao começarmos a usar
nossa técnica de associação livre, fizemos uma descoberta surpreendente. Apercebemo-nos de que nossos
esforços de abrir caminho desde o elemento onírico até o elemento inconsciente, do qual aquele é um
substituto, encontravam uma resistência [ver em [1] e [2]]. Essa resistência, dissemos, poderia ser de diferentes
magnitudes, às vezes enorme, às vezes quase insignificante. Nesse último caso, temos de passar através de
apenas alguns elos intermediários em nosso trabalho de interpretação. No entanto, quando a resistência é
grande, temos de percorrer longas cadeias de associações a partir do elemento onírico, somos conduzidos para
longe deste, e, em nosso caminho, temos de vencer todas as dificuldades representadas pelas objeções
críticas às idéias que ocorrem. O que encontramos sob a forma de resistência, em nosso trabalho de
interpretação, deve agora ser introduzido na elaboração onírica como censura de sonhos. A resistência à
interpretação é apenas a efetivação da censura do sonho. Também nos prova que a força da censura não se
esgota com a deformação do sonho e nem se extingue depois disso; que a censura, contudo, persiste como
instituição permanente que tem como seu objetivo manter a deformação. Ademais, assim como a força da
resistência varia na interpretação de cada elemento do sonho, também a magnitude da deformação
engendrada pela censura varia para cada elemento do mesmo sonho. Se compararmos o sonho manifesto com
o latente, constataremos que determinados elementos latentes foram totalmente eliminados, outros,
modificados em grau maior ou menor, enquanto outros, ainda, foram transportados para o conteúdo manifesto
do sonho, inalterados, ou mesmo, talvez, reforçados.Desejávamos, no entanto, perguntar quais são os
propósitos que exercem a censura e contra que propósitos ela é exercida. Ora, esta questão, fundamental para
o entendimento dos sonhos e talvez, na realidade, da vida humana, é fácil de responder se examinarmos a
série de sonhos que foram interpretados. Os propósitos que exercem a censura são aqueles reconhecidos pelo
julgamento vigil da pessoa que sonhou, aqueles com o quais o sonhador está de acordo. Os senhores podem
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ter a certeza de que, se rejeitarem uma interpretação de um de seus próprios sonhos, que tenha sido efetuada
corretamente, assim estarão agindo pelos mesmos motivos pelos quais a censura do sonho foi exercida, a
deformação do sonho foi ocasionada e a interpretação do sonho se tornou necessária. Vejam o sonho da
senhora de cinqüenta anos de idade [ver em [1] e [2]]. Ela achou seu sonho repugnante, sem tê-lo analisado, e
se teria indignado mais ainda se Dr. von Hug-Hellmuth lhe houvesse dito algo acerca de sua inevitável
interpretação; foi precisamente porque essa senhora condenou o sonho que as passagens censuráveis do
mesmo foram substituídas por um murmúrio.As tendências contra as quais se dirige a censura de sonhos
devem ser descritas, em primeiro lugar, do ponto de vista dessa instância mesma. Assim sendo, apenas podese
dizer que invariavelmente são de natureza repreensível, repulsiva do ponto de vista ético, estético e social —
assuntos nos quais a pessoa absolutamente não se aventura a pensar, ou somente pensa com aversão. Esses
desejos, que são censurados e recebem uma expressão deformada nos sonhos, são, primeiro e acima de tudo,
manifestações de um egoísmo desenfreado e impiedoso. E, vejam só, o próprio ego do sonhador surge e
desempenha o papel principal no sonho, apesar de muito bem saber esconder-se, para o que muito contribui o
conteúdo manifesto. Este ‘sacro egoísmo’ dos sonhos certamente não é desprovido de alguma relação com a
atitude que adotamos quando dormimos, que consiste em retirarmos nosso interesse de todo o mundo
externo.O ego, liberto de todos os compromissos éticos, também se sente à vontade com todas as exigências
do sexo, mesmo aquelas que por muito tempo têm sido condenadas pela nossa educação estética e aquelas
que contrariam todos os requisitos das barreiras morais. O desejo de prazer — a ‘libido’, conforme o
denominamos — escolhe sem inibição seus objetos e, de preferência, os proibidos: não somente as mulheres
de outros homens, mas, acima de tudo, objetos incestuosos, objetos sagrados segundo o consenso da
humanidade, mãe e irmã de um homem, pai e irmão de uma mulher. (O sonho dessa senhora de cinqüenta
anos também era incestuoso; sua libido estava inequivocamente voltada para seu filho. (ver em [1] e [2].)
Desejos sensuais, que imaginamos distantes da natureza humana, mostram-se suficientemente fortes para
provocar o surgimento de sonhos. Também surgem ódios rancorosos, sem constrangimento. Desejos de
vingança e de morte, dirigidos contra aqueles que nos são mais próximos e mais caros na vida desperta, contra
os pais, irmãos e irmãs, marido ou esposa, e contra os próprios filhos, não são nada raros. Esses desejos
censurados parecem nascer de um verdadeiro inferno; depois que são interpretados, quando estamos
acordados, nenhuma censura a eles nos parece tão rigorosa.
Porém, os senhores não devem acusar o próprio sonho por causa de seu conteúdo mau. Não se
esqueçam de que ele executa a função inocente, e, na verdade, útil, de preservar o sono de qualquer
perturbação. Essa ruindade não faz parte da natureza essencial dos sonhos. Com efeito, os senhores também
sabem que há sonhos que podem ser reconhecidos como satisfação de desejos justificados e de necessidades
corporais prementes. Estes, é verdade, não apresentam deformação; mas também não precisam de
deformação, porque podem preencher sua função sem insultar os propósitos éticos e estéticos do ego. Atentem
também para o fato de que a deformação do sonho é proporcional a dois fatores. Por um lado, ela é tão maior
quanto pior é o desejo a ser censurado; mas, por outro lado, também se torna maior à medida que mais
severas forem as exigências da censura no momento. Assim, uma moça, educada rigorosamente, pudica, com
uma censura implacável, irá distorcer impulsos oníricos que nós, médicos, por exemplo, teríamos de considerar
desejos libidinais permissíveis, inofensivos e acerca dos quais, dentro de dez anos, ela mesma fará julgamento
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igual.Ademais, ainda não fomos tão suficientemente longe a ponto de sentirmos indignação com esse resultado
de nosso trabalho de interpretação. Penso que ainda não o compreendemos acertadamente; porém, nossa
primeira obrigação é defendê-lo contra certas calúnias. Não há dificuldade em encontrar nele um ponto fraco.
Nossas interpretações de sonhos são feitas com fundamento nas premissas que já aceitamos [ver em [1] e
seg.]: que os sonhos em geral possuem um sentido, que é correto transportar do sono hipnótico para o normal
o fato de existirem processos mentais que, na época considerada, são inconscientes, e que tudo o que ocorre à
mente é determinado. Se, com base nessas premissas, tivéssemos chegado a achados plausíveis originados
da interpretação de sonhos, deveríamos ter encontrado justificativa para concluir pela validade das premissas.
Mas como conseguir isso, se esses achados parecem ser como lhes mostrei? Estaríamos, então, tentados a
dizer: ‘Esses achados são impossíveis, carecem de sentido ou, pelo menos, são muito improváveis; portanto,
havia algo de errado nas premissas. Ou os sonhos não são fenômenos psíquicos, ou não existe nada
inconsciente no estado normal, ou nossa técnica apresenta em si uma falha. Não é mais simples e mais
satisfatório supor assim, de preferência a aceitar todas as abominações que se supõe tenhamos descoberto
baseados em nossas premissas?’Sim, com efeito! Mais simples e mais satisfatório, no entanto nem por isso
necessariamente mais correto. Concedamo-nos tempo: o tema ainda não está maduro para julgamento. E em
primeiro lugar, podemos reforçar ainda mais as críticas à nossa interpretação de sonhos. O fato de os achados
provenientes dos sonhos serem tão desagradáveis e repulsivos talvez não devesse ter tanto peso. Um
argumento mais forte é que as pessoas que têm os sonhos, a quem somos levados a atribuir essas intenções
plenas de desejos mediante a interpretação de seus sonhos, as rejeitem muito enfaticamente, e por boas
razões o fazem. ‘O quê?’ diz uma delas, ‘o senhor quer me convencer, com este sonho, de que eu lamento ter
gasto dinheiro com o dote de minha irmã e com a instrução de meus irmãos? Mas não pode ser assim.
Trabalho exclusivamente para meus irmãos e irmãs; não tenho nenhum outro interesse na vida senão cumprir
minhas obrigações para com eles, o que, como o mais velho da família, prometera a minha falecida mãe fazer.’
Ou, então, uma mulher poderá dizer a propósito de seu sonho: ‘Pensa que eu desejaria ver meu marido morto?
Isso é chocante disparate! É que não somente estamos vivendo um casamento muito feliz — o senhor
provavelmente não acreditaria em mim se eu dissesse isso — mas a morte dele me roubaria tudo o que eu
tenho neste mundo.’ Um outro homem nos respondeu: ‘O senhor diz que tenho desejos sensuais por minha
irmã? Isso é ridículo! Ela não significa absolutamente nada para mim. Estamos brigados, e com ela não tenho
trocado uma palavra há anos.’ Poderíamos, talvez, não dar maior importância se tais pessoas não
confirmassem nem negassem as intenções que lhes atribuímos; poderíamos dizer que essas eram justamente
coisas que elas desconheciam a respeito de si próprias. Porém, quando sentem em si mesmas justamente o
contrário do desejo que lhes interpretamos, e quando conseguem provar-nos, através da vida que levaram,
estarem dominadas por esse desejo contrário, seguramente somos tomados de surpresa. Não teria chegado a
hora de abandonar todo o trabalho que executamos acerca da interpretação de sonhos, como algo cujos
achados se reduziram ad absurdum?Não, ainda não. Até mesmo este argumento mais forte desmorona se o
examinarmos criticamente. Tendo como certo que na vida mental existem intenções inconscientes, nada se
prova ao mostrar que intenções opostas às intenções inconscientes dominam a vida consciente. Quem sabe,
na mente há lugar para existirem lado a lado intenções opostas, contradições. Possivelmente, na verdade, a
dominância de um impulso seja precisamente a condição necessária para que seu contrário seja inconsciente.
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Afinal, restam-nos então as primeiras objeções levantadas: as descobertas da interpretação de sonhos não são
simples e são muito desagradáveis. À primeira delas podemos responder que toda a paixão dos senhores pelo
que é simples não conseguirá solucionar um só dos problemas dos sonhos. Aqui, os senhores precisam se
acostumar a enfrentar um complexo estado de coisas. E à segunda objeção podemos responder que os
senhores se enganam redondamente quando usam um gostar ou não-gostar daquilo que sentem como
fundamento de um julgamento científico. Que diferença faz se as descobertas da interpretação de sonhos lhes
parecem desagradáveis ou, na realidade, embaraçosas e repulsivas? ‘Ça n’empêche pas d’exister‘, conforme
ouvi meu mestre Charcot dizer, em situação semelhante, quando eu era um jovem médico. Deve-se ter
humildade e refrear as simpatias e antipatias quando se deseja descobrir o que é real neste mundo. Se um
físico pudesse provar-lhes que, em certo espaço de tempo, a vida orgânica neste planeta chegaria ao fim por
meio do congelamento, os senhores se arriscariam a dar-lhe a mesma resposta: ‘Não pode ser assim, a
perspectiva é tão desagradável assim?’ Penso que os senhores se calariam até que outro físico viesse e
mostrasse ao primeiro um erro em suas premissas ou em seus cálculos. Quando os senhores rejeitam alguma
coisa que lhes desagrada, o que fazem é repetir o mecanismo de construção dos sonhos, em vez de entendê-lo
e superá-lo.Ora, os senhores poderão prometer não levar em conta o caráter desagradável dos sonhos de
realização de desejo censurados, e se apoiarão no argumento de que, afinal, é improvável que seja dado
espaço tão grande ao mal na constituição dos seres humanos. A experiência dos senhores, porém, ratifica o
que dizem? Não irei discutir o que cada um possa aparentar a si mesmo; mas têm os senhores encontrado
tanta benevolência entre os seus superiores e competidores, tanto cavalheirismo entre os seus inimigos e tão
pouca inveja em seu meio social, que se sentem na obrigação de protestar contra o fato de a maldade egoísta
fazer parte da natureza humana? Não têm os senhores plena consciência de como a média das pessoas tem
descontroles e deslealdades em tudo o que diz respeito à vida sexual? Ou não sabem que todas as
transgressões e excessos com que sonhamos durante a noite são diariamente cometidos, na vida real, pelas
pessoas em sua vida desperta? O que faz aqui a psicanálise senão confirmar a velha sentença de Platão, de
que os bons são aqueles que se contentam em sonhar com aquilo que os outros, os maus, realmente fazem?E
agora, abstraiam-se dos indivíduos e considerem a grande guerra que ainda devasta a Europa. Pensem na
avassaladora brutalidade, na crueldade e nas mentiras que conseguem se alastrar pelo mundo civilizado. Os
senhores acreditam realmente que um punhado de homens ambiciosos, trapaceiros, sem consciência,
poderiam ter tido êxito em desatrelar todos esses maus espíritos se seus milhões de seguidores não
partilhassem de seu crime? Os senhores se arriscariam, nessas circunstâncias, a quebrar lanças em defesa da
inexistência do mal na constituição mental da humanidade?Os senhores me farão ver que estou fazendo um
julgamento unilateral da guerra: que esta também faz manifestar-se o que há de mais belo e nobre nos homens,
seu heroísmo, seu auto-sacrifício, seu senso social. Sem dúvida; mas os senhores não se estarão revelando
cúmplices da injustiça que tem sido feita à psicanálise, de reprová-la, negando uma coisa só porque ela afirmou
outra? Não é nossa intenção questionar os nobres reforços da natureza humana, e nunca fitemos algo que lhe
diminuísse o valor. Pelo contrário; estou mostrando aos senhores não apenas os maus sonhos de realização de
desejo que são censurados, mas também a censura que os suprime e os torna irreconhecíveis. Damos ênfase
maior àquilo que nos homens é mau tão-somente porque outras pessoas o rejeitam e, com isso, tornam a
mente humana não melhor, mas incompreensível. Se agora deixamos de lado essa avaliação ética unilateral,
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sem dúvida encontraremos uma fórmula mais correta para a relação entre o bem e o mal na natureza
humana.Aí está. Não temos por que abandonar as descobertas de nosso trabalho sobre interpretação dos
sonhos, ainda que não consigamos vê-las senão como estranhas. Talvez mais adiante sejamos capazes de nos
aproximarmos da compreensão delas a partir de outro enfoque. Por agora, fixemo-nos nisso: a deformação
onírica é conseqüência da censura exercida por intenções reconhecidas do ego contra impulsos plenos de
desejos de qualquer modo censuráveis, que perturbam nosso interior, à noite, durante nosso sono. Por que isso
tem de acontecer especialmente à noite, e de onde procedem esses desejos repreensíveis — ambos
constituem um assunto sobre o qual, sem dúvida, ainda há muito a questionar e pesquisar.
Seria injusto, porém, se a esta altura deixássemos de enfatizar suficientemente um outro resultado de
nossas investigações. Os sonhos de realização de desejo que procuram nos perturbar o sono, nos são
desconhecidos e, na verdade, deles somente tomamos conhecimento através da interpretação de sonhos.
Portanto, eles devem ser descritos, segundo o sentido de nossa exposição, como inconscientes no momento
atual. Devemos, contudo, refletir que são inconscientes também por duração mais longa do que no momento
atual. O sonhador, como temos verificado em tantos casos, também os rejeita depois de chegar a conhecê-los
pela interpretação do seu sonho. Aqui nos defrontamos novamente com a situação que, pela primeira vez,
encontramos no lapso de língua do ‘arroto’ [ver em [1]], onde o proponente do brinde protestou, indignado, que
nem naquela época, nem em qualquer outra época anterior, estivera cônscio de qualquer impulso
desrespeitoso em relação a seu chefe. Já naquela ocasião nos assaltaram algumas dúvidas a respeito da
validade de uma convicção dessa espécie, e, em vez disso, sugerimos a hipótese de que o orador tinha
permanente desconhecimento da presença de semelhante impulso em si próprio. Essa situação se repete,
agora, com toda interpretação de um sonho acentuadamente deformado e, conseqüentemente, adquire
redobrada importância pelo apoio que confere à nossa opinião. Agora estamos preparados para supor existirem
na mente processos e intenções dos quais a pessoa pode não saber absolutamente nada, nada soube durante
longo tempo, e até mesmo, talvez, jamais tenha sabido de alguma coisa. Com isso, o inconsciente adquire um
novo sentido para nós; a característica de ‘no momento atual’ ou ‘temporário’ desaparece de sua natureza
essencial. Pode significar permanentemente inconsciente e não meramente ‘latente em certa época’.
Naturalmente, haveremos de ouvir mais a este respeito, em outra ocasião.
CONFERÊNCIA X - SlMBOLISMO NOS SONHOS
SENHORAS E SENHORES:
Verificamos que a deformação que ocorre nos sonhos e interfere em nossa possibilidade de
compreendê-los, resulta de uma atividade censora dirigida contra inaceitáveis impulsos plenos de desejo
inconscientes. Não temos afirmado, naturalmente, ser a censura o único fator responsável pela deformação nos
sonhos, e, de fato, ao estudá-los mais detidamente podemos descobrir que outros fatores desempenham sua
parte na consecução desse resultado. Isso importa em dizermos que, mesmo estando fora de ação a censura
onírica, ainda assim não estaríamos em condições de entender os sonhos, o sonho manifesto ainda não seria
idêntico aos pensamentos oníricos latentes.Descobrimos esse outro fator que evita que os sonhos sejam
nítidos, essa nova contribuição à deformação onírica, ao constatarmos uma lacuna em nossa técnica. Já fiz ver
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
85
aos senhores [ver em [1]] que, às vezes, realmente acontece não ocorrer à pessoa em análise nenhuma idéia
em resposta a determinados elementos de seus sonhos. É verdade que isso não acontece tão seguidamente
como a pessoa afirma; em muitíssimos casos, com persistência, brota-lhe uma idéia. Não obstante, restam
casos nos quais deixa de surgir uma associação, ou, se essa é obtida, não nos dá o que dela esperávamos.
Acontecendo durante um tratamento analítico, isso tem um significado especial que não nos interessa aqui.
Contudo, também acontece na interpretação de sonhos de pessoas normais e em nossos próprios sonhos. Se
nos convencemos de que, em tais casos, não há pressão que possa nos ser de utilidade, terminamos por
descobrir que esse evento indesejado ocorre regularmente em conexão com determinados elementos oníricos,
e começamos a reconhecer que um novo princípio geral está em vigor ali onde começávamos a pensar que
apenas se nos antepunha uma excepcional falha de técnica.
Assim sendo, somos tentados a interpretar esses elementos oníricos ‘mudos’ em si mesmos, a nos pôr
a traduzi-los com nossos próprios recursos. Somos então compelidos a reconhecer que, sempre que nos
aventuramos a efetuar uma substituição dessa espécie, encontramos um sentido adequado para o sonho, ao
passo que este permanece carente de sentido; e a cadeia de pensamentos se mantém interrompida enquanto
nos abstivermos de intervir dessa maneira. A acumulação de muitos casos semelhantes proporciona, por fim, a
necessária certeza àquilo que começou como tímida experiência.
Estou expondo tudo isso de modo bastante esquemático. Tal, porém, afinal se permite por motivos
didáticos, e nada foi adulterado, mas apenas simplificado. Conseguimos, assim, traduções uniformes para
numerosos elementos oníricos — assim como os ‘livros de sonhos’ populares dão traduções para tudo o que
aparece nos sonhos. Os senhores naturalmente não se terão esquecido de que, quando usamos técnica
associativa, nunca se torna claro por que ocorrem determinadas substituições constantes de alguns elementos
oníricos.
Os senhores prontamente farão a objeção de que esse método de interpretação lhes parece muito mais
inseguro e passível de ataque do que o anterior, baseado na associação livre. Porém, existe algo mais. Pois,
quando, com a experiência, tivermos coligido número suficiente de tais versões constantes, chega a hora em
que percebemos que deveríamos ser capazes de lidar com essa parte da interpretação de sonhos por meio de
nossos próprios conhecimentos, e que elas poderiam realmente ser compreendidas sem as associações do
sonhador. O modo como devemos conhecer necessariamente seu significado se tornará claro na segunda
metade desta nossa exposição.Uma relação constante desse tipo entre um elemento onírico e sua versão, nós
a descrevemos como ‘relação simbólica’, e ao elemento onírico propriamente dito, como um ‘símbolo’ do
pensamento onírico inconsciente. Os senhores estão lembrando de que, anteriormente, quando investigávamos
as relações entre elementos oníricos e a coisa ‘original’ situada por trás deles, diferenciei três relações desse
tipo — a da parte com o todo, a da alusão e a da representação plástica. Na ocasião eu os adverti de que havia
uma quarta relação, porém não citei seu nome [ver em [1]]. Essa quarta relação é a relação simbólica que estou
apresentando agora. Ela enseja oportunidade para algumas discussões interessantes, e eu passarei a estas
antes de lhes demonstrar os resultados detalhados de nossas observações sobre o simbolismo.
O simbolismo é, talvez, o mais notável capítulo da teoria dos sonhos. Em primeiro lugar, como os
símbolos são versões constantes, realizam até certo ponto o ideal da antiga, tanto como da popular,
interpretação dos sonhos, do qual, com nossa técnica, nos afastamos muito. Permitem-nos em certas
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
86
circunstâncias interpretar um sonho sem fazer perguntas ao sonhador que, de qualquer modo, realmente nada
teria a nos dizer acerca do símbolo. Se estivermos familiarizados com os símbolos oníricos comuns, e, ademais
disso, com a personalidade do sonhador, as circunstâncias em que ele vive e as impressões que precederam a
ocorrência do sonho, freqüentemente estaremos em situação de interpretar um sonho com segurança — de
traduzi-lo à vista, por assim dizer. Um virtuosismo dessa espécie lisonjeia a quem interpreta o sonho e
impressiona aquele que teve o sonho; forma um agradável contraste com a laboriosa tarefa de interrogar o
sonhador. Contudo, não se deixem perder-se com isso. Não é de nosso feitio executar atos de virtuosismo. A
interpretação baseada no conhecimento dos símbolos não é uma técnica que possa substituir a técnica
associativa, nem competir com esta. A técnica dos símbolos suplementa a técnica associativa e produz
resultados que apenas possuem utilidade, quando subordinada a esta. E, no que concerne ao conhecimento
que se tenha da situação psíquica da pessoa que nos relata seu sonho, devem ter em mente que os sonhos
das pessoas que os senhores bem conhecem, não são os únicos que os senhores têm para analisar; ter em
mente que, via de regra, os senhores não estão familiarizados com os eventos do dia anterior, que foram
aqueles que provocaram o sonho, mas que as associações de idéias da pessoa que os senhores estão
analisando lhes proporcionarão um conhecimento preciso daquilo que chamamos situação psíquica.
Ademais, constitui aspecto muito notável — tendo em conta, também, algumas considerações que
mencionaremos mais adiante [cf. pág. 169-70] — o fato de se terem manifestado, mais uma vez, as mais
violentas resistências contra uma relação simbólica entre os sonhos e o inconsciente. Mesmo pessoas de
discernimento e reputação, que, afora isso, têm concordado em muito com a psicanálise, nesse ponto retiraram
seu apoio. Esse comportamento se afigura muito estranho; primeiro, em vista do fato de que o simbolismo não
constitui peculiaridade exclusiva dos sonhos e não é característico dos mesmos; e, em segundo lugar, o
simbolismo nos sonhos não é, de forma alguma, descoberta da psicanálise, embora esta tenha feito muitas
outras descobertas surpreendentes. O filósofo K. A. Scherner (1861) deve ser apontado como o descobridor do
simbolismo onírico, se é que absolutamente se possam situar seus inícios nos tempos atuais. A psicanálise
confirmou os achados de Scherner, embora tenha feito substanciais modificações nos mesmos.
Agora, certamente, os senhores desejam ouvir algo sobre a natureza do simbolismo dos sonhos e ter
alguns exemplos. Com satisfação lhes direi o que sei, embora deva confessar que nossa compreensão deste
tema não é tão completa como desejaríamos.
A essência desta relação simbólica constitui em ela ser uma comparação, embora não uma
comparação de tipo qualquer. Limitações especiais parecem estar vinculadas à comparação, porém é difícil
dizer quais sejam elas. Nem tudo aquilo com que podemos comparar um objeto ou um processo aparece nos
sonhos como símbolo dessa comparação. E, por outro lado, um sonho não simboliza cada elemento possível
dos pensamentos oníricos latentes, mas somente alguns pensamentos determinados. Assim, existem limitações
em ambos os sentidos. Devemos admitir, também, que o conceito de símbolo, no momento atual, não pode ser
definido com precisão: esse conceito se transfigura gradualmente em noções tais como as de substituição ou
representação, e mesmo se aproxima do que entendemos por alusão. Em numerosos símbolos, a comparação
que subjaz é óbvia. Entretanto, também aí existem outros símbolos em relação aos quais devemos nos
perguntar onde buscaremos o elemento comum, o tertium comparationis, da suposta comparação. Com outras
reflexões, podemos posteriormente descobri-lo, ou então ele pode permanecer definitivamente oculto. É
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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ademais estranho que, sendo o símbolo uma comparação, não seja elucidado por uma associação, e que o
sonhador não conheça, mas faça uso dele sem saber nada a seu respeito: mais ainda, na verdade, que o
sonhador não se sinta disposto a reconhecer a comparação, mesmo depois de esta lhe ter sido mostrada. Os
senhores observam, pois, que uma relação simbólica é uma comparação de tipo muito especial, cuja base até
agora ainda não apreendemos, embora possamos, posteriormente, chegar a alguma indicação sobre a mesma.
A gama de coisas às quais se confere uma representação simbólica nos sonhos, não é ampla: o corpo
humano como um todo, os pais, os filhos, irmãos e irmãs, nascimento, morte, nudez — e algumas outras coisas
mais. A representação típica — isto é, regular — da figura humana como um todo é uma casa, conforme foi
reconhecido por Scherner, que até mesmo quis atribuir a este símbolo uma importância transcendental que não
tem. Em um sonho, pode acontecer alguém sentir-se descendo pela fachada de uma casa, num momento
deliciando-se com isso, depois atemorizando-se. As casas com paredes lisas representam homens, e aquelas
com saliências e sacadas, em que é possível segurar-se, representam mulheres (ver em [1], adiante). Os pais
aparecem nos sonhos como imperador e imperatriz, rei e rainha [loc. cit.] ou outras personagens respeitadas;
com isso, os sonhos evidenciam muito respeito filial. Tratam, porém, com muito menos ternura os filhos, os
irmãos e as irmãs: estes são simbolizados como pequenos animais ou bichinhos. O nascimento é quase que
invariavelmente representado por algo que tem uma conexão com água: ou a pessoa cai dentro da água ou sai
da água, a pessoa salva alguém da água ou é resgatada da água por alguém — ou seja, é uma relação mãefilho
[ver em [1]]. Morrer é substituído, nos sonhos, por partir, por viajar de trem ver em [1] e [2]], estar morto é
representado por indícios diversos, por assim dizer, obscuros; a nudez, por meio de roupas e uniformes. Os
senhores vêem quão indistintos são os limites, aqui, entre a representação simbólica e a alusiva.
É surpreendente que, em comparação com essa reduzida numeração, existe uma outra área em que os
objetos e assuntos são representados por um simbolismo extraordinariamente rico. Essa área é a da vida
sexual — os genitais, os processos sexuais, a relação sexual. Nos sonhos, a grande maioria dos símbolos são
símbolos sexuais. E aqui se revela uma estranha desproporção. Os temas que mencionei são poucos, os
símbolos que os representam são, porém, extremamente numerosos, de forma que cada uma dessas coisas
pode ser expressa por numerosos símbolos quase equivalentes. Quando interpretados, o resultado origina
objeções generalizadas. Pois, em contraste com a multiplicidade das representações no sonho, as
interpretações dos símbolos variam muito pouco, o que enfada qualquer pessoa que ouve falar nisso; mas, o
que podemos fazer quanto a isto?
Como esta é a primeira vez que falo no tema da vida sexual, em uma destas conferências, devo-lhes
uma explanação sobre a maneira pela qual me proponho a tratar do assunto. A psicanálise não tem
necessidade de ocultamentos nem de palpites, não pensa que seja necessário envergonhar-se de lidar com
esse importante material, acredita que é correto e apropriado nomear cada coisa pelo seu nome certo e espera
que esta seja a melhor maneira de manter à distância idéias inadequadas, de natureza desorientadora. O fato
de estas conferências estarem sendo proferidas perante um auditório misto de ambos os sexos, não faz
qualquer diferença com relação a esse aspecto. Assim como não pode haver ciência in usum Delphini, também
não pode havê-la para meninas de colégio; e as senhoras aqui presentes já evidenciaram, por sua própria
presença nesta sala de conferências, que desejam ser tratadas em condições de igualdade com os homens.Os
genitais masculinos então são representados nos sonhos por numerosas formas que devem ser chamadas
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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simbólicas, nas quais o elemento comum da comparação é em geral muito evidente. Primeiramente, para os
genitais masculinos como um todo, o sagrado número 3 tem significação simbólica [ver em [1] e segs.]. O mais
notável e, para ambos os sexos, mais interessante componente dos genitais, o órgão masculino, encontra
substitutos simbólicos primordialmente em coisas que a ele se assemelham pela sua forma — coisas, portanto,
que são alongadas e retas, tais como: bengalas, guarda-chuvas, postes, árvores, e assim por diante; e também
objetos que compartilham, com a coisa que representam, da característica de penetrar no corpo e ferir — ou
seja, armas pontiagudas de toda espécie, facas, punhais, lanças, sabres e também armas de fogo, rifles,
pistolas e revólveres (especialmente adequados por causa de sua forma). Nos sonhos de ansiedade de uma
menina, ser seguida por um homem com uma faca ou com arma de fogo desempenha importante papel. Esse
talvez seja o caso mais comum de simbolismo onírico, e agora os senhores estão aptos a traduzi-lo com
facilidade. E não é difícil compreender de que modo o órgão masculino pode ser substituído por objetos dos
quais flui água — torneira, regador, chafariz —, ou, ainda, por outros objetos capazes de se distenderem, tais
como lâmpadas suspensas, lápis extensíveis, etc. Um aspecto não menos óbvio do órgão explica o fato de que
lápis, canetas, limas, martelos e outros instrumentos são indubitáveis símbolos sexuais masculinos.A
extraordinária característica do órgão masculino de ser capaz de erguer-se em desafio às leis da gravidade, um
dos fenômenos da ereção, faz com que seja representado simbolicamente por balões, máquinas voadoras e,
mais recentemente, pelas aeronaves Zeppelin. Os sonhos, porém, podem simbolizar a ereção de outra
maneira, muito mais expressiva. Podem tratar o órgão sexual como sendo a essência da pessoa inteira daquele
que sonha e fazê-lo voar. Não se melindrem com a idéia de que os sonhos com voar, tão comuns e
freqüentemente tão agradáveis, devam ser interpretados como sonhos de excitação sexual geral, como sonhos
de ereção. Entre alunos de psicanálise, Paul Federn [1914] colocou essa interpretação fora de dúvida; contudo,
através de suas investigações chegou à mesma conclusão Mourly Vold [1910-12, 2, 791], que tem sido tão
elogiado por sua seriedade, quem levou a cabo as experiências com sonhos a que me referi [ver em [1] e [2]]
com posições artificialmente assumidas dos braços e pernas, e estava muito distanciado da psicanálise e
possivelmente nada sabia a respeito dela. E não façam, a partir daí, a objeção ao fato de as mulheres poderem
ter os mesmos sonhos de voar, como os homens. Lembrem-se, antes, de que nossos sonhos objetivam ser
realizações de desejos e que o desejo de ser homem com muita freqüência é encontrado, consciente ou
inconscientemente, em mulheres. E ninguém que conheça anatomia se espantará com o fato de que é possível
às mulheres realizar esse desejo através das mesmas sensações do homem. As mulheres possuem, como
parte de seus genitais, um pequeno órgão semelhante ao órgão masculino; e esse pequeno órgão, o clitóris,
realmente desempenha na infância e durante os anos anteriores às relações sexuais o mesmo papel que
desempenha o grande órgão dos homens.Entre símbolos sexuais masculinos menos inteligíveis situam-se
certos répteis e peixes e, acima de tudo, o famoso símbolo da cobra. Certamente não é fácil adivinhar por que
chapéus e sobretudos ou capas são empregados da mesma maneira; contudo, seu significado simbólico é
bastante inquestionável [ver em [1]]. Finalmente, podemos nos perguntar se a substituição do membro
masculino por outro membro, o pé ou a mão, deveria ser descrita como simbólica. Penso que somos
compelidos a também fazê-lo, em face ao contexto e aos equivalentes, no caso das mulheres.Os genitais
femininos são simbolicamente representados por todos esses objetos que compartilham da característica de
possuírem um espaço oco que pode conter algo dentro de si: buracos, cavidades e concavidades, por exemplo;
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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vasos e garrafas, recipientes, caixas, malas, estojos, cofres, bolsas, e assim por diante. Barcos também se
incluem nesta categoria. Alguns símbolos têm mais conexão com o útero do que com os genitais femininos:
assim, armários, fogões e, mais especialmente, aposentos. Aqui o simbolismo de aposento se aproxima do
simbolismo de casa. Portas e portões também são símbolos do orifício genital. Os materiais também são
símbolos femininos [ver em [1]]: madeira, papel e objetos feitos desses materiais como mesas e livros. Dentre
os animais, caramujos e conchas, pelo menos, são inegáveis símbolos femininos: entre as partes do corpo, a
boca (como substituto do orifício genital); entre as construções, igrejas e capelas; como podem observar, nem
todos os símbolos são igualmente inteligíveis.Os seios devem ser incluídos nos genitais; sendo hemisférios
volumosos do corpo feminino, são representados por maçãs, pêras e frutas, em geral. Os pêlos pubianos de
ambos os sexos são representados nos sonhos por florestas e moitas. A complexa topografia das partes
genitais femininas torna compreensível o fato de elas serem freqüentemente representadas por paisagens com
rochedos, floresta e água, ao passo que o imponente mecanismo do aparelho genital feminino explica por que
todo tipo de máquinas, difíceis de descrever, lhe serve de símbolo.Outro símbolo dos genitais femininos, que
merece ser mencionado, é o porta-jóias. Jóia e tesouro são usados nos sonhos, assim como na vida desperta,
para mencionar alguém que é amado. Doces freqüentemente representam satisfação sexual. A satisfação que
uma pessoa obtém com seus próprios genitais é indicada por toda espécie de tocar, inclusive tocar piano.
Constituem representação simbólica par excellence da masturbação o deslizar ou escorregar, o arrancar um
ramo [ver em [1]]. A queda de um dente, ou a extração de um dente são símbolos oníricos particularmente
dignos de reparo. Sua significação primeira é indubitavelmente a castração como castigo pela masturbação
[loc. cit.]. Encontramos representações especiais do ato sexual com menos freqüência do que se poderia
esperar com base naquilo que se disse até aqui. Atividades rítmicas como dançar, cavalgar e subir devem ser
mencionadas aqui, bem como ocorrências violentas, como ser atropelado; e ainda da mesma forma, certas
atividades manuais e naturalmente ameaças com armas.Os senhores não devem imaginar que seja muito
simples o emprego ou a tradução desses símbolos. No decurso deles, acontecem todos os tipos de coisas que
são contrárias às nossas expectativas. Parece quase inacreditável, por exemplo, que nessas representações
simbólicas as diferenças entre os sexos amiúde não são nitidamente observadas. Alguns símbolos significam
em geral, independentemente de serem masculinos ou femininos, por exemplo: uma criança pequena, um filho
pequeno, uma filha pequena. Ou ainda, um símbolo predominantemente masculino pode ser empregado para
representar genitais femininos e vice-versa. Não podemos compreender esse fato enquanto não tivermos obtido
determinada compreensão interna (insight) da evolução das idéias sexuais nos seres humanos. Em alguns
casos, a ambigüidade dos símbolos pode ser apenas aparente; e os símbolos mais marcados, como armas,
bolsas e cofres, se excluem desse uso bissexual.
Agora, partindo não da coisa representada, mas sim do símbolo, prosseguirei fazendo um exame de
conjunto das áreas das quais geralmente derivam os símbolos sexuais, e farei algumas observações adicionais,
com especial referência aos símbolos em que o elemento comum da comparação não está entendido. O
chapéu é um símbolo obscuro deste tipo — talvez, também, tudo o que se usa para cobrir a cabeça, em geral
— e tem, via de regra, significação masculina, mas é também capaz de ter significação feminina. Da mesma
forma, um sobretudo ou uma capa significam um homem, talvez nem sempre se referindo ao aspecto genital;
compete aos senhores perguntarem por quê. Gravatas, que são coisas que ficam pendentes e não são usadas
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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por mulheres, são definitivamente um símbolo masculino. Roupa interior e roupa branca geralmente são
símbolos femininos. Vestuário e uniformes, conforme já vimos, são substitutos da nudez ou das formas
corporais. Sapatos e chinelos são símbolos de genitais femininos. Mesas e madeira já foram mencionadas
como símbolos femininos enigmáticos, porém certos. Escadas, degraus, escadarias, ou, mais precisamente,
subir ou descer pelos mesmos, são claros símbolos da relação sexual. Pensando melhor, ocorre-nos que aqui o
elemento comum é o ritmo de galgá-los — talvez, também, a crescente excitação e a respiração ofegante à
medida que se sobe [ver em [1]].Já nos referimos anteriormente a paisagens como representantes dos genitais
femininos. Montes e rochedos são símbolos do órgão masculino. Jardins são símbolos comuns dos genitais
femininos. Frutas representam não os filhos, mas os seios. Animais selvagens significam pessoas em estado de
excitação sensual e, além disso, os maus instintos ou paixões. Botões e flores indicam os genitais femininos ou,
em especial, a virgindade. Não se esqueçam de que realmente as flores constituem os genitais das plantas.Já
conhecemos aposentos como símbolos. A representação pode ir além, as janelas e portas, com ou sem
aposentos, assumindo o significado de orifícios do corpo. E a questão de um aposento estar aberto ou fechado
se adapta a este simbolismo, e a chave que o abre é decididamente um símbolo masculino.Esse, pois, o
material de que se serve o simbolismo nos sonhos. Não está completo e poderia ser aprofundado e ampliado
ainda mais. Imagino, porém, que lhes parecerá mais que suficiente, e talvez até mesmo possa tê-los irritado.
‘Será que de fato vivo no meio de símbolos sexuais?’ — poderão perguntar. ‘São todos os objetos ao meu
redor, todas as roupas que visto, todas as coisas que pego, todos símbolos sexuais, e nada mais?’ Existe, com
efeito, fundamento suficiente para fazer perguntas atônitas, e, como primeira delas, podemos nos interrogar
sobre como realmente chegamos a conhecer a significação desses símbolos oníricos, a respeito dos quais o
sonhador nos dá informação insuficiente, ou absolutamente nenhuma informação.Minha resposta é que a
aprendemos a partir de fontes muito diversas — de contos de fadas, de mitos, de bufonarias e anedotas, do
folclore (isto é, do conhecimento dos usos populares e costumes, da maneira de falar e das canções) e de
expressões idiomáticas, poéticas e coloquiais. Em todas essas direções encontramos o mesmo simbolismo e,
em alguns deles, podemos entendê-lo sem maior erudição. Se penetrarmos nos detalhes dessas fontes,
encontraremos tantas semelhanças do simbolismo onírico, que não podemos deixar de nos convencer de
nossas interpretações.Segundo Scherner, como dissemos [ver em [1]], o corpo humano é com freqüência
representado nos sonhos pelo símbolo de uma casa. Aprofundando esta representação, verificamos que
janelas, portas e portões representavam as aberturas do corpo e que as fachadas das casas eram ou lisas ou
providas de sacadas e saliências nas quais se podia encontrar apoio. Contudo, o mesmo simbolismo é
encontrado em nossos usos idiomáticos — quando saudamos familiarmente um conhecido, como uma ‘altes
Haus‘ [‘casa velha’], quando falamos em dar a alguém ‘eins aufs Dachl‘ [uma pancada na cabeça, literalmente,
‘uma no telhado’], ou quando dizemos de uma pessoa que ‘ela não está bem do sótão’. Na anatomia, os
orifícios do corpo são muitas vezes chamados ‘Leibespforten‘ [literalmente, ‘portões do corpo’].
De início parece surpreendente encontrar os pais, nos sonhos, como casal imperial ou real. Isso,
porém, tem seu similar nos contos de fadas. Começamos a compreender que as variadas histórias de fadas
que começam com ‘Era uma vez um rei e uma rainha’ apenas querem dizer que certa vez havia um pai e uma
mãe. Em uma família as crianças são, de brincadeira, chamadas de ‘príncipes’, e o mais velho, de ‘príncipe
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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herdeiro’. O próprio rei se denomina o pai de seu país. Por brincadeira falamos nos filhos como ‘Würmer‘
[‘bichinhos’] e com simpatia nos referimos a uma criança como ‘der arme Wurm‘ [‘pobre bichinho’].
Retornemos ao simbolismo da casa. Quando, em um sonho, fazemos uso das saliências de uma casa
para nelas nos segurarmos, podemos nos recordar de uma expressão vulgar comumente usada para designar
seios bem desenvolvidos: ‘Ela tem coisa para agarrar.’ Existe outra expressão popular em tais casos: ‘Ela tem
muita madeira em frente de casa’, o que parece confirmar nossa interpretação da madeira como símbolo
feminino, materno.
E, por falar em madeira, é difícil compreender como esse material veio a representar o que é materno.
No entanto, nisso a filologia comparada pode vir em nosso auxílio. Nossa palavra alemã ‘Holz‘ parece provir da
mesma raiz da ‘ulh [hulé]’ grega significando material, matéria-prima. Esse parece ser um exemplo da
ocorrência não rara de um nome genérico de um material vir a ser, afinal, reservado a algum material
determinado. Ora, existe no Atlântico uma ilha chamada ‘Madeira’ Este nome lhe foi dado pelos portugueses
quando a descobriram, porque naquela época estava toda recoberta de florestas. Pois na língua portuguesa
‘madeira’ está relacionada a ‘floresta’. Os senhores observam, porém, que ‘madeira’ é apenas uma forma
ligeiramente modificada da palavra latina ‘materia‘, que, mais uma vez, significa ‘material’ em geral. Contudo,
‘materia‘ é derivada de ‘mater‘, ‘mãe’: o material do qual tudo é feito, por assim dizer, a mãe de tudo. Esse
conceito antigo da coisa sobrevive, portanto, no uso simbólico de madeira como ‘mulher’ ou ‘mãe’.
O nascimento é geralmente expresso nos sonhos por meio de alguma conexão com a água: a pessoa
cai na água ou é tirada das águas — dá à luz ou nasce. Não devemos nos esquecer de que este símbolo
consegue se utilizar, em dois sentidos, da verdade da evolução. Não apenas todos os mamíferos terrestres,
inclusive os ancestrais do homem, descendem de seres aquáticos (este é o mais remoto dos dois fatos), mas
também todo mamífero, todo ser humano, passou a primeira fase de sua existência na água — ou seja, na
qualidade de embrião, no líquido amniótico do útero materno, e saiu dessa água ao nascer. Não digo que
aquele que sonha sabe disso; por outro lado, afirmo que ele não necessita saber. Existe algo mais que o
sonhador provavelmente sabe, por lhe haver sido dito em sua infância; assim mesmo, afirmo que, se soubesse,
esse conhecimento em nada contribuiria para a construção do símbolo. Foi-lhe dito, quando criança, que é a
cegonha que traz os bebês. Mas de onde os busca? Do lago, ou do rio — mais uma vez, pois, da água. Um de
meus pacientes, após lhe haver sido dada esta informação — na época ele era um pequeno conde —
desapareceu por uma tarde inteira. Por fim, foi encontrado de bruços junto à borda do lago do castelo, com seu
rostinho pendido sobre a superfície da água, perscrutando atentamente, procurando ver os bebês no fundo da
água.
Nos mitos sobre o nascimento de heróis — aos quais Otto Rank [1909] dedicou um estudo comparado,
sendo o mais antigo o mito do rei Sargão, de Agade (cerca de 2.800 a.C.) —, uma parte predominante é
desempenhada pelo abandono na água e o resgate da água. Rank constatou que isso são representações do
nascimento, análogas às que comumente surgem nos sonhos. Quando uma pessoa salva alguém das águas,
em um sonho, ela se transforma em sua mãe, ou, simplesmente, em mãe. Nos mitos uma pessoa que salva um
bebê das águas admite ser a verdadeira mãe do bebê. Existe uma conhecida anedota cômica segundo a qual
perguntaram a um inteligente menino judeu quem era a mãe de Moisés. Respondeu sem hesitação: ‘A
princesa.’ ‘Não’, disseram-lhe, ‘ela somente o tirou da água’ ‘Isso é o que ela diz’, replicou, e assim provou que
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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havia encontrado a interpretação correta do mito.Nos sonhos, partir significa morrer. Assim, quando uma
criança pergunta onde está alguém que morreu, e de quem sente falta, é costume comum responder-lhe que
esse alguém partiu de viagem. Mais uma vez gostaria de desmentir a crença de que o símbolo onírico deriva
dessa evasiva. O dramaturgo [Shakespeare, em Hamlet, Ato III, Cena 1] usa a mesma conexão simbólica
quando fala na morte como ‘país desconhecido de cujos limites nenhum viajante retorna’. Mesmo na vida
comum é freqüente falar em ‘última jornada’. Todo aquele que conhece os rituais antigos se apercebe de como
se levava a sério (na religião do antigo Egito, por exemplo) a idéia de uma viagem às regiões da morte.
Sobreviveram muitas cópias do Livro dos Mortos, que era fornecido à múmia como um guia de viagem, para ser
levado nessa jornada. Desde quando os locais funerários foram separados dos locais de moradia, a última
viagem de uma pessoa morta se tornou verdadeiramente uma realidade.E não se pense que o simbolismo
genital seja algo encontrado apenas em sonhos. Provavelmente todos os senhores, em uma ou outra ocasião,
referiram-se indelicadamente a uma mulher como ‘alte Schachtel‘ [‘caixa velha’], talvez sem saber que estavam
usando um símbolo genital. No Novo Testamento encontramos a mulher sendo mencionada como o ‘vaso mais
frágil’. As escrituras hebraicas, escritas em um estilo que muito se aproxima da poesia, estão plenas de
expressões sexualmente simbólicas, que nem sempre foram corretamente compreendidas e cuja exegese (por
exemplo, no caso do Cântico de Salomão) tem causado alguns equívocos. Na literatura hebraica posterior é
muito comum encontrar a mulher representada por uma casa, cuja porta representa o orifício sexual. Um
homem se queixa, por exemplo, em um caso de perda da virgindade, de haver encontrado a porta aberta.
Assim, também nesses escritos o símbolo da mesa representa a mulher. Por isso uma mulher diz de seu
marido: ‘Eu lhe preparei a mesa, mas ele a virou.’ Diz-se que as crianças aleijadas surgem porque o homem
‘virou a mesa’. Estes exemplos, eu os tomei de um artigo do Dr. L. Levy de Brünn [1914].O fato de, nos sonhos,
também os navios representarem mulheres merece crédito, pois os etimologistas nos dizem que ‘Schiff [navio]’
era originalmente o nome de um recipiente de barro e é a mesma palavra que ‘Schaff‘ [palavra dialetal que
significa ‘tina’]. O fato de fogões representarem mulheres e útero, é confirmado pela lenda grega de Periandro
de Corinto e sua esposa Melissa. O tirano, segundo Heródoto, faz aparecer o espírito de sua mulher, a quem
amara apaixonadamente e, contudo, assassinara por ciúmes, a fim de obter dela algumas informações. A
mulher morta provou sua identidade dizendo que ele, Periandro, havia ‘metido seu pão dentro de um forno frio‘,
como forma de disfarçar um acontecimento que só era conhecido dos dois. Na revista Anthropophyteia, editada
por F. S. Krauss, inestimável fonte de conhecimentos de antropologia sexual, ficamos sabendo que, em
determinada região da Alemanha, de uma mulher que deu à luz uma criança se diz que ‘o forno dela se fez em
pedaços‘. Pegar fogo, fazer fogo, e tudo o que com isso se relacione, está intimamente entretecido de
simbolismo sexual. A chama é sempre um genital masculino e a lareira, o fogão, é seu equivalente feminino.Se
os senhores puderem se surpreender com a freqüência com que as paisagens são empregadas nos sonhos
para representar os genitais femininos, podem aprender da mitologia geral qual o papel desempenhado pela
Mãe Terra nos conceitos e cultos dos povos da Antigüidade, e como sua visão da agricultura era determinada
por esse simbolismo. O fato de, em sonhos, um quarto representar uma mulher, os senhores tenderão a atribuílo
ao uso idiomático de nossa linguagem pelo qual ‘Frau‘ é substituído por ‘Frauenzimmer‘ — o ser humano
sendo substituído pelo aposento destinado a ele. De forma semelhante, falamos em ‘Sublime Porte’
significando o sultão e seu governo. Assim, também o título do governante do Egito antigo, ‘Faraó’, significa
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
93
simplesmente ‘Grande Saguão do Paço’. (No antigo oriente, os pátios entre os duplos portões de uma cidade
eram locais de encontro públicos, assim como as praças do mercado do mundo clássico ) Essa derivação,
entretanto, parece ser excessivamente superficial. Parece-me mais provável que um aposento se tornou
símbolo de mulher por ser o espaço que encerra seres humanos. Já verificamos que ‘casa’ é usada em sentido
semelhante; e a mitologia e a linguagem poética nos possibilitam acrescentar ‘cidade’, ‘cidadela’, ‘castelo’ e
‘fortaleza’ como outros símbolos para ‘mulher’. Poder-se-ia facilmente levantar a questão a respeito de sonhos
de pessoas que não falam ou não entendem o idioma alemão. Durante esses últimos anos tenho tratado
principalmente pacientes de idioma estrangeiro e parece-me que me lembro de que também em seus sonhos
‘Zimmer‘ [‘aposento’] significava ‘Frauenzimmer‘ embora em seus idiomas não tivessem uso semelhante.
Existem outras indicações de que a relação simbólica pode ultrapassar os limites da linguagem — o que, aliás,
foi afirmado
há muito tempo por um antigo pesquisador de sonhos, Schubert [1814]. No entanto, nenhum de meus
pacientes ignorava completamente o alemão, de modo que a decisão deve ser deixada aos analistas que
podem coligir dados das pessoas que usam um só idioma, em outros países.
Dificilmente alguma das representações simbólicas dos genitais masculinos não reaparece no uso
anedótico, vulgar ou poético, especialmente junto aos dramaturgos clássicos antigos. Entretanto, aqui
encontramos não apenas os símbolos que surgem nos sonhos, porém outros mais como, por exemplo,
utensílios usados em diversas atividades, e especialmente o arado. Ademais, a representação simbólica da
masculinidade nos leva a uma região muito extensa e muito controvertida, que por motivos de economia
evitaremos. Gostaria, no entanto, de dedicar algumas palavras a um símbolo que, por assim dizer, se exclui
dessa categoria: o número 3. Permanece obscuro o fato de saber se este número deve seu caráter sagrado a
essa relação simbólica. O que no entanto parece certo é que numerosas coisas tripartidas existentes na
natureza — a folha de trevo, por exemplo — devem seu uso em brasões e emblemas a esse significado
simbólico. De maneira semelhante, o lírio tripartido — a chamada fleur-de-lis — e o notável desenho heráldico
de duas ilhas tão distantes uma da outra, como a Sicília e a ilha de Man — o tríscele (três pernas meio fletidas
irradiando-se de um centro) — parecem ser versões estilizadas dos genitais masculinos. As formas do órgão
masculino eram consideradas na Antigüidade como o mais poderoso apotropaico (meio de defesa) contra más
influências e, por conseguinte, os amuletos de nossos dias podem, todos eles, ser reconhecidos facilmente
como símbolos genitais ou sexuais. Consideremos uma coleção dessas coisas — como são usadas, por
exemplo, na forma de pequenos berloques de prata pendentes: trevo de quatro folhas, porco, cogumelo,
ferraduras, escada, vassoura de chaminé. O trevo de quatro folhas tomou o lugar do de três folhas, que
realmente se presta para ser um símbolo. O porco é um antigo símbolo da fertilidade. O cogumelo é sem dúvida
um símbolo do pênis: existem cogumelos [fungos] que devem seu nome sistemático (Phallus impudicus) à sua
inconfundível semelhança com o órgão masculino. A ferradura reproduz o contorno do orifício genital feminino,
ao passo que a vassoura de chaminé, que se associa à escada, aparece em companhia desta em face de suas
funções, às quais vulgarmente se compara o ato sexual. (Cf. Anthropophyteia.) Conhecemos essa escada, em
sonhos, como símbolo sexual; aqui o uso idiomático alemão vem em nosso auxílio e nos mostra como a palavra
‘steigen‘ [‘subir’, ou ‘montar’] é usada no que é par excellence um sentido sexual. Dizemos ‘den Frauen
nachsteigen‘ [‘perseguir’ (literalmente ‘trepar’) ‘mulheres’], e ‘ein alter Steiger‘ [‘um velho farrista’ (literalmente
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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‘trepador’)]. Em francês a palavra para degraus de uma escada é ‘marches‘, e encontramos um termo
exatamente análogo ‘un vieux marcheur‘. O fato de que, em muitos animais de grande porte, subir ou ‘montar’
na fêmea é um preliminar necessário ao ato sexual, provavelmente se presta a este contexto.‘Arrancar um
galho’, como representação simbólica da masturbação, não apenas se coaduna com as descrições vulgares do
ato como também possui semelhanças mitológicas amplas. Mas que a masturbação, ou melhor, a punição
correspondente — a castração — seja representada pela queda ou extração de dentes, é fato especialmente
notável, pois existe na antropologia um seu equivalente, o qual pode ser do conhecimento de apenas um
pequeno número das pessoas que sonham. Parece-me inequívoco que a circuncisão, praticada por tantos
povos, é um equivalente e substituto da castração. E agora sabemos de determinadas tribos primitivas da
Austrália que realizam a circuncisão como um rito da puberdade (na cerimônia em que se celebra o início da
maturidade sexual de um menino), enquanto outras tribos, seus vizinhos próximos, substituíram esse ato pela
quebra de um dente.A este ponto, encerro minha exposição desses exemplos. São apenas exemplos. A
respeito deste assunto conhecemos muito mais; porém os senhores podem imaginar como seria mais rica e
mais interessante uma coleção como essa, se fosse reunida não por amadores como nós, e sim por
verdadeiros profissionais da mitologia, antropologia, filologia e do folclore.Algumas conseqüências se impõem à
nossa atenção; não podem ser completas, porém nos oferecem material para reflexão.Em primeiro lugar,
deparamos com o fato de que o sonhador tem à sua disposição uma forma simbólica de expressão que ele
desconhece na vida desperta e não reconhece. Isso é tão extraordinário como se os senhores viessem a
descobrir que sua empregada doméstica entendesse sânscrito, embora sabendo que ela nasceu numa aldeia
da Boêmia e jamais o estudou. Não é fácil explicar tal fato com o auxílio de nossas concepções psicológicas.
Apenas podemos dizer que o conhecimento do simbolismo é inconsciente naquele que sonha, que pertence à
sua vida mental inconsciente. Contudo, mesmo com essa suposição, não chegamos ao cerne da questão. Até
agora apenas nos tem sido necessário supor a existência de esforços inconscientes — isto é, esforços dos
quais nada sabemos, temporária ou permanentemente. Agora, porém, trata-se de algo mais que isso
simplesmente, de parcelas inconscientes de conhecimento, de conexões de pensamentos, de comparação
entre diferentes objetos que resultam na possibilidade de estes serem regularmente colocados um em lugar do
outro. Essas comparações não são recém-estabelecidas em cada ocasião; estão de antemão prontas para uso
e são completas, de uma vez por todas. Isso está implícito no fato de serem concordantes, quando se trata de
indivíduos diferentes — possivelmente, na verdade, concordantes, apesar das diferenças de idioma. Qual pode
ser a origem dessas relações simbólicas? O uso idiomático cobre apenas uma parte delas. A multiplicidade de
analogias em outras esferas de conhecimento é, na maioria das vezes, desconhecida da pessoa que tem o
sonho; nós mesmos tivemos de laboriosamente colecioná-las.Em segundo lugar, tais relações simbólicas não
constituem peculiaridade do sonhador ou da elaboração onírica, através da qual elas adquirem expressão. Esse
mesmo simbolismo, como vimos, é empregado por mitos e contos de fadas, pelas pessoas em seus ditados e
em sua canções, pelo uso idiomático coloquial e pela imaginação poética. O campo do simbolismo é
imensamente amplo e o simbolismo onírico constitui apenas pequena parte dele: na verdade, não conduz a
nenhum objetivo útil atacar o problema a partir dos sonhos. Muitos símbolos que são comumente usados em
outros contextos aparecem no sonho muito raramente, ou absolutamente não aparecem. Alguns símbolos
oníricos não podem ser encontrados em todas as áreas, porém, como os senhores viram, apenas num ou
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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noutro lugar. Tem-se a impressão de que nos defrontamos aqui com um modo de expressão antigo, porém
extinto, cujas diferentes partes sobreviveram em diferentes campos de fenômenos, uma parte somente aqui,
outra somente ali, uma terceira parte, talvez, com suas formas ligeiramente modificadas, em diversas áreas. E
nisso, recordo-me da fantasia de um interessante paciente psicótico que imaginou uma ‘linguagem básica’ da
qual todas essas relações simbólicas seriam resíduos. Em terceiro lugar, deve ter-lhes causado surpresa que o
simbolismo, nas outras áreas que mencionei, não é absolutamente apenas simbolismo sexual, ao passo que
nos sonhos os símbolos são empregados quase exclusivamente para expressão de objetos e relações sexuais.
Isso também não se explica facilmente. Deveríamos supor que os símbolos, que originalmente possuíam uma
significação sexual, mais tarde tenham adquirido outra aplicação e que, ademais disso, a atenuação da
representação por símbolos em outros tipos de representação pode estar em conexão com este aspecto?
Essas questões evidentemente não podem ser respondidas enquanto não houvermos considerado o
simbolismo onírico isoladamente. Podemos apenas manter firme a suspeita de que existe uma relação
especialmente íntima entre símbolos,verdadeiros e sexualidade.
Com referência a esse aspecto descobrimos importantes indícios durante esses últimos anos. Um
filólogo, Hans Sperber [1912], de Uppsala, que trabalha independentemente da psicanálise, apresentou o
argumento de que as necessidades sexuais desempenharam o papel principal na origem e no desenvolvimento
da linguagem. Segundo esse autor, os sons originais da linguagem se destinavam à comunicação e atraíam o
parceiro sexual; a evolução ulterior das raízes lingüísticas acompanhou as atividades laborativas do homem
primitivo. Essas atividades, prossegue ele, eram executadas em comum e acompanhadas por expressões
ritmicamente repetidas. Assim, um interesse sexual permaneceu vinculado ao trabalho. O homem primitivo
tornou o trabalho aceitável, por assim dizer, tratando-o como equivalente e substituto da atividade sexual. As
palavras enunciadas durante o trabalho em comum tinham, pois, dois significados: designavam atos sexuais e
também a atividade laborativa que a estes se equiparava. Com o decorrer do tempo as palavras se
desvincularam da significação sexual e fixaram-se no trabalho. Em gerações posteriores a mesma coisa
aconteceu com as palavras novas, que tinham significado sexual e eram aplicadas a novas formas de trabalho.
Desse modo, numerosas raízes de palavras teriam sido formadas, todas elas de origem sexual, perdendo
subseqüentemente sua significação sexual. Se é correta a hipótese que delineei aqui, ela nos possibilitaria
compreender o simbolismo dos sonhos. Deveríamos entender por que os sonhos, que conservam algumas das
condições mais primitivas, mantêm um número tão extraordinariamente grande de símbolos sexuais e por que
geralmente armas e utensílios representam o que é masculino, ao passo que materiais e coisas, que se
prestam para serem transformados pelo trabalho, representam o que é feminino. A relação simbólica seria o
resíduo de uma antiga identidade verbal, coisas que numa época foram chamadas pelo mesmo nome, tanto
que os genitais poderiam agora servir como símbolo para os mesmos, nos sonhos.Os aspectos correlatos que
encontramos no simbolismo onírico também nos permitem formar uma estimativa dessa característica da
psicanálise que lhe permite atrair interesse geral, de uma forma que nem a psicologia nem a psiquiatria
conseguiram fazê-lo. No trabalho da psicanálise formam-se vínculos com numerosas outras ciências mentais,
cuja investigação promete resultados do mais elevado valor: vínculos com a mitologia e a filosofia, com o
folclore, com a psicologia social e com a teoria da religião. Os senhores não ficarão surpresos ao ouvir que uma
revista cresceu em solo psicanalítico e seu único objetivo é fortificar esses vínculos. Essa revista é conhecida
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pelo nome de Imago, fundada em 1912 e editada por Hanns Sachs e Otto Rank. Em todos esses vínculos a
participação da psicanálise é, em primeira instância, a de doador e, apenas em menor escala, a de receptor. É
verdade que isso lhe traz a vantagem de seus estranhos achados se tornarem mais conhecidos quando
constatados também em outras áreas da ciência; porém, em seu conjunto, é a psicanálise que provê os
métodos técnicos e as concepções cuja aplicação nesses outros campos deve se mostrar proveitosa. A vida
mental dos seres humanos, quando sujeita à investigação psicanalítica, oferece-nos explicações com cujo
auxílio conseguimos resolver numerosos enigmas da vida das comunidades humanas ou, pelo menos,
enquadrá-los num enfoque verdadeiro.A propósito, ainda não lhes disse absolutamente nada com respeito às
circunstâncias em que podemos obter nossa mais profunda compreensão da hipotética ‘linguagem primitiva’, e
ao campo em que a maior parte desta sobreviveu. Até virem a conhecê-la, os senhores não poderão formar
uma opinião de sua total importância. Pois esse campo é o das neuroses e seu material são os sintomas e
outras manifestações dos pacientes neuróticos, para cuja elucidação e tratamento a psicanálise foi, de fato,
criada. A quarta de minhas reflexões nos leva de volta ao começo e nos conduz por nosso caminho
previamente determinado. Eu disse [ver em [1]] que os sonhos, ainda que não houvesse censura de sonhos,
não seriam facilmente inteligíveis para nós, de vez que ainda teríamos de nos defrontar com a tarefa de traduzir
a linguagem simbólica dos sonhos para a de nosso pensamento desperto. Assim, o simbolismo é um segundo e
independente fator de deformação de sonhos, ao lado da censura de sonhos. É plausível supor, porém, que a
censura de sonhos julga conveniente fazer uso do simbolismo, porque isso conduz ao mesmo fim: o caráter
estranho e incompreensível dos sonhos.Em breve ficará esclarecido se um estudo adicional dos sonhos não
nos poderá colocar em face de um outro fator que contribui para a deformação dos sonhos. Contudo, eu não
gostaria de abandonar o tema do simbolismo onírico sem mais uma vez [ver em [1] e [2]] tocar no problema
sobre o modo como ele pode encontrar resistência tão acirrada em pessoas instruídas, quando a ampla difusão
do simbolismo nos mitos, na religião, na arte e na linguagem é tão inquestionável. A responsável não será
novamente sua conexão com a sexualidade?
CONFERÊNCIA XI - A ELABORAÇÃO ONÍRICA
SENHORAS E SENHORES:
Quando tiverem compreendido adequadamente a censura de sonhos e a representação por símbolos,
verdade é que ainda não terão dominado o assunto sobre a deformação em sonhos, e, não obstante, estarão
em condições de entender a maioria destes. E para isso os senhores usarão ambas as técnicas
complementares: reunir as idéias que acodem à mente do sonhador, até haverem compreendido desde a coisa
substituta até a coisa original e, fundados no próprio conhecimento dos senhores, substituir os símbolos por
aquilo que representam. Mais adiante discutiremos algumas incertezas que surgem nessa correlação.Podemos
agora dedicar-nos mais uma vez à tarefa que tentamos executar anteriormente com recursos inadequados,
quando estudávamos as relações entre os elementos dos sonhos e as coisas originais que eles representam.
Estabelecemos quatro principais relações, ou seja [ver em [1] e seg.]: relação da parte com o todo, aproximação
ou alusão, relação simbólica e representação plástica das palavras. Agora nos propomos empreender a mesma
coisa, em escala mais ampla, comparando o conteúdo manifesto de um sonho como um todo com o sonho
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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latente, conforme este é revelado pela interpretação.Espero que os senhores nunca mais venham a confundir
essas duas coisas uma com a outra. Se alcançarem esse ponto, terão conseguido compreender melhor os
sonhos do que a maioria dos leitores de meu trabalho A Interpretação de Sonhos. E permitam-me lembrar-lhes
novamente que o trabalho que transforma o sonho latente no sonho manifesto se chama elaboração onírica. O
trabalho que opera em sentido oposto, que intenta chegar ao sonho latente a partir do manifesto, é nosso
trabalho interpretativo. Esse trabalho interpretativo procura decifrar a elaboração onírica. Os sonhos de tipo
infantil, que reconhecemos como evidente realizações de desejos, ainda assim sofreram determinado grau de
elaboração onírica — sofreram uma transformação de desejo em experiência real e, também, via de regra, de
pensamentos foram transformados em imagens visuais. No caso deles, não há necessidade de interpretação,
porém apenas se requer sejam desfeitas essas duas transformações. A elaboração onírica adicional que ocorre
em outros sonhos denomina-se ‘deformação onírica’, e é esta que deve ser decifrada através de nosso trabalho
interpretativo.
Tendo comparado as interpretações de numerosos sonhos, estou em condições de lhes apresentar
uma descrição sumária daquilo que a elaboração onírica executa com o material dos pensamentos oníricos
latentes. Peço-lhes, entretanto, não procurarem entender demais acerca das coisas que lhes digo. Tratar-se-á
de uma descrição que deve ser ouvida com serena atenção.A primeira realização da elaboração onírica é a
condensação.
Entendemos, com isso, que o sonho manifesto possui um conteúdo menor do que o latente, e é deste
uma tradução abreviada, portanto. Às vezes a condensação pode estar ausente; via de regra se faz presente e,
muitíssimas vezes, é enorme. Jamais ocorre uma mudança em sentido inverso; ou seja, nunca encontramos um
sonho manifesto com extensão ou com conteúdo maior do que o sonho latente. A condensação se realiza das
seguintes maneiras: (1) determinados elementos latentes são totalmente omitidos, (2) apenas um fragmento de
alguns complexos do sonho latente transparece no sonho manifesto e (3) determinados elementos latentes, que
têm algo em comum, se combinam e se fundem em uma só unidade no sonho manifesto.Se preferirem,
podemos reservar o termo ‘condensação’ apenas para o último desses processos. Seus resultados podem ser
demonstrados com especial facilidade. Os senhores não terão dificuldade em relembrar exemplos de seus
próprios sonhos, em que pessoas diferentes são condensadas em um a só. Um personagem composto, deste
tipo, pode, talvez, assemelhar-se a A, mas pode, talvez, assemelhar-se a A, contudo pode estar vestida como
B, executar algo que lembre C, e ao mesmo tempo podemos saber que é D. Essa estrutura composta
naturalmente está dando ênfase àquilo que as quatro pessoas têm em comum. É possível, naturalmente,
formar tal estrutura composta de coisas ou de lugares, do mesmo modo que de pessoas, contanto que as
diferentes coisas e lugares tenham em comum algo que o sonho latente acentua. O processo se assemelha à
construção de um conceito novo e transitório que tem nesse elemento comum o seu núcleo. O resultado dessa
superposição de elementos separados, que foram condensados conjuntamente, é, via de regra, uma imagem
difusa e vaga, à semelhança daquilo que sucede quando se batem diversas fotografias sobre uma mesma
chapa.A produção de estruturas compostas, como essas referidas, deve ser de grande importância para a
elaboração onírica, porquanto podemos demonstrar que ali onde inicialmente faltam os elementos comuns para
formá-las, estes são introduzidos deliberadamente — por exemplo, através da escolha da palavra pelas quais
um pensamento é expresso. Já encontramos condensações e estruturas compostas dessa espécie.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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Desempenharam seu papel na produção de determinados lapsos de língua. Os senhores se recordam do jovem
senhor que se prontificou a ‘begleitdigen‘ [‘begleiten (acompanhar)’ + ‘beleidigen (insultar)’, ver em [1]] uma
senhora. E, também, existem anedotas cuja técnica se baseia em uma condensação desse tipo. Salvo esses
casos, porém, pode-se dizer que o processo é muito raro e estranho. É verdade que as partes componentes
destinadas a essa construção devem situar-se em algumas criações de nossa imaginação, que está pronta
para combinar em uma unidade componentes de coisas que não formam conjunto em nossa experiência
corrente — nos centauros, por exemplo, e nos animais fabulosos que aparecem na mitologia antiga ou nos
quadros de Böcklin. A imaginação ‘criativa’ realmente é bastante incapaz de inventar qualquer coisa; ela pode
apenas combinar entre si componentes que são estranhos. O notável no que se refere ao processo da
elaboração onírica, contudo, reside no que vem a seguir. O material disponível à elaboração onírica consiste de
pensamentos — alguns deles podem ser censurados ou inaceitáveis, porém são corretamente construídos e
expressos. A elaboração onírica dá a esses pensamentos uma outra forma, e constitui fato singular e
incompreensível que, sendo feita tal tradução (transmitindo essa mensagem, digamos assim, através de um
outro texto da linguagem), esses métodos de mistura e combinação se realizam. Afinal, uma tradução se
esforça por preservar as diferenças constantes do texto original e especialmente por manter separadas as
coisas que são apenas semelhantes. A elaboração onírica, muito ao contrário, procura condensar dois
pensamentos diferentes buscando (como um chiste) uma palavra ambígua na qual os dois pensamentos se
possam juntar. Não preisamos tentar compreender esse aspecto de uma só vez; no entanto, ele pode ser
importante em nosso estudo crítico da elaboração onírica.
Embora a condensação torne os sonhos obscuros, não parece dar-nos a impressão de ela ser efeito da
censura. Antes, parece ser devida a um fator automático ou econômico, mas, em todo caso, a censura lucra
com ela.Aquilo que a condensação consegue realizar pode ser bastante extraordinário. Às vezes é possível,
com seu auxílio, combinar duas seqüências de pensamentos latentes muito diferentes, em um único sonho
manifesto, de modo que se pode chegar a algo que parece ser uma interpretação suficiente de sonho, e no
entanto, procedendo assim, pode-se deixar de perceber uma possível ‘superinterpretação’.No que concerne à
relação entre o sonho latente e o manifesto, a condensação tem como conseqüência o estabelecimento de uma
relação não-simples entre os elementos de um e de outro. Um elemento manifesto pode corresponder
simultaneamente a diversos elementos latentes e, em sentido inverso, um elemento latente pode desempenhar
seu papel em diversos elementos manifestos — existe, por assim dizer, um relacionamento entrecruzado (ver
em [1]). Ademais, ao interpretar um sonho verificamos que as associações com um único elemento manifesto
nem sempre emergem em seqüência ordenada: muitas vezes devemos esperar até todo o sonho ter sido
interpretado.A elaboração onírica assim efetua uma espécie muito inusitada de transcrição dos pensamentos
oníricos: não se trata de uma tradução palavra-por-palavra ou sinal-por-sinal; e nem se trata de uma solução
feita segundo normas fixas — como seria no caso de se reproduzir apenas as consoantes de uma palavra e
eliminar as vogais; e também não é aquilo que se poderia descrever como solução representativa — um
elemento sendo invariavelmente escolhido para tomar o lugar de vários elementos; trata-se de algo diferente e
muito mais complexo.A segunda realização da elaboração onírica é o deslocamento. Felizmente já procedemos
a um exame preliminar do mesmo: pois já sabemos que é inteiramente obra da censura dos sonhos. Manifestase
de duas maneiras: na primeira, um elemento latente é substituído não por uma parte componente de si
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mesmo, mas por alguma coisa mais remota, isto é, por uma alusão; e, na segunda, o acento psíquico é mudado
de um elemento importante para outros sem importância, de forma que sonho parece descentrado e estranho.A
substituição de algo por meio de uma alusão constitui processo corrente também em nosso pensamento
desperto, porém existe uma diferença. No pensamento desperto, a alusão deve ser inteiramente inteligível, e o
substituto deve estar relacionado, no seu tema, com a coisa original que representa. Também os chistes fazem
uso da alusão. Eles prescindem da precondição de haver uma associação no tema e a substituem por
associações externas incomuns, tais como semelhança de sons, ambigüidade verbal, e assim por diante.
Conservam, contudo, a precondição de inteligibilidade: um chiste perderia toda a sua eficiência se o caminho
retroativo que vai da alusão à coisa original não pudesse ser percorrido com facilidade. As alusões usadas para
fins de deslocamento nos sonhos estão livres de ambas essas restrições. Elas estão em conexão com o
elemento que substituem através das relações mais externas e remotas e são, pois, ininteligíveis; e, quando
são desfeitas, sua interpretação dá a impressão de serem um mau chiste ou de constituírem uma explicação
aleatória e forçada, tirada não se sabe de onde. Pois a censura de sonhos só consegue seu objetivo quando
consegue tornar impossível que se encontre o caminho desde a alusão até a coisa original.O deslocamento do
acento é um método sem igual de expressar pensamentos. Algumas vezes o utilizamos no pensamento
desperto, a fim de conseguir um efeito cômico. Talvez eu possa recriar aqui a impressão de alheamento
causada por esse método recordando uma anedota. Numa aldeia havia um ferreiro que cometera um crime
capital. O júri decidiu que o crime devia ser punido; porém, como o ferreiro era o único na aldeia e era
indispensável, e como, por outro lado, lá viviam três alfaiates, um destes foi enforcado em seu lugar.
A terceira realização da elaboração onírica é psicologicamente a mais interessante. Consiste em
transformar pensamentos em imagens visuais. Deixemos claro que essa transformação não afeta tudo nos
pensamentos oníricos; alguns deles conservam sua forma e aparecem no sonho manifesto também como
pensamentos ou conhecimentos; e nem são as imagens visuais a única forma na qual os pensamentos se
transformam. Ainda assim, eles enfeixam a essência da formação dos sonhos; essa parte da elaboração
onírica, como já sabemos, é a segunda parte mais constante [ver em [1] e [2]] e já nos familiarizamos com a
representação gráfica das palavras no caso dos elementos oníricos isolados [ver em [1] e [2]].Claro que essa
realização não é fácil. Para termos uma idéia de suas dificuldades, suponhamos que os senhores tivessem
assumido a tarefa de substituir um editorial político, em um jornal, por uma série de ilustrações. Os senhores
teriam de retroceder da escrita alfabética para a escrita pictográfica. Em um tal artigo mencionando pessoas e
objetos concretos, os senhores os substituiriam com facilidade e talvez até mesmo com vantagem, por meio de
figuras; contudo, as dificuldades começariam quando se tratasse da representação de palavras abstratas e de
todos aqueles componentes do discurso que indicam relações entre pensamentos — tal como partículas,
conjunções, e assim por diante. No caso de palavras abstratas os senhores conseguirão recorrer a uma
variedade de soluções. Por exemplo, os senhores se esforçariam por dar ao texto um enunciado diferente, que
talvez pudesse parecer menos usual, porém com mais componentes concretos e possíveis de ser
representados. Então os senhores se lembrariam de que a maioria das palavras abstratas são palavras
concretas ‘diluídas’, e, por essa razão, teríamos que retroceder, sempre que possível, à significação concreta
original de tais palavras. Assim, os senhores teriam o prazer de constatar que podem representar ‘a possessão’
de um objeto pela ação real, física, de estar sentado sobre o mesmo. E a elaboração onírica executa
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justamente a mesma coisa. Em tais circunstâncias, dificilmente poderiam esperar uma grande precisão daquilo
que os senhores representassem: de forma semelhante perdoariam a elaboração onírica por substituir um
elemento tão difícil de traduzir em imagens, como, por exemplo, ‘adultério’ [‘Ehebruch‘, literalmente ‘quebra do
casamento’] por outra quebra: a fratura de uma perna [‘Beinbruch‘]. E dessa forma os senhores conseguiriam,
até certo ponto, compensar a falta de habilidade expressiva da escrita pictórica que estaria supostamente
substituindo a escrita alfabética.Para representar aquelas partes do discurso que indicam relações entre
pensamentos — ‘porque’, ‘portanto’, ‘entretanto’, etc. — os senhores não poderiam contar com semelhante
ajuda à sua disposição; esses constituintes do texto se perderiam à medida que a tradução os transformasse
em imagens. Da mesma forma, a elaboração onírica reduz o conteúdo dos pensamentos oníricos à sua
matéria-prima de objetos e de atividade. Os senhores se dariam por satisfeitos com haver uma possibilidade de,
por alguma forma, deixar entrever, através de sutis detalhes das figuras, determinadas relações não em si
capazes de ser representadas. E é precisamente assim que a elaboração onírica consegue expressar algo do
conteúdo dos pensamentos oníricos latentes por meio de peculiaridades na forma do sonho manifesto: por sua
clareza ou obscuridade, por sua divisão em diversas partes, e assim por diante. O número de partes oníricas
em que se divide um sonho geralmente corresponde ao número dos temas principais dos pensamentos no
sonho latente. Um sonho introdutório curto freqüentemente faz as vezes de prelúdio a um sonho seguinte mais
detalhado, o sonho principal, ou pode proporcionar o motivo para o mesmo; uma oração subordinada nos
pensamentos oníricos será substituída pela interpolação de uma mudança de cena no sonho manifesto, e
assim por diante. Logo, a forma dos sonhos está longe de não ter alguma importância, e essa mesma forma
exige interpretação. Quando diversos sonhos ocorrem durante a mesma noite, têm freqüentemente a mesma
significação e indicam que está sendo feita uma tentativa de manejar cada vez mais eficazmente um estímulo
de crescente insistência. Em sonhos separados, um elemento especialmente difícil pode estar representado por
diversos símbolos — por ‘dobletes’.Se fizermos uma série de comparações entre os pensamentos oníricos e os
sonhos manifestos que os substituem, encontraremos toda sorte de coisas para as quais estamos
despreparados: por exemplo, que o disparate e o absurdo dos sonhos possuem seu significado. Neste aspecto,
com efeito o contraste entre a visão médica e a psicanalítica dos sonhos apresenta uma discordância que não
se encontra em qualquer outra área. Segundo o ponto de vista médico, os sonhos são desprovidos de sentido
porque a atividade mental nos sonhos abandonou todas as suas faculdades de crítica; segundo nosso ponto de
vista, pelo contrário, os sonhos se tornam carentes de sentido quando uma parcela de crítica, incluída nos
pensamentos oníricos — um julgamento de que ‘isso é absurdo’ —, tem de ser representada. O sonho que os
senhores conhecem, aquele da ida ao teatro (‘três ingressos por 1,50 florim’) [ver em [1]], é um bom exemplo
disso. O julgamento que expressou era: ‘foi absurdo casar tão cedo.’De forma semelhante, no decurso de
nosso trabalho interpretativo, percebemos o que é que corresponde às dúvidas e incertezas, que tantas vezes
se expressam nos sonhos, dúvidas sobre saber se determinado elemento ocorreu em um sonho, se foi isso ou
se, pelo contrário, foi alguma outra coisa. Via de regra, nos pensamentos oníricos latentes não há nada
correspondente a essas dúvidas e incertezas; estas se devem à atividade da censura de sonhos e devem ser
identificadas como tentativas de eliminação que não tiveram muito êxito.Entre os achados mais surpreendentes
encontra-se a maneira como a elaboração onírica trata os contrários que ocorrem nos sonhos latentes. Já
sabemos [ver em [1] e [2]] que as semelhanças no material latente são substituídas por condensações no
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101
sonho manifesto. Pois bem, os contrários são tratados da mesma forma que as semelhanças, e existe uma
especial preferência por expressá-los pelo mesmo elemento manifesto. Assim, um elemento no sonho
manifesto, capaz de ter o seu contrário, com igual facilidade pode estar se expressando a si próprio, ou seu
contrário, ou ambos conjuntamente: apenas o sentido pode decidir qual a versão que se deve escolher. Isto se
vincula com o fato adicional de que, nos sonhos, não se encontrará uma representação para ‘não’ — ou, de
qualquer modo, uma representação isenta de ambigüidade.Uma oportuna analogia com esse estranho
comportamento da elaboração onírica nos é proporcionada com a evolução da linguagem. Alguns filólogos têm
afirmado que, nos idiomas mais antigos, os contrários, tais como ‘forte-fraco’, ‘claro-escuro’, ‘grande-pequeno’,
são expressos pelas mesmas raízes verbais. (É o que denominamos ‘significação antitética de palavras
primitivas’.) Assim, no idioma egípcio antigo, ‘ken‘ originalmente significava ‘forte’ e ‘fraco’. No falar, evitam-se
os equívocos, provenientes do uso dessas palavras ambivalentes, através de diferenças de entonação e de
gestos concomitantes, e, no escrever, pelo acréscimo de algo chamado ‘determinativo’— uma figura que não se
destina a ser falada. Por exemplo, ‘ken‘ com a significação de ‘forte’ era escrito com a figura de um homenzinho
na vertical, após os sinais alfabéticos; quando ‘ken‘ representava ‘fraco’, o que se seguia era a figura de um
homem instavelmente agachado. Foi somente mais tarde, por meio de ligeiras modificações da palavra
homóloga original, que se chegou a duas representações distintas para expressar os contrários nela incluídos.
Foi assim que de ‘ken‘ ‘forte-fraco’ derivaram ‘ken‘ ‘forte’ e ‘kan‘ ‘fraco’. Os remanescentes dessa significação
antitética antiga parecem ter sido conservados não somente nas mais recentes evoluções dos idiomas mais
primitivos como também nos idiomas mais novos e até mesmo em algumas línguas ainda vivas. Aqui estão
algumas provas disso, retiradas de K. Abel (1884).No latim, palavras que permaneceram ambivalentes são
‘altus‘ (‘alto’ e ‘profundo’) e ‘sacer‘ (‘sagrado’ e ‘maldito’).Como exemplos de modificações da mesma raiz,
posso mencionar ‘clamare‘ (‘chorar’), ‘clam‘ (‘macio’, ‘sossegado’, ‘secreto’); ‘siccus‘ (‘seco’), ‘succus‘ (‘suco’). E
em alemão: ‘Stimme‘ [‘voz’], ‘stumm‘ [‘mudo’].Se compararmos línguas afins, encontraremos numerosos
exemplos. Em inglês ‘to lock’ (‘fechar’), em alemão ‘Loch‘ [‘buraco’] e ‘Lücke‘ [‘fresta’]. Em inglês, ‘to cleave’; em
alemão ‘kleben‘ [‘aderir‘].A palavra inglesa ‘without’ (que é realmente ‘withwithout’, ‘com — sem’) é empregada
atualmente apenas como ‘without’ (‘sem’). O ‘with’, além de seu sentido de combinar, originalmente tinha
também o de remover; isso ainda se percebe nos compostos ‘withdraw’ (‘remover’) e ‘withhold’ (‘reter’). De
maneira semelhante, em alemão ‘wieder‘ [‘junto com’] e ‘wider‘ [‘contra’].Outra característica da elaboração
onírica também tem seu correspondente na evolução da linguagem. No antigo idioma egípcio, assim como em
outras línguas menos primitivas, a ordem dos sons numa palavra pode ser invertida, ao mesmo tempo
conservando a mesma significação. Constituem exemplos disso, no inglês e no alemão. ‘Topf‘ — [‘pot’]
(‘panela’); ‘boat‘ (‘barco’) — ‘tub’ (‘banheira’, ‘barco para prática de remo’); ‘hurry’ (‘pressa’) — ‘Ruhe‘ [‘rest’]
(‘descanso’); ‘Balken‘ [‘beam’] (‘viga’) — ‘Kloben‘ [‘log’] (‘tora’, ‘madeira’) e ‘club’ (‘clava’); ‘wait‘ (‘esperar’) —
‘täuwen‘ [‘tarry‘] (‘esperar’, ‘demorar-se’). De maneira semelhante, encontramos no latim e no alemão: ‘capere‘
— ‘packen‘ [‘pegar’]; ‘ren‘ — ‘Niere‘ [‘rim’].Inversões, como essas que ocorrem aqui, em palavras isoladas,
efetuam-se de várias maneiras na elaboração onírica. Já conhecemos a inversão de significado, a substituição
de algo pelo seu oposto [ver em [1] e [2]]. Ademais disso, nos sonhos encontramos diversões de situações, da
relação entre duas pessoas — um mundo ‘virado de pernas para o ar’. Muito freqüentemente, em sonhos é a
caça que atira no caçador. Ou então encontramos uma inversão na ordem dos eventos, de modo que aquilo
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que precede causalmente um evento ocorre depois do mesmo, no sonho — como uma produção teatral
realizada por uma companhia de terceira categoria, na qual o herói cai morto e o tiro que o matou não é
detonado nos bastidores senão bem depois. E também há sonhos nos quais a ordem total dos elementos se
encontra invertida de forma que, para se obter sentido, quando de sua interpretação, devemos tomar o último
elemento em primeiro lugar e o primeiro, em último. Os senhores também recordam, de quando estudamos o
simbolismo dos sonhos, que entrar ou cair na água significa o mesmo que sair dela — -isto é, dar à luz ou
nascer [ver em [1]], e que subir uma escadaria ou uma escada é a mesma coisa que descê-la [ver em [1]]. Não
é difícil ver qual a vantagem que a deformação onírica pode auferir desta liberdade de representação.Estes
aspectos da elaboração onírica podem ser descritos como arcaicos. São igualmente característicos dos
sistemas antigos de expressão falada e escrita e importam nas mesmas dificuldades que teremos de abordar,
mais adiante, em um sentido crítico.Agora, mais algumas considerações. No caso da elaboração onírica, tratase
claramente da questão de transformar os pensamentos latentes, que são expressos em palavras, em
imagens sensoriais, a maioria na forma de imagens visuais. Ora, nossos pensamentos originalmente surgiram
de imagens sensoriais desta espécie: seu primeiro material e seus estádios preliminares foram impressões dos
sentidos, ou, mais propriamente, imagens mnêmicas dessas impressões. Somente mais tarde as palavras
foram vinculadas a essas impressões e as palavras, por sua vez, vincularam-se a pensamentos. Assim, a
elaboração onírica submete os pensamentos a um tratamento regressivo e desfaz a sua evolução; e, no
decorrer da regressão, tem de ser eliminado tudo o que foi acrescido como aquisição nova no decorrer da
evolução das imagens mnêmicas para pensamentos.Tal parece ser, pois, a elaboração onírica. Em comparação
com os processos que nela vimos a conhecer, o interesse pelo sonho manifesto deve perder muito de sua
importância. Mas dedicarei alguns comentários a este último, pois é dele, somente, que temos conhecimento
imediato.É natural devermos perder algo do interesse pelo sonho manifesto. Para nós será indiferente se ele
está bem composto, ou se está fracionado em uma série de quadros separados e desconexos. Mesmo quando
possui um exterior aparentemente inteligível, sabemos que isso somente se fez pela deformação onírica, e
pode ter tão pouca relação orgânica com o conteúdo interno do sonho, como a fachada de uma igreja italiana
com uma estrutura e sua planta. Outras ocasiões há em que esta fachada do sonho tem sua significação, e
reproduz um importante componente dos pensamentos oníricos latentes com pouca ou nenhuma deformação.
Mas isso não podemos saber sem primeiro termos submetido o sonho à interpretação e podermos formar um
julgamento, a partir dessa interpretação, do grau de deformação que se realizou. Dúvida semelhante surge
quando dois elementos em um sonho parecem ter entrado em relação íntima um com o outro. Isso talvez nos
forneça um valioso indício de que podemos juntar também no sonho latente aquilo que corresponde a esses
elementos. Em outras ocasiões, porém, podemos nos convencer de que aquilo que é da mesma classe, nos
pensamentos oníricos, foi disposto separadamente no sonho.Em geral, deve-se evitar a tentativa de explicar
uma parte do sonho manifesto por outra, como se o sonho tivesse sido concebido coerentemente e fosse uma
narrativa com ordenação lógica. Pelo contrário, via de regra, é como um pedaço de brecha, composto de
diversos fragmentos de rocha unidos por um cimento, de modo que os desenhos que nele aparecem não
pertencem às rochas originais inclusas. E há realmente uma parte da elaboração onírica, conhecida como
‘elaboração secundária’, cuja função é conferir um aspecto de unidade e maior ou menor coerência aos
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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produtos primários da elaboração onírica. No transcorrer desta, o material é arranjado segundo o que amiúde é
um sentido totalmente confuso, e, onde parece necessário, são feitas interpolações.
Por outro lado, não devemos superestimar a elaboração onírica e atribuir-lhe demasiada importância.
As suas realizações, que citei, resumem toda a sua atividade; ela não pode fazer mais que condensar,
deslocar, representar em forma plástica e submeter o todo a uma elaboração secundária. O que no sonho
aparece como expressão de julgamento, crítica, surpresa ou interferência — nada disso são realizações da
elaboração onírica e muito raramente são expressões de pensamentos subseqüentes referentes ao sonho; na
sua maioria, são parcelas de pensamentos oníricos que passaram para o sonho manifesto com maior ou menor
grau de modificação e adaptação ao contexto. E a elaboração onírica não consegue formar discursos. Com
algumas exceções destacadas, os discursos nos sonhos são cópias e combinações de discursos que alguém
ouviu ou enunciou para si próprio no dia anterior ao sonho e que foram incluídos nos pensamentos latentes, ou
como material ou como instigadores dos sonhos. A elaboração onírica também é incapaz de efetuar cálculos.
Estes, quando surgem no sonho manifesto, são, na maioria, combinações de números, cálculos simulados,
muito desprovidos de sentido enquanto cálculos e, mais uma vez, apenas cópias de cálculos dos pensamentos
oníricos latentes. Nessas circunstâncias, não é de admirar se o interesse, que se havia voltado para a
elaboração onírica, logo tende a se deslocar desta para os pensamentos oníricos latentes, que se revelam,
deformados em grau maior ou menor, através do sonho manifesto. Mas não existe justificativa para levar tão
longe essa mudança de interesse a ponto de, considerando o assunto teoricamente, substituir o sonho,
completamente, pelos pensamentos oníricos latentes e afirmar sobre aquele alguma coisa que se aplica
exclusivamente a estes. É estranho que os achados da psicanálise possam prestar-se a um mau uso que
possibilite confusões. Não se pode dar o nome de ‘sonho’ a nenhuma outra coisa que não seja produto da
elaboração onírica — isto é, a forma em que os pensamentos latentes foram transmutados pela elaboração
onírica. [ver em [1] e segs.]A elaboração onírica é um processo de tipo muito singular, do qual ainda não se tem
conhecido similar na vida mental. Condensações, deslocamentos, transformações regressivas de pensamentos
em imagens: eis os novos fatos cuja descoberta premiou abundantemente os esforços da psicanálise. E os
senhores podem constatar, uma vez mais, a partir das comparações com a elaboração onírica, as conexões
que se revelaram entre os estudos psicanalíticos e outros campos do conhecimento — especialmente os
referentes à evolução da linguagem e do pensamento. Somente poderão formar uma idéia da transcendente
importância destas descobertas quando aprenderem que o mecanismo da construção onírica é o modelo
segundo o qual se formam os sintomas neuróticos.Também estou cônscio de que ainda não estamos em
condições de fazer um apanhado geral do total das novas aquisições com que estes estudos contribuíram para
a psicologia. Apenas quero assinalar as recentes provas que eles proporcionaram da existência de atos
mentais inconscientes — pois é isto que são os pensamentos oníricos latentes — e assinalar quão inimaginável
e amplo acesso a um conhecimento da vida mental inconsciente nos promete a interpretação de sonhos.Agora,
contudo, sem dúvida chegou a minha ocasião de demonstrar-lhes, dentre uma variedade de pequenos
exemplos de sonhos, para que fim estive preparando os senhores no decorrer destes comentários.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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CONFERÊNCIA XII - ALGUMAS ANÁLISES DE AMOSTRAS DE SONHOS
SENHORAS E SENHORES:
Não devem ficar desapontados se, mais uma vez, apresento-lhes fragmentos de interpretações de
sonhos, em vez de convidá-los a tomar parte na interpretação de um lindo e grande sonho. Os senhores
argumentarão que, após tantos preparativos, têm esse direito, e expressarão sua convicção de que, depois de
tantos milhares de sonhos terem sido exitosamente interpretados, já há muito tempo deveria ter sido possível
haver juntado uma coleção de excelentes amostras de sonhos sobre as quais todas as nossas assertivas
referentes à elaboração onírica e aos pensamentos oníricos pudessem ser demonstradas. Certo. As
dificuldades que se opõem à realização do desejo dos senhores, todavia, são muitas.
Em primeiro lugar, devo admitir que ninguém efetua interpretação de sonhos como sua atividade
principal. Como ocorre, então, que as pessoas os interpretam? Ocasionalmente, sem nenhum objetivo em vista,
alguém pode se interessar por sonhos de um conhecido seu, ou alguém pode esquadrinhar seus próprios
sonhos durante algum tempo a fim de preparar-se para o trabalho psicanalítico; mas, na maior parte das vezes,
aquilo com que se tem de lidar são os sonhos de pacientes neuróticos que estão em tratamento psicanalítico.
Esses sonhos constituem excelente material e de modo algum são inferiores aos de pessoas sadias; a técnica
do tratamento, porém, requer que subordinemos a interpretação de sonhos aos objetivos terapêuticos, e temos
de permitir que bom número de sonhos tenha sido examinado até havermos extraído dos mesmos alguma
coisa de utilidade para o tratamento. Alguns sonhos que ocorrem durante o tratamento escapam inteiramente a
uma análise completa: de vez que se originam de um grande acervo de material que ainda nos é desconhecido,
é impossível entendê-los antes de o tratamento chegar ao término. Se eu fosse relatar sonhos deste tipo, seria
obrigado a desvendar também todos os segredos de uma neurose; e isto não nos servirá, pois foi precisamente
a fim de preparar-nos para o estudo das neuroses que enfrentamos o problema dos sonhos.
Os senhores, entretanto, gostariam de dispensar essa parte e prefeririam que lhes fosse dada uma
explanação dos sonhos de pessoas sadias ou de sonhos dos senhores mesmos. Isto, contudo, não pode ser
feito por causa de seu conteúdo. É impossível submeter seja a si mesmo, seja qualquer outra pessoa de cuja
confiança se desfruta, a uma exposição impiedosa que adviria a da análise detalhada de seus sonhos, os quais,
como os senhores já sabem, referem-se à parte mais íntima da personalidade. Mas existe ainda outra
dificuldade que se opõe, afora a de fornecer material. Os senhores sabem que os sonhos apresentam uma
aparência estranha para o próprio sonhador, e ainda mais estranha para quem quer que não o conheça
pessoalmente. Nossa bibliografia não é pobre de boas e detalhadas análises de sonhos. Eu mesmo publiquei
algumas, dentro do quadro referencial dos casos clínicos. Talvez o melhor exemplo de interpretação de um
sonho seja o que foi relatado por Otto Rank [1910b], consistindo em dois sonhos inter-relacionados, tidos por
uma jovem, que ocupam cerca de duas páginas impressas: mas sua análise vai a setenta e seis páginas.
Assim, eu deveria necessitar de cerca de um semestre inteiro para conduzi-los através de um único trabalho
dessa espécie. Se se tomar qualquer sonho relativamente longo e muito deformado, há que fornecer tantas
explicações do mesmo, levantar tanto material que surge no curso das associações e das recordações, seguir
tantas vias secundárias, que uma conferência a respeito dele seria muito confusa e insatisfatória. Devo,
portanto, pedir-lhes que se contentem com o que se pode ter com mais facilidade: uma descrição de pequenas
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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parcelas de sonhos de pacientes neuróticos, em que é possível reconhecer este ou aquele ponto isoladamente.
O que é mais fácil de demonstrar são os símbolos oníricos e, depois destes, algumas características da
representação regressiva nos sonhos. No caso de cada um dos sonhos que se seguem, indicarei o motivo por
que penso valer a pena relatá-lo.
(1) Este sonho consiste em apenas dois quadros breves: O tio dele estava fumando um cigarro, embora
fosse sábado. — Uma mulher o acariciava e o acarinhava [ao sonhador] como se fosse seu filho.
Com referência ao primeiro quadro, a pessoa que sonhou (um judeu) comentou que seu tio era um
homem piedoso, que nunca fizera e jamais poderia fazer algo assim pecaminoso. No que concerne à mulher,
no segundo quadro, não lhe ocorreu nada à mente, exceto sua mãe. Esses dois quadros ou pensamentos
devem evidentemente ser vistos um em relação ao outro. Mas, como? Visto que ele negou expressamente a
realidade da ação de seu tio, é plausível inserir um ‘se’. ‘Se meu tio, este homem piedoso, viesse a fumar um
cigarro em dia de sábado, então eu também poderia permitir-me ser acarinhado pela minha mãe.’ Isto significa,
evidentemente, que trocar carícias com sua mãe se constituía em algo não permissível como não seria
permissível a um judeu piedoso fumar no sábado. Os senhores se lembram de que eu lhes disse [ver em [1] e
[2]] que no decurso da elaboração onírica todas as relações entre os pensamentos oníricos são eliminadas;
elas se dissipam dentro da matéria-prima destes e compete à interpretação reinserir as relações omitidas.
(2) Em conseqüência de minhas publicações sobre sonhos, tornei-me, em certo sentido, consultor
público sobre assuntos referentes a eles, e, por muitos anos, venho recebendo comunicações das mais
variadas origens, em que sonhos me são relatados ou submetidos a meu julgamento. Naturalmente, sou grato a
todo aquele que acrescenta ao sonho material suficiente para possibilitar uma interpretação, ou que dá, ele
próprio, uma interpretação. O sonho que se segue, sonhado por um estudante de medicina de Munique, e
datando do ano de 1910, enquadra-se nesta categoria. Apresento-o para lhes mostrar como, em geral, é
impossível compreender um sonho enquanto o sonhador não nos der as informações pertinentes. Pois suspeito
que, no fundo, os senhores pensam que o método ideal de interpretação de sonhos consistiria em preencher a
significação dos símbolos e que gostariam de prescindir da técnica de obter associações com os sonhos; e
estou desejoso de dissuadi-los desse equívoco nocivo.‘13 de julho de 1910. Pela manhã, tive este sonho: Eu
estava andando de bicicleta por uma rua de Tübingen, quando um cão rasteiro, de cor marrom, se lançou ao
meu encalço e me atacou no calcanhar. Logo desci da bicicleta, sentei num degrau e comecei a espancar o
animal que me mordia com firmeza. (Não tive qualquer sentimento desagradável nem pela mordida nem pela
cena como um todo.) Algumas senhoras mais idosas estavam sentadas no outro lado da rua, em frente, e riam
de mim, mostrando os dentes. Então acordei e, como tantas vezes me aconteceu, no momento da transição
para o despertar, o sonho todo se me tornou claro.’
Aqui os símbolos são de pouca ajuda. O mesmo estudante, porém, relatou: ‘Recentemente, me
apaixonei por uma jovem, mas apenas pude vê-la na rua e não tive meios de falar-lhe. O cão rasteiro poderia
ser o meio mais agradável de conseguir isso, especialmente porque tenho grande afeição por animais e gostei
dessa mesma característica na jovem.’ Acrescentou que ele repetidamente havia intervindo em furiosas brigas
de cães, com grande habilidade, e muitas vezes para surpresa dos circunstantes. Sabemos também que a
jovem, pela qual ele se sentia atraído, sempre era vista na companhia de seu cão de estimação. No que tange
o sonho manifesto, porém, a jovem foi omitida e somente restou o cão, que ele associava a ela. As senhoras de
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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idade, que se riam dele, talvez possam estar em lugar da jovem. Seus outros comentários não esclareceram
adequadamente este ponto. O fato de, no sonho, ele estar andando de bicicleta, é uma repetição direta da
situação recordada. Ele nunca encontrou a jovem com o cão, a não ser quando ele estava andando de bicicleta.
(3) Quando se perde alguém que é de nossas relações e nos é caro, surgem sonhos de um tipo
especial, durante algum tempo após, nos quais o conhecimento da morte chega às mais estranhas conciliações
com a necessidade de trazer novamente à vida a pessoa morta. Em alguns desses sonhos, a pessoa que
morreu está morta e ao mesmo tempo permanece viva porque não sabe que está morta; somente se soubesse,
morreria completamente. Em outros, a pessoa está meio morta e meio viva, e cada um desses estados vem
indicado por uma forma particular. Não devemos descrever esses sonhos como simplesmente absurdos; pois
ser devolvido novamente à vida não é mais inconcebível nos sonhos do que o é, por exemplo, em contos de
fadas, nos quais isso ocorre como fato muito rotineiro. Sempre que pude avaliar tais sonhos, constatei que eles
são passíveis de uma solução racional; contudo, o piedoso desejo de fazer retornar à vida a pessoa morta
conseguiu operar pelos mais estranhos meios. Apresentar-lhes-ei agora um sonho desse tipo, que parece tão
esquisito e absurdo, e, no entanto, sua análise lhes mostrará muitas coisas para as quais nossas explicações
teóricas os terão preparado. É o sonho de um homem que havia perdido seu pai, vários anos antes:
Seu pai estava morto, mas havia sido exumado e parecia estar mal. Tinha estado vivendo desde então
e o homem, no sonho, fazia todo o possível para evitar que o pai percebesse. (O sonho continuava com outros
assuntos, aparentemente muito diferentes.)
Seu pai estava morto; sabemos disso. O ter sido exumado não corresponde à realidade; e não havia
nada de realidade em tudo o que se seguia. O sonhador, porém, relatou que, após ter voltado dos funerais do
pai, um de seus dentes começou a doer. Ele queria tratar o dente segundo o preceito da doutrina judaica: ‘Se
teu dente incomoda, arranca-o!’ E ele foi ao dentista. Mas o dentista disse: ‘Não se arranca um dente. Deve-se
ter paciência com ele. Porei dentro dele algo que o mate; volte em três dias e eu o extrairei.’
‘Esse “extrair”’, disse o homem que teve o sonho, ‘é exumar!’
Será que o homem estava certo do que dizia? Isso apenas se adapta mais ou menos, não
completamente; pois não foi extraído o dente, foi extraído apenas algo nele que morrera. No entanto,
imprecisões deste tipo podem, com prova em outras experiências, ser atribuídas à elaboração onírica. Sendo
assim, o homem que teve este sonho condensara seu pai morto e o dente que havia sido morto, porém
conservado; ele os fundiu numa unidade. Não é de causar admiração, portanto, que algo de absurdo emergisse
no sonho manifesto, de vez que, afinal, nem tudo que se disse do dente poderia ajustar-se a seu pai. Onde
pode haver, talvez, um tertium comparationis [ver em [1], anterior] entre o dente e seu pai, para que se tornasse
possível a condensação?
Entretanto, sem dúvida ele deve ter tido razão, pois prosseguiu dizendo que sabia que sonhar com a
queda de um dente significa que se vai perder um membro da família.
Essa interpretação popular, como sabemos, é incorreta, ou, pelo menos, correta somente em sentido
grosseiro. Todos ficaremos muito surpresos por encontrar, pois, o assunto assim abordado reaparecendo agora
em outras partes do conteúdo do sonho.Este sonhador, sem nenhum outro encorajamento, começou a falar na
doença e na morte de seu pai, bem como a respeito de suas próprias relações com ele. Seu pai esteve doente
durante longo tempo, e os cuidados e o tratamento tinham-lhe custado (ao filho) grande soma de dinheiro. Não
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obstante, nunca era demais, ele jamais se impacientou, jamais desejou que, afinal, tudo pudesse logo chegar
ao fim. Orgulhava-se de sua verdadeira dedicação filial judaica para com o pai, de sua estrita obediência à lei
judaica. E aqui nos surpreendemos com uma contradição existente nos pensamentos pertinentes ao sonho. Ele
havia identificado o dente com seu pai. Devia proceder com o dente segundo a lei judaica que lhe ordenava
arrancá-lo se lhe causasse dor ou incômodo. Desejava também proceder do mesmo modo com seu pai,
segundo os preceitos da lei; neste caso, porém, ela lhe ordenava não poupar gastos nem atribulações, assumir
todo o encargo sobre si mesmo e não permitir que alguma intenção hostil emergisse contra o objeto que lhe
estava causando sofrimento. Será que as duas atitudes não teriam sido conciliadas muito mais
convincentemente, se ele tivesse realmente desenvolvido sentimentos para com seu pai doente semelhantes
àqueles com relação a seu dente doente — isto é, se tivesse desejado que a morte se antecipasse e pusesse
fim à sua existência desnecessária dolorosa e custosa?
Não duvido de que era esta, realmente, sua atitude para com seu pai durante a fatigante doença, e que
suas altivas afirmações de amor filial se destinavam a desviá-lo dessas lembranças. Sob essas condições, o
desejo de morte contra um pai está pronto a entrar em atividade e esconder-se sob o disfarce dessas reflexões
caridosas tais como ‘seria um feliz alívio para ele’. Mas, por favor, observem que, nisso, ultrapassamos uma
barreira existente nos próprios pensamentos oníricos latentes. Sem dúvida, a primeira parte dos mesmos
esteve inconsciente apenas temporariamente, isto é, durante a construção do sonho; seus impulsos hostis
contra o pai, contudo, devem ter sido permanentemente inconscientes. Podem ter-se originado de cenas de sua
infância e, ocasionalmente, emergiram como conscientes, tímida e disfarçadamente, durante a doença do pai.
Isto podemos afirmar, com grande certeza; acerca de outros pensamentos latentes que contribuíram
inequivocamente para o conteúdo do sonho. Nada, realmente, deve ser descoberto, no sonho, sobre seus
impulsos hostis para com seu pai. Se, porém, procurarmos na infância as raízes dessa hostilidade contra um
pai, nos recordaremos de que o medo ao pai tem início nos primeiros anos de vida, porque este se opõe às
atividades sexuais do menino, exatamente como terá de acontecer mais uma vez, por motivos sociais, após a
idade púbere. Essa relação com o pai aplica-se também a esse nosso sonhador: o amor pelo pai incluía uma
estranha mescla de reverência e temor, que tinha sua origem no fato de, quando menino, por meio de
ameaças, ter sido tolhido em sua atividade sexual.As frases restantes do sonho manifesto podem ser
explicadas, agora, em relação ao complexo da masturbação. ‘Ele parecia estar mal‘ é realmente uma alusão a
uma outra observação do dentista no sentido de que parece mau alguém perder um dente nessa parte da boca;
mas refere-se, ao mesmo tempo, ao ‘parecer estar mal’ pelo qual um jovem, na puberdade, revela, ou receia
revelar, sua atividade sexual excessiva. Não foi sem alívio para seus próprios sentimentos que, no conteúdo
manifesto, este que sonhou deslocou o ‘parecer estar mal’ de si mesmo para seu pai — um dos tipos de
inversão feitos pela elaboração onírica, que os senhores já conhecem [ver em [1]]. ‘Tinha estado com vida
desde então‘ coincide com o desejo de trazer de volta à vida, assim como coincide com a promessa do dentista
de que o dente sobreviveria. A frase ‘o sonhador fazia todo o possível para evitar que ele (o pai) percebesse‘ é
muito sutilmente arquitetada para nos desorientar, fazendo-nos pensar que ela deveria ser completada com as
palavras ‘que ele estava morto’. A única completação, entretanto, que faz sentido, provém, uma vez mais, do
complexo de masturbação; em relação a isto, é evidente que o jovem fez tudo quanto pôde para ocultar de seu
pai sua vida sexual. E, finalmente, lembrem-se de que sempre devemos interpretar os chamados ‘sonhos com
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um estímulo dental’ como sendo relacionados com masturbação e com o temido castigo correspondente. [ver
em [1].]
Agora podem ver como esse sonho incompreensível se efetuou. Fez-se produzindo uma condensação
estranha e desorientadora, desprezando todos os pensamentos que estavam no centro do processo de
pensamentos latentes e criando substitutos ambíguos para os mais profundos e cronologicamente mais
remotos desses pensamentos.(4) Já tentamos, repetidamente, chegar a compreender os sonhos triviais e
comuns, que nada têm de absurdo ou estranho em sua aparência, mas nos fazem perguntar por que alguém
iria sonhar com matéria tão indiferente assim. [ver em [1], [2] e [3].] Por isso lhes ofereço outro exemplo deste
tipo, três sonhos em interconexão, tidos por uma jovem senhora em uma só noite.(a) Ela estava caminhando
pelo salão de sua casa e bateu com a cabeça num lustre que pendia a baixa altura, e começou a sangrar.
Nenhuma reminiscência, nada que lhe houvesse realmente acontecido. As informações que deu, em resposta
ao sonho, conduziram a direções bem diferentes. ‘O senhor sabe como meu cabelo está caindo. “Minha filha”,
disse-me, ontem, minha mãe, ‘use isso continua desse jeito você vai ficar com a cabeça tão lisa como um
traseiro.” ‘Dessa forma, aqui a cabeça está em lugar da outra extremidade do corpo. Podemos entender o
lustre, sem qualquer ajuda, como sendo um símbolo: todos os objetos capazes de serem encompridados são
símbolos do órgão masculino [ver em [1]]. Tratava-se, portanto, da questão do sangramento na extremidade
inferior do corpo, decorrência de contato com o pênis. Isto ainda poderia ser ambíguo. Suas posteriores
associações mostraram que estava em questão algo referente à crença de que o sangramento menstrual se
origina da relação sexual com um homem — um fragmento de teoria sexual que conta com muitas crentes fiéis
entre jovens imaturas.
(b) Ela via, no parreiral, um buraco fundo que ela sabia ter sido causado pelo arrancamento de uma
árvore. Acrescentou um comentário de que a árvore estava faltando. Ela quis dizer que não tinha visto a árvore,
no sonho; mas as mesmas palavras serviram para exprimir um outro pensamento que tornou a interpretação de
símbolos muito certa. O sonho se referia a uma outra parte da teoria sexual — a crença de que as meninas
originalmente tinham os mesmos genitais que os meninos, e que sua forma ulterior foi conseqüência da
castração (o arrancamento de uma árvore).
(c) Ela estava de pé, em frente à gaveta de sua escrivaninha, que ela conhecia tão bem a ponto de
poder dizer imediatamente se alguém ali havia penetrado. Como todas as gavetas, cofres e caixas, a gaveta da
escrivaninha significava os genitais femininos [ver em [1]]. Ela sabia que os sinais de relação sexual (e,
segundo pensava, de tocar) podiam ser observados nos genitais, e por muito tempo havia temido tal
descoberta. Em todos estes três sonhos, penso que a ênfase deve ser posta no conhecimento. Ela estava
recordando o período de suas investigações sexuais, quando era criança, de cujo resultado, naqueles tempos,
muito se orgulhava.(5) Aqui se apresenta mais um pouco de simbolismo. Desta vez, porém, devo começar com
um breve preâmbulo da situação psíquica. Um cavalheiro, que havia passado a noite mantendo relações
sexuais com uma mulher, descreveu-a como uma dessas personagens maternas em quem o desejo por um
filho irrompe irresistivelmente na relação com um homem. As circunstâncias desse encontro, no entanto,
exigiam uma precaução que impedisse o sêmen fertilizante de atingir o útero da mulher. Ao acordar, após essa
noite, a mulher relatou o seguinte sonho:
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
109
Um oficial, com uma capa vermelha, corria atrás dela na rua. Ela fugia dele, e subiu correndo os
degraus, e ele sempre atrás. Ofegante, chegou a sua casa, bateu a porta atrás de si e trancou-a. Ele
permaneceu do lado de fora e, quando ela olhou através da vigia da porta, ele estava sentado num banco e
chorava.
Sem dúvida, os senhores reconhecerão a perseguição pelo oficial com a capa vermelha e a subida
ofegante dos degraus da escada como representação do ato sexual [ver em [1]]. O fato de ter sido a própria
mulher do sonho que se trancou a si mesma para se livrar de seu perseguidor servirá como exemplo das
inversões tão comumente utilizadas nos sonhos [ver em [1]], pois foi o homem quem evitara a consumação do
ato sexual. Da mesma maneira, a tristeza dela tinha sido deslocada para o homem, pois era este quem chorava
no sonho — e isto era simultaneamente uma representação da emissão de sêmen.
Estou certo de que os senhores ouviram, uma vez ou outra, a psicanálise afirmar que todo sonho tem
uma significação sexual. Pois bem, os senhores mesmos estão em condições de formar um julgamento da
incorreção dessa acusação. Os senhores vieram a conhecer sonhos plenos de desejos que lidam com a
satisfação das necessidades mais óbvias — fome e sede, e ânsia de liberdade —, sonhos de conveniência e de
impaciência, e também sonhos puramente gananciosos e egoístas. Mas, ao mesmo tempo, os senhores
deveriam ter em mente, como um dos resultados da investigação psicanalítica, que sonhos grandemente
deformados proporcionam expressão principalmente (embora, também, não exclusivamente) a desejos sexuais.
(6) Tenho um motivo especial para colecionar exemplos do uso dos símbolos nos sonhos. Em nossa
primeira conferência [ver em [1] e segs.], eu lamentava a dificuldade de proporcionar demonstrações e, assim,
de conferir convicção ao dar ensinamentos sobre psicanálise. E não tenho dúvidas de que os senhores, desde
então, tenham concordado comigo. As diversas teses da psicanálise estão, contudo, em tão íntima conexão,
que as provas podem com facilidade ser estendidas de um único ponto até um ponto maior do todo. Da
psicanálise poder-se-ia dizer que, se alguém lhe mostra um só dedo mínimo, ela imediatamente lhe agarra a
mão inteira. E, mesmo, ninguém que tenha aceito a explicação das parapraxias pode logicamente refrear sua
crença em tudo o mais. Uma segunda situação, igualmente acessível, é oferecida pelo simbolismo onírico. Aqui
está o sonho de uma mulher sem instrução, cujo marido era um policial, e que, certamente, jamais tinha ouvido
falar qualquer coisa sobre simbolismo onírico ou psicanálise. Depois julguem por si mesmos se a explicação do
sonho, com auxílio dos simbolismos sexuais, pode ser chamada de arbitrária e forçada:
‘…Então alguém penetrou na casa e ela assustou-se e chamou um policial. Mas ele entrara
tranqüilamente numa igreja à qual se chegava por certo número de degraus acompanhado de dois vagabundos.
Atrás da igreja havia uma colina e, acima, um cerrado bosque. O policial usava um capacete, gola com placa de
bronze e capote. Tinha a barba castanha. Os dois vagabundos, que acompanhavam pacificamente o policial,
tinham aventais semelhantes a sacos atados em torno da cintura. Em frente da igreja um caminho conduzia até
a colina; em ambos os lados, cresciam relva e mato rasteiro, que se tornavam cada vez mais espessos e, no
alto da colina, se transformavam num bosque comum.’Os senhores não terão problemas em reconhecer os
símbolos utilizados. Os genitais masculinos são representados por uma tríade de personagens e os genitais
femininos por um cenário com uma capela, um monte e uma floresta. Mais uma vez, os senhores encontram
degraus como símbolo do ato sexual. O que no sonho é chamado de monte é também chamado de monte, na
anatomia — o Mons Veneris [o monte de Vênus].(7) E aqui está mais um sonho que deve ser solucionado pela
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
110
inserção de símbolos. É notável e convincente pelo fato de a própria pessoa que o sonhou haver traduzido
todos os símbolos, embora não tivesse qualquer espécie de conhecimento teórico prévio da interpretação de
sonhos. Tal atitude é bastante incomum, e suas causas determinantes não foram precisamente
compreendidas:‘Ele estava passeando a pé, com seu pai, num lugar que certamente deve ter sido o Prater, pois
viu a Rotunda, com um pequeno anexo em frente, à qual estava amarrado um balão cativo, embora este
parecesse flácido. Seu pai perguntou-lhe para que servia tudo isso; ele ficou surpreso com a pergunta, mas
explicou-lhe. Então entraram num pátio em que havia uma grande folha de flandres estendida. Seu pai quis
arrancar um pedaço grande da mesma, porém, primeiro olhou em volta para ver se havia alguém observando.
Ele lhe disse que ele apenas precisava falar ao capataz e poderia levar uma parte da folha, sem qualquer
problema. Uma escada descia desse pátio para um poço de mina, cujas paredes estavam almofadadas com um
material macio, bem semelhante a uma poltrona de couro. No fim do poço de mina havia uma comprida
plataforma e, depois, mais outro poço de mina começava….’
O próprio sonhador interpretou-o: ‘A Rotunda eram os meus genitais e o balão cativo em frente da
mesma era meu pênis, de cuja flacidez tenho motivos para me queixar.’ Entrando em maiores detalhes,
portanto, podemos traduzir a Rotunda como o traseiro (habitualmente considerado pelas crianças como
fazendo parte dos genitais) e o pequeno anexo em frente da mesma, como o escroto. Seu pai perguntou-lhe, no
sonho, para que servia tudo isso — ou seja, qual a finalidade e função dos genitais. Pareceu plausível inverter a
situação e transformar a pessoa que sonhou na pessoa que pergunta. Visto como ele nunca havia feito
perguntas a seu pai neste sentido, temos de considerar o pensamento onírico como um desejo, ou torná-lo
como oração condicional, tal como: ‘Se eu tivesse perguntado a meu pai sobre explicações sexuais….’ Logo
mais encontraremos a continuação deste pensamento em outra parte do sonho.
O pátio, onde estava estendida a folha de flandres, não deve ser tomado simbolicamente à primeira
vista. Derivava dos locais de negócios do pai desse sonhador. Por motivos de discrição, substituí ‘folha de
flandres’ por outro material com que seu pai realmente lidava; mas não fiz nenhuma outra alteração no sonho.
Ele havia entrado no negócio de seu pai e tinha feito sérias objeções às práticas, um tanto duvidosas, das quais
dependiam, em parte, os lucros da firma. Conseqüentemente, o pensamento onírico que acabei de interpretar
pode ser retomado desta maneira: ‘(Se eu lhe tivesse perguntado), ele me teria logrado da mesma forma como
logra seus fregueses.’ Com relação ao ‘arrancar’, que serviu para representar a desonestidade de seu pai no
negócio, o sonhador deu uma segunda explicação — ou seja, que representava a masturbação. Não somente
há muito tempo estávamos familiarizados com essa interpretação como também havia algo para confirmá-la no
fato de que a natureza secreta da masturbação estava representada pelo seu inverso: podia ser efetuada em
público. Tal como era de se esperar, a atividade masturbatória mais uma vez se deslocou para o pai do
sonhador, assim como sucedera com o aspecto de fazer perguntas, na primeira cena do sonho. Ele
prontamente interpretou o poço de mina como sendo uma vagina, tendo em conta o revestimento macio de
suas paredes. Acrescentei, com base na minha autoridade [ver em [1]], que descer, assim como subir, em
outros casos, descrevia o coito na vagina.
O próprio personagem desta história deu uma explicação biográfica dos demais detalhes — de o
primeiro poço de mina ser seguido de uma plataforma comprida e de mais outro poço de mina. Ele vinha
mantendo relações sexuais, durante certo tempo, mas depois abandonou-as por causa de inibições, e agora
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
111
esperava conseguir reencetá-las com o auxílio do tratamento.(8) Os dois sonhos seguintes foram sonhados por
um estrangeiro, que vivia numa situação altamente polígama. Reproduzo-os para os senhores como prova de
minha afirmação [ver em [1]] de que o próprio ego de quem o sonhou aparece em cada um de seus sonhos,
ainda que escondido no conteúdo manifesto. As malas, nestes sonhos, eram símbolos de mulheres:(a) Ele
estava iniciando uma viagem; sua bagagem era levada à estação numa carruagem, numerosas malas
empilhadas, e entre elas, duas malas pretas, semelhantes a malas de amostras. Ele disse a alguém, em tom de
consolo: ‘Bem, elas só vão comigo até a estação.’Ele realmente viajava com grande quantidade de bagagem;
mas também trazia consigo para o tratamento muitíssimas histórias referentes a mulheres. As duas malas
pretas correspondiam a duas mulheres negras que nessa época estavam desempenhando o principal papel na
sua vida. Uma delas quis acompanhá-lo a Viena; e, por orientação minha, ele havia telegrafado para ela não
vir.(b) Uma cena que se passa na alfândega: Um outro viajante abriu seu baú e, fumando indiferentemente um
cigarro, disse: ‘Não há nada aí dentro.’ O funcionário aduaneiro pareceu acreditar nele, mas voltou a apalpar o
interior do baú e encontrou algo muito especialmente proibido. O viajante disse, com voz resignada: ‘O que é
que se vai fazer….’Ele próprio era o viajante: eu era o funcionário da alfândega. Via de regra, ele era muito
franco em admitir determinadas coisas; mas tencionava, comigo, manter silêncio a respeito de uma ligação
recente que havia iniciado com uma senhora porque, com razão, supunha que ela não me fosse desconhecida.
Ele deslocou para um estranho a desagradável situação de ser descoberto, de modo que ele próprio parecia
não surgir no sonho.
(9) Aqui está um exemplo de um símbolo que ainda não mencionei:
Ele encontrou sua irmã em companhia de duas amigas que eram, também elas, irmãs. Cumprimentou
com um aperto de mão a ambas, mas não a sua irmã.
Nenhuma conexão com alguma ocorrência real. Seus pensamentos, porém, o levaram de volta, isto
sim, a um período no qual suas observações fizeram-no refletir quão tardiamente se desenvolviam os seios das
meninas. Assim, as duas irmãs eram seios; ele teria desejado agarrá-los com sua mão — desde que não se
tratasse de sua irmã.
(10) E agora, um exemplo de simbolismo da morte num sonho:
Ele estava caminhando com duas pessoas, cujos nomes sabia mas esquecera ao acordar, por uma
ponte de ferro muito alta e íngreme. De repente, elas desapareceram e ele viu um homem parecido com um
fantasma, envolto numa capa e numa roupagem de linho. Perguntou-lhe se ele era o mensageiro do telégrafo.
Não. Era ele o cocheiro? Não. Então continuou andando…. Enquanto ainda estava sonhando, sentia uma
aguda ansiedade e, após haver acordado, continuou o sonho com uma fantasia de que a ponte de ferro se
rompia de repente e ele caía no espaço.
Pessoas de quem se insiste em dizer que são desconhecidas, ou cujos nomes não são lembrados, são,
na sua maioria, pessoas próximas. Este sonhador tinha um irmão e uma irmã; e se ele desejasse que estes
dois estivessem mortos, não seria mais que justo que, em troca, ele devesse ser vítima do medo da morte.
Sobre o mensageiro do telégrafo, comentou que uma pessoa assim sempre traz más notícias. Pelo seu
uniforme poderia igualmente ter sido o acendedor de lampião; entretanto ele também os apaga, da mesma
forma como o Espírito da Morte apaga a chama da vida. O cocheiro fê-lo pensar no poema de Uhland sobre a
Viagem do Rei Carlos, e fê-lo recordar-se de uma perigosa viagem por mar, com dois companheiros, durante a
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
112
qual ele tinha feito a parte do rei no poema. A ponte de ferro levou-o a pensar num recente desastre e no tolo
ditado: ‘A vida é uma ponte pênsil.’
(11) O sonho seguinte pode contar-se como mais uma entre as representações da morte:Um
cavalheiro desconhecido entregou-lhe um cartão de visitas tarjado de negro.(12) Os senhores estarão
interessados no seguinte sonho, por diversos motivos, embora um estado neurótico na pessoa que o sonhou
tenha sido uma de suas precondições:Ele estava viajando de trem. O trem fez uma parada em campo aberto.
Pensou que estava por suceder um desastre e que devia tratar de fugir. Percorreu todos os carros do trem e
matou a todos que encontrou: o guarda, o maquinista, e assim por diante.Com relação a isto, ele pensou em
uma história que lhe contara um amigo. Um louco estava sendo conduzido em um vagão de trem, na Itália;
contudo, por descuido, deixou-se que um viajante ficasse com ele no mesmo compartimento. O louco matou o
viajante. Assim, ele estava identificando-se com o louco, e seu motivo de agir assim, ele o baseou em uma
obsessão, que o atormentava de tempos em tempos, de que ele devia ‘livrar-se de todas as testemunhas
cúmplices’. Ele próprio, porém, então encontrou um motivo melhor e isso foi o que levou à causa
desencadeante do sonho. A noite anterior, no teatro, mais uma vez viu a jovem com quem desejara casar, mas
havia desistido porque ela lhe dera motivos para ciúme. Em face da intensidade atingida por seu ciúme,
pensou, ele estaria realmente louco para querer casar com ela. Isto significava que ele a considerava tão
indigna de confiança que, em seu ciúme, ele teria de matar todos os que estivessem no seu caminho. Já
encontramos o caminhar através de uma série de quartos (aqui, carros do trem) como símbolo de casamento
(uma inversão de ‘monogamia’).Com relação à parada do trem em campo aberto e ao medo de acidente, disse
que, certa vez, quando se encontrava numa viagem de trem, tinha havido uma súbita parada nessas
circunstâncias, quando não estavam na estação. Uma jovem senhora que viajava com ele dissera que podia
ser iminente uma colisão e que o mais seguro era manter as pernas levantadas. Este ‘manter as pernas
levantadas’ tinha tido, contudo, seu papel nos muitos passeios a pé e excursões pelo campo, que ele tinha feito
com a outra jovem, nos primeiros dias felizes de seu amor. Este era um novo argumento para pensar que ele
estava louco para casar com ela, agora. Meu conhecimento da situação deu-me a certeza de que, não
obstante, ele desejava estar suficientemente louco para casar com ela.
CONFERÊNCIA XIII - ASPECTOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS
SENHORAS E SENHORES:
Comecemos mais uma vez partindo da conclusão a que chegamos de que a elaboração onírica, sob a
influência da censura dos sonhos, transpõe a ordem dos pensamentos oníricos latentes para um modo de
expressão diferente. Os pensamentos latentes não diferem dos nossos conhecidos pensamentos conscientes
da vida desperta. O novo modo de expressão nos é incompreensível devido a muitos de seus aspectos. Temos
dito que ele retorna a estados de nossa evolução intelectual que há muito foram suplantados: à linguagem por
imagens, às conexões simbólicas, a condições que, talvez, existiram antes de se desenvolver nossa linguagem
de pensamento. Temos descrito, por essa razão, o modo de expressão da elaboração onírica como arcaico ou
regressivo [ver em [1] e seg.].
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
113
Os senhores podem concluir, com isto, que, se estudarmos mais a elaboração onírica, deveremos
conseguir lograr valioso esclarecimento dos poucos conhecidos inícios de nosso desenvolvimento intelectual.
Espero que assim seja; contudo, este trabalho até agora não foi iniciado. A pré-história à qual a elaboração
onírica nos faz retroceder é de duas espécies — de um lado, à pré-história do indivíduo, sua infância; e, de
outro lado, até onde cada indivíduo de alguma maneira recapitula, em forma abreviada, todo o desenvolvimento
da espécie humana, também à pré-história filogenética. Conseguiremos distinguir qual parte dos processos
mentais latentes deriva do período pré-histórico do indivíduo, e qual a parte proveniente da pré-história
filogenética? Penso não ser impossível consegui-lo. A mim, por exemplo, parece-me que as conexões
simbólicas que o indivíduo jamais adquiriu por aprendizado, podem, com razão, exigir serem consideradas
como herança filogenética.
Esta, porém, não é a única característica arcaica do sonho. Naturalmente, os senhores todos conhecem
bem a extraordinária amnésia da infância. Quero dizer com isso que os primeiros anos de vida, até a idade de
cinco, seis ou oito anos não deixaram atrás de si, em nossa memória, marcas como as das experiências
posteriores. Aqui e ali, é verdade, encontramos pessoas que se podem gabar de uma memória contínua, desde
os primeiros começos até o dia de hoje; mas a outra alternativa, de lacunas na memória, é, de longe, a mais
freqüente. Em minha opinião, não tem havido suficiente surpresa com referência a esse fato. Na época em que
uma criança tem dois anos de idade, ela consegue falar bem, e logo mostra que está à vontade em situações
mentais complicadas; e faz comentários que, se lhe forem referidos muitos anos mais tarde, ela mesma terá
esquecido. Ademais disso, a memória é mais eficiente, em tenra idade, pois está menos sobrecarregada do que
estará mais tarde. E não existe qualquer motivo para considerar a função da memória uma atividade mental
especialmente elevada ou difícil; pelo contrário, podemos encontrar uma boa memória em pessoas de nível
intelectual muito baixo.Um segundo fato notável, para o qual devo chamar sua atenção, e que se aflora do
primeiro, é que, de permeio ao vazio de memórias que abrange os primeiros anos da infância, sobressaem
algumas recordações bem preservadas, na maioria percebidas em forma plástica, que não podem explicar sua
sobrevivência. Nossa memória lida com o conteúdo das impressões, que nos atingem posteriormente na vida,
fazendo uma seleção das mesmas. Ela retém o que possui alguma importância e elimina o que carece de
importância. Isto, porém, não procede para as lembranças da infância que foram conservadas. Elas não
correspondem necessariamente às experiências importantes dos anos da infância, nem mesmo àquelas
experiências que devem ter parecido importantes do ponto de vista da criança. Freqüentemente, são tão banais
e insignificantes que apenas podemos nos perguntar, surpresos, por que esse detalhe especial escapou ao
esquecimento. Há muito tempo, com auxílio da análise, procurei enfrentar o enigma da amnésia infantil e das
memórias residuais que a interrompem, e cheguei à conclusão de que, mesmo no caso de crianças, malgrado
tudo, é verdade que somente permanece na memória aquilo que é importante. Pelos processos, que os
senhores já conhecem, de condensação e, mais especialmente, de deslocamento, aquilo que é importante é,
contudo, substituído na memória por alguma outra coisa que parece sem importância. Por essa razão
denominei a essas lembranças da infância ‘lembranças encobridoras’ e, com uma análise minuciosa, pode ser
extraído delas tudo o que foi esquecido.
Nos tratamentos psicanalíticos, invariavelmente nos defrontamos com a tarefa de preencher essas
lacunas na memória da infância; e, na medida em que o tratamento de alguma forma tem êxito — ou seja, muito
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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freqüentemente — também temos êxito em trazer à luz o conteúdo desses anos da infância esquecidos. Tais
impressões realmente jamais foram esquecidas, eram apenas inacessíveis, latentes, e tinham formado parte do
inconsciente. Pode suceder, porém, elas emergirem do inconsciente espontaneamente, e isto sucede em
relação aos sonhos. Parece que a vida onírica sabe como obter acesso a essas experiências latentes, infantis.
Excelentes exemplos disto foram relatados na literatura, e eu mesmo pude trazer uma contribuição desse teor.
Uma vez, sonhei, em certa circunstância, com uma pessoa que devia ter-me prestado um serviço e que vi
claramente à minha frente. Era um homem com um olho só, de baixa estatura, forte, e com a cabeça
profundamente enterrada nos ombros. Pelo contexto, concluí que se tratava de um médico. Felizmente pude
perguntar a minha mãe, que ainda vivia, com quem se parecia o médico da minha terra natal (que eu deixara
quando tinha três anos de idade); e eu soube, por ela, que ele tinha um olho só, era baixo, forte e tinha a
cabeça enterrada fundo nos ombros; e também soube qual o acidente em decorrência do qual ele viera em meu
auxílio e que eu mesmo havia esquecido. Esse fato de os sonhos terem à sua disposição o material esquecido
dos primeiros anos da infância é, pois, mais um aspecto arcaico.Essa mesma parcela de informação pode,
ademais, ser aplicada a um outro enigma com que nos temos defrontado. Os senhores se recordam do
assombro causado pela nossa descoberta de que os sonhos são provocados por desejos ativamente maus e
extravagantemente sexuais que tornaram necessária a censura e a deformação dos sonhos [ver em [1] e
segs.]. Ao interpretarmos um sonho desse tipo àquele que o sonhou, e se, na melhor das hipóteses, o sonhador
não atacar realmente a interpretação, ele, ainda assim, regularmente levanta a questão da proveniência desses
desejos, de vez que estes lhe parecem alheios, e aquilo de que está cônscio é o oposto desses desejos. Não
devemos hesitar em assinalar a origem dos mesmos. Esses impulsos de desejos maus são originários do
passado, e, freqüentemente, de um passado não tão remoto. Pode-se demonstrar que houve uma época em
que eles eram corriqueiros e conscientes, embora atualmente não o sejam mais. Uma mulher, cujo sonho
significava que desejava ver sua filha única, agora com dezessete anos de idade, morta em sua presença,
verificou, com nosso auxílio, que ela realmente, em certa época, abrigava esse desejo de morte. A filha era fruto
de um casamento infeliz que logo se dissolvera. De certa feita, quando ainda trazia essa filha em seu ventre,
num acesso de raiva, e após uma cena violenta com seu marido, ela golpeara com seus próprios punhos seu
corpo, a fim de matar a criança que estava dentro. Quantas mães, que amam seus filhos ternamente, hoje em
dia talvez com excessiva ternura, conceberam-nos contra a vontade e, à época, desejaram que o ser vivo
dentro delas não mais se desenvolvesse! Podem até mesmo ter expresso esse desejo em ações diversas,
felizmente inofensivas. Assim, seu desejo de morte contra alguém que amam, desejo que, depois, é tão
misterioso, origina-se dos primeiros dias de seu relacionamento com essa pessoa.Da mesma forma, um pai
teve um sonho que legitimou a interpretação de que ele desejava a morte de seu filho predileto, o mais velho.
Ele também foi levado a recordar que houvera uma época em que tal desejo não lhe era estranho. Quando o
filho era ainda uma criança de colo, este pai, descontente com a esposa que escolhera, amiúde pensava que,
se a pequena criatura, que nada significava para ele, viesse a morrer, mais uma vez ficaria livre e faria melhor
uso de sua liberdade. A mesma origem pode ser demonstrada no caso de grande número de impulsos de ódio
semelhantes; são recordações de algo pertencente ao passado, que, numa época, foi consciente e
desempenhou seu papel na vida mental. Os senhores tenderão a, disso, concluir que esses desejos e esses
sonhos não deveriam aparecer naqueles casos em que nunca ocorreram transformações desse tipo nas
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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relações com alguém, em que o relacionamento foi do mesmo tipo desde o início. Estou disposto a admitir esse
fato; devo, porém, lembrar-lhes que precisam ter em consideração não o enunciado do sonho, mas seu sentido
após o sonho haver sido interpretado. É possível que um sonho manifesto com a morte de alguma pessoa
amada simplesmente tenha assumido uma máscara aterradora e possa significar algo muito diferente, ou que a
pessoa amada sirva como substituto destinado a confundir a identidade de alguma outra pessoa.
Este mesmo tema pode, contudo, sugerir uma outra questão muito mais séria. ‘Ainda que’, os senhores
dirão, ‘este desejo de morte se encontrasse presente em determinada época, e seja confirmado pela
lembrança, isso ainda não constitui explicação. Afinal, há muito que foi ultrapassado, e atualmente só pode
estar presente no inconsciente como alguma outra recordação qualquer desprovida de conteúdo emocional, e
não como um impulso poderoso. Nada fala em favor desta última possibilidade. Por que, então, foi recordado
no sonho?’ Esta pergunta pode surgir, e com razão. Uma tentativa de respondê-la nos levaria demasiado longe,
e exigiria que assumíssemos uma posição em um dos pontos mais importantes da teoria dos sonhos. Vejo-me,
no entanto, obrigado a manter-me dentro do quadro de referências de nossa exposição, e usar de moderação.
Assim, preparem-se para uma desistência provisória. Contentemo-nos com a evidência efetiva de esse desejo,
que ficou para trás, poder ser demonstrado como sendo o causador do sonho, e prossigamos com nossa
investigação para saber se outros desejos maus podem, de modo semelhante, ser remontados ao
passado.Deter-nos-emos nesses desejos de eliminar alguém, os quais, em sua maioria, podem ser atribuídos
ao desenfreado egoísmo do sonhador. Um desejo desse tipo muito amiúde pode ser apontado como o
maquinador de um sonho. Sempre que alguém, no decurso da vida, se interpõe no caminho de uma pessoa —
e como é freqüente isso acontecer, face à complexidade dos relacionamentos de uma pessoa! —, um sonho
logo se prontifica a matar esse alguém, mesmo que se trate do pai ou da mãe, do irmão ou da irmã, do marido
ou da esposa. Essa maldade da natureza humana surgiu-nos para grande surpresa nossa, e, decididamente,
não estávamos propensos a aceitar, sem indagações, esse resultado da interpretação de sonhos. No entanto,
assim que fomos levados a procurar a origem desses desejos no passado, descobrimos o período do passado
do indivíduo quando não havia ainda nada de estranho em tal egoísmo e em tais impulsos plenos de desejos
dirigidos até mesmo contra os parentes mais próximos. São as crianças, e precisamente nesses primeiros anos,
mais tarde velados pela amnésia, que freqüentemente manifestam um tal egoísmo em grau extremamente
marcado e, invariavelmente, mostram evidentes rudimentos ou, expressando-se com maior correção, resíduos
dele. As crianças amam em primeiro lugar a si próprias, e apenas mais tarde é que aprendem a amar os outros
e a sacrificar algo de seu ego aos outros. As próprias pessoas a quem uma criança parece amar desde o início,
no começo são amadas pela criança porque esta necessita delas e não pode dispensá-las — por motivos
egoístas, mais uma vez. Somente mais tarde o impulso de amar se torna independente do egoísmo. É
literalmente verdadeiro que seu egoísmo ensinou a amar.
Neste consenso, será interessante comparar a atitude da criança com relação a seu irmãos e irmãs
com sua atitude para com seus pais. Uma criança pequena não ama necessariamente seus irmãos e irmãs;
muitas vezes, obviamente não os ama. Sem dúvida ela os odeia como rivais seus, e é fato sabido que esta
atitude freqüentemente persiste por muitos anos, até ser atingida a maturidade ou mesmo até mais tarde, sem
interrupção. Com efeito, muito amiúde esta atitude é substituída, ou melhor, digamos, é encoberta por outra,
mais cordial. Mas, a que é hostil em geral parece ser a que surge primeiro. Essa atitude hostil pode ser
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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observada com muita facilidade em crianças com idade entre dois e meio e quatro ou cinco anos, quando um
novo irmãozinho ou irmãzinha aparece. Geralmente encontra uma recepção muito inamistosa. São muito
comuns os comentários como ‘não gosto dele; a cegonha pode levar embora de novo!’ Depois, aproveitam-se
de todas as oportunidades para rebaixar o recém-chegado, e se fazem tentativas de machucá-lo; e até mesmo
se conhecem casos de ataques mortíferos. Se a diferença de idade é menor, na época em que a atividade
mental da criança se aviva em determinado grau de intensidade, ela já encontra aí seu competidor e a ele se
adapta. Sendo maior a diferença, o novo bebê pode, desde o início, despertar alguma simpatia, como um objeto
interessante, uma espécie de boneca viva; e quando a diferença de idade é de oito ou mais anos, já podem
manifestar-se impulsos solícitos, maternais, especialmente em meninas. Contudo, falando honestamente, se
alguém encontrar, em sonho, um desejo de morte contra um seu irmão ou irmã, raramente há que considerá-lo
um enigma e, sem dificuldades, pode situar seu protótipo no início da infância e, vezes mais seguidas, também
nos anos subseqüentes do companheirismo fraterno.Provavelmente não há quarto de crianças sem violentos
conflitos entre seus ocupantes. Os motivos de tais desavenças são a rivalidade pelo amor dos pais, pelas
posses comuns, pelo espaço vital. Os impulsos hostis são dirigidos contra membros da família mais velhos e
também mais novos. Foi Bernard Shaw, segundo penso, quem comentou: ‘Via de regra, só existe uma pessoa
que uma menina inglesa odeia mais do que a sua mãe; é a sua irmã mais velha. Neste comentário existe,
porém, algo que nos parece estranho. Poderíamos, quando muito, achar compreensíveis o ódio e a competição
entre irmãos e irmãs. Mas como podemos supor que sentimentos de ódio venham a surgir nas relações entre
filha e mãe, entre pais e filhos?Esta relação é, sem dúvida, uma relação mais favorável também do ponto de
vista dos filhos. É o que exigem as nossas expectativas; achamos que uma ausência de amor é muito mais
censurável entre pais e filhos do que entre irmãos e irmãs. No primeiro caso, teríamos tornado esta relação
sagrada, ao passo que, no segundo, isso teria permanecido profano. Já a observação corrente pode nos
mostrar quão freqüentemente as relações afetivas entre os pais e seus filhos adultos deixam de atingir o ideal
estabelecido pela sociedade, quanta hostilidade está pronta para manifestar-se, e se manifestaria se não fosse
contida por um misto de devoção filial e impulsos afetuosos. Os motivos dessa hostilidade geralmente são
conhecidos e sua tendência é separar os do mesmo sexo — a filha, de sua mãe, e o pai, de seu filho. A filha
encontra em sua mãe a autoridade que restringe sua vontade e que está incumbida da tarefa de impor-lhe a
renúncia à liberdade sexual, renúncia que também a sociedade exige; em alguns casos, a filha encontra em sua
mãe até mesmo uma competidora que luta por não ser suplantada. A mesma coisa se repete entre filho e pai, e
de forma ainda mais flagrante. Aos olhos do filho, o pai representa todas as restrições sociais relutantemente
toleradas; o pai lhe impede o exercício da vontade, o prazer sexual incipiente e, nas famílias em que existe
propriedade comum, o desfrute desta. No caso de um herdeiro do trono, essa espera da morte do pai atinge as
raias do trágico. Parece haver perigo menor para a relação entre pai e filha ou mãe e filho. Esta última
proporciona os mais puros exemplos de uma afeição imutável, não prejudicada por quaisquer considerações
egoístas.Por que estou eu falando nestas coisas, que, afinal, são banais e conhecidas universalmente? Porque
há uma inequívoca tendência a negar-lhes a importância que têm na vida, e a fazer crer que o ideal imposto
pela sociedade é atingido muito mais freqüentemente do que o é na realidade. É melhor, pois, que a verdade
deva ser dita pelos psicólogos, de preferência a deixar tal tarefa a cargo de cínicos. E, aliás, essa negação se
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
117
aplica somente à vida real. As obras narrativas e dramáticas da imaginação podem livremente jogar com os
temas que surgem de um distúrbio deste ideal.
Portanto, não há motivos para surpresas se, em muitas pessoas, os sonhos revelam seu desejo de
eliminar seus pais e, especialmente, o genitor do mesmo sexo. Podemos supor que esse desejo também esteja
presente na vida desperta, e até mesmo seja consciente, às vezes, quando pode estar mascarado por algum
outro motivo, como foi o caso do sonhador do Exemplo 3 [ver em [1], acima] em que foi substituído pela
compaixão pelos inúteis sofrimentos do pai. É raro que apenas a hostilidade domine o relacionamento; muito
mais freqüentemente ela se encontra nos bastidores de impulsos mais afetuosos, pelos quais é suprimida, e
pode, por assim dizer, esperar até que um sonho venha a isolá-la. O que parece-nos ter uma dimensão enorme
em um sonho, por ter sido isolado, reduz-se mais uma vez, quando nossa interpretação o situa no contexto da
vida real (Hanns Sachs). Contudo, encontramos este desejo onírico também na vida real, onde não adquire
qualquer relevância e onde o adulto jamais deseja admiti-lo na vida desperta. A razão disso é que os motivos
mais profundos e mais invariáveis de desavenças, especialmente entre duas pessoas do mesmo sexo, já se
fizeram sentir no início da infância.O que tenho em mente é a rivalidade no amor, com nítida ênfase no sexo do
indivíduo. Quando é ainda uma criança, um filho já começa a desenvolver afeição particular por sua mãe, a
quem considera como pertencente a ele; começa a sentir o pai como rival que disputa sua única posse. E da
mesma forma uma menininha considera sua mãe como uma pessoa que interfere na sua relação afetuosa com
o pai e que ocupa uma posição que ela mesma poderia muito bem ocupar. A observação nos mostra a quão
precoces anos essas atitudes remontam. A essas atitudes chamamos de ‘complexo de Édipo’, visto que a lenda
de Édipo materializa, com apenas uma leve atenuação, os dois desejos extremos originários na situação do
filho — matar o pai e tomar a mãe como esposa. Não pretendo afirmar que o complexo de Édipo engloba toda a
relação dos filhos com os pais: esta pode ser muito mais complexa. O complexo de Édipo, ademais disso, pode
estar desenvolvido em maior ou menor intensidade, pode até mesmo estar invertido; mas constitui fator
constante e importante na vida mental de uma criança, e existe maior risco de, antes, subestimarmos, do que
superestimarmos sua influência e a dos desenvolvimentos que nele se originam. Aliás, as crianças
freqüentemente reagem, em sua atitude edipiana, a um estímulo proveniente de seus pais, que amiúde se
deixam levar, nas suas preferências, pela diferença do sexo, de modo que o pai escolherá a filha e a mãe
escolherá o filho como favorito ou, no caso de um esfriamento conjugal, como um substituto de um objeto de
amor que perdeu seu valor.Não se pode dizer que o mundo tenha demonstrado muita gratidão à investigação
psicanalítica por sua revelação do complexo de Édipo. Ao contrário, a descoberta provocou a mais violenta
oposição entre adultos; e aqueles que não se interessaram por tomar parte no repúdio a este relacionamento
emocional proscrito e tabu, compensaram seu débito mais tarde, subtraindo a este complexo o seu valor, por
meio de reinterpretações tortuosas. Permanece inalterada minha convicção de que não há o que negar ou
encobrir. Devemos nos congratular com o fato de ter sido reconhecido pela própria lenda grega como destino
inevitável. Mais uma vez é interessante o fato de o complexo de Édipo, que tem sido repudiado na vida real, ter
sido deixado a cargo dos escritos imaginativos, ter sido colocado, por assim dizer, livremente à sua disposição.
Otto Rank [1912b] demonstrou, em cuidadoso estudo, como o complexo de Édipo proporcionou aos autores
dramáticos uma riqueza de temas com infindáveis modificações, atenuações e disfarces — isto é, com
distorções do tipo que já conhecemos como obra de uma censura. Portanto, podemos também atribuir este
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
118
complexo de Édipo às pessoas que sonham e foram suficientemente felizes para escapar a conflitos com seus
pais em sua vida posterior. E, em íntima conexão com o mesmo, encontramos aquilo a que chamamos de
‘complexo de castração’, a reação às ameaças contra a criança, destinadas a pôr um fim a suas primeiras
atividades sexuais, ameaças atribuídas a seu pai.O que já aprendemos de nosso estudo da vida mental das
crianças fará com que esperemos encontrar uma explicação semelhante para o outro grupo de desejos oníricos
proibidos: os impulsos sexuais excessivos. Assim, encorajamo-nos a realizar um estudo da evolução da vida
sexual das crianças e, com base em muitas informações, chegamos ao que se segue. Primeiro e acima de
tudo, é um erro injustificável negar que as crianças têm uma vida sexual e supor que a sexualidade somente
inicia na puberdade, com a maturação dos genitais. Pelo contrário, bem desde o início as crianças têm uma
intensa vida sexual, que difere em muitos pontos daquilo que mais tarde é considerado normal. Aquilo que na
vida adulta é descrito como ‘perverso’ difere do normal por estes aspectos: primeiro, porque despreza a barreira
da espécie (o abismo entre o homem e o animal); segundo, por transpor a barreira contra a repugnância;
terceiro, a barreira contra o incesto (proibição contra a busca da satisfação sexual em relações consangüíneas
próximas); quarto, a barreira contra pessoas do mesmo sexo; e quinto, por transferir a outros órgãos e áreas do
corpo o papel desempenhado pelos genitais. Nenhuma destas barreiras existia desde o começo; foram
estabelecidas apenas gradualmente, no decorrer do desenvolvimento e da educação. Crianças de tenra idade
são livres delas. Não reconhecem qualquer abismo assustador entre seres humanos e animais; a soberba com
que os homens se distanciam dos animais não emerge senão mais tarde. Inicialmente, as crianças não
mostram qualquer repugnância pelas excreções; porém, adquirem-na lentamente, sob a pressão da educação.
Não dão importância especial à distinção entre os sexos, mas atribuem a ambos a mesma conformação dos
genitais; dirigem seus primeiros desejos sexuais e sua curiosidade àqueles que lhes são mais próximos e, por
outras razões, mais caros — os pais, irmãos e irmãs, ou babás; e, finalmente, demonstram (e isto mais tarde
irrompe novamente no clímax de uma relação amorosa) que esperam obter prazer não somente a partir de seus
órgãos sexuais, mas que muitas outras partes do corpo exibem a mesma sensibilidade, proporcionam-lhes
sensações análogas de prazer e, em decorrência, podem desempenhar o papel de genitais. Assim, pode-se
descrever as crianças como ‘perversos polimorfos’ e, se estes impulsos apenas mostram traços de atividade,
isso ocorre, por um lado, porque eles têm intensidade menor quando comparados com os da vida posterior e,
por outro lado, porque todas as manifestações sexuais de uma criança são prontamente, energicamente
suprimidas pela educação. Esta supressão, por assim dizer, se estende à teoria; pois os adultos se esforçam
por não ver uma parte das manifestações sexuais das crianças e por disfarçar uma outra parte, interpretandolhes
erroneamente a natureza sexual, conseguindo assim negá-la em sua totalidade. Freqüentemente, são
estas exatamente as mesmas pessoas que, no trato com as crianças, se enfurecem com qualquer traquinagem
sexual sua e, depois, em seus escritos, defendem a pureza sexual das mesmas crianças. Quando
abandonadas a si próprias, ou sob a influência de sedução, amiúde as crianças realizam proezas consideráveis
na área da atividade sexual perversa. Os adultos, naturalmente, têm razão ao não levar isto muito a sério e
considerá-lo como ‘criancice’ ou ‘brincadeira’, de vez que as crianças não podem ser condenadas como
inteiramente capazes ou inteiramente responsáveis, seja perante o tribunal da moralidade, seja perante a lei;
não obstante, essas coisas existem. Têm sua importância não apenas como indicações da constituição inata de
uma criança e como causas e encorajamentos para desenvolvimentos ulteriores; também nos proporcionam
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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informações acerca da vida sexual das crianças e, assim, acerca da vida sexual humana em geral. Se, portanto,
mais uma vez encontramos todos estes impulsos plenos de desejos perversos por trás de nossos sonhos
deformados, isto somente significa que, também neste campo, os sonhos deram um passo atrás, ao estado de
infância.
Entre esses desejos proibidos, merecem especial ênfase os desejos incestuosos — isto é, aqueles que
objetivam a relação sexual com pais, irmãos e irmãs. Os senhores conhecem o horror que se sente, ou ao
menos se manifesta, na sociedade humana, diante de tal relação, e o acento com que se tonificam as
proibições contra a mesma. Esforços tremendos têm sido dispendidos para explicar esse horror ao incesto.
Algumas pessoas supuseram que considerações referentes à reprodução, por parte da natureza, tivessem
encontrado representação psíquica nesta proibição, pois os acasalamentos consangüíneos prejudicariam as
características raciais. Outros afirmaram que, como conseqüência da vida em comum, do início da infância em
diante, o desejo sexual desviou-se das pessoas em questão. Em ambos estes casos, pode-se observar, um
evitar do incesto estaria assegurado automaticamente, e não se esclareceria por que se exigem essas
proibições severas, as quais indicariam, antes, a presença de um intenso desejo incestuoso. As pesquisas
psicanalíticas têm demonstrado inequivocamente que a escolha incestuosa de um objeto de amor é, pelo
contrário, a primeira e a invariável escolha, e senão mais tarde é que a resistência contra ela se manifesta; sem
dúvida, não é impossível descobrir a origem desta resistência na psicologia individual.
Reunamos agora tudo aquilo com que nossas pesquisas acerca da psicologia da criança têm
contribuído para nossa compreensão dos sonhos. Não somente constatamos que o material das vivências
esquecidas da infância tem acesso aos sonhos, como também vimos que a vida mental das crianças, com
todas as suas características, seu egoísmo, sua escolha incestuosa de objetos de amor, e assim por diante,
ainda persiste nos sonhos — isto é, no inconsciente; e que os sonhos nos levam de volta, todas as noites, a
esse nível infantil. Confirma-se assim o fato de que, na vida mental, o que é inconsciente é também o que é
infantil. A estranha impressão de haver tanta maldade nas pessoas começa a reduzir-se. Esta maldade temida
é simplesmente a inicial e primitiva parte infantil da vida mental, que podemos encontrar em real atuação nas
crianças, à qual, contudo, em parte não damos importância, nas crianças, devido ao pequeno tamanho delas, e,
em parte, não a levamos a sério porque das crianças não esperamos elevado padrão ético algum. Visto os
sonhos regredirem a esse nível, eles dão a impressão de terem revelado o mal que existe em nós. Esta,
todavia, é uma aparência enganadora, pela qual nos temos deixado atemorizar. Não somos tão maus como
tenderíamos a supor a partir da interpretação dos sonhos.Se esses impulsos maus nos sonhos são meros
fenômenos infantis, um retorno aos inícios de nossa evolução ética (de vez que os sonhos simplesmente nos
transformam novamente em crianças, em nossos pensamentos e sentimentos), não temos, se formos racionais,
necessidade de nos envergonhar desses sonhos de maldade. Aquilo que é racional, porém, constitui apenas
uma parte da vida mental, inúmeras outras coisas se passam na vida mental e não são racionais; e assim
sucede irracionalmente estarmos envergonhados desses sonhos. Sujeitamo-los à censura dos sonhos,
envergonhamo-nos e nos irritamos se, por exceção, um desses desejos consegue irromper na consciência em
forma tão indisfarçada, que somos obrigados a reconhecê-lo; com efeito, às vezes nos envergonhamos tanto de
um sonho deformado como se o compreendêssemos. Basta pensar no indignado julgamento que aquela
excelente senhora de meia-idade emitiu a propósito de seu sonho, não interpretado, sobre os ‘serviços de amor’
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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[ver em [1]]. O problema, assim, ainda não está esclarecido, e ainda é possível que outras considerações sobre
a perversidade nos sonhos possam nos levar a formar outro julgamento e chegar a uma outra avaliação da
natureza humana.
Como resultado de nossas pesquisas, atenhamo-nos a duas descobertas, embora apenas signifiquem
o começo de novos enigmas e de novas dúvidas. Em primeiro lugar, a regressão da elaboração onírica não é
apenas formal, mas também material. Não só traduz nossos pensamentos em uma forma primitiva de
expressão; revive, também, as características de nossa vida mental primitiva — a antiga dominância do ego, os
primeiros impulsos de nossa vida sexual e, realmente, até mesmo, nossa antiga propriedade intelectual, caso
assim possam ser consideradas as conexões simbólicas. E, em segundo lugar, tudo isso que é antigo e infantil
e que em certa época foi dominante, e dominante sozinho, hoje deve ser atribuído ao inconsciente, acerca do
qual nossas idéias agora se estão modificando e ampliando. ‘Inconsciente’ já não é mais o nome daquilo que é
latente no momento; o inconsciente é um dos reinos da mente com seus próprios impulsos plenos de desejos,
seu modo de expressão próprio, e com seus mecanismos mentais específicos que não vigoram em outros
setores. No entanto, os pensamentos oníricos latentes, que descobrimos ao interpretar sonhos, não pertencem
a este reino; são, ao contrário, pensamentos iguais àqueles que poderíamos ter pensado na vida desperta. Não
obstante, são inconscientes. Como, então, se pode solucionar esta contradição? Começamos a suspeitar que
aqui deve ser estabelecida uma distinção. Alguma coisa que deriva de nossa vida consciente e compartilha de
suas características — nós a denominamos ‘resíduos diurnos’ — combina-se com alguma outra coisa
proveniente dos domínios do inconsciente, a fim de se construir um sonho. A elaboração onírica se realiza entre
estes dois componentes. A influência exercida sobre os resíduos diurnos pela adição do inconsciente está, sem
dúvida, entre os determinantes da regressão. Esta é a mais profunda compreensão que podemos obter, aqui,
da natureza essencial dos sonhos — até havermos investigado outras regiões da mente. Logo, contudo, advirá
a época de dar outro nome ao caráter inconsciente dos pensamentos oníricos latentes, a fim de diferenciá-lo do
inconsciente oriundo dos domínios do infantil.Podemos, naturalmente, levantar uma outra questão paralela:
‘Que coisa força a atividade psíquica, durante o sono, a fazer esta regressão? Por que não remove os
estímulos mentais, que perturbam o sono, sem causar esta regressão? E se, para fins de censura de sonhos,
tem de fazer uso de disfarce, utilizando-se do modo de expressão antigo, agora ininteligível, qual o motivo de
reviver também os impulsos, desejos e traços de caráter mentais antigos que hoje em dia estão superados —
de fazer uso da regressão material, além da regressão formal?’ A única resposta que poderia nos satisfazer é
que apenas desta forma pode um sonho ser construído, e que não seria dinamicamente possível o estímulo do
sonho ser eliminado de outra maneira. Por enquanto, não temos o direito de dar tal resposta, contudo.
CONFERÊNCIA XIV - REALIZAÇÃO DE DESEJO
SENHORAS E SENHORES:
Deverei fazê-los lembrarem-se, mais uma vez, dos assuntos sobre os quais discorremos até aqui? De
como, quando começamos a aplicar nossa técnica, defrontamo-nos com a deformação dos sonhos, de como
pensávamos a respeito da natureza essencial dos sonhos a partir dos sonhos de crianças? De como, após,
munidos daquilo que aprendêramos dessa pesquisa, acometemos diretamente a deformação onírica e,
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
121
segundo espero, vencemo-la passo a passo? Somos levados a admitir, entretanto, que as coisas que
descobrimos, por uma e por outra via, não se harmonizam inteiramente. Será nossa tarefa juntar as duas séries
de descobertas e ajustá-las entre si.
Verificamos, partindo de ambas as fontes de informação, que a elaboração onírica consiste,
essencialmente, na transformação dos pensamentos em uma experiência alucinatória. É por demais misterioso
o modo pelo qual isso pode acontecer, é, contudo, um problema de psicologia geral, que propriamente não nos
interessa aqui. Ficamos sabendo, pelos sonhos de crianças, que a intenção da elaboração onírica é eliminar o
estímulo mental, perturbador do sono, por meio da realização de um desejo. Dos sonhos deformados não
podíamos dizer nada semelhante, até descobrirmos como interpretá-los. Desde o início, porém, nossa
expectativa era a de podermos considerar os sonhos deformados sob o mesmo prisma que os sonhos de
crianças. A primeira confirmação desta expectativa nos foi dada pela descoberta de que, na realidade, todos os
sonhos são sonhos de crianças, que eles operam com o mesmo material infantil, com os impulsos e
mecanismos mentais da infância. Agora que acreditamos haver superado a deformação onírica, devemos
prosseguir e investigar se nossa visão a respeito dos sonhos como realização de desejos também é válida para
os sonhos deformados.Há pouco tempo, submetemos uma série de sonhos à interpretação, porém deixamos
completamente fora de cogitação a realização de desejos. Estou certo de que os senhores repetidamente
devem ter sido levados a se perguntarem, de si para si: ‘Onde, porém, está a realização de desejos, que se
supõe ser o objetivo da elaboração onírica?’ A pergunta é importante, porque é aquela levantada por nossos
críticos leigos. Os seres humanos, como os senhores sabem, possuem uma tendência natural a repelir
inovações intelectuais. Uma das formas pelas quais se manifesta esta tendência é a imediata redução da
novidade às suas menores proporções, comprimindo-a, se possível, em um simples verbete. ‘Realização de
desejo’ tornou-se o verbete para a nova teoria dos sonhos. O leigo pergunta: ‘Onde está a realização de
desejo?’ Instantaneamente, tendo ouvido falar que se supõe serem os sonhos realizações de desejos, no
próprio ato de emitir a pergunta, ele a responde com uma rejeição. Imediatamente pensa em inumeráveis
experiências suas com sonhos, nas quais o sonho foi acompanhado por sentimentos que vão desde o
desagradável até uma acentuada ansiedade, de modo que a afirmação feita pela teoria psicanalítica dos
sonhos parece-lhe muitíssimo improvável. Não temos dificuldade em responder que, nos sonhos deformados, a
realização de desejo pode não estar evidente, porém deve ser buscada, de modo que é impossível evidenciarse
depois que o sonho for interpretado. Sabemos, também, que os desejos, nesses sonhos deformados, são
desejos proibidos — rejeitados pela censura — e a existência desses desejos justamente foi a causa da
deformação onírica, o motivo da intervenção da censura dos sonhos. Contudo, é difícil fazer o crítico leigo
entender que, antes de um sonho ser interpretado, não se pode investigar a respeito da realização do desejo
desse sonho. Ele continuará esquecendo este aspecto. Sua rejeição da teoria da realização de desejo
realmente não é mais que uma conseqüência de censura dos sonhos, um substituto da rejeição dos desejos
oníricos censurados e uma decorrência da mesma.
Naturalmente, também sentimos a necessidade de explicar a nós próprios por que existem tantos
sonhos de conteúdo aflitivo e, especialmente, por que existem sonhos de ansiedade. Aqui, pela primeira vez,
encontramos o problema dos afetos nos sonhos; mereceria uma monografia à parte, porém, infelizmente, não o
adentraremos. Se os sonhos são realizações de desejos, deveria ser impossível surgirem neles os sentimentos
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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desagradáveis: então pareceria que as críticas leigas teriam razão. Deve-se, contudo, levar em conta três tipos
de complicações de que ainda não se havia cogitado.
[1] Em primeiro lugar, pode ser que a elaboração onírica não tenha conseguido criar uma realização de
desejo; assim, parte do afeto aflitivo dos pensamentos oníricos ficou excedente no sonho manifesto. Nesse
caso, a análise teria de demonstrar que estes pensamentos oníricos eram muito mais desagradáveis do que o
sonho que foi construído a partir deles. Que sempre se pode provar muita coisa. Sendo assim, devemos admitir
que a elaboração onírica atingiu seu objetivo em grau não maior do que o sonho com beber, o qual, formado
em resposta ao estímulo da sede, não conseguiu aplacar a sede [ver em [1] e seg.]. Aquele que tem um tal
sonho permanece com sede e tem de acordar para tomar algo. Não obstante, era um sonho verdadeiro e não
perdera nada da natureza essencial de um sonho. Podemos apenas dizer: ‘Ut desint vires, tamen est laudanda
voluntas.’ A intenção, pelo menos, que pode ser definidamente reconhecida, merece ser valorizada. Tais casos
de fracasso não são eventos raros. Concorre para isto o fato de que é muito mais difícil a elaboração onírica
alterar o sentido dos afetos de um sonho do que o seu conteúdo; os afetos, às vezes, são altamente
resistentes. O que então acontece é a elaboração onírica transformar o conteúdo aflitivo dos pensamentos
oníricos na realização de um desejo, ao passo que o afeto desagradável persiste inalterado. Em sonhos dessa
espécie, o afeto é bastante inadequado ao conteúdo, e nossos críticos podem dizer que os sonhos tão distante
estão de serem realizações de desejos que, mesmo mantendo um conteúdo inócuo, podem ser sentidos como
aflitivos. Podemos responder a este comentário superficial assinalando que é precisamente em sonhos dessa
natureza que o propósito realizador de desejos da elaboração onírica aparece mais claramente, por ter sido
isolado. O erro surge porque àqueles que não estão familiarizados com as neuroses, se lhes afigura demasiado
íntimo o vínculo entre conteúdo e afeto, e, portanto, não podem imaginar que o conteúdo seja alterado sem
uma alteração simultânea da expressão do afeto ligado a ele.[2] Um segundo fator, muito mais importante e de
grande alcance, contudo igualmente negligenciado pelos leigos, apresenta-se a seguir. Não há dúvida de que
uma realização de desejo deve proporcionar prazer; mas então surge a pergunta: ‘A quem?’ À pessoa que tem
o desejo, naturalmente. Mas, como sabemos, a relação do sonhador para com seus desejos é uma relação
muito especial. Ele os repudia e os censura — não tem nenhuma simpatia por eles, em suma. De modo que
sua realização não lhe dará prazer, e sim o oposto; e a experiência mostra que este oposto aparece sob a
forma de ansiedade, um fato ainda a explicar. Assim, aquele que sonha, em sua relação com seus desejos
oníricos, só pode ser comparado à amálgama de duas pessoas separadas, que estão ligadas por algum forte
elemento em comum. Em vez de estender-me sobre isto, recordarei para os senhores um conhecido conto de
fadas, no qual encontrarão a mesma situação repetida. Uma fada boa prometeu a um casal pobre assegurarlhe
a realização dos seus três primeiros desejos. Eles ficaram jubilosos e puseram-se a pensar em como
escolher cuidadosamente seus três desejos. Mas um cheiro de lingüiça frita, proveniente da casa próxima,
tentou a mulher a desejar algumas lingüiças. Num relâmpago, ali estavam as lingüiças; e esta foi a primeira
realização de desejo. Mas o marido se enfureceu, e, em sua raiva, desejou que as lingüiças ficassem
dependuradas no nariz da mulher. E foi isto o que também aconteceu; e não havia como retirá-las dessa nova
posição. Esta foi a segunda realização de desejo; mas o desejo era do homem, e a sua realização foi muito
desagradável para sua mulher. Os senhores sabem o restante da história. Visto que, afinal, eles eram, de fato,
um — marido e mulher — o terceiro desejo não podia ser senão o de que as lingüiças se desprendessem do
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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nariz da mulher. Este conto de fadas poderia ser usado em relação a muitas outras coisas; mas aqui serve
apenas para ilustrar a possibilidade de que, se duas pessoas não estão de acordo uma com a outra, a
realização de um desejo de uma delas não pode senão causar desprazer à outra.
Agora não nos será difícil conseguir compreender melhor ainda os sonhos de ansiedade.
Apresentaremos uma nova observação, e então nos decidiremos a adotar a hipótese a favor da qual há muito
que dizer. A observação consiste em que os sonhos de ansiedade freqüentemente possuem um conteúdo, por
assim dizer, que escapou à censura. Um sonho de ansiedade, muitas vezes, é a realização indisfarçada de um
desejo — não, naturalmente, de um desejo inaceitável, mas de um desejo repudiado. A geração da ansiedade
assumiu o lugar da censura. Ao passo que de um sonho infantil podemos dizer ser ele a realização franca de
um desejo permitido, e de um sonho deformado como sendo a realização disfarçada de um desejo reprimido, a
única fórmula adequada a um sonho de ansiedade consiste em que este é a realização franca de um desejo
reprimido. A ansiedade é um sinal de que o desejo reprimido se mostrou mais forte que a censura, que ele
levou a cabo, ou está a ponto de levar a cabo, sua realização de desejo, apesar da censura. Percebemos que
aquilo que para o desejo é uma realização de desejo, para nós só pode ser, de vez que estamos do lado da
censura, motivo de sentimentos angustiantes e de repulsa ao desejo. A ansiedade que emerge nos sonhos é,
se preferem, ansiedade face à força destes desejos que normalmente estão sob controle. A razão por que esta
repulsa aparece na forma da ansiedade não pode ser descoberta apenas a partir do estudo dos sonhos; a
ansiedade deve ser estudada, evidentemente, em outro contexto.Podemos supor que aquilo que é verdadeiro
para os sonhos de ansiedade não-deformados também se aplica àqueles parcialmente deformados, assim
como a outros sonhos desprazíveis, nos quais os sentimentos desagradáveis provavelmente correspondem a
uma aproximação da ansiedade. Sonhos de ansiedade, via de regra, são também sonhos que fazem despertar;
habitualmente interrompemos nosso sono antes que o desejo reprimido, no sonho, tenha executado a
realização completa, apesar da censura. Nesse caso, a função do sonho fracassou, mas sua natureza
essencial não foi modificada com isto. Temos comparado os sonhos com o vigia noturno ou guardião do sono,
que procura proteger nosso sono contra perturbações [ver em [1]]. O vigia noturno, também, pode chegar ao
ponto de acordar a pessoa que dorme, se sente que é por demais fraco para, sozinho, afugentar a perturbação
ou o perigo. Ainda assim, às vezes conseguimos continuar nosso sono, mesmo quando o sonho começa a ficar
inseguro e a transformar-se em ansiedade. Dizemos a nós mesmos, em nosso sono, ‘afinal é apenas um
sonho’, e continuamos dormindo.Quando ocorre que um desejo onírico consegue sobrepujar a censura? A
condição necessária para isto pode ser preenchida tanto pelo desejo onírico como pela censura do sonho. O
desejo, devido a uma causa desconhecida, pode ser excessivamente forte em uma ocasião; mas tem-se a
impressão de que, com mais freqüência, a conduta da censura do sonho é a responsável por este
deslocamento de suas forças relativas. Já vimos [ver em [1]] que a censura atua com intensidade variável em
cada caso particular, que ela trata cada elemento de um sonho com um grau diferente de severidade. Agora
podemos acrescentar mais uma hipótese no sentido de que, em geral, a censura é muito variável e não
emprega igual severidade para com cada elemento censurável. Caso suceda, em dada ocasião, sentir-se sem
forças contra um desejo onírico que ameaça tomá-la de surpresa, em vez da deformação ela se utiliza de seu
último recurso restante e abandona o estado de sono, ao mesmo tempo gerando ansiedade.Nessa conexão,
surpreende-nos o fato de ainda ignorarmos, tanto, por que esses desejos maus, repudiados, se tornam ativos
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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justamente à noite, e nos perturbam durante o sono. A resposta, praticamente, não pode deixar de se
fundamentar em alguma hipótese relativa à natureza do estado de sono. Durante o dia uma pesada censura os
oprime, e, via de regra, lhes torna impossível manifestar-se em qualquer atividade. À noite, esta censura, assim
como todos os demais interesses da vida mental, provavelmente, está afastada ou, pelo menos, muito reduzida,
em benefício apenas do desejo de dormir. É a essa diminuição da censura, à noite, que os desejos proibidos
devem agradecer por poderem se tornar novamente ativos. Há alguns pacientes neuróticos que são incapazes
de dormir, e admitem que sua insônia foi, inicialmente, intencional. Não ousavam dormir porque temiam os seus
sonhos — isto é, temiam os resultados do enfraquecimento da censura. Os senhores constatarão com
facilidade, entretanto, que, a despeito disto, o afastamento da censura não importa em grande desorganização.
O estado de sono paralisa nossa capacidade motora. Se nossas intenções más começam a perturbar, elas
podem, afinal, causar nada mais do que simplesmente um sonho, que é inócuo, do ponto de vista prático. É
esta consideração apaziguadora a base de comentário altamente inteligente feito por aquele que está sonhando
— à noite, é verdade, mas não formando parte da vida onírica: ‘Afinal, é apenas um sonho. Deixemos que ele
siga seu caminho, continuemos dormindo.’[3] Em terceiro lugar, se os senhores se recordarem de nossa idéia
de que o sonhador, lutando contra seus próprios desejos, pode ser comparado à soma de duas pessoas
separadas, embora de algum modo em íntima conexão uma com a outra, compreenderão mais uma
possibilidade. Porque existe uma possibilidade de que a realização de um desejo venha a causar algo nada
prazeroso — ou seja, uma punição. Aqui, novamente, podemos utilizar como ilustração o conto de fadas dos
três desejos. As lingüiças fritas, em um prato, eram realização direta do desejo da primeira pessoa, a mulher.
As lingüiças grudadas em seu nariz eram a realização do desejo da segunda pessoa, o marido; contudo eram,
ao mesmo tempo, uma punição pelo desejo tolo da mulher. (Nas neuroses descobriremos o motivo do terceiro
desejo, o último que restava, no conto de fadas.) Existem várias dessas tendências punitivas na vida mental
dos seres humanos; são muito poderosas e podemos atribuir-lhes a responsabilidade de alguns dos sonhos
aflitivos. Agora, talvez, os senhores dirão que com isto resta muito pouco da famosa realização de desejo. Ao
considerarem a questão mais detidamente, porém, admitirão que se enganaram. Comparada com a
multiplicidade (que mencionarei mais adiante) de coisas que os sonhos podem ser, e, segundo muitas
autoridades, realmente são, nossa solução — realização de desejo, realização de ansiedade, realização de
punição — é muito restrita. Podemos acrescentar que a ansiedade é o oposto direto do desejo, que os opostos
se encontram muito próximos um do outro nas associações e que, no inconsciente, eles se unem [ver em [1] e
segs.]; e, ademais, que a punição também é a realização de um desejo: do desejo da outra pessoa, a que
censura.
No conjunto, portanto, não fiz concessão à objeção dos senhores contra a teoria da realização de
desejo. Compete-nos, porém, sermos capazes de indicar a realização de desejo em todo sonho deformado que
pudermos encontrar, e, por certo, não fugiremos à tarefa. Retornemos ao sonho que já interpretamos, o sonho
dos três ingressos ruins por 1 florim e meio [ver em [1] e [2] ], do qual já aprendemos tanto. Espero que se
recordem dele. Uma senhora, cujo marido lhe havia dito, durante o dia, que sua amiga Elise, que era só três
meses mais nova que ela, havia noivado, sonhou que estava no teatro, com seu marido. Um dos lados da
primeira fila de cadeiras estava quase vazio. Seu marido dizia-lhe que Elise e seu noivo também tinham
desejado ir ao teatro, mas não puderam, pois apenas tinham conseguido lugares ruins — três por 1 florim e
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
125
meio. Ela pensou que não teria havido nenhum prejuízo se tivessem ido. Verificamos que os pensamentos
oníricos estavam relacionados à sua irritação por haver casado tão cedo e à sua insatisfação com seu marido.
Talvez tenhamos a curiosidade de descobrir como estes pensamentos sombrios se transformaram numa
realização de desejo e onde se pode encontrar algum vestígio do mesmo no conteúdo manifesto do sonho. Já
sabemos que o elemento ‘muito cedo, apressadamente’ foi eliminado do sonho pela censura [ver em [1] e [2]].
As cadeiras vazias eram uma alusão a esse elemento. O misterioso ‘três por 1,50 florim’ agora se nos torna
mais inteligível com a ajuda do simbolismo, com o qual, nesse meio tempo, nos familiarizamos. O ‘3’ realmente
significa um homem [ou marido] e o elemento manifesto é fácil de traduzir: comprar um marido com o dote dela.
(‘Eu poderia ter conseguido um dez vezes melhor com meu dote.’) ‘Casar’ está claramente substituído por ‘ir ao
teatro’. ‘Comprar os ingressos cedo demais’ é, realmente, um substituto imediato de ‘casar cedo demais’. Esta
substituição é, porém, obra da realização de um desejo. Essa mulher nem sempre estava tão insatisfeita com
seu casamento precoce como estava no dia em que recebeu a notícia do noivado de sua amiga. Em certa
época, tinha estado orgulhosa do seu casamento e considerava-se em vantagem sobre sua amiga. Como se
sabe, moças ingênuas, depois de haverem noivado, freqüentemente expressam seu contentamento por
poderem, em breve, ir ao teatro, a todas as peças que até então foram proibidas, e terem permissão de ver
tudo. O prazer de olhar, ou a curiosidade, que nisto se revela, era sem dúvida, originalmente, um desejo sexual
de olhar [escopofilia], dirigido para os eventos sexuais e especialmente para os pais das moças; daí haver-se
tornado poderoso motivo para induzi-las a um casamento precoce. Assim sendo, freqüentar o teatro tornou-se,
mediante uma alusão, um substituto óbvio de estar casada. Por tanto, essa senhora que sonhou, em sua atual
irritação com seu casamento precoce, retrocedeu ao tempo em que o casamento precoce constituía a
realização de um desejo, porque satisfazia a sua escopofilia, e, levada por esse antigo impulso pleno de desejo,
substituiu casamento por ir ao teatro.Não posso ser acusado de ter selecionado especialmente o exemplo mais
conveniente para provar uma oculta realização de desejo. O procedimento haveria de ter sido o mesmo no caso
de outros sonhos deformados. Não posso demonstrar-lhes isto agora, e apenas expressarei minha convicção
de que sempre poderia ser executado com êxito. Entretanto, deter-me-ei um pouco mais neste ponto teórico. A
experiência ensinou-me que este é um dos pontos mais expostos a ataque em toda a teoria dos sonhos, e que
muitas contradições e equívocos se originam nele. Ademais disso, os senhores talvez ainda se encontrem sob
a impressão de que já retirei parte da minha afirmação ao dizer que um sonho é um desejo realizado, ou o
oposto de um desejo realizado, ou uma ansiedade, ou uma punição realizada; e os senhores podem pensar
que esta é uma oportunidade para me forçarem a outras restrições. Também tenho sido censurado por
apresentar coisas que me parecem óbvias sob forma por demais concisa e, em conseqüência, nãoconvincente.
Quando alguém nos acompanhou até aqui na interpretação dos sonhos e aceitou tudo que foi
apresentado até este ponto, amiúde sucede que faz uma pausa na realização de desejo e diz: ‘Já que os
sonhos sempre tem um sentido e este sentido pode ser descoberto pela técnica da psicanálise, por que deve
este sentido, com todas as evidências em contrário, ser enquadrado à força dentro da fórmula da realização de
desejo? Por que não deveria o sentido deste pensar noturno ser de tantas espécies quantas são o do pensar
diurno? Ou seja, por que não deveria um sonho muitas vezes corresponder a um desejo realizado, às vezes,
como o senhor mesmo o diz, ao oposto desse desejo ou a um medo realizado, mas, às vezes, exprimir uma
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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intenção, uma advertência, uma reflexão com os seus prós e contras, ou uma reprovação, um escrúpulo de
consciência, uma tentativa de se preparar para uma tarefa urgente, e assim por diante? Por que deve ser
sempre apenas um desejo, ou, quando muito, o oposto do desejo?’
Poder-se-ia pensar que uma diferença de opinião neste ponto não tem importância, se se concorda no
restante. Poder-se-ia dizer que basta havermos descoberto o sentido dos sonhos e a maneira de reconhecê-lo;
é de somenos importância se parecemos definir de maneira muito restrita esse sentido. Não é isso, porém. Um
equívoco neste ponto afeta a essência de nossas descobertas sobre os sonhos e põe em perigo o valor das
mesmas para a compreensão das neuroses. Além disso, um acordo dessa espécie — que é muito cogitado na
vida comercial como sendo uma ‘cortesia’ — não tem acolhida em assuntos científicos, por ser prejudicial.
Minha primeira resposta à pergunta de saber por que os sonhos não possuem numerosas significações
no sentido indicado, é a que costumo dar em tais casos: ‘Não sei por que não possuem. Não teria o que objetar.
Na parte que me interessa, poderia ser assim. Existe apenas um detalhe nessa questão de um conceito mais
vasto e mais cômodo dos sonhos — é que na realidade não é assim.’ Minha segunda resposta seria que a
hipótese de que os sonhos correspondem a uma variedade de formas de pensar e de operações intelectuais,
não me é estranha, a mim próprio. Já certa vez relatei um sonho, em um de meus casos clínicos, o qual
apareceu por três noites sucessivas, e depois nunca mais; e expliquei essa conduta com o fato de que o sonho
correspondia a uma intenção e não necessitava repetir-se depois de a intenção ter sido realizada. Mais tarde
publiquei um sonho que corresponde a uma aprovação. Portanto, como poderei contradizer-me e afirmar que
os sonhos jamais são outra coisa senão um desejo realizado?Faço-o, porque não deixarei passar um equívoco
tolo que pode nos roubar o fruto de nossos esforços com os sonhos — um equívoco que confunde o sonho com
os pensamentos oníricos latentes e afirma, acerca daquele, algo que se aplica somente a este. Pois é bastante
correto dizer que o sonho pode representar, e ser substituído por, tudo aquilo que os senhores há pouco
enumeraram — uma intenção, uma advertência, uma reflexão, uma preparação, uma tentativa de solucionar um
problema, e assim por diante. Se examinarem atentamente, verão, todavia, que tudo isso se aplica somente
aos pensamentos oníricos latentes que foram transformados em sonho. Os senhores sabem, das interpretações
de sonhos, que o pensar inconsciente das pessoas centra-se nessas intenções, preparações, reflexões, e
assim por diante, a partir das quais a elaboração onírica então forma os sonhos. Se, no momento, os senhores
não estão interessados na elaboração onírica, estiverem, contudo, muito interessados na atividade ideativa
inconsciente das pessoas, então os senhores eliminam a elaboração onírica e dizem do sonho o que na prática
é bastante correto — que ele corresponde a uma advertência, uma intenção, e assim por diante. O que
freqüentemente acontece na atividade psicanalítica é que nossos esforços se dirigem principalmente para a
eliminação da forma onírica e visam a inserir no contexto, em vez da forma onírica, os pensamentos latentes
com os quais o sonho foi feito.Assim, bastante incidentalmente, constatamos, de nosso exame dos
pensamentos oníricos latentes, que todos estes atos mentais altamente complexos que citamos podem realizarse
inconscientemente — uma descoberta tão grandiosa quanto surpreendente!Mas, voltando atrás, os senhores
somente estarão corretos enquanto tiverem plena consciência de haver usado uma forma abreviada de
expressão e enquanto não acreditarem que a multiplicidade que descreveram deve estar relacionada à
natureza essencial dos sonhos. Quando falam de ‘sonho’, devem querer significar ou o sonho manifesto — isto
é, o produto da elaboração onírica — ou, no máximo, também a própria elaboração onírica, isto é, o processo
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
127
psíquico que forma o sonho manifesto a partir dos pensamentos oníricos latentes. Qualquer outro uso da
palavra significa confusão de idéias, e só pode levar a maus resultados. Quando estiverem fazendo afirmações
acerca dos pensamentos latentes por trás do sonho, façam-no diretamente, e não obscureçam o problema dos
sonhos com uma forma negligente de falar. Os pensamentos oníricos latentes são o material que a elaboração
onírica transforma em sonho manifesto. Por que teriam de confundir o material com a atividade que o forma?
Com isto, que vantagem os senhores teriam sobre aqueles que apenas conheceram o produto dessa atividade,
e não puderam explicar de onde veio ou como foi feito?A única coisa essencial a respeito de sonhos é a
elaboração onírica que modificou o material ideativo. Não temos o direito de ignorá-la, em nossa teoria, ainda
que a negligenciemos em algumas situações práticas. A observação analítica demonstra, também, que a
elaboração onírica nunca se limita a traduzir esses pensamentos em um modo de expressão arcaico ou
regressivo que os senhores conhecem. Ademais, regularmente se apossa de mais alguma coisa, que não faz
parte dos pensamentos latentes do dia anterior, mas que é a verdadeira força propulsora da construção do
sonho. Este acréscimo indispensável é o desejo igualmente inconsciente, para cuja realização o conteúdo do
sonho recebe sua nova forma. Portanto, um sonho pode ser qualquer espécie de coisas desde que os senhores
estejam apenas tomando em consideração os pensamentos que representa — uma advertência, uma intenção,
uma preparação, e assim por diante; mas também é sempre a realização de um desejo inconsciente e, se os
senhores o considerarem produto da elaboração onírica, ele é isto, somente. Assim sendo, um sonho nunca é
simplesmente uma intenção, ou uma advertência, mas sempre uma intenção, etc. traduzida para o modo
arcaico de pensamento, mediante o auxílio de um desejo inconsciente, e transformada para realizar esse
desejo. [Ver em [1]] Esta característica, a de realização de desejo, é a característica invariável; as demais
podem variar. Pode, por seu turno, mais uma vez, ser um desejo, e neste caso o sonho, com auxílio de um
desejo inconsciente, representará como realizado um desejo latente do dia anterior.Eu consigo compreender
tudo isto muito claramente; mas não posso dizer se consegui torná-lo inteligível também para os senhores. E
também tenho dificuldade em lho demonstrar. Isso não pode ser feito sem cuidadosamente analisar muitíssimos
sonhos e, por outro lado, esse aspecto tão importante e tão crítico de nosso conceito dos sonhos não pode ser
convincentemente apresentado sem nos referirmos àquilo que vem depois. É impossível supor, de vez que tudo
é intimamente inter-relacionado, que se possa penetrar profundamente na natureza de uma coisa sem que se
tenha levado em conta coisas de natureza semelhante. Como ainda não sabemos nada dos parentes mais
próximos dos sonhos, os sintomas neuróticos, mais uma vez devemos contentar-nos, neste ponto, com o que
temos conseguido. Quero apenas dar-lhes só mais um exemplo ilustrativo e expor-lhes uma nova idéia.
Retomemos o sonho ao qual retornamos tantas vezes: o sonho dos três ingressos de teatro por 1 florim
e meio. (Posso assegurar-lhes que inicialmente escolhi este exemplo sem qualquer propósito especial em
vista.) Os senhores conhecem os pensamentos oníricos latentes: irritação por ter tido tanta pressa de casar, o
que surgiu quando ela ouviu a notícia de que sua amiga só então acabava de noivar, atribuindo pouco valor a
seu marido; e a idéia de que poderia ter conseguido um marido melhor, se ela ao menos tivesse esperado. Já
conhecemos o desejo que fez desses pensamentos um sonho: era o desejo de olhar, de poder ir ao teatro,
muito provavelmente uma derivação de sua antiga curiosidade de descobrir, afinal, o que realmente acontece
quando uma pessoa casa. Esta curiosidade, conforme sabemos, as crianças dirigem-na regularmente à vida
sexual dos pais; trata-se de curiosidade infantil e, na medida em que ainda persiste, mais tarde, de um impulso
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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instintual com raízes que remontam à infância. A notícia que a sonhadora recebeu durante o dia não
proporcionou a ocasião de despertar este desejo de olhar, mas apenas despertou irritação e desgosto. Este
impulso pleno de desejo não se encontrava, à primeira vista, em conexão com os pensamentos oníricos
latentes; e poderíamos incluir o resultado da interpretação do sonho na análise sem levar em conta esse
impulso. A irritação, de per se, contudo não era capaz de criar um sonho. Um sonho não poderia surgir a partir
dos pensamentos de que ‘foi absurdo casar tão cedo’, a não ser quando estes despertaram o antigo desejo de
ver, até que enfim, o que acontece no casamento. Este desejo, então, deu ao conteúdo do sonho a sua forma,
substituindo casamento por ir ao teatro, e a forma foi a de uma anterior realização de desejo: ‘Toma! agora eu
posso ir ao teatro e vez tudo o que é proibido, e tu não podes! Estou casada e tu tens que esperar!’ Desse
modo, sua presente situação foi transformada em seu oposto, um velho triunfo se colocou no lugar de sua
recente frustração. E, aliás, a satisfação de sua escopofilia misturou-se à satisfação de sua tendência
competitiva egoística. Esta satisfação determinou, então, o conteúdo manifesto do sonho, no qual a situação
real consistia em que ela estava no teatro, ao passo que a amiga não conseguia obter ingresso ao mesmo. As
partes do conteúdo do sonho, atrás das quais os pensamentos oníricos latentes ainda permanecem
escondidos, foram superpostas a essa situação de satisfação, como modificação equívoca e ininteligível da
mesma. A interpretação do sonho teve de desprezar tudo quanto serviu para representar a realização de
desejos e de restabelecer os pensamentos oníricos latentes aflitivos, diferenciando-os desses obscuros indícios
remanescentes.A nova idéia que desejo apresentar-lhes é atrair sua atenção para os pensamentos oníricos
latentes que agora se colocaram em primeiro plano. Peço-lhes que não se esqueçam de que, em primeiro
lugar, eles são inconscientes para o sonhador e, em segundo lugar, de que ele são completamente racionais e
coerentes, de modo que podem ser compreendidos como reações naturais à causa precipitante do sonho; e,
em terceiro lugar, de que eles podem ser o equivalente de qualquer impulso mental ou operação intelectual.
Agora descreverei estes pensamentos, mais estritamente do que antes, como resíduos diurnos, admita-os ou
não a pessoa que teve o sonho. E farei a distinção entre os resíduos diurnos e os pensamentos oníricos
latentes e, de conformidade com o uso que fizermos anteriormente, designarei como pensamentos oníricos
latentes tudo o que constatamos na interpretação do sonho, enquanto os resíduos diurnos constituem apenas
uma parte dos pensamentos oníricos latentes. Pensamos, pois, que alguma coisa se acrescenta aos resíduos
diurnos, algo que também fazia parte do inconsciente, um impulso pleno de desejos, poderoso, porém
reprimido; e é este, somente, que torna possível a construção do sonho. A influência deste impulso pleno de
desejos sobre os resíduos diurnos cria a outra parte dos pensamentos oníricos latentes — essa parte que já
não necessita parecer racional e inteligível como se fosse derivada da vida desperta.Tenho usado de uma
analogia para ilustrar a relação entre os resíduos diurnos e o desejo inconsciente, e aqui posso apenas repetila.
Em todo empreendimento, é preciso haver um capitalista que cobre as despesas e um entrepreneur que tem
a idéia e sabe como pô-la em prática. Na construção dos sonhos, o papel do capitalista é sempre
desempenhado apenas pelo desejo inconsciente; este prove a energia psíquica para a construção do sonho. O
entrepreneur é o resíduo diurno que decide como deve ser usado este dispêndio de energia. Naturalmente, é
possível o próprio capitalista ter a idéia e o conhecimento técnico, ou o próprio entrepreneur ter o capital. Isto
simplifica a situação prática, porém dificulta a compreensão teórica. Em economia, a mesma pessoa se
encontra constantemente dividida em seus dois aspectos de capitalista e de entrepreneur, e isto restabelece a
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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situação fundamental em que se baseou nossa analogia. Na construção onírica, as mesmas flutuações
acontecem, e deixo que os senhores as complementem.Neste ponto não podemos progredir mais, pois os
senhores provavelmente há muito têm sido perturbados por uma dúvida, e esta merece atenção. ‘Os resíduos
diurnos’, os senhores me perguntarão, ‘são realmente inconscientes no mesmo sentido que o desejo
inconsciente que deve ser acrescentado a eles, a fim de torná-los capazes de produzir um sonho?’ A suposição
dos senhores está correta. Este é o ponto saliente em todo este assunto. Não são inconscientes no mesmo
sentido. O desejo onírico pertence a um inconsciente diferente — àquele inconsciente que já reconhecemos
como tendo uma origem infantil e mecanismos peculiares [ver em [1] e [2]]. Seria muito oportuno distinguir
essas duas espécies de inconscientes por meio de nomes diferentes. Preferiríamos, porém, esperar até nos
familiarizarmos com a área dos fenômenos das neuroses. As pessoas consideram um tanto fantástico haver um
só inconsciente. Que dirão quando confessarmos que temos de nos haver com dois?Vamos interromper neste
ponto. Mais uma vez, os senhores ouviram somente algo incompleto. No entanto, não é promissor pensar que
este conhecimento tem uma continuação, que ou nós mesmos ou outras pessoas iremos elucidar? E nós
mesmos já não aprendemos tantas coisas novas e surpreendentes?
CONFERÊNCIA XV - INCERTEZAS E CRÍTICAS
SENHORAS E SENHORES:
Não deixaremos o tema dos sonhos sem abordarmos as dúvidas e incertezas mais comuns que nossas
inovações e nossas teorias originaram até aqui. Os senhores mesmos, ouvintes atentos, terão coligido algumas
junto ao material de que tratamos.
(1) Os senhores podem ter tido a impressão de que, embora a técnica seja corretamente executada, as
descobertas de nosso trabalho interpretativo de sonhos admitem tantas incertezas, que chegam a invalidar
qualquer tradução segura do sonho manifesto para os pensamentos oníricos latentes. Em apoio a isso, os
senhores argumentarão que, em primeiro lugar, nunca se sabe se um determinado elemento do sonho deve ser
entendido no seu sentido realçou na qualidade de símbolo, pois as coisas empregadas como símbolos não
deixam de, por este motivo, ser elas mesmas. Se, no entanto, não se dispõe de indício objetivo para resolver
isto, a interpretação, nesse ponto, deve ser deixada à escolha arbitrária do interpretador. Ademais, em
conseqüência do fato de que, na elaboração onírica, os contrários se fundem, sempre permanece
indeterminado se certo elemento deve ser compreendido em sentido positivo ou negativo como sendo ele
próprio ou como sendo o seu contrário [ver em [1]]. Aqui está uma nova oportunidade de o interpretador exercer
uma escolha arbitrária. Em terceiro lugar, em conseqüência de inversões de toda espécie, tão ao gosto dos
sonhos [ver em [1]], é facultado ao interpretador efetuar uma inversão dessas em relação a qualquer passagem
do sonho que venha a escolher. E, por fim, comentarão que ouviram dizer que jamais se tem certeza de que a
interpretação que se encontrou para um sonho é a única possível. Corremos o risco de passar por alto uma
‘superinterpretação’ perfeitamente admissível do mesmo sonho [ver em [1]]. Nestas circunstâncias, concluirão
os senhores, deixa-se tanta margem para a decisão arbitrária do interpretador, que esta se torna incompatível
com a certeza objetiva dos dados. Ou, alternativamente, podem supor que a falha não se situa nos sonhos,
mas que as inexatidões de nossa interpretação de sonhos devem ser atribuídas a erros em nossos pontos de
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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vista e em nossas premissas.Todos os elementos que os senhores apresentam são indiscutíveis; porém,
segundo penso, não justificam suas conclusões, em dois aspectos, ou seja: que a interpretação de sonhos,
como insistem os senhores, esteja à mercê da escolha arbitrária, e que a falta de resultados lance dúvidas
sobre a correção de nosso método. Se, em lugar da escolha arbitrária feita pelo interpretador, os senhores se
referissem à sua habilidade, à sua experiência e à sua compreensão, eu concordaria com os senhores.
Naturalmente, não podemos dispensar um fator pessoal como este, especialmente nos problemas mais difíceis
da interpretação de sonhos. A situação não é, porém, nada diferente em outras áreas científicas. Não há como
evitar que uma pessoa faça melhor uso de uma técnica, que de outra. Em outros termos, aquilo que dá a
impressão de casualidade — na interpretação de sonhos, por exemplo — é desfeito pelo fato de, via de regra, a
interconexão entre pensamentos oníricos, ou a conexão entre o sonho e a vida de quem sonha, ou a situação
psíquica global em que ocorre o sonho, selecionar uma só entre as soluções possíveis apresentadas,
dispensando as demais, como inservíveis. A conclusão de que, por causa das imperfeições na interpretação de
sonhos, nossas hipóteses seriam incorretas, é invalidada assinalando-se que, ao contrário, a ambigüidade ou a
indefinição é uma característica dos sonhos que era de se prever, necessariamente.Recordemos haver dito que
a elaboração onírica executa uma versão dos pensamentos oníricos segundo um modo de expressão primitivo,
semelhante à escrita pictográfica [ver em [1] e segs.]. No entanto, todos esses sistemas primitivos de expressão
se caracterizam por indefinição e ambigüidade semelhante, não justificando que lancemos dúvidas sobre sua
serventia. A fusão dos contrários, na elaboração onírica, é, como sabem, análoga à chamada ‘significação
antitética das palavras primitivas’ nos idiomas mais antigos. Realmente, Abel (1884), o filólogo ao qual devemos
essa linha de pensamento, nos pede não supormos que as comunicações feitas por uma pessoa a outra, com a
ajuda de tais palavras ambivalentes, sejam, por essa razão, ambíguas. Pelo contrário, entonação e gestos
devem tê-las feito muito precisas, no contexto do discurso, indicando qual dos dois contrários o interlocutor
tencionava comunicar. Na escrita, onde o gesto está ausente, seu lugar era ocupado por um sinal pictográfico
que não se destinava a ser falado — por exemplo, pela figura de um homenzinho, agachado e cambaleando ou
firmemente ereto, conforme o hieróglifo ‘ken‘ devesse significar ‘fraco’ ou ‘forte’. Assim, apesar da ambigüidade
dos sons e sinais, evitava-se o equívoco. [Ver em [1] e [2], anteriores.]
Os antigos sistemas de expressão — por exemplo, a escrita dos idiomas mais antigos — revelam
vaguidade em uma variedade de formas tal que não toleraríamos em nossa escrita atual. Assim, em algumas
escritas semíticas, somente estão indicadas as consoantes das palavras. O leitor deve inserir as vogais
omitidas, segundo seus conhecimentos e o contexto. A escrita hieroglífica se comporta de forma similar,
embora não precisamente da mesma maneira; e por este motivo permanece desconhecida para nós a
pronúncia do antigo idioma egípcio. A escrita sagrada dos egípcios é importante também em outros aspectos.
Por exemplo, compete à decisão arbitrária do escriba dispor as figuras da direita para a esquerda ou da
esquerda para a direita. A fim de proceder à sua leitura, deve-se seguir a regra de ler em direção aos rostos das
figuras, pássaros, e assim por diante. Porém o escriba também podia ordenar os sinais pictográficos em
colunas verticais, e, ao fazer inscrições em objetos comparativamente pequenos, permitia que considerações
de decoração e espaço o influenciassem no sentido de alterar a seqüência dos sinais de outras maneiras. O
que mais perturba na escrita hieroglífica é, sem dúvida, o fato de não haver separação entre as palavras. As
figuras são dispostas na página separadas por distâncias iguais; em geral, é impossível dizer se um sinal ainda
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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faz parte da palavra precedente ou se forma o começo de uma nova palavra. Na escrita cuneiforme persa, por
outro lado, uma cunha oblíqua serve para separar as palavras.
Idioma e escrita extremamente antigos, o chinês ainda é usado por quatrocentos milhões de pessoas.
Os senhores não devem supor que eu absolutamente o entenda; somente obtive algumas informações sobre o
mesmo porque esperava encontrar nele analogias com a imprecisão dos sonhos. E minha expectativa não
sofreu desapontamento. O idioma chinês está cheio de exemplos de imprecisão que poderiam nos deixar muito
alarmados. Como se sabe, compõe-se de numerosos sons silábicos que são falados isolados ou combinados
aos pares. Um dos principais dialetos possui uns quatrocentos destes sons. Como o vocabulário deste dialeto é
calculado em cerca de quatro mil palavras, porém, conclui-se que cada som tem, em média, dez significados
diferentes — alguns menos, mas outros, em troca, têm mais. Existem numerosos métodos de evitar a
ambigüidade, pois não se pode inferir, apenas a partir do contexto, qual dos dez significados do som silábico a
pessoa tenciona transmitir ao ouvinte. Entre esses métodos estão aqueles que consistem em combinar dois
sons em uma palavra composta e em utilizar quatro diferentes ‘tons’ na pronúncia das sílabas. Do ponto de
vista de nossa comparação, é ainda mais interessante verificar que este idioma praticamente não tem
gramática. É impossível dizer se uma das palavras monossilábicas é um substantivo, ou um verbo, ou um
adjetivo; e não há flexões verbais, pelas quais se possa reconhecer gênero, número, desinência, tempo e
modo. Assim, a linguagem consta, poderia dizer-se, apenas de matéria-prima, assim como nossa linguagempensamento
fica reduzida, através da elaboração onírica, à sua matéria-prima, e se omite qualquer expressão
de relação. No idioma chinês, a solução do sentido, em todos os casos, cabe ao entendimento de quem ouve, e
nisto a pessoa se guia pelo contexto. Tomei nota de um exemplo de um provérbio chinês que, traduzido
literalmente, reza assim:‘Pouca visão, muita maravilha.Não é difícil compreender isto. Pode significar: ‘Quanto
menos alguém viu, mais tem com que se maravilhar’; ou: ‘De muita coisa se admira aquele que viu pouco.’
Naturalmente, não há maneira de diferenciar entre estas duas versões que diferem apenas gramaticalmente.
Apesar desta imprecisão, foi-nos assegurado que o idioma chinês é um veículo bastante eficiente de expressão
do pensamento. Assim, a imprecisão não deve necessariamente produzir ambigüidade.Naturalmente, deve-se
admitir que o sistema de expressão por meio de sonhos ocupa uma posição muito mais desfavorável do que
qualquer desses idiomas e escritas antigos. Pois, afinal, destinam-se estes, fundamentalmente, à comunicação;
ou seja, por qualquer método e com qualquer recurso, destinam-se a serem compreendidos. Precisamente esta
característica, porém, está ausente nos sonhos. Um sonho não pretende dizer nada a ninguém. Não é um
veículo de comunicação; pelo contrário, destina-se a permanecer não-compreendido. Por essa razão, não
devemos nos surpreender ou ficar perplexos ao verificarmos que permanecem sem solução numerosas
ambigüidades e obscuridades dos sonhos. O único lucro certo que auferimos de nossa comparação é a
descoberta de que esses pontos de incerteza que as pessoas tentaram usar como objeções à solidez de
nossas interpretações de sonhos são, ao contrário, características constantes de todos os sistemas primitivos
de expressão.A questão de saber até onde alcança a inteligibilidade dos sonhos somente pode ser respondida
pela prática e pela experiência. Muito longe, creio; e minha opinião é confirmada ao compararmos os resultados
produzidos por analistas de formação correta. O público leigo, inclusive o público leigo científico, como se sabe,
gosta de promover uma demonstração de ceticismo quando se defronta com as dificuldades e incertezas de
uma realização científica. Penso que nisto não têm razão. Talvez nem todos os senhores estejam cientes de
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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que uma situação semelhante surgiu na história da decifração das inscrições assírio-babilônicas. Houve época
em que a opinião pública esteve muito inclinada a considerar visionários os decifradores da escrita cuneiforme,
e a totalidade de suas pesquisas, uma ‘impostura’. Mas, em 1857, a Royal Asiatic Society fez uma experiência
decisiva. Solicitou a quatro dos peritos mais altamente respeitados em escrita cuneiforme, Rawlinson, Hincks,
Fox Talbot e Oppert para remeterem, em envelopes lacrados, traduções independentes de uma inscrição
recentemente descoberta; e, após uma comparação entre os quatro trabalhos, pôde anunciar que a
concordância entre estes peritos era suficiente para justificar o crédito que até então se havia dado e a
confiança em posteriores realizações. A zombaria por parte do mundo leigo culto diminuiu gradualmente, após
isto, e desde então tem aumentado enormemente a certeza na leitura dos documentos cuneiformes.(2) Um
segundo grupo de dúvidas está em conexão íntima com a impressão, à qual certamente nem os senhores
escaparam, de que determinadas soluções, em direção às quais nos sentimos compelidos ao interpretar
sonhos, parecem ser forçadas, artificiais, arranjadas por imposição — isto é, arbitrárias, ou até mesmo cômicas,
anedóticas. Comentários nesse sentido são tão freqüentes, que escolherei ao acaso o último que me foi
relatado. Ouçam, pois. Na Suíça livre, o diretor de uma instituição de ensino recentemente foi afastado do cargo
por causa de seu interesse pela psicanálise. Ele entrou com um protesto, e um jornal de Berna publicou a
versão das autoridades da escola sobre sua apelação. Selecionarei algumas frases desse documento,
referentes à psicanálise: ‘Além de tudo, estamos surpresos com o aspecto forçado e artificial de muitos dos
exemplos, que também podem ser encontrados na obra do Dr. Pfister, de Zurique, a qual é citada…. Por
conseguinte, é realmente surpreendente que o diretor de uma instituição de ensino aceite sem críticas todas
essas assertivas e provas forjadas.’ Estas frases são expostas como uma decisão a que chegou uma pessoa
‘após um julgamento sereno’. Penso que esta serenidade, isto sim, é que é ‘artificial’. Examinemos essas
observações mais detidamente, na expectativa de que uma leve reflexão e um pouco de conhecimento
especializado não constituirão nenhuma desvantagem, mesmo para um julgamento sereno.
É verdadeiramente reconfortante verificar com que rapidez e infalibilidade uma pessoa pode chegar a
julgar determinados problemas delicados de psicologia profunda após ter sua primeira impressão sobre a
mesma. As interpretações lhe parecem artificiais e forçadas, elas não lhe agradam; assim, elas são falsas e
todo esse assunto de interpretação não tem valor. E nem dedica à outra possibilidade uma idéia passageira —
de que existem bons motivos para essas interpretações só poderem ter esta aparência; e daí a outra questão,
ou seja, quais são esses bons motivos.O assunto em questão refere-se essencialmente aos resultados do
deslocamento, que os senhores já conhecem como o mais poderoso instrumento da censura de sonhos. Com
auxílio do deslocamento, a censura de sonhos cria estruturas substitutivas que temos descrito como alusões.
Mas trata-se de alusões que não são facilmente reconhecíveis como tais, cujo caminho inverso até a coisa
original não é fácil de estabelecer, e que se correlacionam com a coisa original por meio das associações mais
estranhas, incomuns e superficiais. Em todos estes casos, no entanto, trata-se de coisas que interessa sejam
mantidas ocultas, condenadas ao ocultamento, pois é isto que objetiva a censura de sonhos. Não devemos,
contudo, esperar que uma coisa que foi mantida escondida venha a ser encontrada em seu lugar próprio, em
sua localização adequada. As comissões de controle de fronteira, que funcionam atualmente, são mais
habilidosas neste aspecto do que as autoridades escolares suíças. Em sua busca de documentos e anotações,
não se contentam com examinar carteiras e pastas de documentos, mas admitem a possibilidade de que os
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
133
espiões e contrabandistas possam ter essas coisas proibidas nas partes mais secretas do vestuário, onde sua
presença seria totalmente imprópria — por exemplo, entre as solas duplas das botas. Se as coisas ocultas
estão aí, certamente será possível dizer que são ‘artificiais’, mas também é verdade que, com isso, muito se
terá achado.Ao reconhecermos que as conexões entre um elemento onírico latente e o seu substituto manifesto
podem ser da natureza mais remota e especial, às vezes parecendo cômicas e às vezes assemelhando-se a
um chiste, estamos nos fundamentando em abundante experiência de exemplos que, via de regra, nós mesmos
não solucionamos. Amiúde, é impossível dar tais interpretações por nossa própria conta: nenhuma pessoa
sensata poderia adivinhar qual a conexão. Aquele que teve o sonho nos dá a tradução, toda de uma vez, por
meio de uma associação direta — ele é capaz disso, pois foi ele quem produziu o substituto — ou então fornece
tanto material, que a solução não exige mais nenhuma sagacidade, mas se apresenta, por assim dizer, como
algo muito natural no contexto. Se o sonhador deixa de prestar esta ajuda numa ou noutra destas duas formas,
o elemento manifesto, que pretendemos examinar, permanecerá para sempre ininteligível para nós. Permitamme
dar-lhos um exemplo que me ocorreu há pouco. Uma de minhas pacientes perdeu seu pai, durante o
tratamento. Desde então, ela aproveitou todas as ocasiões para trazê-lo à vida, em seus sonhos. Num destes,
seu pai apareceu (em conexão com algo sem maior importância) e disse: ‘São onze e quinze, são onze e meia,
são quinze para as doze.’ Ao tentar a interpretação desta singularidade, tudo o que lhe acudiu à mente foi que
seu pai gostava que seus filhos adultos chegassem pontualmente às refeições da família. Sem dúvida, isto se
relacionava ao elemento onírico, mas não elucidou nada de sua origem. Havia uma suspeita, baseada na
situação imediata do tratamento, de que uma revolta crítica, cuidadosamente suprimida, contra seu pai querido
e honrado, desempenhava um papel no sonho. No decorrer das associações seguintes, aparentemente
distantes do sonho, ela contou como, no dia anterior, tinha havido um bocado de conversa sobre psicologia, em
sua presença, e um seu parente havia comentado: ‘O Urmensch [homem primitivo] sobrevive em todos nós.’
Isto pareceu dar-nos a explicação. Fora para ela uma excelente oportunidade para trazer à vida o pai falecido.
No sonho, ela o transformou no ‘Uhrmensch‘ [‘homem do relógio’] fazendo-o anunciar os quartos de hora do
meio-dia.Não há como evitar a semelhança deste exemplo com um chiste; e freqüentemente tem acontecido
um chiste do sonhador ser considerado como chiste de quem interpreta. Há outros casos em que não tem sido
nada fácil decidir se aquilo que estamos abordando é um chiste ou um sonho. Os senhores se lembrarão,
contudo, de que a mesma dúvida surgiu no caso de algumas parapraxias — lapsos de língua [ver em [1] e
seg.]. Um homem referiu, como sonho seu, que um seu tio lhe havia dado um beijo enquanto estavam sentados
no seu auto (móvel). Ele mesmo, muito rapidamente, acrescentou a interpretação: significava ‘auto-erotismo‘
(um termo da teoria da libido, indicando satisfação obtida sem qualquer objeto externo). Estava o homem
querendo fazer uma brincadeira conosco e estaria ele transmitindo um chiste de que se lembrava como um
sonho? Penso que não; creio que ele realmente teve o sonho. Mas qual é a origem dessa enigmática
semelhança? Esta questão, em certa época, desviou-me temporariamente do meu caminho, forçando-me a
fazer dos chistes mesmos o tema de uma investigação detalhada. Aí ficou demonstrado como se originam os
chistes: uma seqüência de pensamentos pré-consciente é abandonada por um momento para ser trabalhada no
inconsciente, e deste ela emerge como chiste. Sob a influência do inconsciente, é sujeita aos efeitos dos
mecanismos que ali imperam — condensação e deslocamento —, os mesmos processos que vimos em ação
na elaboração onírica; e é a este aspecto comum que se deve atribuir a semelhança, quando ocorre, entre
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
134
chistes e sonhos. O ‘chiste onírico’ involuntário não tem nada da graça de uma verdadeira anedota. Os
senhores podem vir a saber por quê, se se aprofundarem no estudo dos chistes. Um ‘chiste onírico’ se nos
apresenta como anedota sem graça; não nos faz rir, deixa-nos frios.Nisso, entretanto, estamos palmilhando os
caminhos da interpretação de sonhos da Antigüidade, que, ao lado de muita coisa imprestável, deixou-nos
alguns bons exemplos de interpretação de sonhos que nós mesmos não poderíamos superar. Repetirei para os
senhores um sonho que teve importância histórica, e que Plutarco e Artemidoro de Daldis [ver em [1], anterior],
com ligeiras variações, referiram acerca de Alexandre Magno. Quando o rei estava sitiando a obstinadamente
defendida cidade de Tiro (322 a. C.), sonhou que via um sátiro dançando. Aristandro, o interpretador de sonhos,
que se encontrava presente junto com o exército, interpretou o sonho dividindo a palavra ‘Satyros‘ em sa TuroV
[sa Turos] (tua é Tiro) e, portanto, prometeu que ele iria triunfar sobre a cidade. Por esta interpretação,
Alexandre foi levado a continuar o cerco e finalmente capturou Tiro. A interpretação, que possui uma aparência
bastante artificial, indubitavelmente era a correta.(3) Bem posso imaginar que os senhores ficarão
especialmente impressionados quando ouvirem dizer que as objeções aos nossos pontos de vista dos sonhos
têm sido feitas até mesmo por pessoas que estiveram, elas próprias, como psicanalistas, dedicando-se por
tempo considerável a interpretar sonhos. Seria demais esperar que este tão forte encorajamento a novos erros,
como o que oferece esta teoria, tivesse sido negligenciado; e assim, em conseqüência de confusões
conceituais e generalizações injustificadas, foram feitas afirmações que não estão muito longe da visão médica
acerca dos sonhos, no que esta tem de incorreta. Os senhores já conhecem uma delas. Diz-nos que os sonhos
constituem tentativas de adaptação atuais e tentativas de solucionar problemas futuros — que eles têm um
‘propósito prospectivo’ (Maeder [1912]). Já temos demonstrado [ver em [1]] que esta asserção se baseia numa
confusão entre sonho e pensamentos oníricos latentes e, por conseguinte, se baseia no fato de se omitir a
elaboração onírica. Esta, como caracterização da atividade intelectual inconsciente, da qual os pensamentos
oníricos latentes fazem parte, não constitui novidade, por um lado, e, por outro, não esgota o assunto, de vez
que a atividade mental inconsciente está ocupada com muitas outras coisas além da preparação para o futuro.
Uma confusão muito pior parece estar subjacente à afirmação de que a idéia de morte pode ser encontrada por
trás de todo sonho [Stekel, 1911, 34]. Não tenho uma noção clara acerca do que se pretende dizer com esta
fórmula. Suspeito, porém, que ela esconde uma confusão entre o sonho e a personalidade global daquele que
sonhou. [Cf. I. de S., Vol. V, pág. 424.]Uma generalização injustificável, baseada em alguns poucos exemplos,
está contida na afirmação de que todo sonho admite duas interpretações — uma que concorda com nossa
descrição, ‘psicanalítica’, e outra, ‘anagógica’, que não leva em conta os impulsos instintuais e objetiva
representar as funções superiores da mente (Silberer [1914]). Existem sonhos deste tipo, porém os senhores
tentarão inutilmente estender esta concepção à maioria dos sonhos. E mais, após tudo o que eu lhes disse, os
senhores acharão bastante incompreensível uma afirmação de que todos os sonhos devem ser interpretados
bissexualmente, como confluência de duas correntes, descritas como masculina e feminina (Adler [1910]). [Cf. I.
de S., Vol. V, págs. 423-4.] podem constatar posteriormente que eles se constróem como alguns dos sintomas
histéricos. A razão por que mencionei todas essas descobertas de novas características universais dos sonhos
é para que os senhores estejam prevenidos quanto às mesmas ou, ao menos, para que não tenham dúvidas a
respeito do que penso delas.(4) Um dia o valor objetivo da investigação sobre sonhos pareceu ser posto em
xeque por uma observação de que os pacientes em tratamento analítico ordenam o conteúdo dos sonhos
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
135
conforme as teorias prediletas de seu médicos — alguns sonhando predominantemente com impulsos
instintuais sexuais, outros, com a luta pelo poder, e ainda outros, até mesmo, com renascimento (Stekel). O
peso destas observações, entretanto, diminuiu com a reflexão de que os seres humanos tinham sonhos antes
que houvesse qualquer tratamento psicanalítico que pudesse dar a esses sonhos uma direção, e que as
pessoas que agora se encontram em tratamento costumavam sonhar também durante o período anterior ao
início do tratamento. O que havia de verdade nesta inovação logo se podia ver que era evidente por si mesmo e
sem importância para a teoria dos sonhos. Os resíduos diurnos que suscitam os sonhos são elementos postos
de lado devido a poderosos interesses durante a vida desperta. Quando as observações feitas pelo médico e os
indícios que este fornece adquirem importância para o paciente, eles entram para o círculo dos resíduos
diurnos e podem prover estímulos psíquicos para a construção dos sonhos, como quaisquer outros interesses
emocionalmente significativos do dia precedente, que não foram atendidos; e podem atuar como os estímulos
somáticos que incidem sobre o sono de uma pessoa que venha a sonhar. As seqüências de pensamentos
postas em marcha pelo médico, assim como esses outros instigadores dos sonhos, surgem no conteúdo
manifesto de um sonho ou se revelam em seu conteúdo latente. Na verdade, sabemos que um sonho pode ser
produzido experimentalmente, ou, expressando-nos em termos mais corretos, uma parte do material onírico
pode ser introduzida no sonho. Ao produzir esses efeitos em seus pacientes, um analista está executando um
papel não diferente de um experimentador que, como Mourly Vold, coloca em determinadas posturas os
membros de pessoas, em suas experiências. [ver em [1], anteriores.]Freqüentemente, é possível influenciar
uma pessoa acerca do que ela vai sonhar, mas nunca aquilo que sonhará. O mecanismo da elaboração onírica
e o desejo onírico inconsciente estão isentos de qualquer influência externa. Ao tratar dos sonhos com estímulo
somático, já verificamos [ver em [1] e seg.] que a natureza característica e a independência da vida onírica são
mostradas na reação com que os sonhos respondem aos estímulos somáticos ou mentais que são postos em
ação. A tese que estivemos discutindo, e que procura lançar dúvidas sobre a objetividade da pesquisa referente
aos sonhos, mais uma vez está baseada numa confusão — desta vez, entre o sonho e o material dos
sonhos.Isto, pois, era o que tinha a dizer-lhes, senhoras e senhores, a respeito dos problemas dos sonhos.
Como poderão perceber, há muitas coisas que tive de omitir, e verificarão que, em quase todos os pontos, o
que disse ficou necessariamente incompleto. Isso, naturalmente, se deve à conexão entre os fenômenos dos
sonhos e os das neuroses. Temos estudado os sonhos como introdução à teoria das neuroses, e isso foi,
certamente, um procedimento mais correto do que se tivéssemos feito o oposto. Mas, assim como os sonhos
preparam o caminho para uma compreensão das neuroses, também, por outro lado, uma verdadeira
apreciação dos sonhos só pode ser realizada depois de se conhecer os fenômenos neuróticos.Não sei dizer o
que os senhores pensarão, porém devo assegurar-lhes que não lamento ter-lhes exigido tanto do seu interesse
e do tempo de que dispusemos para os problemas dos sonhos. Não existe nenhuma outra coisa mais, a partir
da qual se possa tão rapidamente obter certeza da correção da tese pela qual a psicanálise resiste ou perece.
Trabalho muito sério, por meses e até mesmo por anos, é o que se exige para demonstrar que os sintomas de
um caso de doença neurótica têm um sentido, servem a um propósito e se originam das experiências de vida
do paciente. Por outro lado, um esforço de apenas umas poucas horas pode ser suficiente para provar que o
mesmo procede para um sonho que e, de início, confuso a ponto de ser ininteligível, e para, dessa maneira,
confirmar todas as premissas da psicanálise — a natureza inconsciente dos processos mentais, os mecanismos
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
136
especiais a que estes obedecem e as forças instintuais que neles se expressam. E quando temos em mente a
extraordinária analogia entre a estrutura dos sonhos e a dos sintomas neuróticos e, ao mesmo tempo,
consideramos a rapidez com que uma pessoa que tem um sonho se transforma em um homem vigil e racional,
adquirimos a certeza de que também as neuroses se baseiam apenas em uma modificação do jogo de forças
entre os poderes da vida mental.
Conferências introdutórias sobre psicanálise
(Parte III)
VOLUME XVI
(19161917)
Dr. Sigmund Freud
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
2
PARTE III TEORIA
GERAL DAS NEUROSES (1917 [191617])
CONFERÊNCIA XVI
PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA
SENHORAS E SENHORES:
Alegrame
vêlos
novamente, no início do novo ano acadêmico, para uma retomada de nossas
discussões. No ano passado, faleilhes
de como a psicanálise aborda as parapraxias e os sonhos. Este ano,
gostaria de conduzilos
à compreensão dos fenômenos da neurose, que, conforme logo verificarão, têm muitas
coisas em comum com ambos. Devo, porém, advertilos,
antecipadamente, de que não poderei oferecerlhes,
este ano, em relação a mim, a mesma situação do ano passado. Naquela época, fiz questão de jamais dar um
passo sem estar de acordo com o julgamento dos senhores; foram muitas as coisas que debati com os
senhores, e dei acolhida às suas objeções — de fato, reconhecios
e ao seu ‘senso comum’ como fator
decisivo. Isto, contudo, não é mais possível, e por uma razão simples. As parapraxias e os sonhos não são
fenômenos desconhecidos dos senhores; poderíamos dizer que os senhores tinham, ou facilmente podiam
obter, tanta experiência acerca dos mesmos quanto eu. Entretanto, a área dos fenômenos da neurose lhes é
desconhecida; de vez que os senhores não são médicos, têm qualquer acesso a eles que não seja por
intermédio daquilo que tenho a dizerlhes;
e de que serve o melhor raciocínio, se este não está acompanhado
da familiaridade com o conteúdo daquilo de que se ajuíza?
Os senhores não devem, porém, tomar esse advertência minha no sentido de que eu proponha darlhes
conferências dogmáticas e insista em seu crédito irrestrito. Um equívoco desses farmeia
grave injustiça. Não
desejo suscitar convicção; desejo estimular o pensamento e derrubar preconceitos. Se, em decorrência da falta
de conhecimento do material, os senhores não estão em condições de emitir um julgamento, não deveriam nem
acreditar, nem rejeitar. Deveriam ouvir atentamente e permitir que atue nos senhores aquilo que lhes digo. Não
é tão fácil adquirir convicções; ou, se estas são alcançadas facilmente, logo se revelam sem valor e incapazes
de resistência. A única pessoa que tem o direito de possuir uma convicção é alguém que, como eu, tenha
trabalhado, por muitos anos, o mesmo material e que, assim agindo, tenha tido, por si próprio, as mesmas e
surpreendentes experiências. De que servem então, na esfera do intelecto, essas convicções súbitas, essas
conversõesrelâmpago,
essas rejeições instantâneas? Não está claro que o ‘coup de foudre‘, amor à primeira
vista, deriva de esfera bem diferente, da esfera das emoções? Nem mesmo dos nossos pacientes exigimos que
devem convencerse
da verdade da psicanálise, no tratamento, ou aderir a ela. Tal atitude freqüentemente
levanta nossas suspeitas. A atitude que neles achamos mais desejável é a de um benévolo ceticismo. Assim,
também os senhores devem esforçarse
por deixar que os pontos de vista psicanalíticos amadureçam
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
3
tranqüilamente nos senhores, junto com a visão popular ou psiquiátrica, até surgir a oportunidade de ambas se
influenciarem reciprocamente, de uma competir com a outra e de se aliarem no rumo de uma conclusão.
Por outro lado, não devem, de modo algum, supor que aquilo que lhes apresento como conceito
psicanalítico seja um sistema especulativo. Pelo contrário, é empírico — seja uma expressão direta das
observações, seja um processo consistente em trabalhálas
exaustivamente. Se esse trabalho exaustivo foi
executado de uma maneira adequada e fundamentada, isto se verá no decorrer de futuros progressos da
ciência, e realmente posso afirmar, sem jactância, após um período de quase vinte e cinco anos e tendo
atingido uma idade razoavelmente avançada, que essas observações são o resultado de trabalho
especialmente difícil, intensivo e aprofundado. Freqüentemente tive a impressão de que nossos opositores
relutavam em levar em conta essa origem de nossas teses, como se pensassem que se tratava apenas de
noções determinadas subjetivamente, às quais qualquer um podia opor outras, de sua própria escolha. Essa
conduta dos nossos opositores não me é completamente compreensível. Talvez se deva ao fato de que, como
médico, habitualmente se tem tão pouco contacto com pacientes neuróticos e se presta tão pouca atenção ao
que dizem esses pacientes que não se pode imaginar a possibilidade de que se possa derivar algo de valioso
de suas comunicações — isto é, a possibilidade de efetuar acuradas observações a respeito delas. Valhome
desta oportunidade para assegurarlhes
que, no decorrer destas conferências, permitirei muito pouca
controvérsia, especialmente com algumas pessoa, individualmente. Nunca pude convencerme
da verdade da
máxima segundo a qual a controvérsia é a mãe de todas as coisas. Penso que deriva dos sofistas gregos e,
como eles, peca por supervalorizar a dialética. Pareceme,
ao contrário, que aquilo que se conhece como
controvérsia científica é, na totalidade, muito improdutivo, além do fato de quase sempre ser conduzido
segundo motivos altamente pessoais. Até há alguns anos, eu podia gabarme
de apenas uma vez haverme
envolvido numa disputa científica regular — com um único pesquisador (Löwenfeld, de Munique). Terminou por
nos tornarmos amigos, e o somos até o dia de hoje. Não repeti, porém, a experiência, por muito tempo, pois
não tinha certeza de que o resultado viesse a ser o mesmo.
Ora, os senhores concluirão, sem dúvida, que uma rejeição como esta de todas as discussões por
escrito demonstra um elevado grau de inacessibilidade a objeções, de obstinação, ou, para usar um termo
científico, coloquial e educado, de apego às idéias próprias [Verranntheit]. Gostaria de dizer, em resposta,
quem, porquanto, após trabalho tão árduo, chegouse
a adquirir uma convicção, ao mesmo tempo adquiriuse
um certo direito de manter esta convicção com alguma tenacidade. Também posso declarar que, no transcorrer
do meu trabalho, tenho modificado minhas opiniões em alguns pontos importantes, tenhoas
alterado e
substituído por outras, novas — e, em todas essas ocasiões, naturalmente, tornei isto público. E o resultado
dessa sinceridade? Algumas pessoas jamais tomaram conhecimento de quaisquer de minhas autocorreções, e
continuam, até hoje, a criticarme
por hipóteses que, para mim, há muito cessaram de ter o mesmo significado.
Outros me reprovam justamente por estas modificações, e, por causa delas, consideramme
indigno de
confiança. Naturalmente! uma pessoa que, vez por outra, mudou de opinião, não merece absolutamente
nenhum crédito, pois tornou tudo tão demasiadamente provável, que as últimas afirmações também podem ser
equivocadas; mas uma pessoa que inflexivelmente manteve o que uma vez afirmou, ou que não pode de
relance ser persuadida a abandonálo,
deve naturalmente ser aferrada às idéias próprias, ou teimosa! Que se
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
4
pode fazer frente a essas objeções contraditórias dos críticos, senão permanecer como se é, e conduzirse
de
acordo com o julgamento próprio? Estou resolvido a agir assim, e não me impedirei de modificar ou retirar
qualquer uma de minhas teorias sempre que a progressão da experiência possa exigilo.
Com referência a
descobertas fundamentais, até o momento atual, nada tenho a modificar, e espero que isto venha a manterse
verdadeiro no futuro.
Vou apresentarlhes,
portanto, a visão psicanalítica dos fenômenos da neurose. Para isto, parece que o
melhor plano consistiria em começarmos por estabelecer uma conexão com os fenômenos de que já tratamos,
tanto pela causa da analogia, como do contraste; e começarei expondo uma ação sintomática [ver em [1] e [2]]
que vi muitas pessoas executarem durante minhas horas de consulta. Nós, analistas, não podemos fazer muita
coisa para conseguir que as pessoas que vêm até nós, em nosso consultório, nos exponham, em um quarto de
hora, os sofrimentos de toda uma vida. Nosso conhecimento mais profundo nos dificulta dar o tipo de opinião
emitida por um outro médico — ‘Não há problema com o senhor’ — à qual se acrescenta o conselho: ‘O senhor
devia providenciar um tratamento hidropático brando.’ Um de meus colegas, quando lhe perguntaram o que
fazia com seus pacientes, que vinham consultar, encolheu os ombros e respondeu: ‘Eu lhes aplico uma multa,
de tantas e tantas Kronen por uma inútil perda de tempo.’ Assim, os senhores não se surpreenderão ao ouvir
que, mesmo no caso de psicanalistas muito ocupados, suas horas de atendimento não costumam ser muito
animadas. A porta simples, entre minha sala de espera e a sala de atendimento e a de tratamento, mandei
fazêla
dupla e revestida de feltro. Não pode haver dúvidas a respeito do propósito desse arranjo. Ora,
repetidamente acontece uma pessoa, que estava na sala de espera e que mando entrar, deixar de fechar a
porta atrás de si e quase sempre deixar ambas as portas abertas. Tão logo percebo esse fato, insisto com o
paciente ou a paciente, num tom mais propriamente inamistoso, para que volte e corrija a omissão — ainda que
a pessoa questão seja um cavalheiro elegantemente trajado ou uma senhora da alta sociedade. Isto dá a
impressão de rigorismo desnecessário. Às vezes, também, tenhome
colocado em situação absurda, fazendo
este pedido quando se verifica, depois, tratarse
de uma pessoa que não pode por si mesmo tocar na maçaneta
da porta, e se alivia se alguém em sua companhia poupaa
dessa necessidade. Mas, na maioria dos casos,
tenho agido com acerto; pois todo aquele que se conduz dessa forma e deixa aberta a porta entre a sala de
espera e a sala de consulta de um médico, é maleducado
e merece uma recepção inamistosa. Não tomem,
contudo, partido nesta questão, sem terem ouvido o restante. Pois esse descuido por parte do paciente apenas
acontece quando esteve sozinho na sala de espera e, portanto, deixou atrás de si uma sala vazia; jamais
acontece no caso de outras pessoas, que lhe sejam estranha, terem estado esperando com ele. Nesse último
caso, sabe muito bem que é de seu interesse que sua conversa com o médico não seja ouvida secretamente, e
nunca deixa de fechar cuidadosamente as duas portas.Assim, a omissão do paciente não é determinada pelo
acaso ou por falta de propósito; e, na realidade, ela não é destituída de importância, pois, conforme
verificaremos, elucida a atitude de recémchegado
para com o médico. O paciente é mais um da grande
multidão que tem um desejo insaciável de autoridade mudança, que deseja ser ofuscado e intimidado. Ele pode
ter perguntado pelo telefone sobre a hora em que mais facilmente poderia conseguir uma entrevista; havia
formado para si a imagem de uma multidão de pessoas procurando ajuda, como a multidão do lado de fora de
uma das filiais de Julius Meinl. E então entra em uma sala de espera vazia, e principalmente, mobiliada com
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
5
extrema modéstia, e fica chocado. Ele tem de fazer o médico pagar pelo respeito supérfluo que tencionava
oferecerlhe:
é assim que deixa de fechar a porta entre a sala de espera e a sala de consulta. O que quer dizer
ao médico, por essa sua conduta, é: ‘Ah, então não há ninguém, e provavelmente não virá ninguém enquanto
eu estiver aqui.’ Ele se conduziria de forma igualmente descortês e desrespeitosa durante a consulta, se sua
arrogância não recebesse uma dura repreensão logo no começo.A análise dessa pequena ação sintomática
não lhes diz nada que já não soubessem antes: a tese de que ela não é uma ação casual, mas teve um motivo,
um sentido e uma intenção, que se localiza num contexto mental específico e que informa, mediante uma
pequena indicação, acerca de um processo mental mais importante. Mais que tudo, porém, essa ação
sintomática lhes revela que o processo assim indicado era inconsciente para a consciência da pessoa que
executou essa ação, de vez que nenhum dos pacientes que deixou as duas portas abertas teria conseguido
admitir, por meio dessa omissão, que desejasse demonstrar tal desrespeito. Alguns deles provavelmente terseiam
apercebido de determinada sensação de desapontamento ao penetrarem na sala de espera vazia; mas a
conexão entre esta impressão e a ação sintomática que se seguiu, por certo permaneceu desconhecida de sua
consciência.Após essa pequena análise de uma ação sintomática, passaremos agora à observação de uma
paciente. Escolhi esta observação porque está vivida em minha memória, e também por poder ser relatada em
tempo relativamente breve. Determinada quantidade de detalhes tornase
imprescindível num relato desta
espécie.Um jovem oficial, de regresso a casa, em período de uma breve licença, pediume
que tomasse em
tratamento sua sogra, que, embora nas circunstâncias mais felizes, estava amargurando sua própria vida e as
vidas de seus parentes, com uma idéia absurda. Foi assim que vim a conhecer uma senhora bem conservada,
cinqüenta e três anos, de natureza amável e simples, que me narrou sem relutância a seguinte história. Ela
morava no campo, vivia, num casamento feliz, com seu marido, diretor de uma grande fábrica. Não tinha senão
como elogiar a afetuosa solicitude do marido. Há trinta anos se haviam casado por amor, e, desde então,
jamais tinha havido qualquer problema, discórdia ou motivo para ciúmes. Seus dois filhos estavam bem
casados; seu marido (e pai destes), compenetrado de suas obrigações, ainda não pensava em aposentarse.
Um ano antes, ela recebera uma carta anônima, acusando seu excelente marido de um caso amoroso com uma
jovem. E o resultado incrível — e, para ela, ininteligível — foi que ela imediatamente acreditou na carta, e desde
então sua felicidade foi destruída. O curso dos acontecimentos, em maiores detalhes, é mais ou menos este.
Ela tinha uma empregada doméstica com quem costumava, talvez com freqüência excessiva, ter conversas
íntimas. Esta moça perseguia uma outra, com certa hostilidade positivamente maldosa, porque esta outra havia
progredido muito mais na vida, embora não fosse de origem mais elevada. Em vez de dedicarse
ao serviço
doméstico, esta moça tinha conseguido concluir um curso comercial, ingressado na fábrica e, em conseqüência
da falta de pessoal, devido ao fato de elementos da organização fabril serem requisitados para o serviço militar,
foi promovida a uma boa posição. Agora morava na própria fábrica, mantinha relacionamento social com todos
os senhores, e realmente tratavamna
por ‘Fräulein.’ A moça que tivera menos sucesso na vida naturalmente
estava pronta a repetir todos os tipos de maldades para com a antiga colega de escola. Certo dia, essa senhora
teve um diálogo com a empregada a respeito de um cavalheiro que tinha estado com elas, que se sabia não
estar vivendo com a esposa e estar tendo um caso amoroso com outra mulher. Ela não sabia como foi que
aconteceu, mas de repente disse: ‘A coisa mais terrível que poderia acontecerme
era eu saber que meu
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
6
querido esposo também estivesse tendo um caso.’ No dia seguinte, recebia uma carta anônima, pelo correio, a
qual, como que por mágica, davalhe
justamente esta informação, escrita com letra disfarçada. Concluiu,
provavelmente com acerto, que a carta era obra de empregada maldosa, de vez que apontava como amante do
marido a jovem a quem a serviçal perseguia com seu ódio. Embora imediatamente compreendesse a intriga e
tivesse visto, em muitos casos ocorridos no lugar onde vivia, quão pouco crédito merecem tais denúncias
covardes, o que aconteceu, todavia, foi que a carta abateua
instantaneamente. Ficou terrivelmente excitada,
mandou chamar prontamente seu marido e acusouo
violentamente. Seu marido não fez caso da acusação e
agiu da melhor forma possível. Chamou o médico da família (que era também o médico da fábrica), que se
esforçou por apaziguar a infeliz senhora. A conduta subseqüente de ambos foi inteiramente sensata. A
doméstica foi despedida, mas a suposta rival, não. Desde então a paciente se havia tranqüilizado por períodos,
repetidamente, a ponto de não acreditar mais no conteúdo da carta anônima, porém nunca completamente,
nunca definitivamente. Bastavalhe
ouvir mencionarem o nome da jovem senhora ou encontrála
na rua, para
nela desencadear um novo ataque de desconfiança, dor e acusações.Este é, pois, o caso clínico dessa
excelente senhora. Não se requeria muita experiência psiquiátrica para compreender que, em contraste com
outros neuróticos, ela estava dando uma descrição por demais atenuada de seu caso — que ela estava, por
assim dizer, dissimulando — e que, realmente, jamais deixara de acreditar na acusação contida na carta
anônima.Que atitude, portanto, um psiquiatra adotará em um caso de doença como este? Já sabemos como
ele se conduziria frente à ação sintomática do paciente que deixa de fechar a porta da sala de consulta. Ele
declara que se trata de evento casual, sem interesse psicológico, com o qual não tem a maior preocupação.
Este procedimento, contudo, não pode ser mantido no caso da doença dessa mulher ciumenta. A ação
sintomática parece ser uma questão irrelevante; mas o sintoma se impõe à nossa atenção como questão
importante. Acompanhase
de intenso sofrimento subjetivo e, como fato objetivo, ameaça a vida em comum de
uma família; constitui, pois, um assunto de inegável interesse psiquiátrico. O psiquiatra começará por procurar
caracterizar o sintoma por meio de algum aspecto essencial. A idéia com que a mulher se atormenta não pode
ser, em si, chamada de absurda; de fato, ocorre senhores casados de certa idade terem casos amorosos com
mocinhas. Existe, porém, algo mais, a este respeito, que é absurdo e difícil de entender. A paciente não
possuía absolutamente nenhum outro motivo para acreditar que seu marido afetuoso e leal pertencesse a essa
outra classe, aliás nada rara, de maridos, a não ser o que se afirmava na carta anônima. Ela sabia que esse
documento não tinha qualquer valor de prova, e podia dar uma explicação satisfatória sobre a origem da
mesma. Portanto, devia ser capaz de dizer a si mesma que não tinha qualquer fundamento para seu ciúme, e
ela realmente o fez. Apesar disso, sofria tanto, contudo, como se julgasse esse ciúme totalmente justificado.
Idéias desse tipo, inacessíveis a argumentos lógicos baseados na realidade, são, segundo o consenso geral,
descritas como delírios. A boa senhora, portanto, estava sofrendo de delírios de ciúme. Este é, sem dúvida, o
aspecto essencial deste caso mórbido.Depois de estabelecido este primeiro ponto, nosso interesse psiquiátrico
se torna até mais vívido. Se não se pode eliminar um delírio mediante uma referência à realidade, então sem
dúvida ele não se originou da realidade. De onde mais terseia
originado? Existem delírios dos mais variados
conteúdos: por que, neste nosso caso, se trata justamente do delírio de ciúme? Em que tipo de pessoas atuam
os delírios e, especialmente, os delírios de ciúme? Gostaríamos de ouvir o que o psiquiatra tem a dizer a este
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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respeito; mas, neste ponto, ele nos deixa em apuros. Considera apenas uma das nossas perguntas. Investigará
a história familiar da mulher e, talvez, nos dará sua resposta: ‘Os delírios aparecem em pessoas em cujas
famílias tenham ocorrido, repetidamente, outros distúrbios psíquicos semelhantes.’ Em outros termos, se essa
mulher desenvolveu um delírio, estava predisposta a ele por transmissão hereditária. Sem dúvida, isso já é
alguma coisa; mas, é tudo que queremos saber? Foi isso a única coisa que contribuiu para a causação da
doença? Devemos contentarnos
com supor tratarse
de algo sem importância, indiferente, ou de um capricho;
ou que não se pode explicar se o delírio de ciúme aparece de preferência a algum outro tipo? E deveríamos
entender a assertiva da predominância da influência hereditária também num sentido negativo — que, não
importa quais experiências a mente dessa mulher tivesse encontrado, ela estaria destinada, mais cedo ou mais
tarde, a vir a apresentar um delírio? Os senhores desejarão saber por que razão a psiquiatria científica não nos
dará outras informações. Minha resposta aos senhores, contudo, é: ‘ele é um trapaceiro que dá mais do que
tem.’ O psiquiatra não sabe como lançar mais luz sobre um caso como este. Ele deve contentarse
com um
diagnóstico e um prognóstico — incertos, apesar de uma grande quantidade de experiência —, e com sua
evolução futura.Pode a psicanálise, porém, ir além, em um caso destes? Sim, ela realmente pode. Espero
conseguir mostrarlhes
que, mesmo num caso assim, tão difícil de abordar, ela pode descobrir algo que
possibilite uma primeira compreensão. E, antes de mais nada, eu atrairia a atenção dos senhores para o
detalhe notório de que a própria paciente positivamente provocou a carta anônima, tendo, agora, dado apoio a
seu delírio, ao informar à empregada intrigante, no dia anterior, que lhe causaria a maior infelicidade se seu
marido tivesse um caso amoroso com uma jovem. Assim, primeiro ela incute na empregada a idéia de enviar a
carta anônima. O delírio, então, adquire certa independência da carta; já estivera presente na paciente sob a
forma de medo — ou era um desejo? Acrescentemos a isto as outras pequenas indicações obtidas em apenas
duas sessões analíticas. A paciente, na realidade, conduziuse
de maneira bastante nãocooperativa
quando,
após haver contado sua história, pergunteilhe
por seus outros pensamentos, idéias e lembranças. Disse que
não lhe ocorria nada à mente, que já me havia dito tudo; e, depois de duas sessões, a tentativa de tratamento
comigo realmente teve de ser interrompida pois declarou que já se sentia bem e estava segura de que a idéia
patológica não retornaria. Naturalmente, ela disse isto apenas devido à sua resistência e ao receio da
continuação da análise. Não obstante, durante essas duas sessões, fez algumas observações que permitiram,
e realmente exigiram, uma interpretação especial; e essa interpretação lançou viva luz sobre a gênese de seu
delírio de ciúme. Ela própria estava intensamente apaixonada por um homem jovem, pelo mesmo genro que a
persuadira a procurarme
na qualidade de paciente. Ela mesma nada sabia, ou, talvez, sabia muito pouco
dessa paixão; no relacionamento família que existia entre ambos, era fácil essa afeição apaixonada disfarçarse
como afeição inocente. Depois de todas as nossas experiências em outras situações, não nos é difícil tatear os
caminhos da vida mental dessa honrada esposa e digna mãe de cinqüenta e três anos. Estando apaixonada
dessa maneira, uma coisa assim tão monstruosa e impossível não podia tornarse
consciente; permaneceu,
porém, existindo, e, ainda que continuasse inconsciente, exercia grande pressão. Algo havia de acontecer, um
alívio tinha de ser buscado, e a mitigação mais fácil surgiu, sem dúvida, através do mecanismo do
deslocamento, que desempenhou seu papel de modo tão regular na produção do ciúme delirante. Se ao menos
não somente ela, a senhora idosa, estivesse apaixonada por um homem jovem, mas também seu idoso marido
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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estivesse mantendo um caso amoroso com uma jovem, então sua consciência se aliviaria do peso de sua
infidelidade. A fantasia da infidelidade de seu esposo agiu assim como uma compressa fria em sua ferida
ardente. O amor que ela própria obrigava não se lhe tornara consciente; porém, seu reflexo especular, que lhe
deu tal vantagem, agora se tornou consciente como uma obsessão e um delírio. Naturalmente nenhum
argumento em contrário podia surtir qualquer efeito, pois o argumento era dirigido contra a imagem especular, e
não contra a imagem original que deu à outra sua força e que permanecia oculta, inviolável, no
inconsciente.Vamos reunir agora aquilo que esta tentativa de psicanálise, curta e detida como foi, trouxe à luz
para uma compreensão deste caso — supondo, naturalmente, que nossas investigações tenham sido
efetuadas corretamente, o que não posso, aqui, submeter ao julgamento dos senhores. Em primeiro lugar, o
delírio deixou de ser absurdo ou ininteligível; tinha um sentido, tinha motivos fundamentados, e ajustouse
ao
contexto de uma experiência emocional da paciente. Em segundo lugar, o delírio era necessário como reação a
um processo mental inconsciente que inferimos de outras indicações, e foi justamente a esta conexão que
deveu seu caráter delirante e sua resistência a todo ataque lógico e realista. Esse delírio era, em si, de certa
maneira desejado, uma espécie de consolação. Em terceiro lugar, o fato de o delírio vir a ser precisamente o
delírio de ciúme, e não de outro tipo, estava inequivocamente determinado pela experiência que está por trás
da doença. Naturalmente, os senhores se recordarão de que, no dia anterior, ela havia dito à empregada
intrigante que a coisa mais terrível que lhe podia acontecer seria a infidelidade do marido. E os senhores não
deixarão de perceber as duas importantes analogias entre este caso e a ação sintomática que analisamos — a
explicação do seu sentido ou intenção e sua relação com algo inconsciente, envolvido na situação.Por certo,
isto não responde a todas as perguntas que poderíamos fazer em relação a este caso. Pelo contrário, o caso
suscita outros problemas — alguns, em geral, ainda não se tornaram solúveis, e outros não poderiam ser
solucionados devido a existirem circunstâncias especiais desfavoráveis. Por exemplo, por que essa mulher, que
estava vivendo um casamento feliz, apaixonouse
por seu genro? E por que o alívio, que teria sido possível de
outras maneiras, tomou a forma dessa imagem especular, dessa projeção de seu estado em seu marido? Os
senhores não devem pensar que é ocioso ou inútil levantar tais questões. Já possuímos algum material à nossa
disposição, que possivelmente poderia servir para respondêlas.
A senhora estava em uma idade crítica, na
qual as necessidades sexuais da mulher sofrem um aumento súbito e indesejado; isto, por si só, poderia
responder pelo evento. Ou ainda pode ter ocorrido que seu excelente e fiel esposo há alguns anos não
estivesse mais gozando da capacidade sexual que essa mulher bem conservada requeria para sua satisfação.
A experiência nos demonstrou que são precisamente homens numa situação assim, cuja fidelidade pode,
conseqüentemente, ser tida como certa, que se distinguem por tratarem suas esposas com ternura incomum, e
por mostrarem especial paciência para com os problemas nervosos delas. Ou ainda, não pode deixar de ter
significação o fato de o objeto de seu amor patogênico ser justamente o jovem marido de uma de suas filhas.
Um poderoso vínculo erótico com uma filha, que remonta aos primórdios da constituição sexual da mãe, às
vezes encontra a forma de sobreviver numa transformação dessa ordem. Com referência a isto, posso, talvez,
recordarlhes
que a relação entre sogra e genro tem sido considerada, desde as épocas mais remotas da raça
humana, como relação particularmente embaraçosa e que, entre tribos primitivas, deu origem a
regulamentações e ‘evitações’ tabu muito poderosas. A relação, amiúde, é extravagante, pelos padrões
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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civilizados, tanto em sentido positivo como negativo. Qual desses três fatores tornouse
atuante, no caso em
questão, ou se dois deles, ou se, talvez, todos os três vieram juntos, verdadeiramente não lhes posso dizer;
isso, contudo, é só porque não me foi possível continuar a análise do caso além de duas sessões.Verifico
agora, senhores, que lhes venho falando de muitas coisas, e os senhores não estão preparados para entendêlas.
Assim procedi para fazer a comparação entre psiquiatria e psicanálise. Existe, porém, uma coisa que posso
perguntarlhes,
agora. Observaram algum sinal de contradição entre elas? A psiquiatria não emprega os
métodos técnicos da psicanálise; toca superficialmente qualquer inferência acerca do conteúdo do delírio, e, ao
apontar para a hereditariedade, dános
uma etiologia geral e remota, em vez de indicar, primeiro, as causas
mais especiais e próximas. Mas existe uma contradição, uma oposição nisso? Não é o caso de uma
suplementar a outra? O fator hereditário contradiz a importância da experiência? Ambas as coisas não se
combinam da maneira mais efetiva?
Os senhores assegurarão não existir nada na natureza do trabalho psiquiátrico que possa oporse
à
investigação psicanalítica. O que se opõe à psicanálise não é a psiquiatria, mas os psiquiatras. A psicanálise
relacionase
com a psiquiatria aproximadamente como a histologia se relaciona com a anatomia: uma estuda as
formas externas dos órgãos, a outra estuda sua estruturação em tecidos e células. Não é fácil imaginar uma
contradição entre essas duas espécies de estudo, sendo um a continuação do outro. Atualmente, como sabem,
a anatomia é considerada por nós como fundamento da medicina científica. Houve, todavia, época em que era
tão proibido dissecar um cadáver humano, a fim de descobrir a estrutura interna do corpo, como hoje parece ser
o exercício da psicanálise, esclarecer acerca do mecanismo interno da mente. É de se esperar que, em futuro
não muito distante, perceberseá
que uma psiquiatria cientificamente fundamentada não será possível sem um
sólido conhecimento dos processos inconscientes profundos da vida mental.
Talvez a psicanálise, sempre tão atacada, tenha, porém, entre os senhores, amigos que se regozijarão
se ela puder legitimarse
num outro sentido — no aspecto terapêutico. Como sabem, nossa terapia psiquiátrica,
até o momento atual, não é capaz de influenciar os delírios. Será possível, talvez, que a psicanálise possa fazêlo,
graças à sua compreensão profunda do mecanismo desses sintomas? Não, senhores, não pode. Ela é tão
impotente (pelo menos por enquanto) contra esses males, quanto qualquer outra forma de terapia. Nós
podemos compreender, na verdade, o que ocorreu na paciente; no entanto, não temos meios de fazer com que
a paciente mesma o compreenda. Os senhores ouviram como fui incapaz de prosseguir com a análise desse
delírio além de um simples começo. Estariam os senhores dispostos a afirmar, por isso, que uma análise de tais
casos deve ser rejeitada porque é infrutífera? Penso que não. Temos o direito, ou melhor, a obrigação, de
efetuar nossa pesquisa sem considerar qualquer efeito benéfico imediato. No fim — não sabemos dizer onde
nem quando — cada pequena parcela de conhecimento se transformará em poder, e também em poder
terapêutico. Ainda que a psicanálise se mostrasse tão ineficaz em qualquer outra forma de doença nervosa e
psíquica, como se mostra ineficaz nos delírios, estaria plenamente justificada como insubstituível instrumento
de investigação científica. É verdade que, nesse caso, não estaríamos em condições de exercêla.
O material
humano, com o qual procuramos aprender, que vive, tem sua vontade própria e precisa ter motivos para
cooperar em nosso trabalho, se afastaria de nós. Portanto, permitamme
finalizar meus comentários de hoje
informandolhes
que existem extensos grupos de distúrbios nervosos nos quais a transformação do nosso
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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melhor entendimento em poder terapêutico realmente se efetivou, e que nessas doenças, às quais é difícil o
acesso por outros meios, obtemos, sob condições favoráveis, êxitos que não são superados por nenhum outro
meio, na área da medicina interna.
CONFERÊNCIA XVII
O SENTIDO DOS SINTOMAS
SENHORAS E SENHORES:
Na última conferência, expliqueilhes
que a psiquiatria clínica atenta pouco para a forma externa do
conteúdo dos sintomas individualmente considerados, que a psicanálise, entretanto, valoriza precisamente este
ponto e estabeleceu, em primeiro lugar, que os sintomas têm um sentido e se relacionam com as experiências
do paciente. O sentido dos sintomas neuróticos foi descoberto, em primeira mão, por Josef Breuer, em seu
estudo e cura bem sucedida (entre 1880 e 1882) de um caso de histeria, que desde então se tornou famoso. É
verdade que Pierre Janet apresentou as mesmas provas, independentemente; com efeito, o pesquisador
francês pode alegar prioridade de publicação, pois foi só uma década depois (em 1893 e 1895), quando estava
colaborando comigo, que Breuer publicou suas observações. Em todo caso, pode parecer questão de somenos
importância saber quem fez a descoberta, de vez que, como sabem, toda descoberta é feita mais de uma vez, e
nenhuma se faz de uma só vez. Ademais disso, nem sempre o sucesso acompanha o mérito: não foi de
Colombo que a América recebeu seu nome. O grande psiquiatra Leuret opinou, antes de Breuer e Janete, que
mesmo nas idéias delirantes do insano se poderia encontrar um sentido, bastaria que compreendêssemos a
maneira de traduzilas.
Devo admitir que, durante longo tempo, estive disposto a dar bastante crédito a Janet
por elucidar os sintomas neuróticos, porque ele os considerava expressão de idées inconscientes que
dominavam os pacientes. Depois disso, porém, ele se tem expressado com exagerada reserva, como se
quisesse admitir que o inconsciente, para ele, não tivesse sido nada mais que uma fórmula verbal, um
expediente, une façon de parler — que ele, com isso, não quis significar nada de real.Desde então, deixei de
compreender os escritos de Janet; penso, no entanto, que ele, desnecessariamente, perdeu muito crédito.Os
sintomas neuróticos têm, portanto, um sentido, como as parapraxias e os sonhos, e, como estes, têm uma
conexão com a vida de quem os produz.
Por ora, gostaria de tornar esta importante descoberta mais compreensível para os senhores, através
de alguns exemplos. Realmente, posso apenas afirmar, não posso provar, que é assim, sempre, e em todos os
casos. Todo aquele que procura por si mesmo essas experiências, encontrará provas convincentes. Por
determinadas razões, contudo, escolherei estes exemplos a partir de casos, não de histeria, mas sim de uma
outra neurose muito extraordinária, que é fundamentalmente muito semelhante àquela e a cujo respeito tenho
alguns comentários preliminares a fazer:
Essa neurose, conhecida como neurose obsessiva, não é tão comum como a universalmente
conhecida histeria. Não é, se assim posso expressarme,
tão indiscretamente ruidosa; comportase
mais como
assunto particular do paciente, prescinde quase que completamente dos fenômenos somáticos e cria todos os
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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sintomas da esfera mental. A neurose obsessiva e a histeria são as formas de doenças neuróticas em cujo
estudo baseouse
inicialmente a psicanálise, e em cujo tratamento, também, nossa terapia realiza seus triunfos.
Mas a neurose obsessiva, na qual o enigmático salto do mental para o físico não desempenha nenhum papel,
se nos tornou, através dos esforços da psicanálise, realmente mais compreensível e conhecida do que a
histeria, e temos constatado que ela apresenta muito mais flagrantemente determinadas características
extremas da natureza da neurose.
A neurose obsessiva manifestase
no fato de o paciente se ocupar de pensamentos em que realmente
não está interessado, de estar cônscio de impulsos dentro de si mesmo que lhe parecem muito estranhos, e de
ser compelido a ações cuja realização não lhe dá satisfação alguma, mas lhe é totalmente impossível omitir. Os
pensamentos (obsessões) podem ser, em si, carentes de significação, ou simplesmente assunto sem
importância para o paciente; freqüentemente, são de todo absurdos e, invariavelmente, constituem o ponto de
partida de intensa atividade mental que exaure o paciente e à qual ele somente se entrega muito contra sua
vontade. Obrigase,
contra sua vontade, a remoer pensamentos e a especular, como se se tratasse dos seus
mais importantes problemas vitais. Os impulsos, dos quais o paciente se apercebe em si próprio, também
podem causar uma impressão de puerilidade e falta de sentido; via de regra, porém, têm um conteúdo da mais
assustadora categoria, tentandoo,
por exemplo, a cometer graves crimes, de modo que não só os rechaça
como alheios a si, mas deles foge com horror e se resguarda de executálos
recorrendo a proibições, renúncias
e restrições em sua liberdade. Ao mesmo tempo, esses impulsos nunca — literalmente nunca — forçam seu
caminho no rumo da realização; o resultado é que sempre obtêm vitória a fuga e as precauções. Aquilo que o
paciente realmente efetua — os denominados atos obsessivos — são coisas muito inofensivas e certamente
banais, na sua maior parte repetição ou elaborações rituais das atividades da vida corrente. Essas atividades
obrigatórias (tais como ir deitar, lavarse,
vestirse
ou andar a pé) se tornam, contudo, tarefas extremamente
fatigantes e quase insolúveis. Nos diferentes casos e formas de neurose obsessiva, as idéias, os impulsos e as
ações patológicas não se combinam em proporções iguais; via de regra, um ou outro desses fatores domina o
quadro e dá seu nome à doença, mas o elemento comum em todas essas formas é suficientemente
inconfundível.
Certamente, esta é uma doença louca. A imaginação psiquiátrica mais extravagante não teria
conseguido, segundo penso, construir nada semelhante; e só mesmo vendoa
diante de si a cada dia, é que se
é levado a acreditar nela. No entanto, não suponham que ajudarão o paciente, nem de longe, admoestandoo
para que adote uma nova conduta, deixe de ocuparse
com esses pensamentos absurdos e faça algo sensato
em lugar de suas extravagâncias infantis. Ele próprio gostaria de fazêlo,
pois está perfeitamente lúcido,
compartilha da opinião dos senhores acerca de seus sintomas neuróticos, e até mesmo expressaa
espontaneamente aos senhores. Só que ele próprio não consegue ajudarse
a si mesmo. O que é posto em
ação, em uma neurose obsessiva, é sustentado por uma energia com a qual provavelmente não encontramos
nada comparável na vida mental normal. Existe uma coisa apenas, que ele pode fazer: realizar deslocamentos,
trocas, pode substituir uma idéia absurda por outra um pouco mais atenuada, em vez de um cerimonial pode
realizar um outro. Pode deslocar a obsessão, mas não removêla.
A possibilidade de deslocar qualquer sintoma
para algo muito distante de sua conformação original é uma das principais características desta doença.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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Ademais, surpreende que, nesta condição, as contradições (polaridades), com as quais a vida mental está
entretecida [ver em [1], adiante], emergem de maneira especialmente nítida, diferenciada. Além das obsessões,
de conteúdo positivo e negativo, a dúvida se faz notar na área intelectual, e lentamente começa a corroer até
mesmo aquilo que geralmente é tido como muito certo. A situação inteira termina em um grau sempre crescente
de indecisão, perda da energia e restrição da liberdade. Ao mesmo tempo, o neurótico obsessivo inicia seus
empreendimentos com uma disposição de grande energia, freqüentemente é muito voluntarioso e, via de regra,
tem dotes intelectuais acima da média. Geralmente atingiu um nível de desenvolvimento ético satisfatoriamente
elevado; mostrase
superconsciencioso, e tem uma correção fora do comum em seu comportamento. Os
senhores podem imaginar que não é pouco o trabalho que se requer para se poder penetrar, por pouco que
seja, nessa miscelânea de traços de caráter e de sintomas. E, de início, não pretendemos nada mais do que
compreender alguns desses sintomas e conseguir interpretálos.
Talvez os senhores desejassem conhecer, antes disso, e tendo em mente nossos contatos anteriores,
que atitude a psiquiatria contemporânea adota em relação aos problemas da neurose obsessiva. Está aí um
capítulo árido. A psiquiatria dá nomes às diferentes obsessões, mas não diz nada mais acerca das mesmas.
Por outro lado, insiste em que são ‘degenerados’ aqueles que sofrem desses sintomas. Isto proporciona pouca
satisfação; de fato, é um julgamento de valores — uma condenação, em vez de uma explicação. Supõese
acharmos que todas a possíveis espécies de excentricidade conseguem ocorrer em degenerados. Pois bem, é
verdade que devemos considerar aqueles que desenvolvem tais sintomas como sendo algo diferentes, em sua
natureza, de outras pessoas. Podemos, no entanto, perguntar: São eles mais ‘degenerados’ do que outros
neuróticos — do que os pacientes histéricos, por exemplo, ou aqueles que adoecem de uma psicose? Também
aqui, a caracterização é, evidentemente, muito genérica. Com efeito, cabenos
a dúvida quanto a saber se
existe absolutamente qualquer justificativa para essa generalização, quando sabemos que esses sintomas
ocorrem também em pessoas, renomadas, de capacidade especialmente elevada, de capacidade importante
para o mundo em geral. É verdade que, graças à sua própria discrição e às falsificações de seus biógrafos,
pouco sabemos dos aspectos íntimos dos grandes homens que são nossos modelos; não obstante, também
sucede um deles, como Émile Zola, poder ser um fanático da verdade, e, assim, ficamos conhecendo seus
muitos e estranhos hábitos obsessivos, dos quais foi vítima a vida inteira.A psiquiatria inventou uma maneira de
falar em ‘dégénérés supérieurs‘. Muito bonito. Mas, na psicanálise, constatamos que é possível eliminar
permanentemente esses estranhos sintomas obsessivos, assim como outras queixas, e, também, em pessoas
não degeneradas. Eu próprio logrei repetidos êxitos neste ponto.Apresentarlhesei
apenas dois exemplos da
análise de um sintoma obsessivo: um deles, uma antiga observação, e não posso encontrar outra melhor que a
substitua, e um outro exemplo, encontreio
recentemente. Limitome
a este pequeno número, de vez que é
impossível, nestes relatos, evitar ser muito dispersivo e entrar em todos os detalhes.
Uma senhora, com cerca de trinta anos de idade, que sofria das mais graves manifestações
obsessivas, e que eu talvez pudesse ter ajudado, se uma eventualidade desfavorável não tivesse transformado
em nada o meu trabalho — posso ser capaz de contarlhes
mais a respeito disso, futuramente — executava,
entre outros, os seguintes e notáveis atos obsessivos, muitas vezes por dia. Ela corria desde seu quarto até um
outro quarto contíguo, assumia determinada posição ali, ao lado de uma mesa colocada no meio do aposento,
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Parte III) – Sigmund Freud
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soava a campainha chamando a empregada, davalhe
algum recado ou dispensavaa
sem maiores
explicações, e, depois, corria de volta para seu quarto. Este não era certamente um sintoma muito
desagradável, mas assim mesmo, não podia deixar de causar curiosidade. A explicação foi obtida da maneira
mais inequívoca e irrefutável, isenta de qualquer contribuição por parte do médico. Não consigo ver como eu
poderia, talvez, ter formado alguma idéia do sentido desse ato obsessivo, ou dado qualquer sugestão acerca do
modo como devia ser interpretado. Sempre que eu perguntava à paciente “Por que faz isto? qual o sentido
disto?’ ela respondia: ‘Não sei.’ Um dia, porém, após eu haver conseguido invalidar uma de suas dúvidas, uma
dúvida importante, fundamental, ela subitamente soube a resposta, e contoume
o que é que estava em
conexão com o ato obsessivo. Mais de dez anos antes, casarase
com um homem de muito mais idade do que
ela, e, na noite de núpcias, ele ficou impotente. Amiúde, durante a noite, ele viera correndo de seu quarto para
o dela, a fim de tentar mais uma vez, porém sempre sem êxito. Na manhã seguinte, ele disse com tristeza: ‘Eu
devia sentirme
envergonhado perante a empregada, quando ela arrumar a cama’, pegou de uma garrafa de
tinta vermelha que casualmente havia no quarto e derramou seu conteúdo sobre o lençol, mas não no exato
lugar em que uma mancha viria a calhar. Num primeiro momento, não pude atinar com a relação entre esta
lembrança e o ato obsessivo em exame; a única semelhança que pude encontrar foi no ato de correr de um
quarto para o outro e, talvez, na vinda da empregada. Minha paciente então levoume
até a mesa, no segundo
quarto, e mostroume
uma grande mancha na toalha. Depois, explicou que assumia sua posição em relação à
mesa de maneira tal que a empregada, ao ser dispensada de sua presença, não podia deixar de ver a mancha.
Já não podia mais haver qualquer dúvida sobre a íntima conexão entre a cena de sua noite de núpcias e o ato
obsessivo atual, embora ficassem por ser esclarecidas muitas outras coisas.
Estava claro, em primeiro lugar, que a paciente se identificava com seu marido; ela estava executando
o papel dele, imitando sua corridas de um quarto a outro. Além disso, prosseguindo com a analogia, devemos
concordar em que a cama e o lençol foram substituídos pela mesa e pela toalha. Isto poderia parecer casual,
mas por certo não foi sem finalidade que estudamos o simbolismo onírico. Também nos sonhos,
freqüentemente encontramos uma mesa que deve ser interpretada como uma cama. Mesa e cama, juntas,
representam o casamento, e, assim, uma pode facilmente tomar o lugar da outra.Parece já estar provado que o
ato obsessivo tinha um sentido; parece ter sido uma representação, uma repetição daquela cena importante.
Mas não devemos parar aqui. Se examinarmos a relação entre as duas cenas mais detidamente,
provavelmente obteremos informações acerca de algo que vai além — acerca da intenção do ato obsessivo.
Sua essência consistia, obviamente, em chamar a empregada, e, à vista desta, mostrar a mancha, em contraste
com o comentário do marido, de que se sentiria envergonhado perante a empregada. Assim sendo, ele, cujo
papel ela estava desempenhando, não se sentia envergonhado perante a empregada; portanto, a mancha
estava no lugar certo. Vemos, portanto, que ela não estava simplesmente repetindo a cena, ela estava
continuando e, ao mesmo tempo corrigindoa;
ela estava consertandoa.
No entanto, com isso, ela também
estava corrigindo uma outra coisa, que fora tão desagradável, aquela noite, e que tornou necessário o
expediente com a tinta vermelha — a impotência dele. De modo que o ato obsessivo estava dizendo: ‘Não, não
é verdade. Ele não tinha por que sentirse
envergonhado perante a empregada; ele não ficou impotente.’
Representava este desejo, à maneira de um sonho, como sendo satisfeito numa ação da época atual; servia ao
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propósito de fazer seu marido superar a desventura passada.Tudo quanto eu poderia lhes dizer a respeito
dessa mulher ajustase
ao fato. Ou, mais corretamente falando, tudo o mais que sabemos a respeito do caso
abre o caminho, mediante esta interpretação ininteligível. A mulher estivera separada de seu marido, durante
anos, e estava debatendose
com a intenção de obter divórcio legal. Contudo, não havia como livrarse
dele;
ela era forçada a permanecer fiel a ele; retirouse
do mundo para não ser tentada; em sua imaginação,
desculpavao
e engrandecia as qualidades dele. Na verdade, o mais profundo segredo de sua doença consistia
em que, através desta doença, protegia seu marido de comentários maldosos, justificavase
por estar separada
dele e possibilitavalhe
levar uma vida separada cômoda. Assim, a análise de um ato obsessivo inócuo
conduziu ao mais íntimo âmago de uma doença; mas, ao mesmo tempo, revelounos
uma parte não pequena
do segredo da neurose obsessiva em geral. Estou satisfeito por fazêlos
deteremse
um pouco neste exemplo,
porque reúne condições que não se poderia esperar encontrar facilmente em todos os casos. Aqui, a
interpretação do sintoma foi descoberta pela própria paciente, de um só golpe, sem qualquer influência ou
intervenção por parte do analista; e resultou de uma conexão com um acontecimento que (como geralmente é o
caso) não pertencia a um período esquecido da infância, mas que ocorre na vida adulta da paciente e
permaneceu vivo em sua memória. Todas as objeções que a crítica normalmente costumava levantar contra
nossa interpretação dos sintomas, caem por terra, neste caso particular. Não podemos esperar ter sempre tanta
sorte.E mais uma coisa. Os senhores não ficaram surpresos pela forma como o discreto ato obsessivo nos
conduziu até a intimidade da paciente? Uma mulher não pode ter nada mais íntimo para contar do que a
história de sua noite de núpcias. Foi por acaso e sem maior significação que chegamos justamente à intimidade
da vida sexual? Sem dúvida, poderia ser o resultado da escolha que fiz, nessa ocasião. Não sejamos
apressados demais em formar nosso julgamento, e passemos ao meu segundo exemplo, que é de tipo bem
diferente — uma amostra de uma espécie muito comum, um ritual de dormir.Uma jovem de dezenove anos de
idade, bem desenvolvida e bem dotada, era filha única de pais que superava em instrução e vivacidade
intelectual. Em criança, havia sido alegre e decidida, e no decorrer dos últimos anos, havia se transformado,
sem qualquer causa visível, em neurótica. Era muito irritável, especialmente para com a mãe, sempre
insatisfeita e deprimida, com tendência à indecisão e à dúvida; finalmente, verificou que não conseguia mais
caminhar livremente por graças ou ruas relativamente largas. Não nos ocuparemos muito de sua complexa
doença, que se enquadrava em pelo menos dois diagnósticos: agorafobia e neurose obsessiva; deternosemos
apenas no fato de que ela também desenvolveu um ritual de dormir, com o qual atormentava seus pais. Em
certo sentido, podese
dizer que toda pessoa normal tem seu ritual de dormir, ou que estabeleceu determinadas
condições necessárias, cujo nãopreenchimento
interfere com o adormecer; toda pessoa se impõe
determinadas formalidades na transição do estado de vigília ao de sono, e repeteas
da mesma maneira, todas
as noites. Tudo aquilo que uma pessoa sadia exige como condição necessária para dormir, pode, contudo, ser
compreendido racionalmente e, no caso de circunstâncias externas exigirem uma mudança, a pessoa cede com
facilidade, sem perda de tempo. Um ritual patológico, porém, é inflexível, e insiste em ser levado a cabo,
mesmo à custa de grandes sacrifícios; também se oculta atrás de uma fundamentação racional e, a um exame
superficial, parece divergir do normal apenas por uma exagerada meticulosidade. Entretanto, a um exame mais
acurado, podemos ver que o disfarce é insuficiente, que o ritual compreende certas especificações que

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