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Tratado sobre o Silêncio e a Linguagem
Por Sócrates Randinely
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Prólogo
Antes da palavra, havia o silêncio.
E antes do silêncio, havia o ser.
A linguagem nasceu quando o homem, olhando o mundo, tentou nomear o inominável.
Desde então, carrega em si a nostalgia do silêncio — a saudade da origem.
Este tratado não busca explicar o silêncio, mas ouvi-lo.
Porque toda explicação o destrói, e toda escuta o revela.
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O Silêncio e a Linguagem
A linguagem é o espelho e o labirinto do mundo.
Reflete o real, mas o deforma; mostra o ser, mas o oculta.
O homem fala para compreender o que o habita — e no entanto, quanto mais fala, mais distante fica daquilo que deseja dizer.
Pois o sentido não mora nas palavras, mas nos intervalos entre elas.
O dizer é o gesto do pensamento; o silêncio é o gesto do ser.
Toda linguagem verdadeira nasce de um silêncio anterior, e a ele retorna como à sua fonte.
Wittgenstein compreendeu isso ao traçar, no Tractatus, os limites do mundo e do discurso.
Ele quis mostrar que o pensamento só tem sentido dentro das fronteiras do que pode ser dito —
e que, além delas, começa o domínio do indizível, onde a ética, a beleza e o divino se escondem.
Por isso escreveu:
> “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.”
Mas o calar, aqui, não é negação — é reverência.
O silêncio é o modo como o espírito se curva diante do mistério.
Não é a ausência da fala, mas a presença daquilo que não cabe em palavras.
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O Silêncio como Forma de Verdade
Há verdades que se provam e verdades que apenas se mostram.
As primeiras pertencem à razão; as segundas, à alma.
O silêncio é o solo dessas verdades silenciosas.
A linguagem tenta cercar o mundo; o silêncio o contém sem esforço.
No dizer, buscamos compreender; no calar, somos compreendidos.
A clareza — essa virtude filosófica tão rara — não vem do raciocínio, mas da serenidade.
A verdade não é uma conclusão, mas um estado de repouso.
Quando Wittgenstein afirmou que “a solução do problema da vida se percebe no desaparecimento do problema”, ele indicava a essência do silêncio: o momento em que o pensamento deixa de lutar contra o mundo e o aceita tal como é.
Esse é o silêncio da sabedoria — o silêncio que cura, que dissolve, que redime.
O silêncio é o juízo das palavras: o que nele resiste é verdadeiro; o que se desfaz, era ilusão.
Toda fé profunda, todo amor verdadeiro, toda arte autêntica — vive nesse espaço onde o dizer se curva diante do inefável.
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A Palavra Redimida
Mas o silêncio não é o inimigo da palavra; é o seu renascimento.
Quando a palavra nasce do silêncio, ela já não descreve — revela.
Ela não é instrumento, é presença.
A linguagem redimida não busca dominar o mundo, mas deixá-lo ser.
Cada palavra assim dita é como um espelho limpo: o ser passa através dela sem distorção.
O que vem do silêncio carrega o peso da eternidade, pois foi purificado da pressa e da vaidade.
A filosofia, então, torna-se arte: não explicar, mas mostrar.
E a arte torna-se oração: não dizer, mas fazer o invisível ressoar.
A palavra redimida é aquela que fala com a luz do não-dito.
É a palavra que se curva diante do mistério e, por isso, o manifesta.
Nela, a linguagem e o silêncio deixam de se opor — tornam-se uma única respiração.
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O Silêncio como Eternidade
Quando o silêncio se torna total, o tempo cessa de correr.
O ser repousa em si mesmo e o mundo se mostra como pura presença.
Nesse instante, o homem compreende que o sentido da vida não está no futuro, mas no agora que não passa.
O silêncio é o nome oculto da eternidade.
É nele que todas as palavras se dissolvem e todos os sentidos se fundem.
A linguagem, depois de tanto buscar, retorna à origem — e na origem encontra o indizível.
O universo inteiro fala em silêncio.
As estrelas não discursam; brilham.
A água não argumenta; flui.
A árvore não explica; cresce.
E o homem, quando desperta, percebe que tudo o que existe é linguagem silenciosa — o verbo que se fez ser.
Por isso, o silêncio é o verdadeiro nome de Deus:
não o Deus das frases, mas o Deus que é pura presença, pura luz, pura verdade sem palavras.
Diante dele, toda filosofia se cala — não por impotência, mas por adoração.
E assim, o tratado termina onde tudo começou:
no silêncio que sustenta a linguagem,
na eternidade que sustenta o tempo,
no ser que sustenta o pensamento.
A última palavra é silêncio.
E o último silêncio é vida eterna.
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