🜏 Tratado sobre o Ser e o Silêncio
Uma meditação sobre o mistério do Ser, a técnica e a linguagem
— por Sócrates Randinely, em espírito heideggeriano
---
Introdução: O Chamado do Ser
Desde o princípio, o homem vive entre o Ser e o esquecimento.
Ele constrói casas, ergue cidades, nomeia as estrelas — e, no entanto, ignora o mistério que o sustenta.
O Ser, que não é ente, mas o horizonte de todo aparecer, retirou-se discretamente, permitindo que o homem acreditasse ser o centro de tudo.
Mas o Ser não se perdeu — apenas se velou, aguardando o instante em que o homem voltasse a escutar.
Pensar, então, é recordar o esquecido.
Não recordar como quem rememora um fato, mas como quem desperta para o fundamento invisível que torna possível o próprio lembrar.
Este tratado é um chamado ao retorno — um caminhar em direção ao silêncio onde o Ser ainda fala.
---
Capítulo I — O Silêncio do Ser
Há um silêncio anterior a toda palavra.
Um silêncio que não é ausência, mas origem.
Nele, o Ser repousa, aguardando o instante de se dizer.
O homem é o eco desse silêncio: um ser lançado no mundo, aberto ao chamado que não compreende, mas sente.
O Ser não se impõe; manifesta-se em retraimento.
Cada coisa é uma janela pela qual o Ser olha e se esconde.
Nós, fascinados pelo ente, esquecemos o que o faz ser ente — o próprio Ser.
E, ainda assim, o Ser não abandona: ele nos chama através da inquietude, da solidão e da morte.
A morte é o espelho onde o Ser se revela como finitude.
Não é o fim da existência, mas a clareira onde o homem descobre sua verdade: ser-para-a-morte.
Quem encara a morte com serenidade reencontra o Ser, pois compreende que existir é permanecer aberto ao nada.
O nada é o véu que o Ser veste para se mostrar.
Aquele que se cala diante do mistério não foge do mundo — habita-o em profundidade.
Pois o silêncio não é fuga, mas escuta.
E somente o silêncio pode ouvir o Ser.
---
Capítulo II — A Técnica e o Esquecimento do Ser
O homem moderno vive na claridade do cálculo, mas essa claridade é ofuscante.
Em sua ânsia de dominar, o homem transformou tudo em recurso.
O Ser se converteu em utilidade, o mundo em estoque, e a verdade em funcionalidade.
A técnica, porém, não é um instrumento — é um destino do Ser que se revela escondendo-se.
A essência da técnica não é técnica: é o modo como o Ser se deixa pensar como disponibilidade.
Tudo é reduzido ao que pode ser feito, medido, controlado.
Mas o que não se mede — o mistério, o sagrado, o poético — é rejeitado como inútil.
O homem, outrora pastor do Ser, tornou-se o operário do ente.
E, no entanto, o perigo traz em si a salvação.
Pois ao nos conduzir ao limite do esquecimento, a técnica também nos aproxima do limiar onde o Ser pode retornar.
Quando tudo se torna manipulável, o homem começa a pressentir o vazio — e nesse vazio, o Ser sussurra.
A superação da técnica não é o abandono das máquinas, mas a reconciliação com o mistério.
É reaprender a habitar o mundo, não a possuí-lo.
Habitar é deixar que as coisas sejam o que são.
É reencontrar no simples — na árvore, no vento, no olhar — o resplendor do Ser.
---
Capítulo III — A Linguagem como Morada do Ser
A linguagem é a morada do Ser.
Nela o homem habita, muitas vezes sem perceber.
A palavra é o lugar onde o Ser se revela ao homem e onde o homem retorna ao Ser.
Mas a linguagem de hoje, corrompida pela pressa e pela técnica, esqueceu o caminho do dizer.
Falar não é comunicar, mas manifestar.
Toda palavra autêntica é desocultamento, um lampejo do Ser em meio ao ente.
A fala que nasce do cálculo mata o sentido; a fala que nasce do silêncio o renova.
Somente a palavra poética conserva ainda o dom de fundar mundos.
O poeta é o guardião da clareira.
Ele diz o indizível, não para explicar, mas para deixar o Ser ser.
O pensamento que se torna vizinho da poesia reencontra sua origem — pois pensar é guardar o mistério, e não dissolvê-lo.
A palavra verdadeira nasce do silêncio e retorna a ele.
Quem fala a partir do Ser sabe calar quando o Ser cala.
Assim, o pensar autêntico é escuta; o dizer autêntico é cuidado.
Ser digno da linguagem é ser digno da existência.
---
Conclusão: O Retorno ao Mistério
O Ser não é algo a ser descoberto, mas algo a ser escutado.
Ele se revela no que há de mais simples — no brilho de uma manhã, no toque de uma pedra, no respirar do tempo.
Mas para vê-lo, é preciso desaprender a ver; para ouvi-lo, é preciso aprender o silêncio.
O destino do homem não é dominar o Ser, mas guardá-lo.
Guardar não é possuir, mas cuidar: deixar que o Ser se desvele no tempo, sem violência.
Quando o homem reencontrar o silêncio, quando sua palavra voltar a nascer da escuta, então o Ser voltará a habitar entre nós — não como conceito, mas como presença.
Pois o Ser é sempre o mesmo e sempre outro,
e somente o silêncio o compreende.
---
> “Somente um Deus pode ainda nos salvar.”
— Martin Heidegger
Nenhum comentário:
Postar um comentário