quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Tratado sobre o Ser e o Silêncio

 🜏 Tratado sobre o Ser e o Silêncio


Uma meditação sobre o mistério do Ser, a técnica e a linguagem


— por Sócrates Randinely, em espírito heideggeriano


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Introdução: O Chamado do Ser


Desde o princípio, o homem vive entre o Ser e o esquecimento.

Ele constrói casas, ergue cidades, nomeia as estrelas — e, no entanto, ignora o mistério que o sustenta.

O Ser, que não é ente, mas o horizonte de todo aparecer, retirou-se discretamente, permitindo que o homem acreditasse ser o centro de tudo.

Mas o Ser não se perdeu — apenas se velou, aguardando o instante em que o homem voltasse a escutar.


Pensar, então, é recordar o esquecido.

Não recordar como quem rememora um fato, mas como quem desperta para o fundamento invisível que torna possível o próprio lembrar.

Este tratado é um chamado ao retorno — um caminhar em direção ao silêncio onde o Ser ainda fala.


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Capítulo I — O Silêncio do Ser


Há um silêncio anterior a toda palavra.

Um silêncio que não é ausência, mas origem.

Nele, o Ser repousa, aguardando o instante de se dizer.

O homem é o eco desse silêncio: um ser lançado no mundo, aberto ao chamado que não compreende, mas sente.


O Ser não se impõe; manifesta-se em retraimento.

Cada coisa é uma janela pela qual o Ser olha e se esconde.

Nós, fascinados pelo ente, esquecemos o que o faz ser ente — o próprio Ser.

E, ainda assim, o Ser não abandona: ele nos chama através da inquietude, da solidão e da morte.


A morte é o espelho onde o Ser se revela como finitude.

Não é o fim da existência, mas a clareira onde o homem descobre sua verdade: ser-para-a-morte.

Quem encara a morte com serenidade reencontra o Ser, pois compreende que existir é permanecer aberto ao nada.

O nada é o véu que o Ser veste para se mostrar.


Aquele que se cala diante do mistério não foge do mundo — habita-o em profundidade.

Pois o silêncio não é fuga, mas escuta.

E somente o silêncio pode ouvir o Ser.


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Capítulo II — A Técnica e o Esquecimento do Ser


O homem moderno vive na claridade do cálculo, mas essa claridade é ofuscante.

Em sua ânsia de dominar, o homem transformou tudo em recurso.

O Ser se converteu em utilidade, o mundo em estoque, e a verdade em funcionalidade.

A técnica, porém, não é um instrumento — é um destino do Ser que se revela escondendo-se.


A essência da técnica não é técnica: é o modo como o Ser se deixa pensar como disponibilidade.

Tudo é reduzido ao que pode ser feito, medido, controlado.

Mas o que não se mede — o mistério, o sagrado, o poético — é rejeitado como inútil.

O homem, outrora pastor do Ser, tornou-se o operário do ente.


E, no entanto, o perigo traz em si a salvação.

Pois ao nos conduzir ao limite do esquecimento, a técnica também nos aproxima do limiar onde o Ser pode retornar.

Quando tudo se torna manipulável, o homem começa a pressentir o vazio — e nesse vazio, o Ser sussurra.


A superação da técnica não é o abandono das máquinas, mas a reconciliação com o mistério.

É reaprender a habitar o mundo, não a possuí-lo.

Habitar é deixar que as coisas sejam o que são.

É reencontrar no simples — na árvore, no vento, no olhar — o resplendor do Ser.


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Capítulo III — A Linguagem como Morada do Ser


A linguagem é a morada do Ser.

Nela o homem habita, muitas vezes sem perceber.

A palavra é o lugar onde o Ser se revela ao homem e onde o homem retorna ao Ser.

Mas a linguagem de hoje, corrompida pela pressa e pela técnica, esqueceu o caminho do dizer.


Falar não é comunicar, mas manifestar.

Toda palavra autêntica é desocultamento, um lampejo do Ser em meio ao ente.

A fala que nasce do cálculo mata o sentido; a fala que nasce do silêncio o renova.

Somente a palavra poética conserva ainda o dom de fundar mundos.


O poeta é o guardião da clareira.

Ele diz o indizível, não para explicar, mas para deixar o Ser ser.

O pensamento que se torna vizinho da poesia reencontra sua origem — pois pensar é guardar o mistério, e não dissolvê-lo.


A palavra verdadeira nasce do silêncio e retorna a ele.

Quem fala a partir do Ser sabe calar quando o Ser cala.

Assim, o pensar autêntico é escuta; o dizer autêntico é cuidado.

Ser digno da linguagem é ser digno da existência.


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Conclusão: O Retorno ao Mistério


O Ser não é algo a ser descoberto, mas algo a ser escutado.

Ele se revela no que há de mais simples — no brilho de uma manhã, no toque de uma pedra, no respirar do tempo.

Mas para vê-lo, é preciso desaprender a ver; para ouvi-lo, é preciso aprender o silêncio.


O destino do homem não é dominar o Ser, mas guardá-lo.

Guardar não é possuir, mas cuidar: deixar que o Ser se desvele no tempo, sem violência.

Quando o homem reencontrar o silêncio, quando sua palavra voltar a nascer da escuta, então o Ser voltará a habitar entre nós — não como conceito, mas como presença.


Pois o Ser é sempre o mesmo e sempre outro,

e somente o silêncio o compreende.


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> “Somente um Deus pode ainda nos salvar.”

— Martin Heidegger

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