Moralidade
e Felicidade A felicidade é o estado em que se encontra no mundo um ser
racional para quem, em toda a sua existência, tudo decorre conforme o
seu desejo e a sua vontade; pressupõe, por consequência, o acordo da
natureza com todo o conjunto dos fins deste ser, e simultaneamente com o
fundamento essencial de determinação da sua vontade. Ora a lei moral,
como lei da liberdade, obriga por meio
de fundamentos de determinação, que devem ser inteiramente independentes
da natureza e do acordo dela com a nossa faculdade de desejar (como
motor). Porém, o ser agente racional que actua no mundo não é
simultaneamente causa do mundo e da própria natureza. Assim, pois, na
lei moral não há o menor fundamento para uma conexão necessária entre a
moralidade e a felicidade, com ela proporcionada, num ser que, fazendo
parte do mundo, dele depende; este ser, precisamente por isso, não pode
ser voluntariamente a causa desta natureza nem, no que à felicidade
respeita, fazer com que, pelas suas próprias forças, coincida
perfeitamente com os seus próprios princípios práticos.
E, todavia,
no problema prático que a razão pura nos prescreve, isto é, na
prossecução do soberano bem, tal acordo é postulado como necessário:
devemos procurar realizar o soberano bem, que, por consequência, tem de
ser possível. Por conseguinte, postular também a existência de uma causa
de toda a natureza, distinta da própria natureza que encerra o
fundamento de tal conexão, isto é, a exacta harmonia da felicidade e da
moralidade. Mas esta causa suprema deve conter o fundamento do acordo da
natureza, não só com uma lei da vontade dos seres racionais, mas com a
representação dessa lei, na medida em que eles fazem dela o motivo
supremo da sua vontade, e, por consequência, não só apenas com a forma
dos costumes, mas com a própria moralidade como fundamento determinante,
isto é, com a intenção moral.
O soberano bem não é, portanto,
possível no mundo, a não ser que se admita uma natureza suprema dotada
de causalidade conforme a intenção moral. Ora um ser capaz de agir
segundo a representação de certas leis é uma inteligência (ser racional)
e a causalidade de tal ser, segundo essa representação das leis, é uma
vontade. Portanto, a causa suprema da natureza, como condição do
soberano bem, é um ser que, por razão e vontade, é a causa, por
conseguinte, o autor da natureza, isto é, Deus.
felicidade
A felicidade tem origem no latim augurium, que significa augúrio e
sorte. Sendo assim, não dependeria do ser humano, mas sim de algo
exterior a ele.
Felicidade sugere a ideia de um bem, um fim elevado ao qual o homem ambiciona chegar.
Segundo uma famosa definição de Kant, a felicidade seria a "satisfação
de todas as nossas inclinações". De acordo com o moralismo, esta
satisfação total só existiria através da virtude.
Para Rousseau, a
felicidade não é algo que se encontre longe, mas pelo contrário só se
pode encontrar dentro da própria alma, não tendo origem exterior.
Para Hegel, só é feliz aquele que se resigna a uma vida furtiva e se
conforma a viver de uma forma simples e sem acontecimentos grandiosos.
Existem outras filosofias para as quais existe a negação a priori da
possibilidade de felicidade. Nietzsche e Rimbaud têm uma visão mais
trágica sobre a felicidade, onde se reconhece a fatalidade do desejo de
felicidade.
A Filosofia antiga considera a felicidade como o
soberano Bem, ou seja, o fim supremo ao qual todos os outros estão
subordinados. Mas este Bem afasta-se da ideia de prazer por esta ser
efémera, enquanto a felicidade pretende ser algo de duradouro.
Para
Aristóteles, a felicidade duradoura é associada a uma vida virtuosa,
fundada na razão. Uma vida de felicidade é um poder do ser humano, pois
depende dele e da sua razão. Uma vida plena de felicidade é aquela que é
virada para a inteligência e para o pensamento, libertada das amarras
da necessidade.
Segundo Kant, a felicidade não é um ideal da razão,
mas sim da imaginação, afastando a associação da felicidade com a
virtude. A ação moral não faz o homem feliz, antes lhe dá condições para
o homem se tornar digno de ser feliz.
Para Espinosa, não existe felicidade maior do que compreender e pensar.
Nos tempos atuais, a felicidade não é considerada um bem supremo, mas
uma aspiração a que dificilmente se atinge. Não é um dever, um dom ou um
fim supremo, pois existem outros valores que lhe são superiores em
termos de dignidade, como é o caso da justiça ou da liberdade.
o princípio da felicidade:
O princípio da felicidade pode, sem dúvida, fornecer máximas, mas nunca
aquelas que serviriam de leis da vontade, mesmo se se tomasse por
objecto a felicidade universal. Com efeito, porque o conhecimento desta
se baseia nos simples dados da experiência, uma vez que todo o juízo a
seu respeito depende muito da opinião de cada um, a qual é também muito
variável, podem certamente dar-se regras gerais, mas nunca regras
universais, isto é, regras que, em média, são correctas na maior parte
das vezes, mas não regras que devem sempre e necessariamente ser
válidas; por conseguinte, nenhumas leis práticas se podem basear neste
princípio. Justamente porque um objecto do livre-arbítrio está aqui na
base da sua regra e a deve, pois, preceder, esta não pode reportar-se
senão ao que se sente, por conseguinte, à experiência, e só nela se pode
fundamentar; e, nestas circunstâncias, a diversidade do juízo deve ser
infinita. Este princípio não prescreve, pois, a todos os seres racionais
as mesmas regras práticas, embora estejam compreendidas sob um título
comum, a saber, o de felicidade. A lei moral porém, só é pensada como
objectivamente necessária porque deve valer para todos os que possuem
razão e vontade.
A máxima do amor de si (a prudência) aconselha
simplesmente; a lei da moralidade manda. Existe, no entanto, uma grande
diferença entre o que se nos aconselha e aquilo a que somos obrigados.
A felicidade é um problema da razão prática. Seus conteúdos são as
leis morais, fornecidas a priori sem nenhum condicionamento empírico.
Essas leis, as práticas, são objetivas e diferem das leis naturais.
Dizem respeito ao que devem acontecer. A felicidade é o fim de toda lei
moral. O sistema da moralidade liga-se, na idéia, ao sistema da
felicidade. A esta idéia, em que a felicidade se liga de forma precisa a
uma inteligência pensada como causa moralmente perfeita, Kant dá o nome
de ideal do bem supremo. O fim da felicidade é o bem supremo. A
felicidade é o anelo de todo ser racional, mas o seu fundamento é
empírico, e por isso, determinado pelo sentimento particular de prazer e
desprazer. A felicidade pode constituir uma lei subjetivamente
necessária (máxima), mas jamais uma lei prática, a priori e objetiva. A
“proposição moral”, diz Zingano, “reivindica necessidade e
universalidade segundo o conceito de dever”, isto é, a necessidade de
agir por respeito à lei moral. A lei prática não depende da matéria, sua
representação é puramente racional e se distingue de todos os
princípios representativos da lei natural. Tal independência denomina-se
liberdade.
Uma vontade livre é aquela à qual só a
pura forma legisladora da máxima pode servir. O conceito de liberdade
resulta naturalmente da consciência da lei moral. A lei moral funciona
como um imperativo categórico que obriga ao dever. Tal obrigação se
funda na obrigação da própria vontade, isto é, ela não é heterônoma,
externa a ela, mas a autonomia da vontade é a “condição formal de todas
as máximas”. A forma legisladora da máxima é o verdadeiro princípio da
moralidade. Pelo princípio da felicidade são obtidas as máximas
puramente subjetivas, que podem apenas aconselhar, ao contrário da lei
moral, que ordena ou obriga, exigindo a mais pronta obediência. Os
princípios materiais são inadequados para constituir a lei moral,
somente o principio prático formal da razão pura é adequado para
estabelecer a ação como um dever. Bem e mal são termos ambíguos e
relativos. Funcionam às vezes como meio para o agradável ou o
desagradável. As máximas práticas oriundas desses conceitos, de modo
algum estão a serviço de algo bom em si mesmo, o bem sendo, portanto,
apenas o útil, cujo móvel é a sensação e não a vontade pura. Para os
juízos de bom e de mal concorrem ao mesmo tempo os sentidos e a razão.
Enquanto a sensação tem a ver com a própria felicidade, a razão diz
respeito a algo mais elementar no homem. Do juízo relativo ao que é bom
ou mau em si resultam duas possibilidades: ou nele já está contido um
princípio racional e puro determinante da vontade (lei prática a
priori), ou então a máxima da vontade é precedida por um princípio
determinante da faculdade de desejar. Só uma lei formal, isto é, uma lei
que nada mais prescreve à razão para a condição suprema das máximas,
pode ser, a priori, um principio determinante da razão prática.
A vontade é determinada imediatamente pela lei. O móvel da
vontade humana é a lei moral que representa o princípio objetivo de
determinação subjetiva suficiente para a vontade. O amor de si, diz
Kant, é a tendência para fazer de si mesmo “princípio determinante
objetivo da vontade”. Na experiência negativa da humilhação externa a
lei, surge em nós, como principio de um sentimento positivo, o respeito.
A origem do respeito não é empírica, mas intelectual, podendo ser
conhecida a priori. Para Kant nossa vontade é autônoma, mas deve estar
submetida à lei (máxima) que livre e objetiva ela formou. A humanidade
está em nós próprios e deve ser vista sempre como fim, jamais como meio.
A razão procura o incondicionado. Na razão pura prática esse
incondicionado é o soberano bem, enquanto o condicionado é representado
pelas inclinações, ou tendências. O soberano bem, ou bem supremo,
constitui a condição incondicionada da felicidade. Virtude e felicidade,
para Kant, são conceitos distintos; a primeira é pressuposto para a
segunda, e não o contrário. As virtudes possuem um fundamento prático,
enquanto que a felicidade, ou seja, o conhecimento desta se baseia na
experiência, portanto empírica. O bem supremo só pode ser produzido a
partir de princípios a priori do conhecimento. É um bem prático ou
possível na ação. O antagonismo entre a natureza e a liberdade é só
aparente, não impedindo que o soberano bem seja um verdadeiro objeto da
razão prática. Só o respeito conduz ao “verdadeiro fim de toda formação
moral”.
A vontade é determinável pela lei moral que
está em total conformidade de intenções com a mesma lei moral. A
conformidade da vontade à lei é a santidade. Esta conformidade não se
encontra em nenhum ser finito. É preciso pensá-la num progresso infinito
que depende de uma existência e personalidade. É o pressuposto da
imortalidade da alma o qual deve ser postulado para a razão pura
prática. Na ordem da prática este postulado é “uma conseqüência
indemonstrável da ética”. A lei moral está ligada ao soberano bem. O
soberano bem consiste na síntese da união da moralidade e felicidade. A
felicidade é a correspondência total do estado de um ser racional com o
que ele deseja. Nenhuma conexão necessária existe entre a lei moral e a
felicidade. A existência de uma causa é necessária para a concordância.
Essa causa é Deus, que é moralmente necessário admitir, que se apresenta
como soberano bem primordial. Na esperança reside o sublime poder do
homem, por meio dela a religião leva à consecução efetiva de sua
liberdade no mundo.
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legislação universal deve-se perguntar se a máxima pode ser convertida
em lei universal. Casoisso não seja possível, essa máxima deve ser
rejeitada. Apenas a máxima que pode serconvertida em lei universal pode
ser princípio numa possível legislação universal. Para saberse uma
máxima pode ser universalizada numa legislação universal, basta
perguntar-se:
“ficaria eu satisfeito de ver a minha máxima (de me tirar de apuros por meio de uma promessa
não verdadeira) tomar o valor de lei u
niversal (tanto para mim como para os outros)?” (FMC
IV, 403).Se a máxima que declara ser lícito tirar-lhe de uma
dificuldade com promessasmentirosas, fosse erigida como lei, ninguém
prestaria mais fé às promessas e já não haveriavantagem nenhuma em
mentir. Por isso, cada qual pode reconhecer em cada momento ondeestá o
dever, condição de uma boa vontade, perguntando-
se: “Podes tu querer também que atua máxima se converta em lei universal?” (FMC IV, 403). Quando alguém se pergunta se
tem razão para agir desse ou daquele modo, pergunta-se: o que faria no
lugar de qualqueroutro ser dotado de razão, isto é, procura saber se a
máxima de ação poderia servir de leiuniversal.Sendo assim, o
desenvolvimento da análise do conhecimento moral comum permitiudescobrir
o princípio supremo da moralidade. Kant não esconde sua admiração pelo
fato deque, na inteligência comum da humanidade, o funcionamento prático
da razão prevaleça sobreo funcionamento teórico. Sendo coisa normal que
todo homem possa facilmente descobrir emsi os princípios de uma boa
conduta.
No “conhecimento” moral da razão humana comum observa
-se o princípio que deveconduzir todo ato moral, princípio esse que deve
funcionar como orientador para diferenciar obom do mau, o que é
conforme ao dever do que é contrário ao dever. O objetivo de Kant
naprimeira seção da
Fundamentação
foi demonstrar que através da
análise da experiênciacomum que a boa vontade é boa em si mesma, porque
age por dever que é imposto por umamáxima que pode tornar-se uma lei
universal. Entretanto, ressalta a necessidade da razãohumana comum sair
de seu círculo e buscar fundamentação em uma filosofia prática
paraencontrar informações sobre a fonte de seu princípio. A ação moral é
aquela que se cumprepor dever, não por inclinações. O princípio do
dever deve ser universal, ou seja, deve valerpara todos os seres
racionais.A distinção entre os possíveis imperativos práticos ilustra
precisamente o fato de quepara Kant uma ação moral não é meramente um
componente de conduta externa, mas inclui
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como seus componentes decisivos, os motivos, as intenções e decisões
que precedem essaconduta. Com a exposição dos imperativos e suas
respectivas características, pretende-seevidenciar porque para Kant
nenhum princípio necessário e, por conseguinte, universalmenteválido,
pode ser determinado a partir da experiência empírica, mas apenas
considerando apossibilidade da razão pura poder determinar a vontade
independentemente de qualquerinteresse, exceto o interesse próprio da
razão. Em outras palavras, apenas um princípio práticopuro pode ser
objetivo, isto é, válido para todos os seres dotados de razão e
vontade.Kant não desconsidera os possíveis interesses das ações em geral
–
os quais são, semdúvida, necessários do ponto de vista da natureza sensível dos seres racionais finitos
–
mas,apenas objeta como seja possível estabelecer e explicar um
princípio prático necessário,universalmente válido, a partir das
necessidades particulares de um homem ou mesmo de umgrupo deles, por
exemplo. Tais necessidades podem originar, no máximo, preceitos
práticos,mas nunca uma regra prática incondicionada. É preciso notar,
portanto, que para Kant amoralidade não pode reportar-se à diversidade
de costumes presentes nas diferentessociedades e em diferentes épocas.
Nesse sentido, Kant busca um princípio que possa servirde critério
universal para agir, ou seja, um critério propriamente moral para as
ações. Esseprincípio admite um único interesse
–
o interesse da razão pura
–
pois, para Kant o valormoral é um valor intrínseco, enquanto que
questões de êxito e fracasso nos empreendimentosnão são princípios
morais, mas, conceitos de técnica e de prudência.Não obstante, embora a
felicidade seja desejada por todos os homens ela não pode
serprecisamente definida a partir dos dados empíricos. Já na
Crítica da Razão Pura
Kant define
a felicidade como a “satisfação de todas as nossas inclinações (tanto
extensive
, quanto à suamultiplicidade, como
intensive
, quanto ao grau e também
protensive
, quanto à duração)
”(CRP B 834); ou seja, “para a idéia de felicidade é necessário um todo absoluto, um máximo
de bem-
estar, no meu estado presente e em todo o futuro” (FMC IV, 418). A partir dessa
concepção de felicidade, conclui-se que ter a idéia exata da felicidade é algo de impossível
para qualquer ser racional finito, pois para tal “seria precis[o] a onisciência” (FMC IV, 418).
Mas, considerando que a felicidade é uma necessidade natural, o
imperativo assertórico é amaneira pela qual se prescrevem os meios em
que a felicidade, ou pelo menos, parte dela érealizada. O princípio da
felicidade pode ser considerado uma regra
3
prática generalizável,mas de modo algum universalizável.
3
Regras não podem ser universalizadas, somente máximas.
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Por conseguinte, no nível da fundamentação da moral que visa
primordialmente umprincípio universalmente válido, Kant distingue o
princípio da felicidade
–
comoabsolutamente incompatível
–
com o princípio da moralidade. A importância dessa distinçãopode ser percebida no esforço de Kant na
Crítica da Razão Prática
em delimitar o “princípio
gera
l do amor de si ou da felicidade própria” (CRPr V, 22) como um princípio válido apenas
subjetivamente e, como tal, insuficiente para servir de critério para a
moralidade. Além disso,a questão cresce em importância se for
considerado o papel fundamental desempenhado pelafelicidade na história
da fundamentação da moral, nomeadamente na proposta aristotélica.Não
obstante, o fato de Kant ter desconsiderado a felicidade enquanto
elemento fundamentalpara a moral, ele a mantém estreitamente ligada ao
sistema m
oral, “porque na idéia prática
estão os dois elementos
essencialmente ligados [moralidade e felicidade], embora de tal modoque
a disposição moral é a condição que, antes de mais, torna possível a
participação nafelicidade e não, ao contrário, a perspectiva de
felicidade que torna possível a disposição
moral” (CRP B 841).
Referências
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Crítica da razão pura.
5.ed. Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.KANT, I.
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Trad. de Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2003.KANT, I.
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Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2004.KANT, I.
Kants gesammelte Schriften.
Berlin: Der Deutschen Akademie der Wissenchaften; Walter de Gruyter,seit 1902.NODARI, P. C. A Noção da Boa Vontade em Kant. In:
Revista Portuguesa de Filosofia.
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The Categorical Imperative:
a Study in Kant’s Moral Philosophy. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press, 1971.WOOD, Allen W.
Kant’s Et
hical Thought.
Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
No imperativo moral a lei não decorre da experiência, tem de ser
anterior a ela, tem de ser a priori, senão não se podia julgar a
experiência. A moralidade kantiana define-se também pelo seu apriorismo.
Tem de ser assim mesmo, porque a razão que conhece os fenómenos é a
mesma razão que estabelece os princípios da acção, o uso dela é que é
diferente. E é diferente porque uma diz respeito ao conhecimento e a
outra diz respeito à acção. Contudo, nem sempre a acção é guiada pela
razão, porque o homem não é um ser puramente racional. O ser humano está
sujeito às inclinações, tem inclinação para a animalidade, para a
humanidade e para a personalidade, só esta última é verdadeiramente
moral (age de tal maneira que tomes sempre o outro como um fim e nunca
como um meio), este princípio diz respeito à terceira inclinação, as
outras duas não são por si más, só são más quando se desviam ou não se
deixam orientar pela razão. Isto é o imperativo moral do princípio da
acção como máxima, de acordo ou com o respeito à lei moral. Os
imperativos podem ser de vários tipos, mas o imperativo moral é o
imperativo categórico. É categórico porque é apodíctico, ou seja, não
admite qualquer tipo de dúvida, é uma acção considerada objectivamente
necessária, é uma acção que não tem referência a qualquer tipo de
finalidade, é uma moral não teleológica.
Kant diz como é que eu devo
e não o que devo fazer, o imperativo é universal na sua forma, não é de
natureza substancial ou material. A preocupação é puramente formal –
age sempre de tal maneira que a tua máxima da acção seja lei universal –
temos de tornar operativa esta forma, e fazemos isso perguntando sempre
se o princípio da acção pode ser universal, se não há contradição. Com
esta concepção de imperativo com a ideia de universalidade, Kant está a
chamar atenção para o facto de a razão não poder deixar de ser
universal, por isso é uma moral racional. Assim, o imperativo tem 3
redações, a primeira é;
Age como se a máxima da tua acção se devesse
tornar, pela tua vontade em lei universal da natureza. (princípio da
universalidade),
a segunda é;
Age de tal maneira que uses a
humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre
e simultaneamente como fim e nunca como meio. (princípio da
finalidade),
a terceira é;
Age de tal maneira que a tua vontade
se possa considerar como sendo a autora da lei universal à qual se
submete. (princípio da autonomia).
A máxima é o princípio subjectivo
da acção, é aquele princípio que elejo como princípio da acção. Quando a
vontade busca a lei que deve determina-la em qualquer outro ponto que
não seja a aptidão das suas máximas para a sua própria legislação
universal, a acção torna-se imoral. Estamos no domínio da heteronomia,
seria uma vontade heterónima, há um princípio que é exterior a mim que
me determina. A autonomia da vontade significa a assunção de mim
enquanto eu sou capaz de determinar o próprio princípio, ou seja,
enquanto a máxima contribui para a legislação universal, ser capaz de a
si próprio dar a lei, só assim é que eu sou autónomo.
Para Kant tudo
se fundamenta num conceito, que é o conceito de liberdade. A liberdade
para Kant é a rátio essendi da lei moral, é a razão de ser da moralidade
e a lei moral é simultaneamente a rátio cognóscente da liberdade. Só um
ser livre pode ser um ser moral, uma pedra não pode. Eu sei que é assim
pela lei moral, é pelo facto de eu agir de tal maneira que a máxima da
acção seja princípio universal que eu sei que sou livre. Autonomia e
liberdade são sinónimas.
A todo o ser racional que tem uma vontade
temos de admitir necessariamente também a ideia de liberdade sobre a
qual ele igualmente pode agir. Só há vontade autónoma sobre a ideia de
liberdade. Somos livres, porque o ser que a si próprio dá a lei é o
autor da lei, e por isso a liberdade é o último fundamento da
moralidade.
Este pensamento de Kant conduz-nos àquilo que ele
considera como uma das questões fundamentais da ética, que é o problema
daquilo que ele chama o reino dos fins. O homem aparece-nos como seres
racionais que se apresentam como fins em si mesmo. O homem apresenta-se
nesse reino de fins como membro. Neste reino, o homem enquanto dá as
leis é um ser soberano, enquanto obedece às leis que a si próprio deu é
súbdito.
Então, tendo em conta o reino de fins, como relacionar este
facto que é apodíctico, a priori, universal e necessário, com uma outra
apetência que caracteriza também o ser do homem que é a apetência para a
felicidade. Kant constata que todos os homens procuram a felicidade. A
felicidade não deve ser o princípio determinador da vontade, a
felicidade deve é ser consequência dessa determinação. O que é então a
felicidade? A felicidade para Kant consiste no máximo de bem-estar no
meu estado presente e em toda a condição futura. A felicidade para Kant
apresenta um carácter formal do conceito. Assim, a procura da felicidade
por si não é ilegítima, a felicidade é algo a que podemos aspirar, mas
nunca como fim da moralidade. A ideia de felicidade varia de época, de
lugar, varia de idade, etc. Neste sentido a ideia de felicidade é a
posteriori. Enquanto a felicidade é da ordem da experiência, a
moralidade não é. Não sabemos os meios pelos quais conseguimos alcançar a
felicidade, e todos aqueles meios que nós usamos tendo em vista a
obtenção da felicidade geram imperativos, prudências, imperativos
hipotéticos, mas nunca imperativos categóricos. Em suma, a felicidade
não pode ser critério de moralidade.
Desta forma, a moralidade e a
felicidade conjugam-se considerando a subordinação da felicidade à
virtude, ou seja, da subordinação da felicidade à moralidade. Se assim
não fosse, estaríamos a subordinar a razão à experiência, e isso era o
fim da moralidade. Kant vai dizer que nunca posso ter a certeza de que
sou feliz, ou de que serei feliz, mas posso dizer que aspiro à
felicidade. Assim, Kant, ao relacionar virtude com felicidade vai
afirmar que são realidades distintas, o laço que une a virtude à
felicidade não é um laço analítico, mas é sintético, ou seja, um laço
que supõe causalidade. Isto é, para Kant é feliz o virtuoso e não o
contrário. É porque eu sou virtuoso que posso aspirar à felicidade. Só a
virtude pode levar à felicidade.
Assim, Kant pensa que pela via
moral estamos obrigados a trabalhar pela realização do soberano bem,
isto é, estamos obrigados a trabalhar na união entre virtude e
felicidade. Desta forma, o soberano bem consiste na união entre virtude e
felicidade. Nesta perspectiva para se ser feliz deveríamos ser santos,
ou seja, devíamos ser um ser que não seja determinado por nada que não
fosse o facto simplesmente da moralidade. Mas para Kant os seres humanos
não são capazes, logo, vem os postulados da razão no seu uso puro
prático. Os postulados são algo que eu admito como verdadeiro porque
decorre da própria condição em que eu sou. Se eu sou obrigado a
trabalhar pelo soberano bem, tenho de admitir uma coisa, se cá na terra
não conseguimos fazer isso inteiramente, tenho de fazer isso noutro
lado, sob pena da moralidade não fazer sentido nenhum. Tenho de admitir
que a imortalidade da alma é real, para que durante todo o resto da
minha vida para além da vida da terra, eu seja capaz de realizar o
soberano bem.
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