sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

FELICIDADE SEGUNDO À PSICANALISE !

Resumo: Este artigo aborda a questão da felicidade pela via da contingência
opondo a transitoriedade do gozo à nostalgia do infinito como objeto
absoluto. Confronta também a interpretação freudiana do mal estar no artigo
“Sobre a transitoriedade” com a leitura lacaniana do encontro possível
diante da impossibilidade da relação sexual.
Palavras chave: felicidade; contingência; objeto a; sintoma.

Abstract: The article covers the happiness issue in relation to
contingency. It opposes the transience of pleasure to the nostalgia implied
in the infinite as an absolute object. It also confronts the Freudian
interpretation on discontents, present in the article "On Transience", with
the Lacanian interpretation on the possibility of an encounter faced with
the impossibility of the sexual relation.
Key words: happiness; contingency; object a; symptom.



Lacan sempre insistiu em dizer que a psicanálise não é
eterna; a prática, a teoria e a transmissão se diferenciam no
tempo. O real impõe respostas simbólicas e imaginárias que
fazem consistências como sintoma de uma época. Se a
psicanálise estiver à altura de tratar o sintoma social, ela
continuará existindo.
Se o sintoma se diferencia em sua relação com o real,
também se diferencia a perspectiva da psicanálise sobre a
felicidade.
O texto maior sobre este tema, na obra freudiana, é “O
mal estar na civilização”, de 1924, momento em que Freud
reafirma o que, a nosso ver, de algum modo já dissera em 1916,
no artigo “Sobre a Transitoriedade”. Somos feitos de maneira a Opção Lacaniana OnLine 2 Felicidade, por que não?
extrair prazer intenso do contraste, e não de um estado de
coisas que perdure. Passível de manifestação, a felicidade
pode ser experimentada, mas sua permanência é uma ilusão.
Nesta perspectiva, a felicidade não está no programa da vida
humana como uma condição.
A fragilidade de nosso próprio corpo, condenado à
decadência e à dissolução, o poder superior da natureza e
nossa relação com o semelhante, com a família e com a
sociedade são as três as fontes de mal estar apresentadas por
Freud. A seu ver, esta última é a origem de maior sofrimento,
deixando-nos antever - como dirá mais tarde Lacan – que: “só o
amor concede o gozo ao desejo”2.
Como medidas paliativas para auxiliar no caminho da vida,
Freud observa que lançamos mão de alguns derivativos
poderosos, de satisfações substitutivas e do uso de
substâncias tóxicas que nos tornam menos sensíveis às
dificuldades. Sabemos, com ele, que nenhuma delas nos leva a
alcançar a felicidade sonhada. Caberá a nós evitar o
sofrimento, colocando a exigência de prazer em segundo plano.
Em última instância, para Freud o mal estar procede do
desacordo entre a exigência pulsional irrestrita e a
satisfação possível e é anterior ao sintoma que, como uma
formação substitutiva do desejo sexual recalcado, fará um
tratamento do mal estar. O recalcado, porém, insistirá sempre
no retorno e a cada retorno o sujeito será convocado a uma
nova substituição, que poderá, inclusive, ser a mesma. Sob o
prisma freudiano, o mal estar, portanto, ex-siste ao sintoma
como substituto do desejo recalcado. A civilização impõe o
princípio de realidade a restringir o princípio de prazer; a
experiência de satisfação pulsional é sempre de caráter
parcial, e a felicidade não é protagonista no teatro da
existência. Opção Lacaniana OnLine 3 Felicidade, por que não?
Lacan situará o mal estar não como efeito da civilização
sobre a pulsão, mas como efeito da linguagem sobre a
estrutura, por não haver proporção sexual. Em seu último
ensino, não há nada de traumático além da linguagem, nada
extralingüístico. O trauma deixa de ser anterior ao sujeito,
como queria Freud em sua concepção do mal estar, para ser
aquilo que pode surgir como efeito do furo produzido pela
incidência de um significante fundante. Desloca-se, portanto,
a perspectiva do trauma. Sua causa é a própria linguagem, o
que nos leva a dizer que há simbólico no real3.
Sob a perspectiva lacaniana, o mal estar é efeito da ação
do encontro do homem com o significante. “O significante é
particularmente responsável pela não relação sexual entre os
seres humanos”4. A incidência da linguagem no corpo configura,
nas margens do real, uma borda imaginária e simbólica. Nesta
borda o sintoma consiste, como necessário, para fazer véu ao
sexo, à não relação sexual. Como aponta Heloisa Caldas em
“Arte de viver”:

[...] por estrutura, ele se define como a deriva em si
que constitui a borda do real. O que por rigor implica
que o sintoma seja, na concepção lacaniana, o mal-estar
na cultura, e não a saída para ele como queria Freud
5.

Enodando real, simbólico e imaginário, o sinthome é, ele
mesmo, fonte de mal estar e um arranjo singular que já anuncia
uma solução possível, na medida em que guarda a história do
sujeito e seus traços únicos. A partir destes traços, destas
marcas singulares, novas soluções poderão advir, poderão ser
criadas.

Transitoriedade e Contingência
Opção Lacaniana OnLine 4 Felicidade, por que não?
Em seu escrito lírico “Sobre a Transitoriedade”6, Freud
descreve uma experiência na qual caminhava pelos campos das
Dolomitas acompanhado de dois amigos. Recebeu com perplexidade
e estranheza o comentário de um deles, um poeta, que se
lamentava porque toda a beleza ali presente em breve
feneceria. A maravilha do cenário e o esplendor da natureza
estavam fadados, inexoravelmente, à extinção. Quando o inverno
chegasse, todas as cores e exuberância iriam se apagar. O que
o poeta amava e admirava lhe parecia, então, despojado de
qualquer valor por causa de seu destino finito.
Freud conclui que a exigência de imortalidade é o que
perturbava o poeta na fruição temporal dos objetos. O poeta
não podia suportar a fugacidade das coisas e a idéia de que
tudo é transitório lhe chegou como antecipação de sua própria
morte.
Pedimos licença a Freud, pois gostaríamos de propor dois
sentidos para o uso do termo transitoriedade, que apreendemos
em nossa leitura de seu texto. Por um lado, parece-nos que
Freud associa a idéia de transitoriedade à de finitude, tendo
como referência a infinitude. Desse modo, o poeta teria como
parâmetro, um objeto eterno, platônico, um eidos, uma coisa
perfeita, um falo não contingente, um ideal. O poeta, afinal,
sofria por atestar a impossibilidade de contar com a suposta e
almejada infinitude, razão pela qual se lamentava. Lamentava a
não eternidade do objeto. Por outro lado – e acreditamos que
esta é sua preciosa idéia – Freud sobrepõe o transitório ao
finito, e afirma ser esta a causa de um valor maior para a
fruição do objeto. É exatamente a fugacidade do objeto que
pode elevar o valor da fruição, se tomarmos a finitude como
possibilidade do novo: “O valor da transitoriedade é o valor
da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma
fruição eleva o valor dessa fruição”7. Nesse sentido, o regime
da transitoriedade implica não contar, em absoluto, com Opção Lacaniana OnLine 5 Felicidade, por que não?
qualquer idéia de infinitude, tal como vivida no quotidiano. E
se a contingência tem a ver com a infinitude, será sob outro
prisma. Não mais o da infinitude do objeto, como aponta
Vieira:

Essa idéia de que haveria o gozo possível e absoluto é a
questão. É sobre ela que incide o que Freud nos fala e
não sobre a finitude dos objetos, afinal todos nós
concordamos que os objetos são finitos8.

Um sujeito que passa por uma grave perda amorosa pode
sucumbir a um estado melancólico. Pode também fazer um
trabalho de luto, mantendo e sustentando todos os detalhes dos
laços com o simbólico e com o imaginário para restabelecer a
relação com o objeto a, para o qual será possível, mais à
frente, dar um substituto de igual ou maior valor. E pode
ainda tirar outras conseqüências. Um analisando nos relata uma
mudança de posição, efetuada após fazer o luto da perda de seu
pai. A partir deste encontro com o real, deixa de ser sempre
aluno e inaugura uma posição de mestria.
Notemos, porém, que o modo de defesa do qual o poeta
lança mão evoca, em Freud, a lembrança de suas concepções
sobre a melancolia. Mas seria o amigo poeta um melancólico ou
um sujeito nostálgico a suspirar pela infinitude das coisas? O
poeta sofre de certa nostalgia do infinito e o falo não exerce
sua função contingente.
Um ano após essa caminhada de Freud com seus amigos,
irrompe o conflito da primeira guerra mundial. A tese de que o
homem é lobo de si mesmo parece confirmada. No entanto,
ponderamos que, por suas infinitas possibilidades de fazer com
o finito do objeto, melhor dizendo: com o finito do gozo, pode
manter a seiva vital e o entusiasmo. Opção Lacaniana OnLine 6 Felicidade, por que não?
Para tentar responder ao que seria a felicidade sob a
perspectiva da psicanálise, queremos propor, então, uma
articulação entre a transitoriedade do gozo e o falo como
contingente.
Em Mais Ainda (1972-1973), Lacan sustenta que, diante do
impossível da relação sexual, o sujeito só pode contar com o
falo pela via da contingência:

O Falo – tal como a análise o aborda como ponto chave, o
ponto extremo do que se enuncia como causa de desejo – a
experiência analítica para de não escrevê-lo. É nesse
para de se escrever que reside a ponta do que chamei de
contingência9.

Fora da contingência fálica, a transitoriedade - a
finitude - é experimentada pelo poeta como uma espécie de
privação irreversível, capaz de “melancolizar”. Foi pela via
do necessário como sintoma/antecipação que o poeta deu
tratamento a esta ponta de real: o objeto a. Na verdade, o
poeta interpreta a fugacidade como privação, como capricho do
Outro.
Em seu artigo, “O tempo como contingência na experiência
analítica”, Jésus Santiago, nos faz lembrar que:

[...] na psicanálise o real é sem lei porque a certeza
que se obtém desse real está sempre condicionada pela
contingência, pelo que se apresenta como não essencial e
definitivamente variável10.

Pois bem, assim como o finito se coloca na e pela via da
contingência, o transitório tem relação com o falo, e o falo é
contingente. Digamos, então, que teríamos um finito-ilimitado
em que um número finito de componentes produz uma diversidade
praticamente ilimitada de possibilidades. Opção Lacaniana OnLine 7 Felicidade, por que não?
O real do inconsciente é a impossibilidade de escrever a
relação entre os sexos, impossibilidade só demonstrada pela
contingência do encontro possível. O amor, como suplemento à
impossibilidade da não relação não se define, portanto, como
complementação. O sujeito encontra o amor como possibilidade.
E, por que não, também, a felicidade? Assim, a contingência é

[...] o que submete a relação sexual a ser, para o
falante, apenas o regime do encontro. Só como
contingência é que, para psicanálise, o Falo, reservado
nos tempos antigos aos Mistérios, parou de não se
escrever. Nada mais11.
______________________________________________________________
1 Aderente da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) – Seção Rio de Janeiro.
2 Lacan, J. (2005[1962-1963]). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.
3 Laurent, E. (2002, junho/julho). “O Avesso do trauma”. Virtuália -
Revista digital da EOL, (6). Recuperado em mar. 2007, de
http://www.eol.org.ar/virtualia.

4 Miller J.-A. (2007, dezembro). “A estrutura côisica”. Opção Lacaniana –
Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, (50), p. 29.
5 Caldas, H. (2008, julho). “A arte de viver”. Publicado no boletim 03 do
site do XVII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano. Psicanálise e
Felicidade: Sintoma, efeitos terapêuticos e algo mais. Recuperado em jul.
2008,http://www.ebp.org.br/XVII_encontro_brasileiro/felicidade/boletim03_1.

6 Freud, S. (1969[1916]). "Sobre a transitoriedade" (1916). In Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol.
XIV. Rio de Janeiro: Imago.
7 Idem. Ibidem, p. 346.
8 Vieira, M.A. [2007]. Aula ministrada no seminário “A política do sintoma”
do Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro, em 2007.
(Inédito).
9 Lacan, J. (1985[1972-1973]). O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, p. 126.
10 Santiago, J. (2004). “O Real sem lei e o tempo”. In O tempo, o objeto e o
avesso, ensaios de filosofia e psicanálise. Belo Horizonte: Autêntica.
11 Lacan, J. (1985[1972-1973]). Op. cit., p.127.

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