quarta-feira, 20 de março de 2013

O que é etnocentrismo



Everardo P. Guimarães Rocha
O QUE É
ETNOCENTRISMO
1ª edição 1984
5ª edição
editora brasiliense
Copyright © Everardo P. Guimarães Rocha
Capa e ilustrações:
“Pineaple Fields Forever”
Revisão:
José G. Arruda Filho
José W.S. Moraes
ISBN: 85-11-01124-2
editora brasiliense s.a
rua da consolação, 2697
01416 – são paulo – sp.
Fone (011)280-1222
Telex 11 33271 DBLM BR
ÍNDICE
Pensando em partir
Primeiros movimentos
O passaporte
Voando alto
A volta por cima
Indicações para leitura
Agradeço à leitura, aos comentários críticos e à amizade de:
Agenor Miranda Rocha, Ana Paula Carvalho de Oliveira,
Angela Menezes Pimentel, Angeluccia Bernardes Haebert,
Anthony Seeger, Carlos Alberto M. Pereira, Claudia Lebelson
Sterental, Heloísa Fontes Leuzinger, José Carlos Rodrigues,
Maria Alice R. de Carvalho, Maria Madalena Diégues
Quintella, Patrícia Sobral de Miranda, Roberto da Matta,
Rosane Manhães Prado, Rubem Rocha Filho.
PENSANDO EM PARTIR
Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o
nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e
todos os outros são pensados e sentidos através dos
nossos valores, nossos modelos, nossas definições do
que é a existência. No plano intelectual, pode ser visto
como a dificuldade de pensarmos a diferença; no
plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo,
hostilidade, etc. Perguntar sobre o que é
etnocentrismo é, pois, indagar sobre um fenômeno
onde se misturam tanto elementos intelectuais e
racionais quanto elementos emocionais e afetivos. No
etnocentrismo, estes dois planos do espírito humano –
sentimento e pensamento – vão juntos compondo um
fenômeno não apenas fortemente arraigado na história
das sociedades como também facilmente encontrável
no dia-a-dia das nossas vidas.
Assim, a colocação central sobre o etnocentrismo
mecanismos, as formas, os caminhos e razões, enfim,
pelos quais tantas e tão profundas distorções se
perpetuam nas emoções, pensamentos, imagens e
representações que fazemos da vida daqueles que são
diferentes de nós. Este problema não é exclusivo de
uma determinada época nem de uma única sociedade.
Talvez o etnocentrismo seja, dentre os fatos humanos,
um daqueles de mais unanimidade.
Como uma espécie de pano de fundo da questão
etnocêntrica temos a experiência de um choque
cultural. De um lado, conhecemos um grupo do “eu”,
o “nosso” grupo, que come igual, veste igual, gosta de
coisas parecidas, conhece problemas do mesmo tipo,
acredita nos mesmos deuses, casa igual, mora no
mesmo estilo, distribui o poder da mesma forma,
empresta à vida significados em comum e procede,
por muitas maneiras, semelhantemente. Aí, então, de
repente, nos deparamos com um “outro”, o grupo do
“diferente” que, às vezes, nem sequer faz coisas como
as nossas ou quando as faz é de forma tal que não
reconhecemos como possíveis. E, mais grave ainda,
este “outro” também sobrevive à sua maneira, gosta
dela, também está no mundo e, ainda que diferente,
também existe.
Este choque gerador do etnocentrismo nasce,
talvez, na constatação das diferenças. Grosso modo,
um mal-entendido sociológico. A diferença é
ameaçadora porque fere nossa própria identidade
cultural. O monólogo etnocêntrico pode, pois, seguir
um caminho lógico mais ou menos assim: Como
aquele mundo de doidos pode funcionar? Espanto!
Como é que eles fazem? Curiosidade perplexa? Eles
só podem estar errados ou tudo o que eu sei está
errado! Dúvida ameaçadora?! Não, a vida deles não
presta, é selvagem, bárbara, primitiva! Decisão hostil!
O grupo do “eu” faz, então, da sua visão a única
possível ou, mais discretamente se for o caso, a
melhor, a natural, a superior, a certa. O grupo do
“outro” fica, nessa lógica, como sendo engraçado,
absurdo, anormal ou ininteligível. Este processo
resulta num considerável reforço da identidade do
“nosso” grupo. No limite, algumas sociedades
chamam-se por nomes que querem dizer “perfeitos”,
“macacos da terra” ou “ovos de piolho”. De qualquer
forma, a sociedade do “eu” é a melhor, a superior.
representada como o espaço da cultura e da
civilização por excelência. É onde existe o saber, o
trabalho, o progresso. A sociedade do “outro” é
atrasada. E o espaço da natureza. São os selvagens, os
bárbaros. São qualquer coisa menos humanos, pois,
estes somos nós. O barbarismo evoca a confusão, a
desarticulação, a desordem.
O selvagem é o que vem da floresta, da selva que
lembra, de alguma maneira, a vida animal. O “outro”
é o “aquém” ou o “além”, nunca o “igual” ao “eu”.
O que importa realmente, neste conjunto de
idéias, é o fato de que, no etnocentrismo, uma mesma
atitude informa os diferentes grupos. O etnocentrismo
não é propriedade, como já disse, de uma única
sociedade, apesar de que, na nossa, revestiu-se de um
caráter ativista e colonizador com os mais diferentes
empreendimentos de conquista e destruição de outros
povos.
A atitude etnocêntrica tem, por outro lado, um
elucidativo para a compreensão destas maneiras
exacerbadas e até cruéis de encarar o “outro”. Existe
realmente, paralelo à violência que a atitude
etnocêntrica encerra, o pressuposto de que o “outro”
deva ser alguma coisa que não desfrute da palavra
para dizer algo de si mesmo.
Creio que é necessário examinar isto melhor e
vou fazê-lo através de uma pequena estória que me
parece exemplar.
Ao receber a missão de ir pregar junto aos
selvagens um pastor se preparou durante dias para vir
ao Brasil e iniciar no Xingu seu trabalho de
evangelização e catequese. Muito generoso, comprou
para os selvagens contas, espelhos, pentes, etc.;
modesto, comprou para si próprio apenas um
moderníssimo relógio digital capaz de acender luzes,
alarmes, fazer contas, marcar segundos, cronometrar e
até dizer a hora sempre absolutamente certa, infalível.
Ao chegar, venceu as burocracias inevitáveis e, após
alguns meses, encontrava-se em meio às sociedades
tribais do Xingu distribuindo seus presentes e sua
lugares de sua pregação e mostrava-se admirado de
muitas coisas, especialmente, do barulhento, colorido
e estranho objeto que o pastor trazia no pulso e
consultava freqüentemente. Um dia, por fim, vencido
por insistentes pedidos, o pastor perdeu seu relógio
dando-o, meio sem jeito e a contragosto, ao jovem
índio.
A surpresa maior estava, porém, por vir. Dias
depois, o índio chamou-o apressadamente para
mostrar-lhe, muito feliz, seu trabalho. Apontando
seguidamente o galho superior de uma árvore
altíssima nas cercanias da aldeia, o índio fez o pastor
divisar, não sem dificuldade, um belo ornamento de
penas e contas multicolores tendo no centro o relógio.
O índio queria que o pastor compartilhasse a alegria
da beleza transmitida por aquele novo e interessante
objeto. Quase indistinguível em meio às penas e
contas e, ainda por cima, pendurado a vários metros
de altura, o relógio, agora mínimo e sem nenhuma
função, contemplava o sorriso inevitavelmente
amarelo no roso do pastor. Fora-se o relógio.
aos superiores seus relatórios e, naquela manhã, dar
uma última revisada na comunicação que iria fazer em
seguida aos seus colegas em congresso sobre
evangelização. Seu tema: “A catequese e os
selvagens”. Levantou-se, deu uma olhada no relógio
novo, quinze para as dez. Era hora de ir. Como que
buscando uma inspiração de última hora examinou
detalhadamente as paredes do seu escritório. Nelas,
arcos, flechas, tacapes, bordunas, cocares, e até uma
flauta formavam uma bela decoração. Rústica e sóbria
ao mesmo tempo, trazia-lhe estranhas lembranças.
Com o pé na porta ainda pensou e sorriu para si
mesmo. Engraçado o que aquele índio foi fazer com o
meu relógio.
Esta estória, não necessariamente verdadeira,
porém, de toda evidência, bastante plausível,
demonstra alguns dos importantes sentidos da questão
do etnocentrismo.
Em primeiro lugar, não é necessário ser nenhum
detetive ou especialista em Antropologia Social (ou
ainda pastor) para perceber que, neste choque de
funções estéticas, ornamentais, decorativas de objetos
que, na cultura do “outro”, desempenhavam funções
que seriam principalmente técnicas. Para o pastor, o
uso inusitado do seu relógio causou tanto espanto
quanto o que causaria ao jovem índio conhecer o uso
que o pastor deu a seu arco e flecha. Cada um
“traduziu” nos termos de sua própria cultura o
significado dos objetos cujo sentido original foi
forjado na cultura do “outro”. O etnocentrismo passa
exatamente por um julgamento do valor da cultura do
“outro” nos termos da cultura do grupo do “eu”.
Em segundo lugar, esta estória representa o que
se poderia chamar, se isso fosse possível, de um
etnocentrismo “cordial”, já que ambos – o índio e o
pastor – tiveram atitudes concretas sem maiores
conseqüências. No mais das vezes, o etnocentrismo
implica uma apreensão do “outro” que se reveste de
uma forma bastante violenta. Como já vimos, pode
colocá-lo como “primitivo”, como “algo a ser
destruído”, como “atraso ao desenvolvimento”,
(fórmula, aliás, muito comum e de uso geral no
etnocídio, na matança dos índios).
Assim, por exemplo, um famoso cientista do
início do século, Hermann von Ihering, diretor do
Museu Paulista, justificava o extermínio dos índios
Caingangue por serem um empecilho ao
desenvolvimento e à colonização das regiões do sertão
que eles habitavam. Tanto no presente como no
passado, tanto aqui como em vários outros lugares, a
lógica do extermínio regulou, infinitas vezes, as
relações entre a chamada “civilização ocidental” e as
sociedades tribais. Isso lembra o comentário,
tristemente exemplar, de uma criança, de um grande
centro urbano, que, de tanto ouvir absurdos sobre o
índio, seja em casa, seja nos livros didáticos, seja na
indústria cultural, acabou por defini-los dizendo: “o
índio é o maior amigo do homem”.
Em terceiro lugar, a estória ainda ensina que o
“outro” e sua cultura, da qual falamos na nossa
sociedade, são apenas uma representação, uma
imagem distorcida que é manipulada como bem
entendemos. Ao “outro” negamos aquele mínimo de
autonomia necessária para falar de si mesmo. Tudo se
passa como se fôssemos autores de filmes e livros de
é cruel, grotesca e monstruosa uma civilização de
marcianos que capturou nosso foguete. Também,
porque somos os autores destes filmes e livros, nada
nos impede de criarmos um marciano simpático,
inteligente e super-poderoso que com incrível perícia
salva a Terra de uma colisão fatal com um meteoro
gigante. Claro, como o marciano não diz nada, posso
pensar dele o que quiser.
Assim, de um ponto de vista do grupo do “eu”,
os que estão de fora podem ser brabos e traiçoeiros
bem como mansos e bondosos. Aliás, “brabos e
“mansos” são dois termos que muitas vezes foram
empregados no Brasil para designar o “humor” de
determinados animais e o “estado” de várias tribos de
índios ou de escravos negros.
A figura do louco, por exemplo, na nossa
sociedade, é manipulada por uma série de
representações que oscilam entre estes dois pólos,
sendo denegrida ou exaltada – como o marciano – ao
sabor das intenções que se tenha. Isto não só ao longo
da história, mas também em diferentes contextos no
alguns momentos da história o louco foi acorrentado e
torturado, em outros, foi feito portador de uma palavra
sagrada e respeitada.
Aqueles que são diferentes do grupo do eu – os
diversos “outros” deste mundo – por não poderem
dizer algo de si mesmos, acabam representados pela
ótica etnocêntrica e segundo as dinâmicas ideológicas
de determinados momentos.
Na nossa chamada “civilização ocidental”, nas
sociedades complexas e industriais contemporâneas,
existem diversos mecanismos de reforço para o seu
estilo de vida através de representações negativas do
“outro”. O caso dos índios brasileiros é bastante
ilustrativo, pois alguns antropólogos estudiosos do
assunto já identificaram determinadas visões básicas,
determinados estereótipos, que são permanentemente
aplicados a estes índios.
Eu mesmo realizei, há alguns anos, um estudo
sobre as imagens do índio nos livros didáticos de
História do Brasil. Estes livros têm importância
fundamental na formação de uma imagem do índio,
alunos pré-universitários nos mais diversos recantos
do país. Alguns destes livros alcançam tiragens
altíssimas e já tiveram mais de duzentas edições.
Através deles circula um “saber” altamente
etnocêntrico – honrosas exceções – sobre os índios.
Os livros didáticos, em função mesmo do seu
destino e de sua natureza, carregam um valor de
autoridade, ocupam um lugar de supostos donos da
verdade. Sua informação obtém este valor de verdade
pelo simples fato de que quem sabe seu conteúdo
passa nas provas. Nesse sentido, seu saber tende a ser
visto como algo “rigoroso”, “sério” e “científico”. Os
estudantes são testados, via de regra, em face do seu
conteúdo, o que faz com que as informações neles
contidas acabem se fixando no fundo da memória de
todos nós. Com ela se fixam também imagens
extremamente etnocêntricas.
Alguns livros colocavam que os índios eram
incapazes de trabalhar nos engenhos de açúcar por
serem indolentes e preguiçosos. Ora, como aplicar
adjetivos tais como “indolente” e “preguiçoso”
sua, para a riqueza de um colonizador que nem sequer
é seu amigo: antes, muito pelo contrário, esta recusa é,
no mínimo, sinal de saúde mental.
Outro fato também interessante é que um número
significativo de livros didáticos começa com a
seguinte informação: os índios andavam nus. Este
“escândalo” esconde, na verdade, a nossa noção
absolutizada do que deva ser uma roupa e o que, num
corpo, ela deve mostrar e esconder. A estória do nosso
amigo missionário serviu para a constatação das
dificuldades de definir o sentido de um objeto – o
relógio ou o arco – fora dos seus contextos culturais.
Da mesma maneira, nada garante que os índios andem
nus a não ser a concepção que eles mesmos teriam de
nudez e vestimenta.
Assim, como o “outro” é alguém calado, a quem
não é permitido dizer de si mesmo, mera imagem sem
voz, manipulado de acordo com desejos ideológicos, o
índio é, para o livro didático, apenas uma forma vazia
que empresta sentido ao mundo dos brancos. Em
outras palavras, o índio é “alugado” na História do
O primeiro papel que o índio representa é no
capítulo do descobrimento. Ali, ele aparece como
“selvagem”, “primitivo”, “pré-histórico”,
“antropófago”, etc. Isto era para mostrar o quanto os
portugueses colonizadores eram “superiores” e
“civilizados”.
O segundo papel do índio é no capítulo da
catequese. Nele o papel do índio é o de “criança”,
“inocente”, “infantil”, “almas-virgens”, etc., para
fazer parecer que os índios é que precisavam da
“proteção” que a religião lhes queria impingir.
O terceiro papel é muito engraçado. E no
capítulo “Etnia brasileira”. Se o índio já havia
aparecido como “selvagem” ou “criança”, como iriam
falar de um povo – o nosso – formado por
portugueses, negros e “crianças” ou um povo formado
por portugueses, negros e “selvagens”? Então aparece
um novo papel e o índio, num passe da mágica
etnocêntrica, vira “corajoso”, “altivo”, cheio de “amor
à liberdade”.
Assim são as sutilezas, violências, persistências
multiplicam nos nossos cotidianos. A “indústria
cultural” – TV, jornais, revistas, publicidade, certo
tipo de cinema, rádio – está freqüentemente
fornecendo exemplos de etnocentrismo. No universo
da indústria cultural é criado sistematicamente um
enorme conjunto de “outros” que servem para
reafirmar, por oposição, uma série de valores de um
grupo dominante que se auto-promove a modelo de
humanidade.
Nossas próprias atitudes frente a outros grupos
sociais com os quais convivemos nas grandes cidades
são, muitas vezes, repletas de resquícios de atitudes
etnocêntricas. Rotulamos e aplicamos estereótipos
através dos quais nos guiamos para o confronto
cotidiano com a diferença. As idéias etnocêntricas que
temos sobre as “mulheres”, os “negros”, os
“empregados”, os “paraíbas de obra”, os “colunáveis”,
os “doidões”, os “surfistas”, as “dondocas”, os
“velhos”, os “caretas”, os “vagabundos”, os gays e
todos os demais “outros” com os quais temos
familiaridade, são uma espécie de “conhecimento” um
“saber”, baseado em formulações ideológicas, que no
fundo transforma a diferença pura e simples num
juízo de valor perigosamente etnocêntrico.
Mas, existem idéias que se contrapõem ao
etnocentrismo. Uma das mais importantes é a de
relativização. Quando vemos que as verdades da vida
são menos uma questão de essência das coisas e mais
uma questão de posição: estamos relativizando.
Quando o significado de um ato é visto não na sua
dimensão absoluta mas no contexto em que acontece:
estamos relativizando. Quando compreendemos o
“outro” nos seus próprios valores e não nos nossos:
estamos relativizando. Enfim, relativizar é ver as
coisas do mundo como uma relação capaz de ter tido
um nascimento, capaz de ter um fim ou uma
transformação. Ver as coisas do mundo como a
relação entre elas. Ver que a verdade está mais no
olhar que naquilo que é olhado. Relativizar é não
transformar a diferença em hierarquia, em superiores
e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na sua
dimensão de riqueza por ser diferença.
A nossa sociedade já vem, há alguns séculos,
ciência chama-se Antropologia Social. Ela, como de
resto quase todas as atitudes que temos frente ao
“outro”, nasceu marcada pelo etnocentrismo. Ela
também possui o compromisso da procura de superálo.
Diferentemente do saber de “senso comum”, o
movimento da Antropologia é no sentido de ver a
diferença como forma pela qual os seres humanos
deram soluções diversas a limites existenciais
comuns. Assim, a diferença não se equaciona com a
ameaça, mas com a alternativa. Ela não é uma
hostilidade do “outro”, mas uma possibilidade que o
“outro” pode abrir para o “eu”.
Assim, gostaria, agora, de acompanhar alguns
movimentos pelos quais passou a Antropologia neste
jogo de refletir sobre a diferença. Entender alguns
movimentos deste jogo é acompanhar a superação do
etnocentrismo na arena do intelecto e da razão e na
arena da emoção e do sentimento. Acredito até que,
num certo nível, esta superação que ocorre na ciência
que é a ponta de lança do conhecimento do “outro”
possa, no plano da sociedade mais geral, ser traduzida
num humanismo de olhar mais conseqüente. A
conhecimento antropológico, no mínimo, como
alternativa e testemunho de muitos “outros”, aqui e
pelo mundo afora, cujas formas de existência serão
sempre a presença do humano em sua singularidade.
O percurso que, na Antropologia, busca a
superação do etnocentrismo implicou diferentes
movimentos e pode, com maior ou menor grau de
dificuldade, ser observado a partir de vários ângulos.
Optei por traçar o caminho em torno de algumas
visões do conceito de “cultura” dentro da
Antropologia. Alguém já disse que o antropólogo é
aquele que pensa sobre as questões da cultura
humana. De fato, seguindo a pista dada pelos
diferentes conceitos de cultura de que a Antropologia
dispõe perceberemos como esta foi vista de maneiras
mais etnocêntricas que cederam espaço a outras visões
mais relativizadoras.
Antes, porém, de ver isto tudo – os conceitos de
cultura nas teorias formais da Antropologia –, convém
fazer rápida passagem pelo panorama de uma época
que acho ter sido fundamental para a constituição de
expedições, espantos, colonizações, alucinações,
sacações e aberturas. E um momento básico de
encontro com o “outro”. O “velho” mundo buscando
coisas cujas dimensões talvez nem soubesse. O
“novo” mundo um tanto indefeso frente ao furacão
que começava a envolvê-lo. Povos assustados com o
olhar o “outro” frente a frente. Momento marcante a
exigir que se começasse a pensar a diferença, porque
esta já se impunha na força de sua radicalidade.
PRIMEIROS MOVIMENTOS
As aulas apenas começaram. E de manhã e a
agitação nos corredores da Escola de Sagres – menina
dos olhos do rei – cessa completamente. A exposição
do professor é acompanhada com a máxima atenção e
versa sobre os limites do mundo. O mestre,
compenetrado e falante, faz uma análise das diferentes
teorias sobre o que poderia ser encontrado pelo
navegante que se aventurasse em linha reta mar
adentro. Buracos sem fundo, monstros, serpentes,
quedas no vazio e a quase total impossibilidade de
voltar. Mesmo com as novas tecnologias, dizia o
professor aos seus alunos pilotos e comandantes
supertreinados, o risco era imenso. A bússola e o
astrolábio de complexo manejo eram armas ainda
pequenas frente a perigos tamanhos.
Neste Portugal do final do século XV e início do
século XVI discute-se e especula-se, nos centros
dilatação do império e à conseqüente alteração das
fronteiras do mundo conhecido. O que existe para
além da Europa? Quem habita os espaços do outro
mundo? Como navegar, que era preciso, mesmo sem
viver, que aí já não era mais preciso!
As novas técnicas empolgavam os alunos. Os
financiamentos eram conseguidos para pesquisas e
explorações. As verbas da grande potência corriam
soltas para a ampliação do universo e do domínio
português até sobre coisas as quais ainda não se sabia
o que seriam.
Assim, aqui nascia, para o pensamento ocidental,
um conjunto radical de novas questões, interesses,
paradoxos. O mundo do “eu” se via obrigado, frente
ao “outro”, a pensar a diferença. O que significaria o
“novo mundo”? Seriam “seres humanos” os seus
habitantes ou uma versão “extraterrestre” modelo
século XVI? Tal como um “E. T.” o nativo do “novo
mundo” teria alma? Lei? Poder? Política? Deus? Rei?
Amor? Amizade? Casamento? Até o próprio Camões
numa passagem de Os Lusíadas, poema épico aos
“Que gente será esta? Em si diziam;
Que costumes, que lei, que rei teriam?”.
Quantas questões se colocavam para aquela
gente naquele tempo. Aqui se inicia a busca dos
modelos explicativos da diferença. Muita violência,
espanto e perplexidade iriam regular as relações entre
povos, sociedades e culturas tão impressionantemente
diferentes a ponto de uma negar, freqüentemente, à
outra a própria natureza humana.
Destes encontros, entre a sociedade do “eu” e a
sociedade do “outro”, o século XVI constituiu-se em
uma das arenas principais. Ninguém entendia nada,
num certo sentido, mas ali esboçava-se algo que seria
uma constante: as formas pelas quais as diferenças
foram pensadas. Isto é a Antropologia Social ou
Cultural; um esforço de compreensão da diferença, de
comparação entre as sociedades sem pensar que uma
delas deva ser a “dona da verdade”. Em que pese a
Antropologia ter nascido no chamado mundo
ocidental seu esforço é no sentido de não torná-lo
absoluto. O objetivo deste livro sobre o etnocentrismo
superado, se não para todos ao menos dentro da
Antropologia.
Vamos procurar ver as principais formas pelas
quais a Antropologia pensou a diferença ao longo de
sua imensa literatura e da amplitude de seus estudos e
reflexões. Do palco do encontro inicial no século XVI
fica marcada a idéia de uma forte perplexidade. E é
esta perplexidade que vai, pouco a pouco, cedendo
lugar a novos conjuntos de idéias, sempre mais
matizados, procurando compreender as diferenças
que, a cada vez, vão assumindo novas formas.
O primeiro destes pensamentos, ocorridos na
Antropologia e que procuram explicar a diferença, é
conhecido como Evolucionismo.
A noção de evolução é um marco fundamental
para o pensamento antropológico. Vai aparecer como
idéia básica para toda uma grande fase da teoria
antropológica e, na história dos saberes sobre o ser
humano, tem um lugar de destaque, quase que como
uma âncora, para os trabalhos e estudos que
procuravam fazer da Antropologia uma ciência.
perplexidade, nos séculos XV e XVI, encontra, nos
séculos XVIII e XIX, uma nova explicação: o outro é
diferente porque possui diferente grau de evolução.
Mas, o que é, exatamente, evolução? Evolução,
no seu sentido mais amplo, equivale a
desenvolvimento. É a transformação progressiva no
sentido da realização completa de algo latente. É o
caminho da manifestação plena do que estava oculto.
Evolução, em outras palavras, é o desenvolvimento
obrigatório de uma determinada unidade que revela,
pelo processo evolutivo, uma segunda forma,
mostrando, então, sua potencialidade. É um processo
permanente onde uma unidade qualquer se transforma
numa segunda que, por sua vez, se transforma numa
terceira e assim sucessivamente.
A noção de evolução pode estar ligada ao
orgânico, ao nível biológico do desenvolvimento. Este
compromisso da idéia de evolução com o crescimento
e a formação dos organismos. tem no livro A Origem
das Espécies, de Darwin, em plena metade do século
XIX, sua formulação clássica. Mas, a esta noção
pensamentos e discussões filosóficas dos chamados
iluministas do século XVIII.
Tudo isso forma um campo intelectual, um
espaço correto para um tipo de pensamento que,
então, iria contagiar todos os estudos sobre as
sociedades humanas. O evolucionismo biológico e o
evolucionismo social se encontram e o segundo passa
ser o novo modelo explicador da diferença entre o
“eu” e o “outro”. O resultado disso, é claro, vai ser a
permanência do etnocentrismo agora traduzido na
sociedade do “eu” como o estágio mais adiantado e a
sociedade do “outro” como o estágio mais atrasado.
Mas isto é o fim da estória e é importante que
possamos ver mais a fundo o sistema de idéias que se
monta em torno da idéia de evolução.
Para o evolucionismo antropológico a noção de
progresso torna-se fundamental, pois é no seu rumo
que a história do homem se faz. Acredita-se na
unidade básica da espécie humana e o fator tempo
passa a ser bastante importante. Progresso, evolução,
avanço no tempo. O homem a caminho. A direção é a
Saindo de estádios mais primitivos numa
trajetória de permanente progresso onde o tempo é a
teia onde se tece a evolução. Assim, a origem da
humanidade tem de ser num passado longínquo para
que as etapas se sucedam na direção de uma
civilização mais e mais avançada, mais e mais
absoluta em suas conquistas.
E foi toda uma geração de antropólogos que, em
meados do século XIX – na Inglaterra, Sir James
George Frazer e Sir Edward Burnett Tylor e, nos
Estados Unidos, Lewis Morgan –, começou a produzir
seus estudos consciente de que a presença do homem
sobre a terra remontava a uma idade muito antiga.
Sabedores desta origem remota dos antepassados
procuravam escalonar as etapas de evolução das
sociedades que encontravam pelo mundo.
A lógica do raciocínio é simples. Numa palavra:
transformar sociedades contemporâneas em retratos
do passado. Explicando melhor, a Inglaterra do século
XIX era, de fato, contemporânea dos aborígenes
australianos, por exemplo. Ao afirmar que todas as
progresso, os evolucionistas pensavam que os
australianos haviam parado num estádio “primitivo” e
os ingleses avançado para um estádio “civilizado”. É
claro que quem assim pensava eram os ingleses, que
em plena época da rainha Vitória, o século XIX, a era
vitoriana, espalhavam militarmente seu império pelo
mundo inteiro. Também podiam pensar assim norteamericanos
e outros europeus que se sentiam fazendo
parte de uma civilização absoluta, para eles, a melhor
por definição.
Mas, restava ainda um problema teórico. A
escolha e a definição dos critérios pelos quais seria
possível medir o estádio de “avanço” de cada uma das
sociedades existentes. Era necessário um instrumento
comparativo tipo um “medidor” de progresso. Sim,
porque se compararmos Brasil, Estados Unidos e
Uruguai e o “medidor” for “futebol”, por exemplo,
teríamos o Brasil como o mais “civilizado”, o Uruguai
como intermediário e os Estados Unidos no estádio
“primitivo”. Se o “medidor” for o número de grupos
de rock a ordem já é outra e assim tantas ordenações
da hierarquia das culturas quanto os “medidores”
Faz-se, então, fundamental a criação de algo que
fizesse as vezes de critério, tendo aceitação, lógica e
possibilidade para o estudo comparativo. Acredito que
a solução está no próprio conceito de cultura adotado
pelos evolucionistas. Este conceito é, talvez, o mais
famoso da Antropologia e, dentre mais de cento e
cinqüenta definições da cultura que a disciplina
produziu, pode-se dizer que é, no mínimo, um
clássico. Ele aparece no livro A Origem das Culturas
de Sir Edward Tylor que, logo na primeira página, diz
o seguinte:
“Cultura ou civilização, no seu sentido etnográfico
estrito, é este todo complexo que inclui
conhecimento, crença, arte, leis, moral, costumes e
quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos
pelo homem enquanto membro da sociedade”.
Se pensarmos nesta definição podemos constatar
que transparece uma visão da cultura como uma série
de itens identificáveis, unitários, separados, que
formam um “todo complexo”. Também transparece
uma espécie de princípio geral, uma lei, dentro da
bom lembrar o missionário do primeiro capítulo. O
que é Arte? Lei? Moral?, etc. Sabemos que são
relativos. Que, em certas sociedades, os conteúdos
destas idéias talvez nem existam. Para os
evolucionistas, no entanto, estas idéias eram nítidas e
claras. Extraídas dos seus contextos eles as
absolutizavam e assumiam como se as idéias de sua
própria sociedade fossem não apenas universais como
as melhores e mais bem acabadas.
Postulavam uma unidade entre as culturas como
se todas tivessem de dar conta de problemas idênticos
e que, mais cedo ou mais tarde, os “primitivos”
chegariam às formas da “civilização”. Assumiam que
os itens da cultura se assemelhavam onde quer que se
encontrasse a cultura. O que fosse importante para sua
sociedade – a sociedade do “eu” – seria importante
para todas as demais – as sociedades do “outro”.
Lembram um pouco o que dizia uma autoridade há
alguns anos: “o que é bom para os Estados Unidos é
bom para o Brasil”.
Ainda mais, postulavam uma permanência, uma
pensados como uma linha de evolução a partir de um
pólo “primitivo” e, por via do progresso, chegando ao
pólo “civilizado”.
A mudança nas sociedades se daria pela
invenção, conseqüência do aperfeiçoamento do
espírito científico. Este espírito teria, evidentemente,
soprado muito mais na sociedade do “eu” de modo a
que, por trás do ser “civilizado”, fôssemos
encontrando séries de homens até seu irmão mais
“primitivo”. Isto faz com que os evolucionistas
pudessem pensar o “selvagem” sem conhecê-lo de
perto, pois ele era visto como uma fase passada de
mim mesmo. Algo assim como se fosse possível saber
a reação das crianças apenas porque um dia fomos
crianças. É uma questão de sentar e meditar: “se eu
fosse um primitivo... como faria isto ou aquilo?”.
Diz uma anedota que Sir James Frazer,
importante antropólogo da época, ao ser perguntado
se falaria algum dia com um selvagem, respondeu
muito simples e sinceramente: “Deus me livre!”. De
fato, a sua teoria dispensava qualquer contato com o
culturas nos estádios já predeterminados da evolução.
O etnocentrismo estava em achar que o “outro” era
completamente dispensável como elemento de
transformação da teoria. A relativização não tinha
espaço. Lembra o cowboy que perdeu seu cavalo e
desesperado sentou e meditou: “se eu fosse um cavalo
... para onde eu teria ido?” Claro, ele nunca achou o
cavalo. Assim como os evolucionistas ao dispensarem
o “trabalho de campo” e a relativização, acreditandose
capazes de ter todo o conhecimento do “outro”
dentro de si mesmos, acabaram impossibilitados de
achar alguns “cavalos” importantes.
Dessa maneira, temos dois marcos básicos. No
extremo inferior os povos “primitivos” e no extremo
superior os povos ditos “civilizados”. Cada item da
cultura serve para demonstrar o percurso do
primitivismo à civilização e encontrar para as
sociedades um lugar neste caminho. Os itens culturais
faziam papel de régua com a qual se media a distância
histórica entre os povos.
A contribuição de um dos antropólogos mais
Estudando invenções, descobertas e instituições
ele procurou ordenar os estádios evolutivos em
períodos que caracterizam as fases passadas pelas
culturas humanas. Para Morgan, a “acumulação do
saber” e o progresso das “faculdades mentais e morais
dos homens” vão marcando as mudanças de estádios
no caminho da evolução.
Avaliando itens culturais tais como: “governo”,
“meios de subsistência”, “arquitetura”, “religião”,
“propriedade”, “família”, etc., divide os cem mil anos
de história humana em três períodos básicos –
selvageria, barbárie e civilização. Não é preciso dizer
que a sociedade dele mesmo ocupava exemplarmente
o lugar destinado à mais alta civilização.
Dessa forma, aqui no evolucionismo,
encontramos ainda, fortemente entrincheirada, a visão
etnocêntrica. Mas, paradoxalmente, neste mesmo
evolucionismo se armam as bases que virão, pouco a
pouco, minando o etnocentrismo dentro da
Antropologia. Como pode ser isto? Como um dos
movimentos teóricos mais marcados pela ideologia da
Acredito que a resposta é simples. Ou, pelo
menos, a hipótese que coloco aqui é simples. A
ausência de um pensamento sistemático sobre o
“outro”, a visão caótica do “outro”; o medo oculto, o
espanto, a falta ou excesso de significações do
“outro”, podem ser mais etnocêntricos do que a
reflexão sobre o “outro”. Se o “eu” negava, num
primeiro momento, participar da mesma “natureza”
humana do “outro”, vê-lo como atrasado e primitivo,
mas dotado de uma “natureza” humana da qual
também participo, já apresenta alguma diferença.
Menos evoluído mas, nem “deus” nem “diabo”, um
“outro” tão humano quanto o “eu”.
Aqui fica um dilema interessante: dois sistemas
de idéias – o “espanto” do século XVI e o
“evolucionismo” do século XIX – são igualmente
inadequados, pois que ambos são etnocêntricos na sua
maneira de ver o “outro”. Entretanto, entre si,
apresentam diferenças e, me parece que nesse sentido,
o evolucionismo, por se propor a “pensar” o “outro” e
discuti-lo como sócio do clube da humanidade, já traz
em si alguma semente de relativização. É certo que a
sempre muito difícil. Sabemos que ambos não são
bons mas pode-se também ver qual se distancia mais.
Assim, num resumo, temos o que foi o
evolucionismo como primeiro eixo sistemático de
pensamento sobre o “outro” dentro da Antropologia,
tivemos também um pequeno quadro do encontro
fundamental, em termos da experiência do “eu” e do
“outro”, que foram os séculos XV, XVI e XVII com
seus novos e velhos mundos. Ainda comparamos as
duas coisas em termos do que poderiam ter
significado.
Agora relativizando; é claro que a época do novo
mundo, o evolucionismo e a comparação entre ambos
é muito mais, mas muito mais mesmo, complexa do
que isto. Tanto aqui, como de resto em todas as coisas
sobre as quais procuramos saber, encontra-se uma
lógica parecida: quanto mais sabemos mais sabemos o
quanto falta saber. A magia, neste processo, reside aí
mesmo: na consciência de quão pouco se sabe.
E vai ser, exatamente, esta consciência que vai
levar a Antropologia a explodir os esquemas
multiplicando muito, seu campo de estudos, que passa
rapidamente a alcançar limites jamais pensados até
então. Relativiza-se mais e com isto complexifica-se o
“outro” como objeto de estudo. Neste processo, a
sociedade do “eu” começa até a questionar-se a si
própria. É o que veremos a seguir.
O PASSAPORTE
Agora tudo começa a acontecer muito rica,
confusa e rapidamente. O século XX traz para a
Antropologia um conjunto vasto e complexo de novas
idéias formuladas por um grupo brilhante de
pesquisadores. Tudo isto vai, paulatinamente,
exorcizando o fantasma do etnocentrismo de dentro da
disciplina. É bem verdade que, ao nível do senso
comum, das ideologias, dos cotidianos da sociedade
ocidental, a visão etnocêntrica dos diversos “outros”
deste mundo muito pouco se abala com as
“revoluções” da Antropologia. Relativizar é uma
palavra que, até hoje, muito pouco saiu das fronteiras
do conhecimento produzido pela Antropologia.
Mas, acompanhando o etnocentrismo dentro da
nossa ciência do “outro”, dentro da disciplina que
estuda a diferença, encontramos, felizmente, muitas
conquistas.
A ordem “natural” em que eu devo explicar estas
conquistas é, por uma questão de clareza, a ordem de
um tempo linear, feito de causa e conseqüência, com
um fato atrás do outro, alguém influenciando alguém,
uma coisa resultando na outra. Melhor dizendo,
deveria fazer uma “historinha”, normalzinha, certinha,
com tudo se encaixando no seu lugar devido. Desde
os momentos “primitivos” do etnocentrismo aos
momentos “civilizados” da relativização. Deveria, em
suma, como vocês já devem ter notado, fazer tal como
fizeram os evolucionistas.
E agora? Me prendi num paradoxo. Explicar o
avanço da Antropologia em direção à superação do
etnocentrismo procedendo, nesta explicação, como os
evolucionistas que tão pouco relativizaram.
Com este paradoxo tocamos bem fundo no que é
a problemática etnocêntrica e nas dificuldades de
sairmos das suas intrincadas malhas. Para não contar
esta “historinha” da Antropologia, tipo uma fábula
malfeita, é necessário relativizar a própria noção de
tempo como história, como passagem linear dos
ocidental de tempo, assim como a noção ocidental de
indivíduo, assim como outras tantas noções tão
fundamentais à sociedade do “eu”.
A Antropologia consegue, hoje, ver que
sociedades diferentes podem ter concepções da
existência tanto diversas entre si quanto igualmente
boas para cada uma. Assim, vou poder falar de
etnocentrismo e de relativização sem precisar fazer
uma “historinha” linear, didática e evolucionista.
Vamos, de outra maneira, falar de um jogo – o jogo da
Antropologia – onde as jogadas, por mais que possam
ter alguma ordem cronológica, têm maior valor pela
posição dos jogadores e a criatividade dos lances.
Escolhidos os campos, o apito soou e a saída
pode ter sido dada por um alemão chamado Franz
Boas. Gênio inquieto, curioso, instigante, procurou
investigar muitas áreas do conhecimento humanístico
dando toques de primeira linha em inventiva e
criatividade. Ao seu nome se liga toda uma escola de
pensamento que ficou conhecida como difusionismo
ou escola americana. Este alemão, no início do século,
trabalho fortemente inspirado na fertilidade do seu
pensamento. Vamos a ele então.
Com Boas, suas idéias e seus alunos, a
Antropologia se transforma substancialmente. Nesta
transformação, que relativiza as já bem estabelecidas
noções evolucionistas, as idéias de cultura e história
também se modificam. Como vimos, a articulação
destas idéias era um dos eixos da forma de pensar o
“outro” dentro do evolucionismo.
O grande passo que parece estar vinculado ao
trabalho de Boas é o de iniciar uma reflexão que veio
a relativizar o conceito de cultura. Num programa
onde o evolucionismo tomava a cultura ocidental, do
“eu”, como absoluta e, a partir de seus padrões,
organizava toda uma classificação das culturas do
“outro”, Franz Boas criou a sua revolução.
Foi ele o primeiro a perceber a importância de
estudar as culturas humanas nos seus particulares.
Cada grupo produzia, a partir de suas condições
históricas, climáticas, lingüísticas, etc., uma
determinada cultura que se caracterizava, então, por
pluralidade de culturas diferentes, visto por Boas é, se
compararmos, uma ruptura importante do
centramento, da absolutização da cultura do “eu”, no
pensamento evolucionista. É claro, o resultado disso
só podia ser um: tudo passa a ser infinitamente mais
complicado no estudo das culturas humanas.
Toda vez que um campo de conhecimento se
abre, se lança de frente para a complexidade, ele
também se relativiza. As possibilidades de explicação,
por não serem mais de um só tipo, passam a se
contrapor, a necessitarem de refinamento maior no
seu debate. Esta complexificação é quase sempre
fecunda. No caso, ampliou conhecimentos e
enriqueceu enfoques através dos quais as diversas
culturas do “outro” passaram a ser percebidas e
estudadas.
O esforço de relativizar problematiza qualquer
“saber”. As ideologias, em especial as extremadas,
odeiam qualquer possibilidade de relativização. Elas
são centradas em seu próprio monólogo e a
descentralização quebra sua auto-referência abrindo
emergem da classificação evolucionista pura e
simples que literalmente explode. Tornam-se mais
difíceis, refratárias a estas explicações, complexas
enfim. Passam a apresentar aspectos, nuanças,
características até então insuspeitáveis.
De qualquer forma, a Antropologia cresce e se
transforma muito com isto, e ainda bem, pois é
verdadeiro que o caminho de um pensamento que se
quer científico é percorrido nesta justa medida.
Mas, esta relativização, que acontece na
Antropologia pela mão de Franz Boas, faz com que
seu papel, neste processo de fuga ao etnocentrismo,
seja um pouco paradoxal. É parecido com o de
alguém que estilhaça um bolo de idéias
superorganizadas como o evolucionismo e, no seu
lugar, deixa os estilhaços como possibilidades a serem
exploradas, mas não um novo bolo de idéias
superorganizadas. Em outras palavras, Boas não
organizou e apresentou para a posteridade uma teoria
da cultura que permitisse, a alguém que fizesse uma
“história das idéias” antropológicas, torná-la como um
O conceito de cultura não fica nitidamente
cristalizado no seu trabalho. O interesse do seu
pensamento se manifesta mais em levantar hipóteses
novas do que em torná-las sistematicamente
formuladas. Era um homem de deixar pistas férteis,
instigante, inquieto, com interesses demasiadamente
múltiplos para se conter num conjunto de idéias bem
arrumadas e acabadas.
Nessa linha, saiu pesquisando sobre nada mais
nada menos que: Antropologia Física, Lingüística,
Folclore, Geografia, Migrações, Organização Social e,
nisto tudo, a idéia de cultura se renova, se transforma,
foge, é reencontrada diferentemente adiante, etc.
Na inquietação e curiosidade do seu pensamento
a cultura humana, ou melhor, as diversas culturas
humanas (para Boas elas eram diferentes, plurais) vão
ser vistas como relacionadas, ora com o ambiente que
envolve o grupo, ora com as línguas por eles faladas,
ora com os indivíduos – corpo e espírito – que criam
estas culturas.
Preocupado com o estudo da história concreta,
evolucionismo, ter uma história única, geral, onde
teriam de caber todas as culturas, voltou-se,
definitivamente, para o mundo do “outro”. A
categoria de história perdia, com ele, o seu “H”
maiúsculo tão fundamental aos evolucionistas. O “h”,
agora, era minúsculo. Não havia uma única história
que se acumulava, inapelavelmente, em direção à
sociedade do “eu”. O “outro” também passa a poder
contar sua história que não iria desembocar,
necessariamente, na “avançada” sociedade do “eu”.
Enfatiza os processos de mudança, de troca e
empréstimo cultural como capazes de repercutir nos
caminhos trilhados por cada cultura humana. Todas
estas idéias, suas sutilezas, relativizações e
complexidades, se afinal acabaram por não expressar
uma nítida “teoria” da cultura ao menos expressaram
a riqueza de uma reflexão que assumiu os riscos de
relativizar os limites, os parâmetros, as fronteiras do
próprio campo de onde partiu.
Assim, como conseqüência de um pensamento
tão fértil, toda uma geração de antropólogos vai ser
pistas, toques e intuições que, de alguma maneira, se
ancoravam nos escritos e nos projetos de Boas.
Vamos acompanhar mais um pouco este
importante caminho de fuga ao etnocentrismo tal
como aconteceu na escola americana. Os alunos de
Boas levam adiante seu pensamento, recebem
influências de outras idéias que já nasciam na Europa
e mantêm bem vivo o jogo da Antropologia. Aqui,
com estes alunos, avançamos algumas décadas a
caminho do final da primeira metade do século XX.
Sem seguir cronologias rígidas voltaremos depois a
outras importantes reviravoltas que aconteciam na
Europa. Do etnocentrismo à relativização, em toda
parte, em diferentes planos e estratégias, a
Antropologia dá andamento ao jogo entre o “eu” –
que faz Antropologia – e o “outro” – que cada vez
mais pode nela intervir.
Quem ler Casa Grande & Senzala de Gilberto
Freyre, um clássico da Antropologia brasileira, vai
aprender muita coisa sobre a cultura brasileira. Vai
aprender que a Antropologia Social se faz, em larga
estudo meticuloso do detalhe da prática social. Vai
aprender o quanto se pode revelar da cultura brasileira
a partir de um sistemático interesse pelo que os
brasileiros fazem e pensam para criar um tipo de
existência e uma forma particular de ser na vida que
faz desta uma cultura única, singular. Vai ver que a
Antropologia conhece uma cultura menos pelas suas
manifestações oficiais, públicas, grandiloqüentes que
pelas suas manifestações descontraídas, privadas,
peculiares. Vai, enfim conhecer um grande livro. Vai
se sentir ali como brasileiro, vai se reconhecer no
detalhe, no cotidiano, na microscopia.
Mas, vai, também, o leitor de Casa Grande &
Senzala, sentir uma oscilação na forma pela qual a
cultura brasileira como um todo é explicada. Em
certos momentos, vai achar que a cultura brasileira
pode ser explicada pelo clima, geografia e ambiente.
Em outros, vai achar que ela se explica pelas raças e
pela personalidade dos povos que a formaram. Ainda
poderá achar que é a língua que aqui se fala a chave
para entender a cultura. Vai ouvir falar de trocas,
difusão, traços e elementos culturais se misturando
Da língua à geografia, do povo à raça, da
personalidade à família, tudo aparece e tem seu
espaço numa hesitação e num arrojo típicos do grande
aluno de Franz Boas que foi Gilberto Freyre.
Casa Grande & Senzala tem muito a ver com
Boas por, pelo menos, dois motivos. O primeiro é esta
oscilação e criatividade que Gilberto Freyre tão bem
captou de seu professor. O segundo é pela incrível
capacidade de Boas para a formação de grandes
alunos que perpetuaram suas visões da cultura
humana e do fazer da Antropologia.
Assim, pelo menos três e até talvez mais grupos
de alunos desenvolveram e exploraram algumas das
idéias principais lançadas como sementes pelos
trabalhos do professor.
São, na verdade, visões da cultura que,
comparando ao evolucionismo, a relativizam por
colocar elementos próprios à vida do povo que produz
essa cultura como chave para seu entendimento. Em
outras palavras, são estudos que começam a fugir do
etnocentrismo por conseguirem ver que o ambiente
onde vive uma sociedade deve ser, por exemplo, fator
importante para explicar sua cultura.
Um grupo de alunos parte, pois, para investigar a
relação ente a cultura e o ambiente – geográfico,
ecológico, físico –, buscando aí explicação para a
cultura e a história das sociedades humanas. Um
segundo parte para relacionar a mentalidade, a
psicologia dos indivíduos com a cultura por eles
vivida. É a famosa escola personalidade e cultura. Um
terceiro grupo investiga as relações entre linguagem e
cultura.
Vamos examiná-los um pouco mais de perto.
Estes grupos são muito importantes, pois, através
deles, mais e mais a Antropologia escapava ao
etnocentrismo e relativizava. O “outro” já era olhado
com a preocupação de entendê-lo segundo seus
próprios problemas, características, segundo sua
própria lógica.
Começarei pela escola personalidade e cultura,
que não só produziu boa Antropologia como também
best-sellers. Ruth Benedict e Margaret Mead, dois dos
nos Estados Unidos, onde foram escritos e editados, e
no resto do mundo, onde foram traduzidos. Foi uma
escola que relativizou e muito. Comparou a sociedade
americana com sociedades tribais fazendo um
trabalho de ida ao “outro” e volta ao “eu”.
Estabeleceu fértil diálogo com as teorias produzidas
pela Psicologia. Em suma, instigou, agitou e renovou
dentro da Antropologia. Mas, o que é, enfim, esta
corrente de pensamento que tanto sucesso fez
extrapolando até o mundo acadêmico e sendo lida por
muita gente?
Vou dar um exemplo da sua penetração e tentar
explicar rapidamente seus fundamentos.
Estava trabalhando, como professor do segundo
grau de um famoso colégio do Rio de Janeiro, às
vésperas da copa do mundo de futebol. Todos
sabíamos que as aulas batiam com o horário das
transmissões televisivas dos jogos. Todos estávamos,
portanto, com problemas. Os alunos, quase sempre a
principal força renovadora de uma escola, começaram
a agitar um abaixo-assinado à direção pedindo a
importantes para o Brasil, a abertura da Copa, os
clássicos entre outras seleções, etc., etc.
Eu, particularmente, estava torcendo muito pelo
sucesso da reivindicação. Nem tanto pela “matação”
de aula, mas porque, realmente, futebol é muito
importante para mim. Tanto jogar quanto assistir.
Neste espírito, me encontrava na sala dos professores,
durante o recreio, conversando com colegas, quando o
diretor da escola entra assumindo ares indignados.
Começa a deitar falação sobre o abaixo-assinado (era
contra) dizendo que a “educação não poderia parar
por causa de partidas de futebol” e outras jóias do
pensamento como esta. Todos, constrangidos,
ouvíamos.
Quando acabou o primeiro tempo e já ia começar
o segundo, foi interrompido pela voz fina porém firme
e decidida de uma velha professora. Era, de fato uma
velha e importantíssima professora. Fora fundadora da
escola, diretora, e sua biografia se fundia com a
história do colégio. Quando falou todos pararam para
ouvi-la. Disse que era muito difícil manter as aulas,
brilhantemente sua intervenção concluindo que o
futebol era um fato tão incorporado à personalidade
brasileira que a mobilização em torno de uma copa do
mundo era inevitável, pois fazia parte integrante do
caráter e do temperamento nacional.
A nossa querida professora talvez não tivesse se
dado conta do tipo de terminologia (caráter,
temperamento, personalidade) que estava utilizando.
Mas nós apoiamos veementemente suas palavras que,
no caso, salvaram nossa copa do mundo. Eu,
particularmente interessado em Antropologia,
agradeci, mentalmente, a eficácia dos argumentos da
escola personalidade e cultura que permitiu esta
rápida e persuasiva análise do futebol como fato
cultural no Brasil.
Assim, duas são as principais marcas desta
escola. A primeira seria a de instalar um profundo
diálogo entre Antropologia e Psicologia, discutindo as
formas de interação entre indivíduo e sociedade. A
segunda marca seria a incrível penetração conseguida
pela escola, o seu destino popular por assim dizer.
Da mesma forma como as diferenças entre as
culturas humanas são, freqüentemente, traduzidas em
termos de superioridade e inferioridade – hipóteses
evolucionistas – também encontramos, não raro, as
diferenças vistas como questão de personalidade,
caráter, temperamento – hipóteses da escola
personalidade e cultura.
A idéia central da escola é, grosso modo,
estabelecer a relação entre a cultura e as
personalidades individuais. Como se a cultura fizesse
a escolha daquilo que iria minimizar, acentuar ou
ignorar nas vidas humanas. Algumas características
dos indivíduos, da sua personalidade teriam um
“valor” – positivo ou negativo – para a cultura que o
incentivaria ou reprimiria. A cultura, então, vai ser
definida pelo padrão de características
sistematicamente impressas nas personalidades
individuais. O conjunto das personalidades assim
marcadas dá o “tom”, a “coloração”, o “feitio” que a
cultura vai adquirir.
A cultura marca as características que quer nos
temperamento e da personalidade dos seus membros.
A cultura marca e é marcada. Indivíduo e cultura se
influenciam mutuamente. As idéias de personalidade e
temperamento são como fatores capazes de
determinar a base normativa da cultura.
Um dos problemas maiores desta corrente de
pensamento, como de resto dos demais grupos que
desenvolveram as idéias de Boas, é aquilo que
chamamos “reducionismo”. Ou seja, a dificuldade de
explicar alguma coisa que contém várias outras a
partir de uma única das coisas contidas. Melhor
dizendo, explicar o todo – a cultura – por uma de suas
partes, no caso, a personalidade. Outro problema é a
dificuldade de trabalhar o complicadíssimo conceito
de personalidade com o complicadíssimo conceito de
cultura, ainda mais usando um para explicar o outro e
o outro para explicar o um.
O mesmo problema – o “reducionismo” – se dá
com o grupo que seguiu a pista de relacionar a cultura
com a linguagem. Explicar a primeira pela segunda
era o projeto, difícil e extremamente interessante, de
para o seu entendimento. Neste grupo estava o
antropólogo e lingüista Edward Sapir, visto por
muitos como o mais brilhante dentre os alunos de
Boas.
Se a escola personalidade e cultura instaurou um
criativo debate entre Antropologia e Psicologia, o
grupo cultura e linguagem buscou no debate entre a
Antropologia e a Lingüística a principal fonte de seu
pensamento.
A importância e a atualidade deste grupo está em
ter dado muita substância e base para uma série de
estudos de lingüística e comunicação que procuraram
relacionar, por exemplo, o emprego da linguagem e as
diferenças de classes sociais nas chamadas sociedades
complexas, industriais, contemporâneas. As idéias
deste grupo muito contribuíram para o avanço de
disciplinas como a sociolingüística e a etnolingüística.
Ambas são disciplinas que, exatamente, têm como
projeto fazer a junção entre a língua, por um lado, e,
por outro, a cultura, o grupo étnico ou a sociedade.
A idéia básica que vincula as relações entre
Vamos tentar pensá-la juntos. Quando um professor
de língua estrangeira nos alerta para que não tentemos
“traduzir” o que vamos falar, para que não pensemos
na nossa língua, mas que procuremos estruturar nosso
pensamento já na língua que estamos aprendendo, este
professor está tocando no vínculo entre cultura,
pensamento e linguagem. Ele está, de certa forma,
dizendo que aprender uma língua estrangeira é
aprender uma outra maneira de ver o mundo, de dar
sentido diverso à “lógica” da apreensão da realidade
que nos cerca.
Imaginemos que a realidade fosse como um mar.
Neste mar cada língua lança uma rede de pesca como
se fossem pescadores do alto dos barcos. As redes
batem n’água e formam desenhos diferentes,
recortando formas diversas ao se chocarem com a
água. Cada rede, ao se chocar com o mar, o
transforma em algo particular segundo aquilo que nele
se desenhou. Cada língua, pois, ao se deparar com a
realidade a transforma em algo, também particular,
segundo aquilo que ela elaborou como significativo.
Assim, a estrutura própria de uma língua qualquer é,
organiza sua visão do mundo que os cerca. A língua
substanciaria a realidade e, para eles, modelaria a
ordem cultural. É, a língua, como um véu que faz a
mediação entre a cultura e o mundo da realidade.
Os problemas levantados por este grupo, que
procurou pensar, a partir de Boas, as relações entre
cultura e linguagem, tocaram bem fundo questões
seriíssimas para o entendimento do ser humano.
Questões ligadas aos significados das coisas, à
natureza dos símbolos, aos códigos por nós
empregados e muitas outras nesta linha se encontram
na ordem do dia de diversas disciplinas das ciências
humanas, da filosofia, das terapias e investigá-las
mais a fundo é uma tarefa imensa e fascinante.
Um terceiro e também importante grupo de
alunos de Boas partiu para relacionar a cultura e o
ambiente. Este grupo é encabeçado por um
antropólogo chamado Julien Steward. Aqui fica
pressuposta a noção de que o ambiente é o fator
determinante que restringe as opções culturais. A
cultura passa a ser como que uma resposta possível e
constrangem, tornam-se precondição, para a ordem
cultural. Os elementos culturais terão nos ecológicos,
no ambiente, no meio, o seu determinante
fundamental para a mudança, numa espécie de jogo de
readaptações e respostas.
Nesta visão da cultura entram em cena
problemas como a tecnologia empregada no meio
ambiente, os modelos de comportamento e exploração
de uma área ecológica e a busca de equilíbrio entre a
esfera ambiental e a cultural.
A importância deste grupo é a de ter colocado
questões de equilíbrio, preservação e mútua
dependência entre as culturas e destas com o ambiente
onde se erigem.
Ainda outras linhas, pistas, intuições de formas
de estudo da cultura e da história humana poderiam
ser vistas como devedoras do trabalho e da abertura de
pensamento propiciada por Boas. Mas, já fomos longe
demais.
Estamos aqui tratando de etnocentrismo. A
em que ao se perceber a complexificação e a
densidade cada vez maior destas paisagens
percebemos também que ela significa relativizar.
Relativizar é sempre mais complicado, pois nos leva a
abrir mão das “certezas” etnocêntricas em nome de
dúvidas e questões que obrigam a pensar novos
sentidos para a compreensão da sociedade do “eu” e
da sociedade do “outro”.
Nosso “turismo antropológico”, do
etnocentrismo à relativização, tem no guia Franz Boas
alguém capaz de nos deixar grandes lições.
Relativizando com ele temos: em primeiro lugar, uma
concepção da história pluralizada, estilhaçada, como
uma história de “h” minúsculo, de cada cultura
humana no que esta tinha de seu, de específico. Em
segundo lugar, uma concepção de cultura que não
colocou a cultura do “eu” como centro, mas que
procurou ver que fatores diversos determinavam,
também diversamente, o perfil das culturas.
Finalmente, o desenvolvimento de uma Antropologia
inquieta, atenta, humilde e propondo diálogos com
outras disciplinas em volta, se criando e se
transformando pelo enfrentamento do risco que
significa estudar a diferença.
Assim, o “outro” começa a deixar de ser um
simples retrato dos momentos primitivos do “eu” e
passa a ocupar um lugar mais destacado como algo
que transforma a teoria antropológica e pode, de
muitas maneiras, servir para dimensionar a própria
sociedade do “eu”.
Mas, enquanto isso tudo de que falamos se
passava, o jogo da Antropologia do século XX
tramava na Europa novas e fascinantes jogadas. Na
Inglaterra, pós-evolucionista, e na França o
etnocentrismo ia cedendo espaços. Ali costuravam-se,
talvez, os mais importantes movimentos de
relativização dentro da disciplina. Vamos ver um
pouco do que se fez por lá nas primeiras décadas do
século.
VOANDO ALTO
Diferentes atores, cenários, enredo. A história da
passagem do etnocentrismo à relativização assume
contornos insuspeitados. Para a Antropologia é o
momento de adquirir uma autonomia que vai render
preciosos resultados. Alguns nomes fundamentais
para a vida da disciplina fazem sua entrada aqui.
Durkheim, Malinowski, Radcliffe-Brown são pesos
pesados dentro da Antropologia e das Ciências Sociais
em geral. São importantes ao ponto de ninguém poder
deixar de ler ao menos parte de suas obras se quiser
fazer uma iniciação à Antropologia.
Todos os três, juntamente com Boas, estavam
vivos para assistir a passagem do século XIX para o
XX. Todos eles tinham personalidades peculiares,
interessantes, controvertidas. Cada um, a sua maneira,
contribuiu, e muito, para o crescimento, para a
maturidade e complexidade da disciplina e, o que nos
Vamos começar com Radcliffe-Brown porque
fica mais nítido entender as idéias que vou retirar dele
logo após termos visto o evolucionismo e o
difusionismo.
Por mais distantes que pareçam ter sido – e eu
espero que isso tenha ficado claro – evolucionismo e
difusionismo tinham algo ainda em comum. Para estes
dois movimentos uma mesma preocupação se fixou
como questão fundamental, como um desafio
permanente para o corpo teórico da Antropologia que
dava seus primeiros passos. Tanto num – o
evolucionismo – quanto noutro – o difusionismo – os
trabalhos produzidos, via de regra, demonstravam a
permanência de um tema. Era a história sempre a
permear os estudos e reflexões em quase toda a
literatura sobre as culturas humanas.
Não se pode dizer, no entanto, que a existência
de uma preocupação com a história indicasse, nos dois
movimentos, uma idêntica concepção da natureza da
história. Uma mesma preocupação com a história não
se confunde com uma mesma história das
Recapitulando: para o evolucionismo a história
tinha “H” maiúsculo, era uma única para toda a
humanidade. Como se, de Adão e Eva ao Juízo Final,
todos caminhassem num mesmo sentido, que era o do
“progresso”, o da “evolução”. O longo caminho da
história, que a hipótese evolucionista criava, era como
uma escada onde cada sociedade acumularia
“progresso”, desde o mais “primitivo” até o dito
homem “civilizado”.
Por outro lado, o pensamento difusionista
propunha o estudo da história concreta de cada
cultura, os processos próprios de mudança, troca e
empréstimo que as caracterizariam. É uma história
com “h” minúsculo, de cada cultura particular,
específica.
A história, no entanto, cada uma a sua maneira,
permanece como tema de importância central no
estudo da cultura para as duas escolas.
Radcliffe-Brown discordou desta vinculação que
existia entre a compreensão do presente de uma
cultura e o estudo do seu passado. O presente não
Em termos mais técnicos a sincronia – presente – não
está submetida à diacronia – história.
Estes dois termos exigem uma melhor
explicação. Se estivermos jogando uma partida de
xadrez e pararmos no vigésimo movimento para
analisá-la, duas seriam as visões possíveis desta
partida. Se analisarmos os movimentos e sua
seqüência, desde o primeiro até o vigésimo, faríamos
uma análise diacrônica. Explicaríamos o estado atual
da partida através dos seus movimentos pregressos.
Se, diferentemente, efetivássemos uma análise das
forças dentro do tabuleiro, das posições das peças no
vigésimo movimento, dos valores atuais dos peões,
bispos, torres, etc., estaríamos analisando
sincronicamente.
A diferença é que a diacronia analisa o vigésimo
movimento partindo da história dos dezenove
movimentos anteriores e, por eles, estabelece seu
conhecimento do vigésimo. A sincronia, por seu
turno, centra sua análise no momento determinado
pelo vigésimo movimento e, aí, se interessa pelas
Passando para a análise das culturas humanas,
estas duas abordagens resultam em perspectivas
diferentes de como conduzir um estudo antropológico.
Para os que pensavam na história como a via
explicativa do presente cultural, o centro da reflexão
estava menos na compreensão teórica das instituições
e mais nas transformações diacrônicas pelas quais
passaram estas instituições. Mais simplesmente, para
o historicista, seja ele difusionista ou evolucionista, o
presente se conhece pelo passado e estudar a história
das culturas significa conhecer a verdadeira dimensão
da cultura.
Com isto, definitivamente, não concordou
Radcliffe-Brown. Para ele a história conjetural,
especulativa, contrastava fortemente com sua proposta
de estudo funcional das sociedades.
Chegou mesmo a escrever que o verdadeiro
conflito teórico na Antropologia não acontecia nem
entre os diferentes tipos de difusionismo, nem entre
estes e o evolucionismo. O verdadeiro ponto de
ruptura, a discussão realmente importante, situava-se
E vai ser este adjetivo funcional que vai deixar
uma marca profunda na opção da Antropologia em
direção a relativizar. O funcionalismo, que
genericamente pode ser visto como um movimento
que recobre uma parte muito significativa da produção
antropológica, caminha inexoravelmente no sentido
de empurrar o estudo do “outro”, da “diferença”, para
fora do etnocentrismo.
A razão pela qual o funcionalismo relativizou
pode ser encontrada no fato de que ele iria se opor ao
estudo diacrônico e se conjugar com os estudos
sincrônicos. Ao fazer esta opção a Antropologia se
desvincula da história e parte para o estudo da
sociedade do “outro” sem se preocupar com o passado
desta sociedade. Isto é uma relativização fundamental
na medida em que, se pensarmos bem, veremos que a
preocupação com a história é, antes de tudo, uma
preocupação típica da sociedade do “eu”. Sim, porque
nem todas as sociedades buscaram valorizar o tempo
linear, histórico, feito de acontecimentos sucessivos,
como uma forma lógica e interessante para pensar sua
própria existência.
A nossa sociedade, a sociedade do “eu”, tem
nesta forma de conceber o tempo um instrumento
básico para sua apreensão da vida. A Antropologia,
neste sentido, como que contrabandeava para a
sociedade do “outro” uma concepção do tempo, e uma
preocupação com ele, que nem sempre poderia ser lá
encontrada.
Quando Radcliffe-Brown desamarra a
Antropologia da História abre um imenso espaço para
que a sociedade do “outro” se mostre tal como ela é.
Ao procurar ver o “funcionamento” de uma sociedade
o estudioso, por mais míope que seja, se obriga, ao
menos, a pensar esta sociedade em seus próprios
termos. Com isto, a diferença deixa de ser
equacionada em torno do tempo histórico, o que a
levava, como no evolucionismo, inexoravelmente para
uma hierarquia de sociedades atrasadas e avançadas.
Assim, Radcliffe-Brown, com seu corte teórico,
dá outras dimensões à Antropologia. O jogo entre o
“eu” e o “outro” deixa, agora, de ter na hierarquia sua
regra número um. É na trilha aberta por ele que a
linha, vamos ver que a busca de rigor teórico e
precisão conceitual têm um papel importante a
desempenhar no conjunto de sua obra.
Para ele, a sincronia deveria ser analisada por
conceitos bem precisos. É o caso de noções como
“processo”, “estrutura” e “função”, que são
cuidadosamente definidas para formarem um esquema
interpretativo da realidade social.
Em primeiro lugar, é importante que se saiba o
que, ao certo, se constituía no objeto antropológico
por excelência. A realidade concreta a ser estudada,
observada, descrita, comparada e classificada pela
Antropologia é um fluxo permanente, é um processo:
o “processo social”. Pode ser percebido como o
encadeamento das relações, das ações, das interações
entre seres humanos ocupando “papéis sociais”. É esta
amplitude de contato que acontece na vida em
sociedade.
Por outro lado, dentro desta imensa diversidade
de fatos do “processo social”, podemos perceber a e
existência de formas regulares, repetitivas, mais
pela observação direta das ações cotidianas. Dentro do
“processo social” a constância de determinados tipos
de relação – a disposição de pessoas num certo
número de famílias, por exemplo – aponta uma outra
dimensão, a da “estrutura social”. Nela as ações e
interações do “processo social” que se tornam
significativamente repetitivas, recorrentes, formam
redes complexas de relações sociais onde cada um e
todos se encontram envolvidos sistematicamente.
É neste quadro, compondo-se com os conceitos
de “processo” e “estrutura”, que a idéia de “função”
complementa o esquema teórico. É ela que irá fazer a
ligação entre “processo” e “estrutura”. É a ponte que
permite o encadeamento lógico dos dois conceitos.
Radcliffe-Brown achava conveniente estabelecer
uma comparação entre a Antropologia e as Ciências
Naturais. Transportava termos das Ciências Naturais
e, por analogia, os aplicava ao estudo da sociedade
humana. Uma de tais analogias, tão a seu gosto, serve
para explicar o conceito de “função e sua relação com
“processo” e “estrutura”.
Comparava o sistema social ao corpo humano.
Este, como um organismo complexo que é, tem a vida
como um fluxo permanente que habita este corpo. A
vida caracteriza um constante processo, o processo
vital, de permanência obrigatória para a manutenção
do organismo. Este organismo, por sua vez, possui
uma estrutura composta de ossos, tecidos, fluidos, etc.
A função estabelece a correlação entre o processo
vital e a estrutura orgânica. Assim, o coração, por
exemplo, desempenha a função de bombear o sangue
através do corpo. Se parar de executá-la, termina o
processo vital e a estrutura orgânica, enquanto
estrutura viva também desaparece.
Na sociedade, algumas instituições
desempenham uma “função” crucial na manutenção
do “processo” e da “estrutura”. Se estas funções forem
suprimidas aquela sociedade se transformará numa
outra diferente, onde outras instituições terão, por seu
turno, outras “funções” cruciais. A sociedade não
morreria, no mesmo sentido em que o corpo morre
suprimida a função do coração, mas, atacada numa
função básica, se descaracterizaria ao ponto de se
É evidente que as colocações teóricas de
Radcliffe-Brown são, além de mais amplas, muito
mais complexas, sutis, inteligentes e profundas que
esta pretensa explicação. Espero que ele me perdoe.
Mas, aqui procuro apenas demonstrar que, ao fazer a
opção pelo estudo sincrônico, pagou o preço de uma
forte relativização. Isto significou que, ao colocar
novas questões em jogo, conseqüentemente teve de
procurar, na produção teórica, novos instrumentos
para pensá-las.
O importante aqui não é entrarmos em difíceis e
detalhadas discussões de seu pensamento, mas
percebermos o quanto suas idéias repercutiram num
abalo do etnocentrismo.
E, me parece, abalaram o etnocentrismo
principalmente por liberarem a explicação
antropológica do “outro” de uma noção de tempo
linear, histórico, produzido na sociedade do “eu”. A
Antropologia, então, livre para estudar a sincronia,
passa a poder esboçar uma tentativa mais solta de
compreender o “outro”. Contando, principalmente,
transformados ou suprimidos no contato direto do
antropólogo com sociedades diversas.
O antropólogo, obrigado a estudos sincrônicos,
tem de viajar. Tem de ir morar, experimentar a
existência junto ao “outro”. Conhecer a diferença,
experimentando-se a si próprio como diferente, por
estar, por períodos significativos de tempo, fazendo
“trabalho de campo” no mundo do “outro”. Neste
sentido, Malinowski foi o grande viajante da
Antropologia. O significado de seus estudos e da
expressão “trabalho de campo”, para a Antropologia e
para o processo de relativização, é de extrema
importância e será visto um pouco mais adiante.
Antes, é necessário entendermos o quanto foi
penoso e fundamental, na questão do etnocentrismo e
de sua superação, a conquista de um espaço autônomo
de movimento para a Antropologia.
Já vimos o papel aí desempenhado pela ruptura
que Radcliffe-Brown estabeleceu entre Antropologia e
História. Colocou ele com precisão que as duas
disciplinas poderiam cooperar de diversas maneiras,
Um outro nó, um outro lado do laço, e não
menos importante para a autonomia antropológica, vai
ser desatado por Émile Durkheim.
Qualquer estudante da vasta, bela e complexa
obra deste grande mestre francês pode perceber que,
em diferentes momentos e de várias formas, um tema
aparece e se repete. Durkheim afirma categoricamente
uma ruptura: o social não se explica pelo individual.
Assim como os fenômenos psíquicos não se explicam
pelos biológicos, o complexo pelo simples, o superior
pelo inferior, também o todo – a sociedade – não se
explica pela parte – o indivíduo.
Os fatos sociais são externos, autônomos, são
fenômenos de natureza tal que recusam explicações
outras que não a própria sociedade. Com isto, o social
como objeto de estudo não apenas se afirma no
presente, na sincronia, mas também se afirma como
entidade autônoma, independente do indivíduo. Isto
quer dizer que não pode ser reduzido a explicações de
natureza diferente. Fatos sociais são dotados de uma
sócio-lógica. São “coisas” no sentido de apresentarem
sentido de que seu conhecimento requer uma certa
atitude mental. São “coisas”, principalmente, no
sentido de sua concretude que independe da natureza,
que independe do indivíduo. São “coisas” porque
autônomos.
E, assim, nesta afirmação Durkheim investe
contra o reducionismo. Contra a tentação de explicar o
fato social pela consciência individual. Investe contra
a possibilidade de se diluir o objeto específico da
Sociologia e da Antropologia a simples conseqüências
de outros tipos de fenômenos.
Explicando melhor vou utilizar o próprio
Durkheim que, no primeiro capítulo do seu livro As
Regras do Método Sociológico, intitulado “Que é Fato
Social”, procura defini-lo com muita clareza:
“É fato social toda maneira de agir fixa ou não,
suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção
exterior; ou então ainda, que é geral na extensão de
uma sociedade dada, apresentando uma existência
própria, independente das manifestações individuais
que possa ter”.
Acompanhando esta definição vemos que o fato
social é (1) coercitivo, (2) extenso e (3) externo. Com
isto ele queria, em primeiro lugar, demonstrar que o
fato social coage, pressiona os indivíduos com uma
autonomia que os submete à sua lógica. Em outras
palavras, o fato social pressiona o indivíduo, torna-se
uma força diante da qual este é coagido a uma
participação independente da sua vontade.
Em segundo lugar, o fato social se estende por
todo o grupamento onde ele acontece. Ninguém,
envolvido dentro da extensão de um determinado fato
social, pode dele se ausentar. Diante de fatos sociais
que me envolvam não me é possível deles me excluir.
Em terceiro lugar, ele é externo ao querer e ao
poder do indivíduo. Possui força autônoma,
independente e própria, para além das manifestações
individuais. É, o fato social, algo externo a cada
membro de uma sociedade enquanto uma consciência
particular. O fato social é, por todos e para todos, uma
“coisa” que ultrapassa a cada um.
Aqui, novamente, me limito a rápidas pinceladas
embarcamos neste turismo antropológico procurando
pensar juntos a passagem do etnocentrismo à
relativização, interessa antes de tudo ver que
Durkheim levantou a questão da autonomia do social.
Na definição do fato social está cristalizada a
independência deste tipo específico de realidade – a
social – diante de explicações, racionalizações e
interpretações provindas de um nível de lógica diverso
desta realidade. O social tem seu próprio caminho;
dentre os fatos humanos ele é um tipo único que não
pode ser reduzido a nenhum outro tipo.
Na verdade, parece tudo muito simples e óbvio.
De repente, alguém – Radcliffe-Brown – mostra que a
Antropologia tem um projeto e a História, outro.
Alguém mais – Durkheim – mostra que o social tem
uma particularidade que não se confunde com a soma
dos indivíduos. Estas conquistas que podem parecer, à
primeira vista, evidentes em si mesmas, exigiram, no
entanto, um longo esforço de relativização.
Esta autonomia de um fenômeno e de uma
disciplina para estudá-lo tem a equivalência de um
Esta autonomia tem a trajetória de um vôo alto, de um
enfrentamento do “outro” e da “diferença” sem
precedentes até então.
O estudioso dos fenômenos da sociedade recebe
destas mãos a tarefa extremamente difícil de
desvendar uma face da realidade – a face do social –
cujo perfil mais radical começa, agora, a ser traçado.
As regras do jogo exigem muito mais dos
parceiros. A “diferença” cara a cara, o “outro” com
todos os seus desafios.
E, neste contato com a “diferença”, no repto
lançado pela experimentação do relativismo, no
abandono dos confortos e seguranças do
etnocentrismo, Malinowski foi nosso grande viajante.
Sua obra Os Argonautas do Pacífico Ocidental
fala sobre o arquipélago formado pelas Ilhas
Trobriand e das sociedades que as habitavam. Um
argonauta era um tripulante de Argo, uma nave
lendária na mitologia. É, também, o nome que se dá a
qualquer navegador ousado. Para Malinowski, os
grande ousadia de navegar a “diferença”, viajar ao
“outro”. Este é o clima que se espelha logo na
introdução do seu livro Os Argonautas do Pacífico
Ocidental”.
“Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas pelo
seu equipamento, numa praia tropical próxima a uma
aldeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o trouxe
afastar-se no mar até desaparecer de vista.”
Imaginou-se? Pois é, eis aí! Está inaugurado,
assim, na Antropologia, aquele que é provavelmente o
seu maior instrumento de relativização: o “trabalho de
campo”. Com Malinowski, pela primeira vez, a
grande “viagem” do “trabalho de campo” se realiza.
Não que antes dele não se tivesse visitado o mundo do
“outro” com o intuito de conhecê-lo. Mas, a força da
passagem realizada por Malinowski é a transformação
da visita ao mundo do “outro” pelo efetivo “trabalho
de campo”. Os trinta e um meses vividos por ele nas
aldeias das Trobriand marcam a qualificação desta
passagem.
Lá, Malinowski dedicou-se, entre outras tarefas,
Kula e consistia muito simplesmente numa troca de
presentes entre parceiros predeterminados, escolhidos
de antemão, nas ilhas circunvizinhas. No circuito do
Kula trocavam-se braceletes e colares que, para os
parceiros, eram plenos de valor e significado. Os
braceletes, feitos de conchas brancas, e os colares, de
conchas vermelhas, são sempre mantidos no circuito
de cerca de duas dezenas de ilhas e demoram de 2 a
10 anos para dar a volta completa e retornar ao ponto
de partida.
O ideal é que, no fim de cada ciclo, os indivíduos
participantes das trocas fiquem de posse dos objetos
que tinham no início. Qualquer um que, neste
processo, tentasse obter mais do que aquilo que deu
no início pagaria a pena de uma desonra dura e
definitiva.
Como estas transações, que mais caracterizavam
o Kula, não eram comerciais, qual seria o sentido
desta troca de braceletes e colares? Qual o valor que
tinham? Por que eram tão importantes para os ilhéus
de Trobriand?
Aqui começa a grande viagem, o vôo alto de
Malinowski na sociedade do “outro”, de onde
consegue, finalmente, fechar o ciclo e repensar o
próprio “eu”. Neste momento, procurando o sentido
dos objetos do Kula, ele vê que estes objetos possuem,
na nossa sociedade do “eu”, similares que podem ser
comparados.
Visitando o castelo de Edimburgo, observava as
jóias da Coroa do Império Britânico e o guia da
excursão começa a contar as estórias vinculadas a
cada objeto. Nisto, Malinowski teve a sensação de ser
transportado para Trobriand e ouvir, dos seus amigos
nativos, belas estórias ligadas aos braceletes e colares
de conchas. Objetos de valor britânicos e
trobriandeses se equivalem se pensados na relação
com seus contextos. O importante, nas duas culturas, é
que os objetos valem não pelos seus aspectos
utilitários ou comerciais, mas pela sua posse pura e
simples. Pelas estórias de feitos heróicos de lendários
possuidores, eles valem pela glória, pelos sentimentos
ligados ao prazer de possuí-los.
novo tipo de comparação possível. A comparação
relativizadora.
Diferentemente do nosso missionário do
primeiro capítulo que retirou objetos de um contexto
cultural e aplicou-os em outro fazendo com isso um
uso estético de objetos originalmente técnicos,
Malinowski comparou objetos com seus respectivos
contextos e destes para outra cultura onde também
examinou contexto e objetos. Esquematicamente
falando, a comparação de Malinowski foi dos
braceletes e colares do Kula com seu significado na
sociedade trobriandese versus jóias da Coroa
Britânica com seu significado na sociedade inglesa.
Comparou relativizando o “eu” e o “outro”.
A comparação relativizadora, o trabalho de
campo, a autonomia da Antropologia diante da
História e do fato social frente ao individual são
passos gigantescos. Passos gigantescos nesta
disciplina que, a cada momento, ousou sempre.
Do etnocentrismo à relativização a Antropologia
foi criando seus instrumentos de abertura. Idéias,
fazendo das sociedades do “outro” um espelho para a
sociedade do “eu” e não um fantasma a ser
exorcizado.
O “outro” é, cada vez mais, a “diferença” feita
alternativa possível de existência. Com os vôos altos
de Durkheim, Radcliffe-Brown e Malinowski começa
a se impor esta perspectiva relativizadora no jogo da
Antropologia. Resta agora confirmar esta perspectiva,
dar a volta por cima do etnocentrismo e eleger a
diferença como conquista. A viagem de Malinowski e
sua afirmação do trabalho de campo obriga a ida na
direção do “outro”. Ele mesmo, comparando com
relativismo, aponta um caminho fundamental: o
“outro” é, também, uma fonte possível de reflexão, de
transformação até, da própria sociedade do “eu”.
A VOLTA POR CIMA
Em 1908 muitos dos nomes citados ao longo dos
capítulos anteriores estavam produzindo sua
Antropologia. Claude Lévi-Strauss estava nascendo.
Com ele iriam nascer, também, algumas das mais
importantes obras da literatura antropológica.
Cerca de cinqüenta anos depois, ao dar a aula
inaugural da cátedra de Antropologia Social no
Collège de France, faria uma homenagem a todos os
grandes mestres, fundadores e pioneiros da disciplina.
Encerrou, porém, sua palestra falando do “outro”. No
caso, Lévi-Strauss homenageia os “índios dos trópicos
e seus semelhantes pelo mundo afora”, que são, para
ele, merecedores de muita ternura. Diz-se, ainda,
devedor do que aprendeu com eles, e suas últimas
palavras, nesta aula, são para lembrar que destes
“outros” gostaria de ser, entre nós, “discípulo e
testemunha”.
Tudo isso indica muito daquilo que venho
procurando demonstrar deste longo caminho que a
Antropologia percorreu no sentido da relativização.
Em todos os passos dados por esta “ciência da
diferença” você, leitor, pode ter observado a
existência constante de uma tentativa, quase um
compromisso. Trata-se de escapar ao etnocentrismo, a
uma percepção do “outro” que fosse centrada no
próprio “eu”. Trata-se, acredito, ao longo de todas as
diversas formas de se pensar antropologicamente, de
uma busca de compreensão do sentido positivo da
diferença. Acho que a Antropologia sempre soube,
mesmo em seus momentos mais distantes, que
conhecer a diferença, não como ameaça a ser
destruída, mas como alternativa a ser preservada, seria
uma grande contribuição ao patrimônio de esperanças
da humanidade.
Foi este o lado da Antropologia que tentei buscar
na medida em que o vejo como o principal motor, a
força fundamental, que cedo se instaurou como capaz
de contrabalançar o etnocentrismo.
no caso particular da nossa sociedade ocidental,
aliados poderosos. Para uma sociedade que tem poder
de vida e morte sobre muitas outras, o etnocentrismo
se conjuga com a lógica do progresso, com a
ideologia da conquista, com o desejo da riqueza, com
a crença num estilo de vida que exclui a diferença.
Mas, a “diferença” é generosa. Ela é o contraste
e a possibilidade de escolha. É alternativa, chance,
abertura e projeto no conjunto que a humanidade
possui de escolhas de existência. Creio que foi isto
que o jogo da Antropologia, de alguma forma, sempre
soube. A própria opção de ser o estudo do “outro”,
estando ele na porta da rua, numa ilha do Pacífico ou
nas savanas do Brasil central, já atesta, de toda
evidência, esta “vocação” da Antropologia de
preservar a experiência da diversidade.
Assim, ao falar sobre o tema do etnocentrismo
procurei fazê-lo exatamente por dentro de uma
ciência, de um campo de conhecimento, de uma
disciplina que foi obrigada a sentir mais de perto, à
flor da pele, essa questão do etnocentrismo.
Nesta série de pequenas viagens pelo interior da
Antropologia, acompanhamos como um dos seus
conceitos centrais – o de cultura – foi se relativizando.
E o foi precisamente porque mais e mais a
Antropologia alçava seu vôo autônomo, independente,
mais e mais repassava esta autonomia para a
compreensão do “outro”.
Se não vejamos: de todo este retrospecto de
algumas das principais vertentes da Antropologia
Social vimos sempre o conceito de cultura como que
articulado, conjugado, preso a uma determinada visão
da história humana. Isto, me parece, colocou sempre
problemas para uma compreensão relativizadora da
sociedade do “outro”.
O paradoxo da Antropologia está no fato de ser
um tipo de ciência, de reflexão, nascida e criada na
sociedade do “eu” com vistas ao estudo das formas
diversas com que os seres humanos assumiram sua
existência na terra. Este paradoxo levou, muitas vezes,
a Antropologia a ter como parâmetro, modelo, norma
constante, para pensar o mundo do “outro”, os
instrumentos do mundo do “eu” porque este é o
mundo onde se criou.
Com o “trabalho de campo” o mundo do “outro”
começa a ter presença, na vida concreta dos
antropólogos, como uma experiência da diversidade.
Esta experiência começa a invadir a própria teoria
antropológica que passa assim a se influenciar pelo
mundo do “outro”.
Por exemplo, durante muito tempo os primitivos,
os índios, ou melhor, as sociedades tribais, como
menos etnocentricamente convém chamá-las, foram
vistas como tendo uma economia de subsistência. Isto,
na verdade, seria o óbvio, pois o objetivo de qualquer
sistema de produção é fazer subsistir os indivíduos
que dele fazem parte. Mas, o que estava por trás desta
idéia era a imagem da sociedade tribal como que
lutando frente ao meio ecológico, utilizando seus
parcos recursos técnicos para não morrer
miseravelmente de fome.
Esta imagem de uma sociedade esmagada por
uma incapacidade de maior produção é que se
subsistência. Economia de subsistência se traduz,
neste sentido, em economia de sobrevivência ou, mais
diretamente, de miséria.
Mas, será esta uma verdade integral e
indiscutível? Parece que não! Observando,
comparando, estudando a vida destas sociedades, um
professor americano, antropólogo Marshall Sahlins,
comprova que, nelas, muito pouco tempo é dedicado a
atividades econômicas. Três ou quatro horas por dia,
com muitas interrupções e com apenas parte da
população se empregando na tarefa, parecem ser
suficientes para satisfazer materialmente as
necessidades do grupo.
Ora, uma máquina produtiva que, dedicando-se
tão pouco a esta tarefa, se desincumbe dela de forma
tal que não falta nada para ninguém, está muito longe
da imagem de uma economia de subsistência,
sobrevivência ou miséria. Muito pelo contrário, esta
economia permite a existência de uma sociedade de
abundância.
Aqui podemos ter o exemplo do significado do
trabalho de campo, que podem transformar a teoria
antropológica. Para uma sociedade – a nossa – que
tem o objetivo da acumulação sistemática, uma outra
– a deles –, que não pratica esta acumulação, seria
necessariamente pobre e miserável. Perceber que as
sociedades tribais não acumulam não porque não
podem, mas porque não querem, porque fizeram uma
opção diferente, é perceber o “outro” na sua
autonomia. Isto se torna possível, em larga medida,
pelo trabalho de campo.
Assim, quando a Antropologia se deixou guiar
pelas certezas da sociedade do “eu”, sempre que estas
certezas foram os modelos exportados como valor de
verdade, a Antropologia contrariou sua vocação de
preservar a experiência da diversidade.
Isto se deu de forma muito clara quando o
modelo da Antropologia foi o conceito de história.
Quando este conceito, ou melhor, esta forma de ver a
passagem do tempo, foi, então, encaixada com os
conceitos de cultura, a complicação se tornou ainda
maior. Parece que, em vários momentos da teoria
história. Como se a nossa maneira de conceber o
tempo – a história – fosse um modelo eficaz para o
estudo de todas as formas da experiência humana – a
cultura.
Assim, as noções de cultura estavam vinculadas
à contrapartida de uma definição de história. E, viceversa,
a definição de história era legitimada, se
tornava mais “verdadeira”, quando havia uma
determinada visão da cultura.
Com o evolucionismo tudo isto fica muito nítido.
Ali se definia a história da humanidade como uma
trajetória única, como um grande rio no qual todas as
sociedades navegavam juntas.
A esta visão de história correspondia a visão da
cultura como listagem de fenômenos que seriam o
sentido da vida em qualquer lugar. Todas as culturas
teriam de viver experiências iguais, já que todas eram
impulsionadas pelo mesmo motor histórico. A cultura
evolucionista e a história evolucionista são solidárias;
mais que isto, são reciprocamente definíveis.
convencionou chamar “História da Civilização”.
Nesta perspectiva o mundo é mostrado do Egito para a
Grécia, desta para Roma e por aí vai até um capítulo
final tipo “Panorama do Mundo Atual”. Lembram-se
das aulas de História? Do vestibular? Do livro
didático? Pois é. Esta perspectiva só é possível
quando se leva fé num caminho da humanidade em
busca de um desenvolvimento acumulativo
permanente. Ainda mais, quando se acredita que todos
sempre procuraram respostas para as mesmas
perguntas; ou seja, quando se admite que a cultura é
feita de itens iguais em toda parte.
Esta perspectiva – da história e da cultura – é o
que podemos chamar de totalizadora. Totalizadora
porque explica tudo e encaixa qualquer diferença
concretamente existente numa única, grande e
completa explicação. Numa palavra: o “diferente”, o
“outro” é atrasado. É um passado pelo qual já passei,
porque evoluí, progredi. É, na verdade, uma
perspectiva nada relativizadora de pensar a diferença.
Já com o difusionismo de Boas e seus alunos a
lista de itens e é afogada na escolha de um único
aspecto que domina tudo e acaba por defini-la.
A cultura vai ser entendida como moldada, ou
pelo ambiente, ou pelo indivíduo, ou pela linguagem.
É claro que a acentuação num ou noutro destes fatores
faz diferença, mas um traço comum atravessa todas
estas abordagens. Do momento em que se privilegia
um lado da cultura, qualquer que seja, como capaz de
explicá-la inteiramente, no fundo está-se fazendo uma
redução da cultura global a um efeito reflexo deste
lado privilegiado.
Ainda assim, esta idéia de culturas particulares
com problemas e soluções diversas tem, numa idéia
de história, também particular, de trajetórias distintas,
sua contraparte. Outra vez os dois conceitos se
conjugam. A noção de história deixa de ser a da
humanidade como um todo e passa a ser procurada
nos homens concretos com todas as suas diversidades.
Nesta perspectiva, tudo se relativiza, mas pagando o
preço de reduzir a cultura a uma espécie de
conseqüência de um de seus próprios lados.
Com Durkheim, Radcliffe-Brown e Malinowski
a idéia de cultura toma uma força extraordinária e se
desprende da História. No plano da observação do
“outro” a regra do jogo é a sincronia e, para conhecêla,
experimentar a barra da “diferença” através do
trabalho de campo. No plano teórico, a noção de fato
social consagra a autonomia do objeto de estudo das
ciências sociais. Colocava-se, assim, nitidamente a
possibilidade de um entendimento da cultura humana
de um ponto de vista não histórico.
Passamos, pois, de um “movimento” onde a
História era ordenadora dos estádios das culturas
humanas para outro onde se torna particular a cada
uma delas e chegamos ao movimento onde entender
uma cultura dela independe.
Agora chega o “movimento” em que a
Antropologia e, através dela, a sociedade do “outro”
deixam de ser pensadas por categorias, noções e
concepções da sociedade do “eu” e passam a poder
pensá-las e relativizá-las. Em outras palavras, as
noções da Antropologia tornam-se capazes de pensar
totalizador das “diferenças”, pode passar a ser
questionado.
Neste questionamento, a Antropologia vai atingir
um dos centros principais, o coração por assim dizer,
da maneira pela qual a nossa sociedade concebe a
existência. A Antropologia se permite mostrar que a
nossa concepção de tempo não é nem absoluta nem
universal. É, simplesmente, a concepção de uma
sociedade entre outras e que vale tanto quanto
qualquer outra.
É o próprio Lévi-Strauss quem, sem descartar o
valor da história como instrumento de conhecimento,
se pergunta sobre qual história estamos falando
quando nossa sociedade quer fazer dela a principal
forma de entender o “outro”. Será história aquilo que
os homens fazem no seu cotidiano sem saberem que
estão fazendo? Ou será o que fazem os historiadores
sabendo que estão fazendo uma história dos homens?
Pode, também, ser a interpretação filosófica feita tanto
sobre a história dos homens quanto sobre a dos
historiadores.
Você, leitor, se sente fazendo história, sendo
parte dela, estudando o que fazem aqueles que você
acha que fazem história ou simplesmente pensando
sobre tudo isso filosoficamente?
O livro onde Lévi-Strauss se faz estas perguntas
chama-se Pensamento Selvagem. Nas páginas onde se
questiona sobre a história está travando um debate
com as idéias de Jean-Paul Sartre. Este é o último
capítulo do livro. Antes, nos capítulos anteriores, ele
demonstra, entre outras coisas muito importantes para
o conhecimento do ser humano, a existência de uma
forma alternativa de se conceber o tempo.
Por incrível que possa parecer, muitas culturas e
sociedades ao redor do mundo não acharam a
perspectiva histórica (nossa maneira de pensar o
tempo) suficientemente interessante para adotá-la.
Para elas, o tempo e a sua passagem não é a cadeia
onde se entrelaçam os acontecimentos.
Ou seja, possuem muito pouco sentido no seu
entendimento da existência.
com e estudou um grupo de índios do Brasil central
chamados Apinayés. Para um Apinayé, diz ele, a
unidade, o fluxo, a continuidade do seu mundo não é
fruto de uma noção de tempo, tipo causa e
conseqüência. É, tentando explicar poeticamente, um
jogo de espelhos. Um no céu, outro no chão.
O Apinayé concebe a existência de um “presente
anterior” onde o mundo se forma. Uma espécie de
“tempo da aurora” universal onde o homem adquiriu
sua existência. Esse tempo se contrapõe, é espelho do
“presente atual” que procura reproduzi-lo.
Tudo o que foi realizado no “presente anterior” é
o mesmo que se realiza no “presente atual”. O
passado é um tempo que se reflete no de hoje como
um ciclo que permanentemente oscila entre dois
pontos – “presente anterior” e “presente atual” –, que
são como dois momentos fixos.
O tempo não é, tal como para nós, um fluxo, uma
linearidade ininterrupta, mas, para um Apinayé, o
tempo é sentido, pensado e vivido como
descontinuidade. Houve o tempo da aurora onde se
fixou a existência e há o tempo do agora onde se
pratica aquela forma de existir.
Talvez isto possa parecer extremamente
complexo, estranho e ininteligível até. E é mesmo, na
medida em que esta concepção de tempo nos exige
que relativizemos a nossa. Dá para sentir, por esta
pequena experiência de entender algo tão fundamental
para o “outro” como o tempo, o quanto é difícil o
processo de relativização. Dá para sentir o quanto a
Antropologia foi obrigada a batalhar, desdobrar-se,
revirar-se para atingir uma compreensão de coisas
como esta. Muito mais simples seria dizer que o
“outro” não sabe o que é o tempo ou que sabe, mas de
maneira errada. Mais fácil, enfim, seria aplicar ao
“outro” a nossa concepção de tempo pura e
simplesmente.
Estes e outros exercícios de sair de si mesmo, de
relativizar, foram realizados pela Antropologia. A
cada novo estudo antropológico que se realiza temos
como que um movimento no sentido de procurar
conhecer o “outro” na forma como este “outro”
mundo, seu tempo, sua existência, e não explicar os
Apinayé pelo nosso mundo, nosso tempo, nossa
existência.
Mas, para isto a Antropologia foi obrigada a
municiar-se de teorias, métodos e, até mesmo, de uma
redefinição de seu papel como ciência.
Uma das idéias mais importantes nesta
perspectiva foi colocada em discussão num livro
chamado A Interpretação das Culturas, do
antropólogo americano Clifford Geertz. Ele diz que a
Antropologia não é uma ciência de tipo experimental
que tenha como objetivo a procura de leis gerais e
constantes. Ela é uma ciência interpretativa que busca
apenas conhecer os significados que os seres
humanos, tanto na sociedade do “eu” quanto do
“outro”, dão às formas pelas quais escolheram viver
suas vidas.
Leva ainda adiante esta idéia apontando que uma
das finalidades da disciplina é ser uma espécie de
“arquivo universal”, de “catálogo geral” das
alternativas humanas de existência. Os ilhéus de
por Malinowski, à qual nos referimos no capítulo
anterior, não existem mais. No entanto, os
trobriandeses estão aí vivos, enquanto uma
experiência social alternativa à nossa, pelo trabalho de
Malinowski.
O mundo muda; destrói sociedades, cria outras.
Aniquila experiências sociais e propõe novos projetos
de viver. A Antropologia, ao contrário, fixa de
maneira recuperável as existências que se esvaem, as
formas de experimentar a riqueza da vida que amanhã
podem não estar mais disponíveis. Numa palavra:
procura colocar ao alcance do ser humano as respostas
existenciais que deram os vários “outros” pelo mundo
afora.
Esta tarefa, tanto humilde quanto generosa, passa
a ser possível quando a Antropologia encontra o que
parece ser uma espécie de vocação. Aquela de ser
uma ciência, um saber, um conhecimento ou, se
quisermos, uma literatura que não é das verdades
absolutas, mas das interpretações relativas. Para tanto
foi fundamental uma nova definição de cultura onde
dimensão interpretativa, um conceito de cultura
suficientemente aberto permitindo o encontro com o
“outro”. Melhor dizendo, o fenômeno das culturas
humanas vai ser visto como a alternativa que
sociedades concretas escolheram de organizar,
classificar e praticar sua experiência.
Assim, vários e importantes antropólogos
procuraram juntar o conceito de cultura com a idéia de
um código. Um código é uma espécie de “linguagem”
compartilhada, pela qual “falamos” uns com os
outros, trocamos mensagens, utilizando símbolos de
diferentes tipos. Qualquer coisa pode se tornar um
símbolo e estes se organizam em sistemas que são,
por assim dizer, como que mapas, conjuntos de regras
para o pensamento e a ação.
A cultura, nessa linha, pode ser vista como um
texto de teatro que aprendemos e representamos e os
outros atores nos entendem e conosco contracenam
porque também conhecem o texto. Pode também ser
vista como uma teia, metáfora explorada por Clifford
Geertz, onde o homem tece seus significados e está a
Cada um de nós, enquanto ator social, existe e
troca mensagens dentro do código fundamental que
temos em comum. Este código é a cultura. Nesse
sentido, cada cultura atribui significados, sentidos,
destinos próprios, seja ao seu “tempo”, seu “corpo”,
sua “morte”, sua “sexualidade”, etc. Tal como um
código, a cultura “fala” da existência. Ela simboliza
esta existência segundo as regras do seu jogo.
Sendo entendida como um sistema de
comunicação que dá sentido à nossa vida, as culturas
humanas constituem-se de conjuntos de verdades
relativas aos atores sociais que nela aprenderam por
que e como existir. As culturas são “versões” da vida;
teias, imposições, escolhas de uma “política” dos
significados que orientam e constroem nossas
alternativas de ser e de estar no mundo.
Todas as dimensões de uma cultura – da comida
à música, da arquitetura à roupa e tantas mais – são
pequenos conjuntos padronizados que trazem dentro
de si algum tipo de informação sobre quem somos, o
que pensamos e fazemos. Estes conjuntos são
sistema de comunicação mais amplo, que seria a
própria cultura de determinada sociedade.
O que faz, então, a Antropologia diante da
cultura assim definida? Qual sua forma para conhecer
estes sistemas de comunicação nos quais vivem os
seres humanos?
O ofício do antropólogo é captar as lógicas e
práticas através das quais todos nós atualizamos os
códigos de nossas culturas. Em termos mais precisos,
seria interpretar este fluxo do discurso social,
conhecer as diferentes realidades confeccionadas pelo
homem, guardar, enfim, as alternativas existenciais
através das quais a humanidade se move. Quaisquer
que sejam as possibilidades da Antropologia ela, ao
menos, livrou-se, definitivamente, de confundir a
singularidade cultural da sociedade do “eu” com todas
as formas possíveis de existência do “outro”.
Quando pensamos na fuga ao etnocentrismo, que
significa o questionamento de noções como
“economia de subsistência” ou “tempo como
história”, vemos o quanto a Antropologia já percorreu
Este caminho, do etnocentrismo à relativização, é
trilhado na medida em que, em todos e cada um dos
domínios dentro de uma cultura, a Antropologia
discorda do princípio da sociedade do “eu” como
medida de todas as coisas.
Este é, por exemplo, o caso do domínio das
relações de parentesco. O nosso sistema supõe que a
família deva transmitir e localizar toda uma série de
bens, direitos e deveres. Herança, propriedade, nome e
até mesmo um estilo de corpo e traços do rosto ou
uma certa forma de personalidade e sentimento. Mas,
de jeito nenhum supõe que ela determine com quem
devo casar, quem serão meus amigos e aliados.
Na nossa sociedade o casamento é assumido
como um ato individual, uma escolha psicológica, dita
livre e guiada pela ideologia do amor romântico. O
sentimento que une os cônjuges expressa tendências,
preferências e escolhas que pertencem ao indivíduo.
Assim, sistemas de parentesco, encontrados nas
sociedades do “outro”, que determinam não apenas os
parentes consangüíneos – pais, irmãos, etc. – mas
como o cônjuge, pareciam, para dizer o mínimo,
absurdos.
Estes sistemas ficavam praticamente
incompreensíveis aos nossos olhos ocidentais sempre
que se tentava entendê-los tomando a família nuclear
(marido, mulher e filhos) como o centro a partir do
qual se deveria pensar todo o parentesco. Lévi-Strauss
vai mostrar, num famoso livro, As Estruturas
Elementares do Parentesco, que a nossa visão da
família nuclear como coração do sistema e unidade
auto-suficiente é etnocêntrica.
Se entre nós a escolha do cônjuge, o lado,
portanto, da afinidade no parentesco, é decidida
individualmente, em muitas sociedades do “outro”
esta escolha é fortemente determinada. Isto quer dizer
que, para entender estes sistemas de parentesco, é
necessário ver que o coração, o centro deste sistema, a
chave para sua compreensão, está numa unidade que
inclua também a afinidade.
Disso resulta, nos próprios termos de Lévi-
Strauss, um outro tipo de “átomo de parentesco” que
afinidade. A afinidade nestes sistemas, mostra ele, não
é um dado psicológico, de “foro íntimo”, mas um
fator estrutural sem o que não se compreende sua
lógica e seu sentido social.
Tudo isto indica que a Antropologia, para
compreender o “outro”, se obriga sistematicamente a
sair das concepções da sociedade do “eu”. Qualquer
que seja a arena onde se discute a cultura humana,
seja no “parentesco” ou na “economia”, seja na
“individualidade” ou na “história”, a compreensão do
“outro” chega a um ponto irreversível: a recusa de
assumir a sociedade do “eu” como juízo final onde se
encontra a verdade.
Aqui voltamos direto ao nosso tema. O que é,
enfim, etnocentrismo? Acredito que a resposta está
dada em cada um destes pequenos, por vezes quase
invisíveis, movimentos que aconteceram na
Antropologia. Tudo isso é muito pouco, realmente,
frente a um sem-número de ideologias, morais,
princípios e juízes espalhados na nossa sociedade,
constituindo um sem-número de estereótipos do
oceano de pensamentos e práticas sociais
marcadamente etnocêntricas.
Nas relações internacionais, interétnicas, nos
costumes políticos, na indústria cultural, sua
exploração econômica e até mesmo na observação do
comportamento do nosso vizinho ou em vários outros
espaços de pensamento e de ação social, muito pouco
se relativiza. O que se passou na Antropologia, como
vimos nesta pequena viagem por algumas de suas
paisagens, foi ao preço de enfrentar a complexidade
que significa sair do etnocentrismo.
A Antropologia reflete, no jogo de seus
movimentos, conjuntos de idéias, conceitos, métodos
e técnicas que, na tensão do relacionamento entre o
“eu” e o “outro”, procuram a relativização como
possibilidade de conhecimento. O ser da sociedade do
“eu” e os da sociedade do “outro” devem estar mais
perto do espelho onde as diferenças se olham como
escolha, esperança e generosidade. Devem estar,
também, mais longe das hierarquias que se traduzem
em formas de dominação.
Enfim, o etnocentrismo é exorcizado. O mundo
no qual a Antropologia pensa se torna complexo e
relativo. Chegamos ao ponto de voltar dessa viagem.
A ida ao “outro” se faz alternativa para o “eu”. O
plano onde as diferenças se encontram, onde o “eu” e
o “outro” se podem olhar como iguais, onde a
comparação se traduz num enriquecimento de
possibilidades existenciais, é o plano mais amplo e
profundo de um humanismo do qual o etnocentrismo
se ausenta.
Este, acredito, é o plano para onde a
Antropologia encaminha nosso pensamento. Aí, no
lugar em que ela exerce seu esforço de aprendizado,
sentimentos, pensamentos e práticas etnocêntricas se
complexificam, se transformam, se relativizam. Aí
também, no encontro entre o “eu” e o “outro”, emerge
uma compreensão do ser humano, a um só tempo,
problematizada e generosa.
INDICAÇÕES PARA
LEITURA
Em primeiro lugar um clássico na literatura
antropológica sobre o assunto: é o livro Raça e
História de Claude Lévi-Strauss. Nele são debatidas
as questões do “etnocentrismo”, das “raças”, da
“evolução”, da “história” e da “cultura”. É um belo
livro sobre o respeito à diferença e à igualdade de
direitos entre os seres humanos. Extremamente
interessante, pequeno, rico, com várias traduções para
o português. Creio que a mais acessível saiu no
volume Lévi-Strauss da coleção “Os Pensadores”. O
livro é simples, gostoso de ler e repleto de idéias que
servem para debates profundos sobre a humanidade.
Foi escrito originalmente a pedido da UNESCO e por
ela publicado em 1952.
Em termos de Brasil, o excelente livro do
professor Roberto Da Matta, cujo título,
tratamento dos temas. É um livro que permite uma
primeira aproximação com a Antropologia no que,
acredito, seja um de seus melhores aspectos: a
possibilidade de relativizar e conhecer o “outro”.
Dois livros do antropólogo francês Pierre
Clastres, Arqueologia da Violência e A Sociedade
contra o Estado, são maravilhosos e polêmicos,
tratando de relativizar e mostrar dimensões diversas
de fenômenos como a economia e a política, entre
outros. Vários livros da coleção “Primeiros Passos”
podem mostrar muitas formas de fugir ao
etnocentrismo. A própria idéia de perguntar “o que
é?” já significa um primeiro passo no sentido da
relativização.
Biografia
Everardo P. Guimarães Rocha
Carioca nascido em 1 de
outubro de 1951, fiz meus
estudos pré-universitários no
Colégio São Vicente de
Paula e, em 1975, formei-me
em Comunicação Social na
PUC do Rio de Janeiro.
Em seguida, entrei para
o Mestrado de Comunicação
da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
completando o curso em 1979. Obtive, ainda, em
1982, o grau de Mestre em Antropologia Social pelo
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
do Museu Nacional da UFRJ. Nesta instituição, sob a
orientação do Prof. Dr. Roberto da Matta, escrevo a
dissertação “Magia e Capitalismo: um estudo
compará-los aos mitos, rituais e ao pensamento
mágico das sociedades tribais.
Atualmente, sou professor do Departamento de
Comunicação Social da PUC/RJ, bolsita do CNPq e
curso o Doutorado em Antropologia Social do Museu
Nacional. Tenho diversos trabalhos publicados, entre
os quais “Um índio Didático” na coletânea
Testemunha Ocular: Textos de Antropologia Social
do Cotidiano da Editora Brasiliense.
A carreira como pesquisador me levou, entre
outras “viagens”, à realização de estudos para o
roteiro do filme Quilombo de Cacá Diégues onde
apareço rápido, porém sinceramente, como ator.

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