quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Por que não sou Cristão - Bertrand Russell


Por que não sou Cristão
Um exame da idéia divina e do cristianismo
Ateus.net » Artigos/ensaios » Crítica ao teísmo
Autor: Bertrand Russell
Tradução: Diego Barreto Haddad
Como vosso presidente vos disse, o assunto que vou falar-vos esta noite se intitula: “Porque não sou
cristão”. Talvez fosse bom, antes de mais nada, que procurássemos formular o que se entende pela
palavra “cristão”. É ela usada, hoje em dia, por um grande número de pessoas, num sentido muito
impreciso. Para alguns, não significa senão uma pessoa que procura viver uma vida virtuosa. Neste
sentido, creio que haveria cristãos em todas as seitas e em todos os credos; mas não me parece que esse
seja o sentido próprio da palavra, pois isso implicaria que todas as pessoas que não são cristãs – todos os
budistas, confucianos, maometanos e assim por diante – não estão procurando viver uma vida virtuosa.
Não considero cristã qualquer pessoa que tente viver decentemente de acordo com sua razão. Penso que
se deve ter uma certa dose de crença definida antes que a gente tenha o direito de se considerar cristão.
Essa palavra não tem hoje o mesmo sentido que tinha ao tempo de Santo Agostinho e de Santo Tomás de
Aquino. Naqueles dias, quando um homem se dizia cristão, sabia-se o que ele queria significar. As
pessoas aceitavam toda uma série de crenças estabelecidas com grande precisão, e acreditavam, com
toda a força de suas convicções, em cada sílaba de tais crenças.
Que é um cristão?
Hoje em dia não é bem assim. Tem-se de ser um pouco mais vago quanto ao sentido de
cristianismo. Penso, porém, que há dois itens diferentes e essenciais para que alguém se intitule cristão.
O primeiro é de natureza dogmática – a saber, que tem-se de acreditar em Deus e na imortalidade. Se
não se acredita nessas duas coisas, não penso que alguém possa chamar-se, apropriadamente, cristão.
Além disso, como o próprio nome o indica, deve-se ter alguma espécie de crença acerca de Cristo. Os
maometanos, por exemplo, também acreditam em Deus e na imortalidade, no entanto, dificilmente
poderiam chamar-se cristãos. Acho que se precisa ter, no mínimo, a crença de que Cristo era, se não
divino, pelo menos o melhor e o mais sábio dos homens. Se não tiverdes ao menos essa crença quanto ao
Cristo, não creio que tenhais qualquer direito de intitular-vos cristãos. Existe, naturalmente, um outro
sentido, que poderá ser encontrado no Whitaker’s Almanack e em livros de geografia, nos quais se diz que
a população do mundo se divide em cristãos, maometanos, adoradores de fetiches e assim por diante – e,
nesse sentido, somos todos cristãos. Os livros de geografia incluem-nos todos, mas isso num sentido
puramente geográfico, que, parece-me, podemos ignorar. Por conseguinte, julgo que, ao dizer-vos que
não sou cristão, tenho de contar-vos duas coisas diferentes: primeiro, por que motivo não acredito em
Deus e na imortalidade e, segundo, por que não acho que Cristo foi o melhor e o mais sábio dos homens,
embora eu lhe conceda um grau muito elevado de bondade moral.
Mas, devido aos esforços bem-sucedidos dos incrédulos no passado, não poderia valer-me de uma
definição de cristianismo tão elástica como essa. Como disse antes, antigamente ela possuía um sentido
muito mais vigoroso. Incluía, por exemplo, a crença no inferno. A crença no fogo eterno do inferno era
cláusula essencial da fé cristã até tempos bastante recentes. Neste país, como sabeis, deixou de ser item
essencial devido a uma decisão do Conselho Privado e, por causa dessa decisão, houve uma dissensão
entre o Arcebispo de Cantuária e o Arcebispo de York – mas, neste país, a nossa religião é estabelecida
por ato do Parlamento e, por conseguinte, o Conselho Privado pôde sobrepor-se a Suas Excelências
Reverendíssimas e o inferno deixou de ser coisa necessária a um cristão. Não insistirei, portanto, em que
um cristão deva acreditar no inferno.
A existência de Deus
Esta questão da existência de Deus é um assunto longo e sério, e, se eu tentasse tratar do tema de
maneira adequada, teria de reter-vos aqui até o advento do Reino dos Céus, de modo que me perdoareis
se o abordar de maneira um tanto sumária. Sabeis, certamente, que a Igreja Católica estabeleceu como
dogma que a existência de Deus pode ser provada sem ajuda da razão. Trata-se de um dogma um tanto
curioso, mas é um de seus dogmas. Tiveram de introduzi-lo porque, em certa ocasião, os livrespensadores
adotaram o hábito de dizer que havia tais e tais argumentos que a simples razão poderia
levantar contra a existência de Deus, mas eles certamente sabiam, como uma questão de fé, que Deus
existia. Tais argumentos e razões foram minuciosamente expostos, e a Igreja Católica achou que devia
acabar com aquilo. Estabeleceu, por conseguinte, que a existência de Deus pode ser provada sem ajuda
da razão, e seus dirigentes tiveram de estabelecer o que consideravam argumentos capazes de prová-lo.
Há, por certo, muitos deles, mas tomarei apenas alguns.
O argumento da causa primeira
Talvez o mais simples e fácil de se compreender seja o argumento da Causa Primeira. Afirma-se que
tudo o que vemos neste mundo tem uma causa e que, se retrocedermos cada vez mais na cadeia de tais
causas, acabaremos por chegar a uma Causa Primeira, e que a essa Causa Primeira se dá o nome de
Deus. Esse argumento, creio eu, não tem muito peso hoje em dia, em primeiro lugar porque causa já não
é bem o que costumava ser. Os filósofos e os homens de ciência têm martelado muito a questão de
causa, e ela não possui nada que se assemelhe à vitalidade que tinha antes; mas, à parte tal fato, podese
ver que o argumento de que deve haver uma Causa Primeira é um argumento que não pode ter
qualquer validade. Posso dizer que quando era jovem e debatia muito seriamente em meu espírito tais
questões, eu, durante muito tempo, aceitei o argumento da Causa Primeira, até que, certo dia, aos
dezoito anos de idade, li a Autobiografia de John Stuart Mill, lá encontrando a seguinte sentença: “Meu pai
ensinou-me que a pergunta ‘Quem me fez?’ não pode ser respondida, já que sugere imediatamente a
pergunta subseqüente: ‘Quem fez Deus?’”. Essa simples sentença me mostrou, como ainda hoje penso, a
falácia do argumento da Causa Primeira. Se tudo tem de ter uma causa, então Deus deve ter uma causa.
Se pode haver alguma coisa sem causa, pode ser muito bem ser tanto o mundo como Deus, de modo que
não pode haver validade alguma em tal argumento. Este é exatamente da mesma natureza que o ponto
de vista hindu, de que o mundo se apoiava sobre um elefante e o elefante sobre uma tartaruga, e quando
alguém perguntava: “E a tartaruga?”, o indiano respondia: “Que tal se mudássemos de assunto?” O
argumento, na verdade, não é melhor do que este. Não há razão pela qual o mundo não pudesse vir a ser
sem uma causa; por outro lado, tampouco há qualquer razão pela qual o mesmo não devesse ter sempre
existido. Não há razão, de modo algum, para se supor que o mundo teve um começo. A idéia de que as
coisas devem ter um começo é devida, realmente, à pobreza de nossa imaginação. Por conseguinte, eu
talvez não precise desperdiçar mais tempo com o argumento acerca da Causa Primeira.
O argumento da lei natural
Há, a seguir, um argumento muito comum relativo à lei natural. Foi esse argumento predileto
durante todo o século XVIII, principalmente devido à influência de Sir Isaac Newton e de sua cosmogonia.
As pessoas observavam os planetas girar em torno do Sol segundo a lei da gravitação e pensavam que
Deus dera uma ordem a tais planetas para que se movessem de modo particular – e que era por isso que
eles assim o faziam. Essa era, certamente, uma explicação simples e conveniente, que lhes poupava o
trabalho de procurar quaisquer novas explicações para a lei da gravitação. Hoje em dia, explicamos a lei
da gravitação de um modo um tanto complicado, apresentado por Einstein. Não me proponho fazer aqui
uma palestra sobre a lei da gravitação tal como foi interpretada por Einstein, pois que também isso
exigiria algum tempo; seja como for, já não temos a mesma espécie de lei natural que tínhamos no
sistema newtoniano, onde, por alguma razão que ninguém podia compreender, a natureza agia de
maneira uniforme. Vemos, agora, que muitas coisas que considerávamos como leis naturais não passam,
na verdade, de convenções humanas. Sabeis que mesmo nas mais remotas profundezas do sistema
estelar uma jarda tem ainda três pés de comprimento. Isso constitui, sem dúvida, fato notabilíssimo, mas
dificilmente poderíamos chamá-lo de lei da natureza. E, assim, muitíssimas outras coisas antes encaradas
como leis da natureza são dessa espécie. Por outro lado, qualquer que seja o conhecimento a que
possamos chegar sobre a maneira de agir dos átomos, veremos que eles estão muito menos sujeitos a
leis do que as pessoas julgam, e que as leis a que a gente chega são médias estatísticas exatamente da
mesma classe das que ocorreriam por acaso. Há, como todos nós sabemos, uma lei segundo a qual, no
jogo de dados, só obteremos dois seis apenas uma vez em cerca de trinta e seis lances, e não encaramos
tal fato como uma prova de que a queda dos dados é regulada por um desígnio; se, pelo contrário, os
dois seis saíssem todas as vezes, deveríamos pensar que havia um desígnio. As leis da natureza são
dessa espécie, quanto ao que se refere a muitíssimas delas. São médias estatísticas como as que
surgiriam das leis do acaso – e isso torna todo este assunto das leis naturais muito menos impressionante
do que em outros tempos. Inteiramente à parte disso, que representa um estado momentâneo da ciência
que poderá mudar amanhã, toda a idéia de que as leis naturais subentendem um legislador é devida à
confusão entre as leis naturais e as humanas. As leis humanas são ordens para que procedamos de certa
maneira, permitindo-nos escolher se procedemos ou não da maneira indicada; mas as leis naturais são
uma descrição de como as coisas de fato procedem e, não sendo senão uma mera descrição do que elas
de fato fazem, não se pode argüir que deve haver alguém que lhes disse para que assim agissem, porque,
mesmo supondo-se que houvesse, estaríamos diante da pergunta: “Por que Deus lançou justamente
essas leis naturais e não outras?” Se dissermos que Ele o fez a Seu próprio bel-prazer, e sem qualquer
razão para tal, verificaremos, então, que há algo que não está sujeito à lei e, desse modo, se interrompe
a nossa cadeia de leis naturais. Se dissermos, como o fazem os teólogos mais ortodoxos, que em todas as
leis feitas por Deus Ele tinha uma razão para dar tais leis em lugar de outras – sendo que a razão,
naturalmente, seria a de criar o melhor universo, embora a gente jamais pensasse nisso ao olhar o
mundo –, se havia uma razão para as leis ministradas por Deus, então o próprio Deus estava sujeito à lei,
por conseguinte, não há nenhuma vantagem em se apresentar Deus como intermediário. Temos aí
realmente uma lei exterior e anterior aos editos divinos, e Deus não serve então ao nosso propósito, pois
que Ele não é o legislador supremo. Em suma, todo esse argumento da lei natural já não possui nada que
se pareça com seu vigor de antigamente. Estou viajando no tempo em meu exame dos argumentos. Os
argumentos quanto à existência de Deus mudam de caráter à medida que o tempo passa. Eram, a
princípio, argumentos intelectuais, rígidos, encerrando certas idéias errôneas bastante definidas. Ao
chegarmos aos tempos modernos, essas idéias se tornam intelectualmente menos respeitáveis e cada vez
mais afetadas por uma espécie de moralizadora imprecisão.
O argumento teleológico (argumento do design)
O passo seguinte nos conduz ao argumento da prova teleológica da existência de Deus. Vós todos
conheceis tal argumento: tudo no mundo é feito justamente de modo a que possamos nele viver, e se ele
fosse, algum dia, um pouco diferente, não conseguiríamos viver nele. Eis aí o argumento da prova
teleológica de Deus. Toma ele, às vezes, uma forma um tanto curiosa; afirma-se, por exemplo, que as
lebres têm rabos brancos a fim de que possam ser facilmente atingidas por um tiro. Não sei o que as
lebres pensariam deste destino. É um argumento fácil de se parodiar. Todos vós conheceis a observação
de Voltaire, de que o nariz foi, evidentemente, destinado ao uso dos óculos. Essa espécie de gracejo
acabou por não estar tão fora do alvo como poderia ter parecido no século XVIII, pois que, desde o tempo
de Darwin, compreendemos muito melhor por que os seres vivos são adaptados ao meio em que vivem.
Não é o seu meio que se foi ajustando aos mesmos, mas eles é que foram se ajustando ao meio, e isso é
que constitui a base da adaptação. Não há nisso prova alguma de desígnio divino.
Quando se chega a analisar o argumento teleológico da prova da existência de Deus, é sumamente
surpreendente que as pessoas possam acreditar que este mundo, com todas as coisas que nele existem,
como todos os seus defeitos, deva ser o melhor mundo que a onipotência e a onisciência tenham podido
produzir em milhões de anos. Realmente não posso acreditar nisso. Achais, acaso, que, se vos fossem
concedidas onipotência e onisciência, além de milhões de anos para que pudésseis aperfeiçoar o vosso
mundo, não teríeis podido produzir nada melhor do que a Ku-Klux-Klan ou os fascistas? Realmente, não
me impressiono muito com as pessoas que dizem: “Olhem para mim: sou um produto tão esplêndido que
deve haver um desígnio no universo”. Não estou muito impressionado pelo esplendor dessas pessoas.
Ademais, se aceitais as leis ordinárias da ciência, tereis de supor que não só a vida humana como a vida
em geral neste planeta se extinguirão em seu devido curso: isso constitui uma fase da decadência do
sistema solar. Em certa fase de decadência, teremos a espécie de condições de temperatura, etc.,
adequadas ao protoplasma, e haverá vida, durante breve tempo, na vida do sistema solar. Podeis ver na
Lua a espécie de coisa a que a Terra tende: algo morto, frio e inanimado.
Dizem-me que tal opinião é depressiva e, às vezes, há pessoas que nos confessam que, se
acreditassem nisso, não poderiam continuar vivendo. Não acrediteis nisso, pois que não passa de tolice.
Na verdade, ninguém se preocupa muito com o que irá acontecer daqui a milhões de anos. Mesmo que
pensem que estão se preocupando muito com isso, não estão, na realidade, fazendo outra coisa senão
enganar a si próprias. Estão preocupadas com algo muito mais mundano – talvez mesmo com a sua má
digestão. Na verdade, ninguém se torna realmente infeliz ante a idéia de algo que irá acontecer a este
mundo daqui a milhões e milhões de anos. Por conseguinte, embora seja melancólico supor-se que a vida
irá se extinguir (suponho, ao menos, que se possa dizer tal coisa, embora, às vezes, quando observo o
que as pessoas fazem de suas vidas, isso me pareça quase um consolo) isso não é coisa que torne a vida
miserável. Faz apenas com que a gente volte a atenção para outras coisas.
Os argumentos morais em favor da deidade
Chegamos, agora, no estágio subseqüente do que eu denomino a descendência intelectual que os
teístas tem feito em suas argumentações, e deparamo-nos com o que se chama de argumentos morais
para a existência de Deus. Vós todos sabeis, por certo, que costumava haver, antigamente, três
argumentos intelectuais a favor da existência de Deus, os quais foram todos utilizados por Immanuel Kant
em sua Crítica da Razão Pura; mas, logo depois de haver utilizado tais argumentos, inventou ele um
novo, um argumento moral, e isso o convenceu inteiramente. Kant era como muita gente: em questões
intelectuais, mostrava-se cético, mas, em questões morais, acreditava implicitamente nas máximas
hauridas no colo de sua mãe. Eis aí um exemplo daquilo que os psicanalistas tanto ressaltam: a influência
imensamente mais forte de nossas primeiras associações do que das que se verificam mais tarde.
Kant, como digo, inventou um novo argumento moral quanto à existência de Deus, e o mesmo, em
formas várias, se tornou grandemente popular durante o século XIX. Tem hoje toda a espécie de formas.
Uma delas é a que afirma que não haveria o bem ou o mal a menos que Deus existisse. Não estou, no
momento, interessado em saber se há ou não uma diferença entre o bem e o mal. Isso é outra questão.
O ponto em que estou interessado é que, se estamos tão certos de que existe uma diferença entre o bem
e o mal, nos achamos, então, na seguinte situação: é essa diferença devida à determinação de Deus ou
não? Se é devida à vontade de Deus, então não existe, para o próprio Deus, diferença entre o bem e o
mal, e não constitui mais uma afirmação significativa o dizer-se que Deus é bom. Se dissermos, como o
fazem os teólogos, que Deus é bom, teremos então de dizer que o bem e o mal possuem algum sentido
independente da vontade de Deus, porque os desejos de Deus são bons e não-maus independentemente
do fato dele os haver feito. Se dissermos tal coisa, teremos então de dizer que não foi apenas através de
Deus que o bem e o mal passaram a existir, mas que são, em sua essência, logicamente anteriores a
Deus.
Poderíamos, por certo, se assim desejássemos, dizer que havia uma deidade superior que dava
ordens ao Deus que fez este mundo, ou, então, poderíamos adotar o curso seguido por alguns agnósticos
– curso que me pareceu, com freqüência, bastante plausível –, segundo o qual, na verdade, o mundo que
conhecemos foi feito pelo Diabo num momento em que Deus não estava olhando. Há muito que se dizer
em favor disso, e não estou interessado em refutá-lo.
O argumento quanto à reparação da injustiça
Há uma outra forma muito curiosa de argumento moral, que é a seguinte: dizem que a existência de
Deus é necessária a fim de que haja justiça no mundo. Na parte do universo que conhecemos há grande
injustiça e, não raro, os bons sofrem e os maus prosperam, e a gente mal sabe qual dessas coisas é mais
molesta; mas, para que haja justiça no universo como um todo, temos de supor a existência de uma vida
futura para reparar a vida aqui na Terra. Assim, dizem que deve haver um Deus, e que deve haver céu e
inferno, a fim de que, no fim, possa haver justiça. É esse um argumento muito curioso. Se encarássemos
o assunto de um ponto de vista científico, diríamos: “Afinal de contas, conheço apenas este mundo. Nada
sei do resto do universo, mas, tanto quanto se pode raciocinar acerca das probabilidades, dir-se-ia que
este mundo constitui uma bela amostra e, se há aqui injustiça, é bastante provável que também haja
injustiça em outras partes”. Suponhamos que recebeis um engradado de laranjas e que, ao abri-lo,
verificais que todas as laranjas de cima estão estragadas. Não diríeis, em tal caso: “As de baixo devem
estar boas, para compensar as de cima”. Diríeis: “É provável que todas estejam estragadas”. E é
precisamente isso que uma pessoa de espírito científico diria a respeito do universo. Diria: “Encontramos
neste mundo muita injustiça e, quanto ao que isso se refere, há razão para se supor que o mundo não é
governado pela justiça. Por conseguinte, tanto quanto posso perceber, isso fornece um argumento moral
contra a deidade e não a seu favor”. Sei, certamente, que os argumentos intelectuais sobre os quais vos
estou falando não são, na verdade, de molde a estimular as pessoas. O que realmente leva os indivíduos
a acreditar em Deus não é nenhum argumento intelectual. A maioria das pessoas acredita em Deus
porque lhes ensinaram, desde tenra infância, a fazê-lo, e essa é a principal razão.
Penso, ainda, que a seguinte e mais poderosa razão disso é o desejo de segurança, uma espécie de
impressão de que há um irmão mais velho a olhar pela gente. Isso desempenha um papel muito
profundo, influenciando o desejo das pessoas quanto a uma crença em Deus.
O caráter de Cristo
Desejo agora dizer algumas palavras sobre um tema que, penso com freqüência, não foi tratado
suficientemente pelos racionalistas, e que é a questão de saber-se se Cristo foi o melhor e o mais sábio
dos homens. É geralmente aceito como coisa assente que deveríamos todos concordar em que assim é.
Não penso desse modo. Acho que há muitíssimos pontos em que concordo com Cristo muito mais do que
o fazem os cristãos professos. Não sei se poderia concordar com Ele em tudo, mas posso concordar muito
mais do que a maioria dos cristãos professos o faz. Lembrar-vos-ei que Ele disse: “Não resistais ao mau,
mas, se alguém te ferir em tua face direita, apresenta-lhe também a outra”. Isto não era um preceito
novo, nem um princípio novo. Foi usado por Lao-Tse e por Buda cerca de quinhentos ou seiscentos anos
antes de Cristo, mas não é um princípio que, na verdade, os cristãos aceitem. Não tenho dúvida de que o
Primeiro-Ministro (Stanley Baldwin), por exemplo, é um cristão sumamente sincero, mas não aconselharia
a nenhum de vós que o ferisse na face. Penso que, então, poderíeis descobrir que ele considerava esse
texto como algo que devesse ser empregado em sentido figurado.
Há um outro ponto que julgo excelente. Lembrar-vos-eis, por certo, de que Cristo disse: “Não
julgueis, para que não sejais julgados”. Não creio que vós considerásseis tal princípio como sendo popular
nos tribunais dos países cristãos. Conheci, em outros tempos, muitos juízes que eram cristãos
sumamente convictos, e nenhum deles achava que estava agindo, no que fazia, de maneira contrária aos
princípios cristãos. Cristo também disse: “Dá a quem te pede, e não voltes as costas ao que deseja que
lhe emprestes”. É este um princípio muito bom. Vosso Presidente vos lembrou que não estamos aqui para
falar de política, mas não posso deixar de observar que as últimas eleições gerais foram disputadas
baseadas na questão de quão desejável seria voltar as costas ao que desejava lhe emprestássemos, de
modo que devemos presumir que os liberais e os conservadores deste país são constituídos de pessoas
que não concordam com os ensinamentos de Cristo, pois que, certamente, naquela ocasião, voltaram as
costas de maneira bastante enfática.
Há ainda uma máxima de Cristo que, penso, contém nela muita coisa, mas não me parece muito
popular entre os nossos amigos cristãos. Diz Ele: “Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, e dá-os
aos pobres”. Eis aí uma máxima excelente, mas, como digo, não é muito praticada. Todas estas, penso,
são boas máximas, embora seja um pouco difícil viver-se de acordo com elas. Quanto a mim, não afirmo
que o faça – mas, afinal de contas, isso não é bem o mesmo que o seria tratando-se de um cristão.
Defeitos nos ensinamentos de Cristo
Tendo admitido a excelência de tais máximas, chego a certos pontos em que não acredito que se
possa concordar nem com a sabedoria superlativa, nem com a bondade superlativa de Cristo, tal como
são descritas nos Evangelhos – e posso dizer aqui que não estou interessado na questão histórica.
Historicamente, é muito duvidoso que Cristo haja jamais existido e, se existiu, nada sabemos a respeito
d’Ele, de modo que não estou interessado na questão histórica, que é uma questão muito difícil. Estou
interessado em Cristo tal como Ele aparece nos Evangelhos, tomando a narrativa bíblica tal como ela se
nos apresenta – e nela encontramos algumas coisas que não me parecem muito sábias. Por um lado, Ele
certamente pensou que o Seu segundo advento ocorreria em nuvens de glória antes da morte de toda a
gente que estava vivendo naquela época. Há muitos textos que o provam. Diz Ele, por exemplo: “Não
acabareis de correr as cidades de Israel, sem que venha o Filho do Homem”. E adiante: “Entre aqueles
que estão aqui presentes, há alguns que não morrerão, antes que vejam o Filho do Homem no seu reino”
– e há uma porção de lugares em que é bastante claro que Ele acreditava que a Sua segunda vinda
ocorreria durante a vida dos que então viviam. Essa era a crença de seus primeiros adeptos, constituindo
a base de uma grande parte de Seus ensinamentos morais. Quando Ele disse: “Não andeis inquietos pelo
dia de amanhã” e outras coisas semelhantes, foi, em grande parte, porque julgava que a sua segunda
vinda seria muito em breve e que, por isso, não tinham importância os assuntos mundanos. Conheci, na
verdade, cristãos que acreditavam que o segundo advento era iminente. Conheci um pároco que assustou
terrivelmente a sua congregação, dizendo-lhe que o segundo advento estava, com efeito, sumamente
próximo, mas os membros de seu rebanho se sentiram muito consolados quando viram que ele estava
plantando árvores em seu jardim. Os primeiros cristãos acreditaram realmente nisso, e abstinham-se de
coisas tais como plantar árvores em seus jardins, pois que aceitaram de Cristo a crença de que o segundo
advento estava iminente. Neste sentido claramente ele não foi tão sábio como alguns outros o foram – e,
certamente, não se mostrou superlativamente sábio.
O problema moral
Chega-se, a seguir, às questões morais. Há, a meu ver, um defeito muito sério no caráter moral de
Cristo, e isso porque Ele acreditava no inferno. Quanto a mim, não acho que qualquer pessoa que seja, na
realidade, profundamente humana, possa acreditar no castigo eterno. Cristo, certamente, tal como é
descrito nos Evangelhos, acreditava no castigo eterno, e a gente encontra, repetidamente, uma fúria
vinditiva contra os que não davam ouvidos aos seus ensinamentos – atitude essa nada incomum entre
pregadores, mas que, de certo modo, se afasta da excelência superlativa. Não encontrareis, por exemplo,
tal atitude em Sócrates. Encontramo-lo bastante suave e cortês para com aqueles que não queriam ouvilo
– e, na minha opinião, é muito mais digno de um sábio adotar tal atitude do que mostrar-se indignado.
Provavelmente vos lembrareis das coisas que Sócrates disse quando estava agonizando, bem como das
coisas que em geral dizia às pessoas que não concordavam com ele.
Vereis que, nos Evangelhos, Cristo disse: “Serpentes, raça de víboras! Como escapareis da
condenação ao inferno?” Isso foi dito a gente que não gostava de seus ensinamentos. Esse não é,
realmente, na minha opinião, o melhor tom, e há muitas dessas coisas acerca do inferno. Há, por certo, o
texto familiar acerca do pecado contra o Espírito Santo: “Quem falar contra o Espírito Santo não será
perdoado, nem neste século nem no futuro”. Este texto causou indizível infelicidade no mundo, pois que
toda a espécie de criatura imaginava haver pecado contra o Espírito Santo e achava que não seria
perdoada nem neste mundo, nem no outro. Não me parece, realmente, que uma pessoa dotada de um
grau adequado de bondade em sua natureza teria posto no mundo receios e terrores dessa espécie.
Diz Cristo, ainda: “O Filho do homem enviará os seus anjos, e tirarão do seu reino todos os
escândalos e os que praticam a iniqüidade. E lançá-los-ão na fornalha de fogo. Ali haverá choro e ranger
de dentes”. E continua a referir-se aos lamentos e ao ranger de dentes. Isso aparece versículo após
versículo, e fica bastante evidente ao leitor que há um certo prazer na contemplação dos lamentos e do
ranger de dentes, pois que, do contrário, isso não ocorreria com tanta freqüência. Vós todos vos lembrais,
certamente, da passagem acerca das ovelhas e das cabras; de como, na segunda vinda, a fim de separar
as ovelhas das cabras, irá Ele dizer às cabras: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno”. Ele
continua: “E irão eles para o castigo eterno”. Depois, torna a dizer: “E se a tua mão te escandaliza, cortaa;
melhor é entrares na vida aleijado, do que, tendo duas mãos, ires para o inferno, para o fogo que
nunca se apaga. Onde o seu verme não morre, e o fogo não se apaga”. Repete também isso muitas e
muitas vezes. Devo dizer que considero toda esta doutrina – a de que o fogo eterno é um castigo para o
pecado – como uma doutrina de crueldade. É uma doutrina que pôs crueldade no mundo e submeteu
gerações a uma tortura cruel – e o Cristo dos Evangelhos, se pudermos aceitá-l’O como os seus cronistas
O representam, teria, certamente, de ser considerado, em parte, responsável por isso.
Há outras coisas de menor importância. Há, por exemplo, a expulsão dos demônios de Gerasa, onde,
certamente, não foi muito bondoso para com os porcos, fazendo com que os demônios neles entrassem e
se precipitassem ao mar pelo despenhadeiro. Deveis lembrar-vos de que Ele era onipotente e teria podido
simplesmente fazer com que os demônios fossem embora. Mas Ele prefere fazer com que entrem nos
porcos. Há, ainda, a curiosa história da figueira, que sempre me deixa um tanto intrigado. Vós vos
lembrais do que aconteceu com a figueira. “Pela manhã, quando voltava para a cidade, teve fome. E,
vendo uma figueira junto do caminho, aproximou-se dela; e não encontrou nela senão folhas, e disse-lhe:
Nunca mais nasça fruto de ti”. E Pedro disse-Lhe: “Vê, Mestre: a figueira que amaldiçoaste secou”. Essa é
uma história muito curiosa, pois que aquela não era a estação dos figos e, realmente, não se podia
censurar a árvore. Quanto a mim, não me é possível achar que, em questão de sabedoria ou em questão
de virtude, Cristo permaneça tão alto como certas outras figuras históricas que conheço. Nesses sentidos,
eu colocaria Buda e Sócrates acima d’Ele.
O fator emocional
Como já disse, não creio que a verdadeira razão pela qual as pessoas aceitam a religião tenha algo
que ver com argumentação. Aceitam a religião por motivos emocionais. Dizem-nos com freqüência que é
muito errado atacar-se a religião, pois que a religião torna os homens virtuosos. Isso é o que me dizem;
eu jamais o percebi. Conheceis, por certo, a paródia desse argumento, tal como é apresentado no livro
Erewhom Revisited, de Samuel Butler. Vós vos lembrais de que, em Erewhom, há um certo Higgs que
chega a um país remoto e que, após passar lá algum tempo, foge do país num balão. Vinte anos depois,
volta ao mesmo país e encontra uma nova religião, na qual é ele adorado sob o nome de “Filho do Sol”, e
na qual se afirma que ele subiu ao céu. Verifica que a Festa da Ascensão está prestes a ser celebrada, e
ouve os Professores Hanky e Panky dizerem entre si que jamais puseram os olhos no tal Higgs e que
esperam não o fazer jamais – mas eles são altos sacerdotes da religião do Filho do Sol. Higgs sente-se
muito indignado e, aproximando-se deles, diz-lhes: “Vou desmascarar todo este embuste e dizer ao povo
de Erewhom que se tratava apenas de mim, Higgs, e que subi num balão”. Responderam-lhe: “Não deve
fazer isso, pois toda a moral deste país gira em torno desse mito e, se souberem que você não subiu aos
céus, todos os seus habitantes se tornarão maus”. Persuadido disso, Higgs afasta-se do país
silenciosamente.
Eis aí a idéia – a de que todos nós seríamos maus se não nos apegássemos à religião cristã. Pareceme
que as pessoas que se apegaram a ela foram, em sua maioria, extremamente más. Tendes este fato
curioso: quanto mais intensa a religião em qualquer época, e quanto mais profunda a crença dogmática,
tanto maior a crueldade e tanto pior o estado das coisas. Nas chamadas Idades da Fé, quando os homens
realmente acreditavam na religião cristã em toda a sua inteireza, houve a Inquisição, com as suas
torturas; houve milhares de infelizes queimadas como feiticeiras – e houve toda a espécie de crueldade
praticada sobre toda a espécie de gente em nome da religião.
Constatareis, se lançardes um olhar pelo mundo, que cada pequenino progresso verificado nos
sentimentos humanos, cada melhoria no direito penal, cada passo no sentido da diminuição da guerra,
cada passo no sentido de um melhor tratamento das raças de cor, e que toda diminuição da escravidão,
todo o progresso moral havido no mundo, foram coisas combatidas sistematicamente pelas Igrejas
estabelecidas do mundo. Digo, com toda convicção, que a religião cristã, tal como se acha organizada em
suas Igrejas, foi e ainda é a principal inimiga do progresso no mundo.
De que forma as igrejas retardaram o progresso
Talvez julgueis que estou indo demasiado longe, quando digo que ainda assim é. Não julgo que
esteja. Tomemos apenas um fato. Concordareis comigo, se eu o citar. Não é um fato agradável, mas as
Igrejas nos obrigam a referir-nos a fatos que não são agradáveis. Suponhamos que, neste mundo em que
hoje vivemos, uma jovem inexperiente case com um homem sifilítico. Neste caso, a Igreja Católica diz:
“Esse é um sacramento indissolúvel. Devem permanecer juntos por toda a vida”. E nenhum passo deve
ser dado por essa mulher no sentido de evitar que dê à luz filhos sifilíticos. Isso é o que diz a Igreja
Católica. Quanto a mim, digo que isso constitui uma crueldade diabólica, e ninguém cujas simpatias
naturais não tenham sido embotadas pelo dogma, ou cuja natureza moral não esteja inteiramente morta
a todo sentido de sofrimento, poderia afirmar que é justo e certo que tal estado de coisas deva continuar.
Este é apenas um dos exemplos. Há muitas outras maneiras pela qual a Igreja, no momento, com
sua insistência sobre o que prefere chamar moralidade, inflige a toda a espécie de pessoas sofrimentos
imerecidos e desnecessários. E, naturalmente, como todos nós sabemos, é ainda, em grande parte,
contrária ao progresso e ao aperfeiçoamento de todos os meios tendentes a diminuir o sofrimento no
mundo, pois que costuma rotular de moralidade certas regras de conduta estreitas que nada têm a ver
com a felicidade humana – e quando se diz que isto ou aquilo deve ser feito, pois que contribuiria para a
felicidade humana, eles acham que nada tem a ver, absolutamente, com tal assunto. “Que tem a
felicidade a ver com a moral? O objetivo da moral não é tornar as pessoas felizes”.
O medo – a base da religião
A religião baseia-se, penso eu, principalmente e antes de tudo, no medo. É, em parte, o terror do
desconhecido e, em parte, como já o disse, o desejo de sentir que se tem uma espécie de irmão mais
velho que se porá de nosso lado em todas as nossas dificuldades e disputas. O medo é a base de toda
essa questão: o medo do mistério, o medo da derrota, o medo da morte. O medo é a fonte da crueldade
e, por conseguinte, não é de estranhar que a crueldade e a religião tenham andado de mãos dadas. Isso
porque o medo é a base dessas duas coisas. Neste mundo, podemos agora começar a compreender um
pouco as coisas e a dominá-las com a ajuda da ciência, que abriu caminho, passo a passo, contra a
religião cristã, contra as Igrejas e contra a oposição de todos os antigos preceitos. A ciência pode ajudarnos
a superar este medo covarde com o qual a humanidade tem vivido por tantas gerações.
A ciência pode ensinar-nos, e penso que também os nossos corações podem fazê-lo, a não mais
procurar apoios imaginários, a não mais inventar aliados no céu, mas a contar antes com os nossos
próprios esforços aqui embaixo para tornar este mundo um lugar adequado para viver, em vez da espécie
de lugar a que as igrejas, durante todos estes séculos, o converteram.
O que devemos fazer
Devemos apoiar-nos em nossos próprios pés e olhar o mundo honestamente – as coisas boas, as
coisas más, suas belezas e suas fealdades; ver o mundo como ele é, e não temê-lo. Conquistar o mundo
por meio da inteligência, e não apenas abjetamente, subjugados pelo terror que ele nos desperta. Toda a
concepção de Deus é uma concepção derivada dos antigos despotismos orientais. É uma concepção
inteiramente indigna de homens livres. Quando vemos na igreja pessoas a depreciar a si próprias e a
dizer que são miseráveis pecadores e tudo o mais, tal coisa nos parece desprezível e indigna de criaturas
humanas que se respeitem. Devemos levantar-nos e encarar o mundo de frente, honestamente. Devemos
fazer do mundo o melhor que nos seja possível, e se o mesmo não é tão bom quanto desejamos, será,
afinal de contas, ainda melhor do que esses outros fizeram dele durante todos estes séculos. Um mundo
bom necessita de conhecimento, bondade e coragem; não precisa de nenhum anseio saudoso pelo
passado, nem do encarceramento das inteligências livres por meio de palavras proferidas há muito tempo
por homens ignorantes. Necessita de uma perspectiva intemente e de uma inteligência livre. Necessita de
esperança para o futuro, e não passar o tempo todo voltado para trás, para um passado morto, que,
assim o confiamos, será ultrapassado de muito pelo futuro que a nossa inteligência pode criar.

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