segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

A Psicologia no novo contexto mundial

A Psicologia no novo contexto mundial
Carla Faria Leitão
Ana Maria Nicolaci-da-Costa
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Resumo
Profundas alterações no mundo contemporâneo criaram um novo contexto de produção científica, caracterizado
pela desconstrução de antigas teorias e pela construção de uma nova rede de conhecimentos. Neste artigo,
analisamos algumas teorias recentemente desenvolvidas nas ciências sociais e na Filosofia que compõem esta
rede: as teorias pós-modernas, as teorias da modernização reflexiva e a teoria da Revolução da Tecnologia da
Informação. Visamos com isto munir os psicólogos de conhecimentos advindos de outros campos disciplinares
que sirvam como ponto de partida para a análise das mudanças subjetivas introduzidas pelo novo cenário
mundial. Argumentamos que a Psicologia ainda observa o homem contemporâneo a partir de categorias
tradicionais, desconsiderando que transformações sociais profundas geram impactos psicológicos não menos
profundos e dificilmente captáveis a partir de antigos referenciais. Concluímos que um conhecimento mais
aprofundado das transformações radicais em curso no mundo atual pode ajudar os psicólogos a rever suas
antigas certezas a respeito do homem e a aventurar novos olhares sobre os também novos fenômenos
humanos.


Um novo contexto de produção científica: situando
a Psicologia
As recentes e radicais alterações do cenário mundial
vêm gerando impactos profundos na produção
científica contemporânea. Desde a década de 1990,
profissionais de diferentes áreas do conhecimento tentam
dar sentido a um mundo que, no cotidiano, apresenta-se como
caótico. Em conseqüência disto, transformam antigas certezas
em dúvidas e desconstroem os sólidos edifícios teóricos de
seus campos disciplinares. Grande parte da comunidade
acadêmica encontra-se em intensa efervescência intelectual,
aguçando seu espírito investigativo e sua criatividade para
tecer uma nova rede conceitual que explique a nova realidade
mundial.
Nas ciências sociais (notadamente na Sociologia) e na
Filosofia, já é possível visualizar alguns efeitos desse novo
contexto intelectual. Recentemente, em boa parte dos
trabalhos dessas disciplinas, antigas referências teóricas
foram abandonadas e novos conhecimentos foram
construídos para compreender o mundo globalizado e seus
laços de coesão social.
Estudos de Psicologia 2003, 8(3), 421-430
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Observamos, contudo, que o mesmo parece ainda não
ocorrer (ao menos com a mesma intensidade) no campo
psicológico. Grande parte dos trabalhos da Psicologia
continua a utilizar exclusivamente teorias tradicionais para
interpretar os impactos psicológicos gerados pelo novo
contexto social. Com muita freqüência, os psicólogos analisam
novos sentimentos, comportamentos e conflitos humanos
como diferentes manifestações de velhas e conhecidas
tendências, deixando de captar aquilo que de novo emerge
na configuração psicológica do homem contemporâneo1.
Este tipo de análise deixa de levar em conta, no entanto,
que momentos de profundas transformações sociais geram
mudanças de cunho psicológico não menos profundas. Foi
isso, por exemplo, o que aconteceu quando, no século XIX,
um novo contexto social – construído na Revolução
Industrial – introduziu novas formas de pensar, de sentir e de
existir para os homens, mulheres e crianças daquela época.
Parece ser isso o que está ocorrendo novamente nos dias
atuais, quando complexas transformações sociais colocam
nossos contemporâneos diante de novas e desconhecidas
experiências de vida2.
Torna-se, portanto, fundamental que os psicólogos
conheçam com maior profundidade as transformações sociais
em curso para que sejam capazes de compreender os impactos
dessas transformações no plano psicológico. Este é o objetivo
de nosso artigo. Por meio da análise de três correntes teóricas
da atualidade, pretendemos munir os profissionais da
Psicologia de conhecimentos sobre o novo contexto mundial
que os incentivem a construir novas categorias para a análise
das também novas experiências humanas no mundo atual.
Três correntes teóricas contemporâneas
Três critérios nortearam a escolha das correntes teóricas
que utilizamos para compreender o contexto social no qual as
novas questões subjetivas se desenrolam. Em primeiro lugar,
essas correntes deveriam fornecer visões amplas daquilo que
está acontecendo no mundo atual e nas principais esferas da
atividade humana3. Em segundo, deveriam discutir o papel
fundamental das tecnologias digitais no novo cenário mundial.
Finalmente, deveriam abordar questões relacionadas à
produção de conhecimentos científicos na
contemporaneidade. Três correntes teóricas mostraram-se,
então, particularmente interessantes para o nosso objetivo.
São elas: as teorias pós-modernas, as teorias da modernização
reflexiva e a teoria da Revolução da Tecnologia da Informação.
Teorias pós-modernas
Originadas no campo da arte e da literatura na década de
1960, as teorias pós-modernas se difundiram no meio
acadêmico somente em 1979, com a publicação da obra A
condição pós-moderna, de Jean-François Lyotard. A partir
daí, o Pós-modernismo consolidou-se no campo acadêmico,
caracterizando-se pela polêmica e pela heterogeneidade. A
maioria de suas obras faz uma análise ampla das principais
questões que norteiam a vida no mundo atual.
Pelo alto grau de abrangência que apresentam, essas
obras resistem a classificações e análises simplistas. Parecenos
ser possível, contudo, detectar uma organização das
teorias pós-modernas em torno de duas posições principais.
A primeira refere-se à ênfase dada à discussão das condições
contemporâneas de produção de conhecimento, tendo Lyotard
e, mais recentemente, o filósofo Gianni Vattimo como seus
representantes mais significativos. Já a segunda dá maior
destaque às condições de produção da ordem capitalista
contemporânea. Seus principais representantes são autores
que sofreram fortes influências das teorias marxistas: David
Harvey, Fredric Jameson, Terry Eagleton, Zygmunt Bauman,
Richard Sennett e Perry Anderson.
No que se segue, apresentamos, a partir da obra de alguns
de seus representantes, essas duas posições pós-modernas.
Discutimos as posições epistemológicas de Lyotard e Vattimo
e as análises de Jameson, Harvey e Bauman a respeito do
capitalismo contemporâneo.
Lyotard e Vattimo: ênfase nas condições de produção
de conhecimento. Lyotard (1979), como precursor do Pósmodernismo
no campo acadêmico, fornece uma visão
panorâmica da Pós-modernidade, comparando as condições
de produção científica modernas e pós-modernas.
Segundo esse autor, a Modernidade foi um período
histórico no qual, embora o mundo fosse percebido de modo
complexo, essas percepções eram organizadas através de
sistemas teóricos totalizadores. Por meio desses sistemas –
chamados por ele de “grandes relatos” –, buscava-se a
previsibilidade dos fenômenos, a objetividade e o progresso
científicos.
Diferentemente do que aconteceu na Modernidade,
Lyotard afirma que vivemos em um período histórico no qual
o mundo é percebido como fragmentado, complexo e
imprevisível. Na Pós-modernidade não é mais possível
descrever o mundo através de discursos científicos unificados
em uma meta-linguagem universal. As visões de mundo
modernas foram drasticamente desconstruídas e, atualmente,
o conhecimento pós-moderno é composto de “pequenos
relatos”, ou seja, de narrativas múltiplas sobre um mundo
também múltiplo.
Para Lyotard, as transformações na produção
contemporânea de conhecimento devem ser entendidas a
partir da utilização maciça das tecnologias da informática. O
acesso fácil e rápido à informação dissolveu o “grande
discurso científico” da Modernidade, rompendo também “a
trama enciclopédica na qual cada ciência devia encontrar seu
lugar” (Lyotard, 1979, p. 71).
Mais recentemente, Vattimo (1985, 1998a e 1998b) dá
continuidade à discussão epistemológica iniciada por Lyotard.
Tal como o último, enfatiza a necessidade de desconstruir o
modelo moderno de ciência universal, considerando o
conhecimento pós-moderno um conjunto de pequenos relatos
sobre o mundo. Vattimo, no entanto, aprofunda as discussões
a respeito da desconstrução dos grandes relatos científicos,
criticando algumas posições teóricas contemporâneas – por
ele chamadas de “nostálgicas” – que se reapropriam de
conceitos construídos na Modernidade para interpretar as
C.F.Leitão & A. M.Nicolaci-da-Costa
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atuais transformações mundiais. De sua ótica, os conceitos
modernos, além de ineficazes para a análise do que ocorre na
Pós-modernidade, refletem uma tentativa inócua de
restabelecer a tranqüilidade e a ordem que a ciência moderna
propiciava.
Para Vattimo, a dificuldade de lidar com a ruptura e de
apreender as características próprias do viver contemporâneo
cria, com freqüência, uma visão de que todos os fenômenos
atuais são negativos e destruidores de tudo que tínhamos de
positivo no mundo. Os nostálgicos encaram a Pósmodernidade
como um processo de desumanização de nossa
sociedade. Estaríamos vivendo o “inferno da negação do
humano” (Vattimo, 1985, p. 18). Essa negatividade impede, no
entanto, que uma nova ordem – diferente, mas não menos
humana do que a da Modernidade – seja percebida.
De modo análogo ao de Lyotard, Vattimo (1985 e 1998b)
também considera as tecnologias da informação a base para
o rompimento com a produção moderna de conhecimento.
Conforme Vattimo (1985), “a contemporaneidade é a época
em que, enquanto, com o aperfeiçoamento dos instrumentos
de coleta e transmissão de informação, seria possível realizar
uma ‘história universal’, precisamente essa história se tornou
impossível” (p. 11).
Vattimo argumenta, contudo, que as tecnologias digitais
são freqüentemente consideradas um instrumento de
destruição da humanidade, em vez de um fator de ruptura dos
modos tradicionais de interpretação do mundo. Dessa ótica
nostálgica, as novas tecnologias da informação afastariam
os homens de um relacionamento genuíno e automatizariam
suas ações, sendo as vilãs de um cenário pós-moderno
desumanizante.
Ainda segundo Vattimo (1998a e 1998b), a análise, sem
nostalgias, da penetração das novas tecnologias digitais no
cotidiano remete a uma outra relação com o conhecimento, a
saber, a de considerar a tecnologia como uma provocação
para repensar o mundo. Por um lado, as narrativas universais
se enfraquecem, bombardeadas pelo excesso. Por outro, o
conhecimento torna-se mais relativizado e afastado de
reapropriações teóricas.
Existem, no entanto, outros teóricos da Pós-modernidade
que se reapropriam de conceitos modernos para pensar o
mundo atual. Fredric Jameson, David Harvey e Zygmunt
Bauman são autores que, em oposição a Lyotard e a Vattimo,
interpretam os fenômenos pós-modernos através das
modernas idéias do marxismo. Passamos, neste ponto, a
analisar as obras desses autores.
Jameson, Harvey e Bauman: ênfase nas condições de
produção da ordem capitalista. As teorias pós-modernas
influenciadas pelo marxismo partem de uma crítica veemente
ao que consideram uma “ingenuidade” das concepções de
Lyotard sobre a fragmentação do mundo pós-moderno. Do
ponto de vista de Harvey (1989), Jameson (1991) e Bauman
(1997, 1998), a complexidade e a fragmentação pós-modernas,
paradoxalmente, não excluem uma historicidade e uma lógica
global de compreensão. Na opinião desse grupo, as
teorizações de Lyotard deixam inexplicadas as relações
políticas e econômicas do mundo pós-moderno, sendo
espantoso o fato de Lyotard ter deixado em segundo plano
seu próprio passado marxista, eximindo-se de uma
interpretação histórica e temporal da Pós-modernidade (ver
Eagleton, 1996 e Anderson, 1998).
Apesar de criticarem sua “ingenuidade”, esses teóricos
concordam com as concepções de Lyotard e de Vattimo sobre
uma ruptura histórica entre Modernidade e Pós-modernidade.
Diferentemente destes, no entanto, Jameson, Harvey e
Bauman buscam construir categorias globais para dar sentido
à época pós-moderna. Para tanto, enfatizam o modo de
produção capitalista como principal categoria de análise,
relegando a segundo plano as condições pós-modernas de
produção de conhecimento. Nessa visão, a ancoragem da
Pós-modernidade é um conjunto de alterações objetivas na
ordem econômica do capital.
Jameson (1991)4 é – cronologicamente – o primeiro autor
a trabalhar nessa direção. Para ele, a Pós-modernidade é uma
nova época do capitalismo – a do capitalismo tardio – regida
por uma lógica de funcionamento global que perpassa as
diferentes esferas da vida humana e dá coesão às mesmas.
Na contemporaneidade, não vigora mais a lógica da
produção industrial e a conseqüente divisão entre classes
produtoras e trabalhadoras. A esfera econômica se expandiu
para todos os níveis do viver humano, inclusive para a esfera
cultural. A lógica da Pós-modernidade é aquilo que Jameson
chama de lógica cultural do capitalismo tardio. A esfera
cultural torna-se coextensiva à economia, não sendo mais
possível pensar a cultura como expressão autônoma da
organização social. Essa expansão capitalista estruturou
nossa sociedade em torno do consumo de bens materiais, de
informação e de cultura.
A posição de Jameson frente à tecnologia relaciona-se
também à expansão capitalista e à organização da sociedade
a partir do consumo. Segundo ele, o desenvolvimento
tecnológico, na concepção marxista, é resultado do
desenvolvimento do capital e não, como pensam Lyotard e
Vattimo, uma instância determinante em si mesma. O
desenvolvimento econômico pós-guerra foi o fator que gerou
a expansão tecnológica de sistemas aperfeiçoados de
automação da produção e da distribuição. Esse quadro, por
sua vez, propiciou a intensificação da produção em massa,
uma distribuição mais rápida dessa produção e a circulação
veloz do capital resultante de suas vendas.
Harvey é outro autor que discute a Pós-modernidade à
luz da teoria marxista. Em seu livro Condição pós-moderna,
publicado originalmente em 1989, ele reflete, de modo
semelhante ao de Jameson, sobre a expansão do capitalismo
e sobre a sociedade de consumo. Harvey examina, no entanto,
de maneira mais detalhada do que Jameson, o sistema de
produção pós-moderno.
Para Harvey, o sistema de produção contemporâneo não
é mais, como acontecia na Modernidade, racional, uniforme e
padronizado. Na época moderna, cada espaço era destinado
à realização de uma tarefa e cada trabalhador especializava-se
em uma das etapas produtivas. Ao final do processo, um
mesmo produto era produzido em série, de modo rigorosamente
uniforme. Já no sistema pós-moderno, o trabalhador
Psicologia e contexto mundial
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desempenha tarefas múltiplas e pouco demarcadas. A
produção é flexível e voltada para a personalização de bens e
serviços. Em um mesmo espaço, são produzidos – em escala
industrial – diferentes produtos personalizados. A distribuição
desses produtos é mais rápida e a circulação do capital
resultante de suas vendas veloz. A lógica pós-moderna de
produção é, portanto, flexível, ágil e passível de constantes
modificações. Todos esses fatores contribuem, segundo sua
análise, para o aumento do consumo a níveis inesgotáveis e
para a organização de nossa sociedade em torno desse
consumo.
Dentre os autores marxistas pós-modernos, é Bauman
(1997, 1998) aquele que mais se detém na categoria consumo.
Esta é por ele considerada como fator de referência e de
organização da sociedade pós-moderna. De sua ótica, todas
as sociedades sempre consumiram, mas aquilo que caracteriza
a sociedade contemporânea como sociedade de consumo é a
ênfase dada a esse consumo. Os membros da sociedade
moderna definiam suas redes de sociabilidade em torno da
capacidade de produção. Já na Pós-modernidade, a
organização social se dá mais pela capacidade e pelo desejo
de consumir do que pelo que cada um de seus membros
produz.
A tecnologia digital pode ser entendida, em Bauman, tãosomente
como mais uma fonte de consumo. A conexão de
computadores através da Internet intensificou a possibilidade
de consumir e deslocou sua ênfase dos bens materiais para a
informação. Grande quantidade de informação é consumida
instantaneamente e a custos baixos, independentemente do
local onde é gerada ou recebida. Tudo isso cria, de seu ponto
de vista, novas formas de exclusão social:
A elogiadíssima “interatividade” do novo veículo é um grande
exagero; deveriam antes falar num “meio interativo one-way”.
Ao contrário do que costumam acreditar os acadêmicos, eles
próprios integrantes da nova elite global, a Internet e a Web
não são para qualquer um, e é improvável que jamais venham
a se abrir para o uso universal (Bauman, 1998, p. 60-1).
O aprofundamento das exclusões sociais no mundo atual
em função do desenvolvimento tecnológico vem representar
o principal ponto de vista em relação às novas tecnologias da
informação presente em sua obra, e também nas de Harvey e
Jameson. Em todas elas, a sociedade é estratificada de modo
dualista em função do acesso às novas tecnologias digitais.
Uma elite detém a informação, e o restante da população é
excluído do amplo consumo da mesma.
Tal estratificação social é um dos fatores de discordância
entre Bauman, Harvey e Jameson e os filósofos Lyotard e
Vattimo. Como foi discutido anteriormente, Lyotard e Vattimo
afirmam que o amplo acesso à informação pode gerar visões
múltiplas e relativizadas dos fenômenos mundiais, inclusive
frente às questões de exclusão social. Já para Harvey, Jameson
e Bauman, o acesso à informação é gerador de exclusão e de
intolerância nas relações sociais.
A despeito de divergências significativas entre esses
dois grupos de teóricos pós-modernos, há em comum entre
eles o pressuposto de uma ruptura histórica entre a
Modernidade e a Pós-modernidade. Essa posição, no entanto,
está longe de ser unânime dentro do amplo quadro de
conhecimentos contemporâneo. Outras correntes teóricas
criticam esse pressuposto de ruptura e elaboram outras
categorias de análise para a compreensão dos fenômenos da
atualidade. A seguir, discutimos uma delas: a das teorias da
modernização reflexiva.
Teorias da modernização reflexiva
As teorias da modernização reflexiva surgiram de uma
longa discussão sobre Modernidade versus Pós-
Modernidade. Para os sociólogos Ulrich Beck, Anthony
Giddens e Scott Lash, não há, como pensam os autores pósmodernos,
uma descontinuidade histórica que justifique a
demarcação de uma nova época. As transformações sociais
em curso configuram tão-somente um outro momento da
própria Modernidade.
Ainda em oposição aos teóricos da Pós-modernidade,
Beck, Giddens e Lash não consideram que o mundo
contemporâneo seja caótico e fragmentado. Para eles, há
sempre uma forma de coesão social operante, mesmo que
esta se modifique no decorrer do tempo e que não tenha, a
princípio, sua lógica reconhecida pelos membros da sociedade.
O livro Modernização reflexiva: política, tradição e
estética na ordem social moderna é a obra resultante dessas
discussões. Nele, Beck (1995a, 1995b), Giddens (1995) e Lash
(1995a, 1995b) investigam as novas formas de coesão social e
a unidade básica de organização presente na sociedade atual.
Apresentamos, a seguir, os conceitos centrais do trabalho
desses três autores.
Beck: a sociedade de risco. Segundo Beck (1999), até a
década de 1980, vivíamos um momento da Modernidade no
qual o conceito de sociedade era, na maioria das vezes,
equivalente ao conceito de Estado. A sociedade era
organizada em Estados containers que funcionavam como
fonte de referência, de coesão e de proteção para seus
membros. Havia, ainda, uma nítida divisão desses membros
entre classes trabalhadoras e produtoras, que se organizavam
pela lógica da produção industrial.
Notadamente a partir de meados de 1980, um novo
momento da Modernidade se instaura sem crises, rupturas
ou revoluções. O processo de modernização contínuo e
acelerado da sociedade leva-a a romper com algumas de suas
principais características. O aperfeiçoamento dos processos
industriais e a globalização enfraquecem os Estados e os
levam a se associar e se interpenetrar. A função de referência
e de proteção social desempenhada por esses Estados também
se enfraquece e, com isto, sentimentos de confusão e de
desproteção se instalam nos membros de nossa sociedade
contemporânea.
Em paralelo, esta sociedade começa a perceber com maior
clareza os efeitos do longo processo de modernização pelo
qual passou. Alguns desses efeitos são positivos e
cumulativos. Usufruímos, na atualidade, muitos benefícios
do desenvolvimento econômico, científico e tecnológico
obtido no primeiro momento da Modernidade. Conhecemos
melhor o mundo e criamos muitos instrumentos que nos
C.F.Leitão & A. M.Nicolaci-da-Costa
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auxiliam a nele viver melhor. Por outro lado, sofremos muitos
efeitos colaterais resultantes da modernização da sociedade.
Passamos a nos dar conta dos riscos gerados por nosso
próprio desenvolvimento e sabemos que o controle desses
riscos escapa ao poder dos enfraquecidos Estados. Todos
os países se encontram simultaneamente, de uma maneira ou
de outra, diante de problemas gerados pelo acelerado
desenvolvimento mundial. As soluções políticas, econômicas
e sociais dependem, antes de tudo, de uma perspectiva de
integração global desses problemas por parte de todos os
países, envolvendo um sentimento global de humanidade.
O enfraquecimento dos Estados, a desorientação social,
a percepção dos riscos gerados pelo desenvolvimento mundial
e a emergência de um sentimento de humanidade são, para
Beck (1995a, 1995b), os principais fatores que levam a uma
nova definição de sociedade e a um novo conceito de
modernização neste segundo momento da Modernidade.
Segundo ele, a sociedade contemporânea pode ser mais
bem entendida a partir do conceito de sociedade de risco:
uma sociedade que passa a perceber – em maior ou menor
grau – a necessidade de novas formas de cooperação e de
entendimento global para o controle dos riscos gerados por
seu desenvolvimento.
O modo de desenvolvimento contemporâneo também se
modifica e é definido por Beck como modernização reflexiva.
Por modernização reflexiva, Beck compreende o confronto e a
interação – e, também, o conflito – dos antigos temas da
Modernidade (organização capitalista, produção e consumo,
conflitos sociais, etc.) com os novos riscos para a humanidade
(destruição do meio-ambiente, catástrofes nucleares, etc.).
Não temos uma mera substituição das questões modernas
por problemas contemporâneos. Trata-se de “um jogo de duas
realidades interagentes” (Beck, 1995b, p. 213): a luta pela
distribuição e consumo de bens e serviços e o desafio de
lidar com os novos riscos e conseqüências globais. Trata-se,
em resumo, da crítica da Modernidade pela própria
Modernidade.
Esta crítica comporta, no entanto, uma peculiaridade do
ponto de vista do autor. O termo reflexividade corresponde à
dimensão não intencional e, portanto, em larga medida,
inconsciente de crítica. Beck (1995b) parte da premissa de
que a modernização reflexiva é, portanto, um movimento
assistemático – científico e cotidiano – para controlar riscos.
O desenvolvimento tecnológico é um dos importantes
fatores que geram efeitos e riscos para nossa sociedade. A
tecnologia gera efeitos positivos se forem consideradas a
acumulação e a circulação de conhecimentos tão fundamentais
à vida contemporânea. Todo desenvolvimento tecnológico
envolve, no entanto, a dimensão de risco para a humanidade
e são esses os aspectos tecnológicos enfatizados por Beck.
São destacados os riscos de vida (gerados pelo
desenvolvimento da indústria bélica e por seu conseqüente
poder de destruição), a destruição ecológica (em função da
própria infra-estrutura das indústrias de tecnologia e do
aproveitamento de materiais do meio-ambiente pelas mesmas)
e, por fim, os riscos de exclusão social que o desenvolvimento
das novas tecnologias da informação pode criar.
Giddens: percepção individual dos riscos. Giddens
(1995) discute o conceito de sociedade de risco, dando maior
ênfase à percepção que cada membro de nossa sociedade
tem dos riscos globais e às formas como modificam seus
valores e seus laços de coesão social.
De seu ponto de vista, os homens da sociedade
contemporânea estão tendo que construir e aprender novos
valores, hábitos e tradições em função da nova referência
social (a de humanidade). Segundo Giddens (1999), o mundo
sempre enfrentou riscos, mas as soluções para os mesmos
eram encontradas dentro da bagagem de tradição que
recebíamos através da cadeia de gerações. Os atuais efeitos
colaterais da modernização são, entretanto, distintos daqueles
que outras gerações enfrentaram. Não temos experiências
anteriores que nos orientem sobre o que fazer diante deles.
Para conviver com isso, nos voltamos para as tradições
acumuladas e para a rede de conhecimentos recentemente
produzidos, refletindo sobre as mesmas e criticando-as.
O conceito de modernização reflexiva, em Giddens (1995),
enfatiza, de forma análoga à de Beck, a crítica dos
conhecimentos gerados num primeiro momento da
Modernidade com vistas à construção de novas tradições e
conhecimentos. Percebe-se, no entanto, uma diferença
importante entre as definições desse conceito em Giddens e
em Beck. Giddens considera que os homens contemporâneos
podem adquirir a capacidade de refletir conscientemente sobre
as condições sociais de sua existência e, assim, modificá-las.
Nesse sentido, a modernização reflexiva envolve a reflexão
sistemática e consciente sobre os conhecimentos científicos
e cotidianos. Como foi discutido anteriormente, para Beck,
essa reflexão é assistemática e, em grande medida,
inconsciente.
A reflexão consciente sobre os conhecimentos, sobre as
tradições e sobre os riscos de nossa sociedade é, para
Giddens, favorecida pelo desenvolvimento acelerado das
novas tecnologias da informação. A conexão do planeta
através de uma poderosa rede de comunicação propiciou a
circulação rápida de informações sobre riscos presentes nas
mais diversas partes do globo, gerando um maior
conhecimento dos mesmos por pessoas de todo o planeta. É
essa condição tecnológica que o último autor dessa linha, o
sociólogo Scott Lash, vai desenvolver em suas contribuições
teóricas, como discutimos a seguir.
Lash: tecnologia como base da sociedade de risco. Lash
(1995a), como Giddens, considera que a modernização
reflexiva envolve um olhar crítico, sistemático e consciente
para os conhecimentos modernos. Segundo ele, a base de
sustentação que permite que a Modernidade tome, nesse
momento, seus próprios conhecimentos como objeto de crítica
é a tecnologia digital. Dessa ótica, a reflexividade é sustentada
por um entrelaçamento de redes globais e locais de
comunicação que disponibilizam os conhecimentos de forma
nunca vista. Tanto a comunidade científica como a população
leiga têm maior acesso aos conhecimentos produzidos e
podem incrementar o raciocínio crítico e a reflexão. Através
da rede global de comunicação, os conhecimentos acerca do
mundo rompem as grades institucionais às quais se
Psicologia e contexto mundial
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circunscreviam e tornam-se objetos de crítica e de reflexão
generalizados.
A modernização reflexiva relaciona-se, de seu ponto de
vista, à qualificação e ao engajamento dos membros da
sociedade nessa rede global de comunicação. O acesso à
rede vem gerando, no entanto, novas exclusões sociais.
Conforme Lash (1995b), “o acesso a essas estruturas de
informação e comunicação – que são desigualmente
distribuídas tanto espacial quanto socialmente – é um fator
cada vez mais fundamental na desigualdade de classe, raça e
gênero no mundo atual” (p. 253).
Diferentemente de Giddens, Lash revela que, a despeito
de discordar da ruptura entre Modernidade e Pósmodernidade,
compartilha da crítica social pós-moderna. Para
ele, apesar de o conhecimento estar disponível para as elites
culturais cada vez mais qualificadas, para a grande maioria da
população a crítica e capacitação ainda permanecem distantes.
A seguir, abordamos uma outra teoria que também
analisa, embora de modo diferente, a conexão do globo em
redes de informação: a da Revolução da Tecnologia da
Informação, desenvolvida pelo sociólogo Manuel Castells.
Teoria da Revolução da Tecnologia da Informação
A obra de Manuel Castells faz parte de um recente campo
de teorias no qual o desenvolvimento das novas tecnologias
de informação ocupa posição central. O marco desse tipo de
raciocínio encontra-se nas idéias precursoras do teórico da
comunicação Marshall McLuhan que, já nos anos de 1960,
analisava as mudanças sociais criadas pelas tecnologias da
mídia televisiva (ver McLuhan, 1962). No início da década de
1980, McLuhan reafirmava sua sensibilidade para as grandes
transformações humanas geradas por novas tecnologias.
Desta vez, seu olhar se voltava para as tecnologias da
informática. Em 1986, sua última obra – The Global Village:
transformations in the world life and media in the 21st century
– inaugurava um novo campo de estudos dedicado à
investigação dos impactos sociais que as novas tecnologias
digitais começavam a criar.
A influência de McLuhan gerou frutos em diversas áreas
do conhecimento. Na área da mídia, Douglas Rushkoff (1997)
é considerado o autor que dá continuidade ao seu pensamento
polêmico, analisando, da ótica das crianças, as características
da vida digital. Na filosofia, Pierre Lévy (1995, 1998) é um dos
autores mais significativos, investigando as características
de um novo estilo cultural: a cibercultura. Na informática,
Philippe Breton (1987) e Nicholas Negroponte (1995) traçam
o percurso histórico e cultural das novas tecnologias digitais.
É no campo das ciências sociais, no entanto, que
encontramos a mais valiosa contribuição teórica sobre as
novas tecnologias da informação: a extensa obra do sociólogo
Manuel Castells, publicada em 1999, sobre a Revolução da
Tecnologia da Informação. Em seus três volumes – A
sociedade em rede, O poder da identidade e Fim de milênio
–, Castells sistematiza a história dessas tecnologias, seus
conceitos, seus paradigmas e seus impactos sociais. No que
se segue, apresentamos alguns dos principais pontos de sua
análise.
Castells e a sociedade em rede. Castells (1999), tal como
os autores da modernização reflexiva, analisa a sociedade
contemporânea a partir de sua organização em uma rede global
de informação. Diferentemente desses autores, contudo,
pressupõe que estamos em meio a uma revolução histórica e
não tão-somente diante de transformações sub-reptícias no
interior da Modernidade:
Uma revolução tecnológica concentrada nas tecnologias da
informação está remodelando a base material da sociedade em
ritmo acelerado. (...) As redes interativas de computadores
estão crescendo exponencialmente, criando novas formas e
canais de comunicação, moldando a vida e, ao mesmo tempo,
sendo moldadas por ela (Castells, 1999, pp. 21-22).
Ao considerar que a sociedade contemporânea passa
por uma revolução, Castells aproxima-se do conceito de
ruptura dos teóricos da Pós-modernidade. Essa aproximação
é, no entanto, limitada. Isso porque ele critica intensamente o
uso do conceito de fragmentação pós-moderna, julgando-o
uma renúncia à capacidade de entender o mundo e de agir
sobre ele.
A compreensão das atuais mudanças mundiais é
fornecida, em Castells, pelo paradigma tecnológico. As
tecnologias da informação, diferentemente do que ocorre nas
duas correntes teóricas descritas anteriormente, são
minuciosamente definidas e discutidas, havendo, inclusive,
uma análise histórica de seu surgimento e de sua penetração
social.
Segundo Castells, as tecnologias da informação definemse
basicamente por sua convergência. Provenientes de
campos disciplinares distintos, essas tecnologias formam hoje
um conjunto integrado de instrumentos com o objetivo de
coletar, processar, transmitir e reprogramar informações. As
tecnologias que formam esse conjunto são as da eletrônica
(circuitos, chips, etc.), da informática (hardware e software),
das telecomunicações/ radiodifusão (satélites de
comunicação, linhas de transmissão, etc.) e da optoeletrônica
(como por exemplo, a fibra ótica)5.
Castells argumenta que a análise desse conjunto
convergente de tecnologias possibilita uma melhor
compreensão da sociedade contemporânea. Para isso, ele
expõe seis características do que chama de paradigma
tecnológico.
A primeira refere-se ao papel que a informação – no
sentido amplo de comunicação de conhecimentos – alcança
na sociedade contemporânea. Para Castells, estamos
testemunhando um ponto de descontinuidade histórica no
qual a informação assume papel central, sendo a própria fonte
de produtividade, ou seja, a matéria-prima de nossa sociedade.
Passamos de um período em que a informação capacitava a
sociedade para a atividade produtiva, para outro em que a
atividade produtiva central é a própria transmissão da
informação. Até a década de 1970, a informação agia sobre a
tecnologia. Transmitiam-se conhecimentos sobre as etapas
de transformação de matérias-primas em produto e sobre a
utilização de tecnologias no processo produtivo. O recente
desenvolvimento tecnológico, no entanto, converteu a
C.F.Leitão & A. M.Nicolaci-da-Costa
427
capacidade de gerar informação em força produtiva direta. A
partir de meados da década de 1970, não é a informação que
age sobre a tecnologia. É a tecnologia que age sobre a
informação.
A segunda característica diz respeito ao grau de
penetração das tecnologias digitais. Como a informação é
parte integral de toda atividade humana, todas as esferas da
existência individual e coletiva são influenciadas diretamente
pelas novas tecnologias da informação. Devido a essa
extensiva penetração, participamos da formação de uma nova
economia – nova, mas ainda capitalista – e de uma nova
cultura. A tecnologia é fator constitutivo da nova organização
econômica e social, sem que, no entanto, a isso se atribua um
caráter determinista. Para Castells, a tecnologia molda a
organização da sociedade e, retroativamente, é moldada pelo
uso que a sociedade faz dela. Os membros de uma sociedade
transformam-se ao adotar novas ferramentas tecnológicas mas,
ao adotá-las, eles também as adaptam criativamente.
A terceira característica descrita por Castells é a lógica
de redes presente no conjunto das relações sociais. A
estrutura descentralizada – mas integrada – que molda as
novas tecnologias da informação fornece uma morfologia que
melhor se adapta à crescente complexidade das relações do
mundo contemporâneo. A lógica de redes possibilita que
visualizemos e estruturemos as novas mudanças da sociedade
que, a princípio, são percebidas como não-estruturadas.
Em relação estreita com a lógica de redes, Castells define
a quarta característica do paradigma tecnológico: a
flexibilidade. A rede estrutura o não-estruturado, preservando
sua flexibilidade. As organizações, instituições e relações
sociais são, na contemporaneidade, processos reversíveis e
dinâmicos que revertem regras continuamente sem destruir
sua estrutura.
Já a quinta refere-se à acima citada convergência de
tecnologias em uma rede altamente integrada e inseparável, o
que gera uma profunda interdependência de fatores na
constituição de uma nova forma de organização social.
Por fim, a última característica do paradigma tecnológico
é a da transformação das categorias de análise do mundo:
A partir da observação dessas mudanças extraordinárias em
nossas máquinas e conhecimentos, está havendo uma
transformação tecnológica mais profunda: a das categorias
segundo as quais pensamos todos os processos. (...) O paradigma
da tecnologia da informação não evolui para seu fechamento
como um sistema, mas rumo à abertura como uma rede de
acessos múltiplos (Castells, 1999, pp. 80-81).
Para Castells, os conhecimentos contemporâneos estão,
em grande parte, baseados em novas categorias de análise
que captam adequadamente os novos fenômenos. Esses
conhecimentos são, além disso, abertos e complexos. Não
temos, na atualidade, modelos conceituais fechados em
sistemas definidos. Segundo ele, temos redes conceituais
abertas, nas quais os conceitos têm “acessos múltiplos”.
Diferentes redes se encontram através de nós conceituais
comuns, e também se afastam através de outros nós
divergentes.
Essas seis características do paradigma tecnológico levam
Castells a propor o conceito de rede como categoria central
para analisar a sociedade contemporânea. Ele argumenta que
a morfologia da rede constitui nossa organização social,
definindo os diferentes domínios da atividade e da experiência
humanas. Reproduzimos aqui um trecho dessa argumentação
que, apesar de um pouco extenso, dá a dimensão da
complexidade de seu raciocínio:
Rede é um conjunto de nós interconectados. Nó é o ponto no
qual uma curva se entrecorta. Concretamente, o que um nó é
depende do tipo de redes concretas de que falamos. São mercados
de bolsas de valores e suas centrais de serviços auxiliares
avançados na rede dos fluxos globais. (...) São campos de coca
e de papoula, laboratórios clandestinos, pistas de aterrissagem
secretas, gangues de rua e instituições financeiras para lavagem
de dinheiro, na rede de tráfico que invade as economias,
sociedades e Estados do mundo inteiro. (...) A topologia definida
por redes determina que a distância (ou intensidade e freqüência
da interação) entre dois pontos (ou posições sociais) é menor
(ou mais freqüente e mais intensa), se ambos os pontos forem
nós de uma rede do que se não pertencerem à mesma rede. (...)
A inclusão/exclusão em redes e a arquitetura das relações entre
redes, possibilitadas por tecnologias da informação que operam
à velocidade da luz, configuram os processos e funções
predominantes em nossas sociedades (Castells, 1999, p. 498).
No conceito de rede está presente a noção de
interdependência entre fenômenos e organizações sociais. A
sociedade em rede inclui, também, a dimensão do consumo
destacada pelos pós-modernos. As tecnologias da informação
reestruturam as relações de poder, criando um emaranhado
de fios no qual a informação é disputada como mercadoria e
como fonte de dominação. As relações de inclusão/exclusão
social são, no entanto, tratadas de forma mais complexa do
que na visão dos autores pós-modernos. Para estes, vale
lembrar, enquanto uma elite se conecta à rede de consumo
global, o restante da população permanece excluída. Embora,
para Castells, a inclusão ou a exclusão em uma rede também
sejam critérios de hierarquização social, o problema não é tão
simples como o dualismo inclusão/exclusão pode fazer supor.
Há que considerar também as relações entre as inúmeras redes
sociais existentes. Podemos ser excluídos de uma rede e
incluídos em outras. Podemos assumir, simultaneamente,
diferentes posições de inclusão e exclusão em diferentes
redes. É a arquitetura de relações entre diferentes redes que
estrutura as complexas formas de dominação social vigentes
nos dias de hoje.
A construção de novas redes conceituais: um
desafio para a Psicologia
Por meio da análise que fizemos acima, foi possível
acompanhar o esforço que autores representantes das três
correntes teóricas examinadas neste artigo empreenderam
para romper com os sólidos sistemas conceituais de suas
disciplinas. Esses autores abriram mão da segurança que os
Psicologia e contexto mundial
428
conhecimentos tradicionais ofereciam e, com ousadia e
criatividade, passaram a elaborar novas categorias para
interpretar um novo contexto social.
Este tipo de raciocínio – que privilegia a ruptura com
antigas formas de conhecer a realidade – resgata o caráter
provisório, historicamente datado e socialmente determinado
de todo conhecimento científico. Enquanto vivíamos um
período de longa estabilidade social, criamos a ilusão de que
nossos conhecimentos sobre o mundo eram definitivos.
Julgávamos que as categorias de que dispúnhamos eram
suficientes e eficazes para analisar e compreender tudo o que
acontecia (ou viria a acontecer) no mundo. Atualmente –
quando radicais mudanças na ordem social revolucionam as
diferentes esferas da atividade humana –, essa ilusão cai por
terra. Somos intimados a relembrar que um conjunto de
conhecimentos criados para compreender uma determinada
ordem social é inadequado para a análise de outras.
Parece-nos, contudo, que a Psicologia continua resistente
a este tipo de reflexão crítica. Como já mencionamos, grande
parte dos psicólogos continua presa a antigas categorias e
não opera nenhuma ruptura com o corpo de conhecimentos
de nossa disciplina.
O contraste de duas posturas tão distintas frente à atual
produção de conhecimentos causa impacto e estranhamento.
Temos, de um lado, a postura de continuidade teórica da
Psicologia e, de outro, a de ruptura que caracteriza as correntes
teóricas aqui apresentadas.
Esse estranhamento pode, contudo, servir como um
convite para que nós, na qualidade de psicólogos, comecemos
a repensar criticamente a postura continuísta que muitos de
nós estamos adotando. Tal procedimento pode, por exemplo,
nos levar a reconhecer que o atual corpo teórico da Psicologia
foi construído para compreender a existência humana em uma
ordem social que hoje já não existe mais (a respeito da
construção dessa antiga ordem, ver Figueiredo, 1992). Pode,
ainda, nos ajudar a enxergar que a Psicologia, tal como a
conhecemos hoje, não oferece categorias que possibilitem a
identificação das mudanças psicológicas introduzidas pela
nova ordem mundial.
Ocorre, porém, que o reconhecimento da atual
inadequação do corpo de conhecimentos psicológicos não
vem se revelando uma tarefa fácil. Um dos obstáculos
envolvidos parece ser o medo de que a Psicologia possa vir a
desaparecer caso não haja ferramentas adequadas para
interpretar as transformações psicológicas em curso. Neste
caso, entretanto, deixa-se de registrar que uma das principais
funções da Psicologia é a de identificar, descrever, interpretar
e compreender as novas organizações subjetivas que são
geradas em diferentes contextos históricos e sociais, sejam
estes já conhecidos ou totalmente novos (a este respeito, ver
Nicolaci-da-Costa, 2002b).
Durante muito tempo, dado que os diferentes contextos
do mundo em que vivíamos eram estáveis e facilmente
reconhecíveis, não havia maiores dificuldades em identificar
e interpretar, do ponto de vista da Psicologia, as inúmeras e
sutis facetas da existência humana. No tempo presente, no
entanto, as profundas mudanças sociais pelas quais estamos
passando nos levam a desconhecer as principais
características do mundo atual e, conseqüentemente, as
transformações psicológicas geradas por este novo mundo.
Diante destas transformações, a função da Psicologia
contemporânea passa a ser a de identificar, descrever e analisar
as novas organizações subjetivas geradas em um novo (e
pouco conhecido) contexto histórico e social.
Parece-nos, portanto, que o desaparecimento da
Psicologia como campo da ciência está longe de se colocar
como questão. O que parece estar em jogo é o desafio de
reformular os conhecimentos psicológicos para que os
mesmos acompanhem as transformações em curso na
atualidade. Para tanto, é imperativo que, em um primeiro
momento, os psicólogos travem contato com a produção
teórica de outras disciplinas, a fim de conhecer as principais
características do novo contexto mundial e seus também
novos laços de coesão social.
Consideramos que as correntes teóricas discutidas ao
longo deste artigo podem ser particularmente úteis como ponto
de partida para este instigante desafio. Como foi visto, teorias
recentemente construídas na Sociologia e na Filosofia já
fornecem categorias de análise que tornam a sociedade atual,
senão menos assustadora, pelo menos mais conhecida. Estas
teorias tornam claras algumas das principais referências
sociais que vêm servindo de âncoras para novos processos
de construção subjetiva. Apontam, por exemplo, para o
surgimento de um mundo globalizado, no qual a referência de
humanidade começa a ganhar força ao mesmo tempo em que
novos e desconhecidos riscos rondam a existência humana.
Apontam, ainda, para as novas modalidades de consumo que
organizam a sociedade contemporânea. Apontam, finalmente,
para o revolucionário papel que as novas tecnologias da
informação vêm exercendo nas diferentes esferas da atividade
humana, criando novas formas de lidar com diferentes tipos
de informação, bem como novas formas de relacionamento
entre nações, grupos e pessoas.
Tudo isso se reflete no plano da existência individual,
transformando radicalmente as formas de o sujeito
contemporâneo agir, pensar, sentir e se relacionar consigo e
com os outros. Conhecendo um pouco melhor as âncoras
sociais que, recentemente, começam a servir de referência
para a existência humana, talvez possamos, na qualidade de
psicólogos, aventurar novos olhares sobre nossos
contemporâneos e, assim, a tecer uma nova rede de
conhecimentos psicológicos mais compatíveis com a
atualidade. Se, enquanto psicólogos, não estivermos atentos
a estas mudanças, dificilmente conseguiremos rever nossas
antigas certezas e participar com mais segurança e criatividade
do novo contexto contemporâneo de produção científica.


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