De forma geral o pensamento deleuziano é reconhecido por sua crítica ao pensamento representacional. Não à toa, pois Deleuze se ocupou ao longo da sua trajetória intelectiva com a questão do pensamento e, de fato, fez dessa problemática sua questão central. Segundo o pensador, a imagem do pensamento traçada ao longo da tradição ocidental fez do pensamento uma potência binária, excludente, moral; tornando-o representacional e guiado por um único modelo autoritário que busca enquadrar tudo e todos em moldes específicos. Na obra Diferença e Repetição de 1968 Deleuze constrói filosoficamente sua ideia de pensamento. O autor cria os conceitos do título (diferença e repetição), demonstrando as alianças com outros autores que o levaram a tal perspectiva (interessante notar que as alianças não são somente com autores, sujeitos, mas também com a produção, do que se entende trivialmente como conhecimento, da matemática, da biologia, literatura, ciência, arte, física, sexualidade, política, etc. O que torna a obra uma “espécie de mathesis universalis, [...] uma totalização enciclopédica dos saberes e dos campos”). Também nesse texto encontramos o assunto que iremos debater no artigo, mais precisamente no capítulo “A diferença em si mesma”. É nele que Deleuze apresenta sua leitura singular sobre Aristóteles ao tratar da teoria ontológica da diferença e como tal posicionamento teórico reverberou e contribuiu para o engessamento do pensamento dogmático. É também nesse texto que o autor examina minuciosamente os pressupostos do pensamento representacional, e reivindica o pensamento fora da representação. De forma genérica, pode-se afirmar que a principal direção da obra consiste em desenvolver uma argumentação crítica sobre o entendimento canonizado pela tradição do pensamento filosófico acerca da forma pela qual o pensamento se estrutura e como ele alcança o verdadeiro conhecimento, melhor dizendo, a verdade. Há, também, uma argumentação clínica na qual o filósofo evidencia os sintomas de um pensamento adoentado por ser reprimido e viciado na representação, e diagnostica tal doença em prol de uma saúde maior. A sua ideia é fazer “do pensamento delirante, fabulador, um processo de produção de novas individualidades” (SILVA, 2016).
Indo à obra Diferença e Repetição categoricamente a formação do pensamento ortodoxo é estruturada sobre quatro postulados que servem de pilares para o pensamento conceitual filosófico; o que é radicalmente criticado por Deleuze. Um desses postulados é a suposição da linearidade em um pensamento reto pautado na boa vontade do pensador, o postulado Cogitatio natura Universalis, que entende o pensamento como um exercício natural que deseja e possui o verdadeiro. O segundo postulado é do senso comum e do bom senso como potências do pensamento distribuídas a todos os sujeitos por ser uma categoria de direito do intelecto. O terceiro postulado dessa estrutura é o modelo recognitvo, que tem como principal função enfatizar que conhecer é na verdade reconhecer; e o que o reconhecimento se dá através do uso congruente das faculdades que transmitem entre si a identidade do objeto. O quarto postulado é o da Representação, que tem como princípio geral o Eu penso como meio de garantir a unidade das faculdades do intelecto. Contudo, para Deleuze, os quatros postulados que sustentam o pensamento racionalista em nada servem na busca infindável de retirar o pensamento da doxa a fim de estabelecer a episteme. Pelo contrário: eles viciam ainda mais o pensamento às “falsas-verdades” dadas. Deleuze nos diz que a insuficiência deste modelo encontra-se na “forma” por ele estabelecida (modelo reto do pensamento) para pensar e repensar o doxa. Essa “forma”, enraizada pela tradição, está em conformidade com o senso comum em que dele “ela conserva o essencial, isto é, o elemento; da recognição, ela conserva o essencial, isto é o modelo” (DELEUZE, 2006). Nessa direção, argumenta o filósofo no sentido da
[...] recusa [de] submeter o pensamento ao modelo de um exercício dito empírico, no qual as faculdades se encontram submetidas a um Senso Comum que as remete à Unidade de um Sujeito e as relaciona a um Objeto suposto o Mesmo. Esse modelo é recusado pela ideia de um exercício superior do pensamento que faz o começo na filosofia depender de um salto, de uma mudança de registro, da conquista de um exercício diferencial do pensamento. E esse salto, ou essa passagem, não está sujeita à vontade do pensador, decorre do acaso de um encontro, da relação do pensamento com seu fora (dehors), com um signo portador de problema (ABREU, 2010).
Um dos propósitos dessa mesma obra é investigar qual seria “o começo” do pensamento, sem que o impulso pensante estivesse subjugado a um pressuposto objetivo; a nenhum início que tenha “os conceitos explicitamente supostos por um conceito dado” (DELEUZE, 2006), ou a pressupostos subjetivos que estejam “envolvidos num sentido, em vez de o serem num conceito” (DELEUZE, 2006). A crítica inicial de Deleuze consiste na universalidade da proposição usualmente recorrente para dar início ao pensamento filosófico. Dito de outro lado: a suposição de que “todo mundo sabe, ninguém pode negar, é a forma da representação e o discurso do representante” (DELEUZE, 2006). Deleuze exemplifica esse postulado com a teoria do Cogito Cartesiano que previamente supõe a noção do ser, do eu e do pensar. A sua crítica tem como intuito principal a desmistificação da “imagem de um pensamento reto e que sabe o que significa pensar; o elemento puro do senso comum que daí deriva “de direito”, o modelo da recognição ou já a forma da representação que, por sua vez, dele deriva” (DELEUZE, 2006). A Imagem de Pensamento elaborada por esse pressuposto ratifica que há no pensamento um percurso natural em direção ao verdadeiro e ao correto, norteado pela “natureza reta do pensamento” e pela “boa vontade” do pensador. E uma vez que todos pensam então todos sabem, e estão, pois, aptos a dizer o que seja de fato pensar. O pensamento é igualmente distribuído a todos sem ser preciso exercitá-lo. Eis aí a base estrutural do pensamento representacional. Pensamento que Deleuze também denomina como “imagem dogmática”, “imagem ortodoxa” ou “imagem moral”. Segundo suas palavras:
Segundo esta imagem, o pensamento está em afinidade com o verdadeiro, possui formalmente o verdadeiro e quer materialmente o verdadeiro. E é sobre esta imagem que cada um sabe, que se presume que cada um saiba o que significa pensar. Pouco importa, então, que a Filosofia comece pelo objeto ou pelo sujeito, pelo ser ou pelo ente, enquanto o pensamento permanecer submetido a esta Imagem que já prejulga tudo, tanto a distribuição do objeto e do sujeito quanto do ser e do ente. [...] Todavia, ela resiste no implícito, mesmo que o filósofo sublinhe que a verdade, no final das contas, não é “uma coisa fácil de ser atingida e ao alcance de todos” (DELEUZE, 2006).
Outra crítica efetuada por Deleuze refere-se à maneira pela qual a filosofia tradicional aborda e considera a noção de diferença, uma vez que para ele há a impossibilidade de entendimento do pensar o que, de fato, seja a diferença seguindo a norma da tradição ocidental. Em linhas gerais, a crítica consiste na estrutura herdada no pensamento, que ao se propor a pensar o diferente dentro do processo recognitivo utiliza sempre um ponto referencial para estabelecê-la: a diferença a partir do igual, a partir do idêntico, a partir do semelhante. Não há meio de enquadrar a diferença nos modelos da imagem clássico-racionalista do pensamento. Essa imagem compreende a diferença apenas como a dessemelhança do igual, melhor dizendo, a diferença é aquilo que não se assemelha ao modelo vigente; e à medida que ela foge à compreensão, o máximo que se obtém da ideia de diferença pura na imagem ortodoxa do pensamento é relacionando a um conceito geral sobre diferença. Portanto, o intelecto não alcança a diferença por si mesma, mas a diferença com relação a algo:
Aí está o princípio de uma confusão danosa para toda a Filosofia da diferença: confunde-se o estabelecimento de um conceito próprio da diferença com a inscrição da diferença no conceito geral – confunde-se a determinação do conceito de diferença com a inscrição da diferença na identidade de um conceito indeterminado. É o passe de mágica implicado no momento feliz (e disso talvez derive todo o resto: a subordinação da diferença à oposição, à analogia, à semelhança, todos os aspectos da mediação). Deste modo, a diferença fica sendo apenas um predicado na compreensão geral do conceito (DELEUZE, 2006).
Vale notar que o projeto filosófico deleuziano consiste em libertar a diferença dos ditames da representação e da subordinação à identidade, a fim de pensar a diferença em si mesma e tornar viável erigir a ideia de diferença pura. Outrora utilizados de forma inversa para assegurar o pensamento representacional. Ovídio de Abreu assevera que “Deleuze diagnostica assim uma mazela filosófica que, ao secretar uma ortodoxia implícita, [...] enfraquece o pensamento, afastando-o de uma vida ativa e de sua potência criadora” (ABREU, 2010). Com isso, e por estar “sujeitada a essa imagem, a filosofia exprime uma boa vontade de potência negativa, alimenta transcendências, ilusões propriamente filosóficas, e organiza um sistema de julgamento no âmago do pensamento” (ABREU, 2010). O fato é que a representação é uma imagem inofensiva do pensamento, não ameaça a nada! Não derruba nenhuma estrutura, não rompe com nenhuma norma estabelecida; não há confronto no pensamento recognitivo. São justamente as diretrizes desse pensamento o que incomodou Deleuze, para ele o pensamento deve ter um tanto mais de atrevimento. Nessa direção:
O que é preciso criticar nesta imagem do pensamento é ter fundado seu suposto direito na extrapolação de certos fatos, e fatos particularmente insignificantes, a banalidade cotidiana em pessoa, a Recognição, como se o pensamento não devesse procurar seus modelos em aventuras mais estranhas e menos comprometedoras (DELEUZE, 2006).
Ressalta Deleuze que ele não foi o primeiro a travar tal desconstrução, e sim que o legado da representação foi alvo de ataques de diversos outros autores filosóficos que tentaram principalmente dar uma amplitude maior para suas filosofias evitando recair em um julgamento dualista. Contudo, para ele, apesar da tentativa dessas teorias nenhum autor conseguiu destruir o pensamento representacional, o legado platônico, tampouco pensar a diferença por si mesma sem interferências do mesmo ou do semelhante. Sobre as teorias que tentaram desvirtuar o pensamento, afirma Deleuze que
Sua embriaguez é fingida. Ela persegue sempre a mesma tarefa, Iconologia e adapta-se às exigências especulativas do Cristianismo (o infinitamente pequeno e o infinitamente grande). E sempre a seleção dos pretendentes, a exclusão do excêntrico e do divergente, em nome de uma finalidade superior, de uma realidade essencial ou mesmo de um sentido da história (DELEUZE, 1974).
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O Feliz Momento Grego:
Deleuze dialoga com diversos nomes da história da filosofia a fim de exercer críticas às linhagens de pensamento que enraizaram a representação. Aristóteles é um dos interlocutores. Responsável por determinar o que Deleuze chama de o Feliz Momento Grego, Aristóteles sistematiza a primeira grande estrutura do pensamento representacional e apresenta o lugar da diferença dentro desse cenário. Ali são dois os casos em que a diferença se coloca: quando é estabelecida na relação entre gênero e espécie; ou quando é determinada na equivocidade do ser em contraposição com as categorias. Nos dois casos, entretanto, Gilles Deleuze assevera que a noção de diferença é deliberada pelos arranjos estruturais da identidade. O que torna a filosofia aristotélica incapaz de estabelecer um conceito singular de diferença. Serão sobre tais pontos (a diferença em Aristóteles e a crítica deleuziana) que nos debruçaremos na segunda parte do trabalho.
No denominado Feliz Momento Grego Aristóteles nomeia a contrariedade como a maior e a mais perfeita diferença. É visto que o filósofo grego buscava “determinar qual a grandeza ou a pequenez que deve ter a diferença para entrar nos limites do conceito” (FORNAZARI, 2005), como nos alerta Sandro Kobol. Pensando com o comentador vemos que Aristóteles atribui “à diferença uma natureza predicativa em relação à identidade de um conceito determinado (o gênero), isto é, a diferença específica é inscrita no gênero, dividindo-o em espécies que apresentam entre si uma contrariedade.” (FORNAZARI, 2005). Ocorre que a contrariedade se distingue da heterogeneidade uma vez que estabelece um sujeito (coisa) como guia de comparação entre os contrários. Sendo essa a base, então, para a instauração da diferença. Em contrapartida, quando imersa no conceito geral, a diferença é capaz de determinar a especificação. Ou seja, faz-se necessário radicar a diferença específica para pressupor o gênero que, então, delimita as diferenças particulares que - na contrariedade – são os suprassumos da representatividade da diferença. No início do texto Contrariedade como diferença máxima Aristóteles coloca:
Como as coisas que diferem entre si podem diferir em grau maior ou menor, deve haver uma diferença máxima à qual chamo contrariedade. E que a contrariedade seja a diferença máxima fica evidente por intuição. De fato, as coisas que são diferentes por gênero não admitem entre si nenhuma passagem, mas são distantes entre si e incomparáveis. Mas as coisas que diferem por espécie geram-se dos contrários tomados como extremos. Ora, a distância entre os extremos e, portanto, entre os contrários é máxima. Mas o máximo em cada gênero é também perfeito: máximo com efeito, é o que não pode ser superado, e perfeito é aquilo além do qual não se pode encontrar outro. E a diferença perfeita é a que alcançou seu fim, assim como perfeitas, em geral, são as coisas quando alcançam seu fim (ARISTÓTELES, Metafísica, II, 10, 1055ª 5-10).
A fim de melhor esclarecer os pontos, vejamos algumas definições dos conceitos cruciais na teoria aristotélica e que posteriormente serão fundamentais para a compreensão da crítica deleuziana. Por gênero entende-se o “algo idêntico, essa natureza comum que há entre duas coisas, como por exemplo, entre dois animais” (FORNAZARI, 2005). E a diferença específica é entendida como “aquela que cria uma contrariedade na definição das espécies
pertencentes a um gênero que permanece o mesmo para ambas e responde ao critério da seleção para a diferença ser inscrita no conceito geral” (FORNAZARI, 2005). Ou seja, a diferença em espécie é dada a partir da comparação entre duas coisas contrárias que compartilham igualmente de um mesmo plano de fundo que serve como fundamento, ou gênero. Nesse raciocínio o que difere em espécie tem a mesma linha de predicação dos demais. É “a diferença entre as espécies [que] inscreve a diferença na identidade do conceito indeterminado do gênero, ou seja, duas espécies diferem entre si sob algum aspecto, permanecendo, entre elas, algo de idêntico como predicado de ambas” (FORNAZARI, 2005). Usando exemplos: no gênero temos a identidade do conceito (animal). Dele procedem as espécies que se diferenciam de forma mais restrita no gênero (exemplo: mulher e felina). A espécie a) mulher é diferente da espécie b) felina, mas ambas estão submetidas a um gênero comum que é o “animal”. Outro ponto importante é que aquilo que não permite a definição da diferença no modelo apresentado é entendido por Aristóteles como a diversidade que contém multiplicidades. Nas palavras do autor: “é claro que a identidade é uma unidade do ser ou de uma multiplicidade de coisas, ou de uma só, mas considerada como multiplicidade: por exemplo, como quando se diz que uma coisa é idêntica a si mesma, sendo nesse caso, considerada como duas” (ARISTÓTELES, Metafísica, II, 4, 1018ª 5-10). O pensador continua sua explanação: enquanto que os
Diferentes se dizem (1) as coisas que, mesmo sendo diversas, são por algum aspecto idênticas: não, porém, idênticas por número, mas (a) ou por espécie, (b) ou por gênero, (c) ou por analogia. Ademais, diferentes se dizem (a) as coisas cujo gênero é diverso, (b) os contrários e (c) todas as coisas que têm diversidade na substância. (ARISTÓTELES, Metafísica, II, 4, 1018ª 10-15)
Na sistematização aristotélica da diferença Deleuze encontra consequências que dela derivam e que são insuficientes quando se trata de uma abordagem geral e concisa da diferença. Dois são os aspectos insuficientes: ao tratar da ideia de diversidade cria-se uma noção que não é possível ser inteligível uma vez que não cabe dentro dos limites das categorias e, ao mesmo tempo, afirma-se um conceito de indiferente, indeterminado e sem vínculo entre as coisas. O segundo ponto é que através da ideia de contrariedade busca-se introduzir a diferença na identidade. São essas as premissas que asseguram a diferenciação das espécies a partir da distinção de graus entre elas dentro do escopo maior que é o gênero. Daí que, segundo Deleuze, ao submeter a diferença ao conceito indeterminado do gênero é que se tem a “confusão fundamental”. Para ele, na tentativa de dar-lhe consistência, inversamente se sujeita a diferença na quádrupla raiz da representação: oposição, analogia, semelhança e identidade. Sobre os elementos da representação o filósofo francês especifica que há “quatro aspectos principais: a identidade na forma do conceito indeterminado, a analogia na relação na relação entre conceitos determináveis últimos, a oposição na relação das determinações no interior do conceito, a semelhança no objeto determinado do próprio conceito” (DELEUZE, 2006).
Retomando Aristóteles, é a diferença específica (o mesmo que “contrariedade nas espécies”) que constitui o perfeito modelo da diferença, a diferença perfeita. Nesta perspectiva a diferença específica abarca tanto a questão acerca da contrariedade nas espécies, bem como a identidade de gênero. Dessa postura derivam-se dois conceitos fundamentais para a representação aristotélica: a identidade do conceito – identidade da noção geral que se efetua como sujeito da diferença- e a oposição dos predicados – oposição das espécies pelos critérios estabelecidos a partir da diferença de grau em um mesmo gênero. Ocorre que a diferença específica “só existe quando referida e sob a condição da identidade do conceito de gênero. Inversamente, entre as coisas que diferem de gênero há uma distância tão grande que não é possível sequer compará-las” (FORNAZARI, 2005). Isso porque, diferentemente das espécies que compartilham de um mesmo plano de fundo, não há entre os gêneros um horizonte em comum. Melhor dizendo, por serem categorias distintas não há um conceito comum que os integra como, por exemplo, as premissas do um ou do ser – mesmo porquê nem o ser e nem o um podem ser gênero, pois “não é possível que o um e tampouco o ser seja um gênero único das coisas; pois necessariamente existem as diferenças em casa gênero, e cada uma dessas diferenças não só é como também é uma”. (ARISTÓTELES, Metafísica, III, 3, 998b 20-30). De forma que o par conceitual resumir-se-ia em espécies unívocas ao gênero e o gênero equívoco ao ser.
É através do conceito de equivocidade do ser que o pensador grego afirma a multiplicidade dos gêneros. Em sua célebre frase ele afirma que “o ser se diz em muitos sentidos”. Talvez tal posicionamento feche algumas possíveis lacunas da questão do ser, contudo ela abre uma nova rachadura que Aristóteles buscou sanar no livro IV da obra Metafísica. A questão que se coloca é acerca de como justificar os diversos sentidos do ser em uma mesma unidade ontológica. O pensamento maioritário sobre Aristóteles afirma que o que há em comum entre os sentidos do ser é a busca por uma unidade distributiva e hierárquica. Justamente nesse ponto Deleuze encontra outra problemática: tal postura propõe uma analogia de proporção que só seria adequada quando as diferenças dos gêneros estivessem, novamente, submetidas à representação. Quero dizer, seria a analogia que distribuiria o conceito e definiria a hierarquia dos sujeitos imersos nas diferenças dos gêneros. O que nos faz retornar às definições das duas diferenças distintas no pensamento aristotélico: a diferença genérica que “subsiste, na diferença categorial, um conceito idêntico, embora de modo especial, qual seja, o conceito de ser enquanto distributivo e hierárquico” (FORNAZARI, 2005); e a segunda diferença que seria a diferença específica sobre o qual falamos logo acima.
Por ser a analogia que distribuiria de maneira hierarquizada os diferentes sentidos do ser, equivaleria dizer que o ser equívoco seria, propriamente, a analogia do juízo. O juízo enquanto uma categoria tem como faculdades a capacidade de atribuir às coisas sujeito. termos ou conceito que lhes competem. Isso porque as faculdades que direcionam o juízo são as faculdades do senso comum e bom senso que são trivialmente entendidas como comumente distribuídas. Em tal dueto o senso comum partilha o conceito e o bom senso assegura sua hierarquização entre os sujeitos. Sequencialmente: categoricamente e hierarquicamente. Sendo, pois, a analogia do juízo o que possibilitaria a afirmação da equivocidade do ser na identidade dos conceitos na categoria. Deleuze aponta que “no conceito de reflexão, com efeito, a diferença mediadora e mediatizada submete-se de pleno direito à identidade do conceito, à oposição dos predicados, à analogia do juízo, á semelhança da percepção. Reencontra-se aqui o caráter necessariamente quadripartido da percepção” (DELEUZE, 2006). A partir do que foi exposto até aqui, é possível afirmar que a diferença no pensamento aristotélico encontra um teor sistemático através da ordenação dos gêneros e espécies colocados e especificados a partir das premissas da identidade e da analogia. Resta, pois, “saber se sob todos estes aspectos reflexivos a diferença não perde, ao mesmo tempo, seu conceito e sua realidade” (DELEUZE, 2006). Explanando de forma concisa, para Deleuze, de uma forma ou de outra, nenhuma das distinções de diferença dão conta de pensar a diferença em si mesma. O autor nos diz que:
É, portanto, um argumento tirado da natureza da diferença específica que permite concluir haver uma outra natureza das diferenças genéricas. Tudo se passa como se houvesse dois “logos”, diferentes por natureza, mas misturados um no outro: há o logos das Espécies, o logos do que se pensa e do que se diz, que se baseia na condição da identidade ou de univocidade de um conceito em geral tomado como gênero; e há o logos do Gênero, o logos do que se pensa e do que se diz por nosso intermédio e que, livre da condição, move-se na equivocidade do Ser como na diversidade dos conceitos mais gerais. (DELEUZE, 2006)
Contudo, mesmo em meio à submissão da diferença dentro do pensamento representacional, Deleuze encontra na filosofia de Aristóteles um fôlego para se pensar a diferença, ou, em outras palavras, uma rachadura que não cessa de expandir-se para fora do pensamento aristotélico. O filósofo francês indaga na seção dedicada à “Diferença Específica e a Diferença Genérica” se “não será preciso reconhecer aqui uma espécie de rachadura introduzida no pensamento, que não parará de crescer em uma outra atmosfera (não aristotélica)?” (DELEUZE, 2006) e continua, “mas, sobretudo, já não será uma nova oportunidade para a Filosofia da diferença? Será que ela não vai se aproximar de um conceito absoluto, uma vez liberada da condição que a mantém num máximo inteiramente relativo?” (DELEUZE, 2006). Acontece que no Feliz Momento Grego, mesmo com diferença quase que totalmente submetida à quádrupla raiz da identidade, Deleuze observa uma fração fora da representação e que possibilita um respiro novo. O filósofo designa essa rachadura como catástrofe, que por sua vez designa as “rupturas de continuidade na série de semelhanças, falhas instransponíveis entre estruturas análogas” (FORNAZARI, 2005). Para o autor francês, tal catástrofe seria o fundo rebelde irredutível que abala discretamente as estruturas da representação orgânica e apresenta uma nova possibilidade de representação: a orgíaca. Sobre tais conceitos não iremos nos atentar neste artigo, uma vez que exigiria uma nova e longa discussão a respeito deles. Apenas para oferecer maior direcionamento ao leitor expomos que “quando a representação encontra em si o infinito, ela aparece como uma representação orgíaca e não mais orgânica: ela descobre em si o tumulto, a inquietude e a paixão sob a calma aparente ou sob os limites do organizado” (DELEUZE, 2006)
Pensando a questão da diferença no plano macro, o problema em confundir um conceito geral da diferença com um conceito próprio da diferença na perspectiva da imagem ortodoxa do pensamento é que um conceito é primeiramente uma generalidade que abarca sobre si diversos objetos que em alguma medida têm características de feições semelhantes. E, ao se conceituar a diferença, parte-se do mesmo princípio: o de pensá-la como uma generalidade que abarca diversos elementos semelhantes. Há um efeito contraditório: o diferente que se conceitua pelo semelhante. Com isso não há uma concepção própria da diferença, uma vez que ela torna-se também um conceito geral: a diferença como o diferente. Eis aí a perversidade da representação, que subestima a diferença e a retira do primado ontológico; tornando-a um adjetivo conceitual com o fim de fazê-la acessível ao pensamento ortodoxo. De tal modo que a diferença se tornou algo do campo material. Só compreendemos a diferença quando algo destoa em uma cadeia de impressões em que retiramos aquilo que se apresenta como desigual e denominamos como diferente.
Nessa perspectiva, tratar a diferença implica considerar também as relações correspondentes de mutação, de transformação e de afirmação do desigual. Não seria correto negar que o sujeito busca uma regularidade nos acontecimentos naturais em seu entorno a fim de conhecer e traçar uma relação proveitosa com tais fenômenos, nem tampouco que não se extrairiam ricas informações desse processo. A luta travada por Deleuze não está em negar tal apontamento que é facilmente verificável mesmo através de uma observação corriqueira sobre o Mundo. O equívoco consiste fundamentalmente em submeter tudo a um único princípio regente. A diferença é o que constitui o ser e não o igual ou a identidade. Que negar a diferença e submetê-la à identidade é massificar os seres e reduzi-los a um único fundamento. Não que o movimento de igualar-se não faça parte também dos seres. Porém quando o movimento está na matéria, mesmo que seja a diferença na matéria, ele é um movimento acidental. Ou seja, “em sua essência, a diferença é objeto de afirmação, ela própria é afirmação. Em sua essência, a afirmação é ela própria diferença” (DELEUZE, 2006).
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O Legado Representacional:
Ao adentrarmos a ideia de representação clássica entendemos que esta imagem do pensamento tem como base a identidade, que é reproduzida por um discurso representacional carregado de lógicas enunciativas; e pretende, ainda, relacionar a ideia ao objeto e nomear o que é falso e o que é verdadeiro de acordo com os princípios da representação: identidade, oposição, analogia e semelhança. O mecanismo da representação composto por esses elementos funciona como um maquinário de derivação. Primeiramente, a identidade do conceito oferece a concepção do mesmo para o processo recognitivo, que, então, busca um elemento comum de identidade. Para determinar o conceito há a comparação dos predicados do “mesmo” em oposição aos elementos antagônicos ou não a ele, apegando-se à memória como meio de validar tal determinação. Na sequência é a vez da analogia, que pela determinação do conceito realiza uma ligação direta com o objeto a fim de atribuir-lhe um juízo. Ao objeto do conceito resta ser ajuizado de semelhante ou não-semelhante; para, por fim, ser conceituado pelas informações dos elementos anteriores. Sintetizando: identidade no conceito, oposição na determinação do conceito, analogia no juízo e semelhança no objeto. O pensamento “pensado” pela representação está submetido às categorias formais, que classificam as informações que chegam pelo ato recognitivo e criam uma ideia universal através de informações particulares; visando exprimir o todo através da unidade de todas as faculdades do intelecto, na “concordância das faculdades, fundada no sujeito pensante tido como universal e se exercendo sobre o objeto qualquer” (DELEUZE, 2006). A representação é a união do que Deleuze chama de “Quádruplo cambão”.
Quádruplo cambão, em que só pode ser pensado como diferente o que é idêntico, semelhante, análogo e oposto; é sempre uma relação a uma identidade concebida, a uma analogia julgada, a uma oposição imaginada, a uma similitude percebida que a diferença se torna objeto da representação. [...] Eis por que o mundo da representação se caracteriza por sua impotência em pensar a diferença em si mesma; e, ao mesmo tempo, em pensar a repetição para si mesma, pois está só é apreendida por meio da recognição, da repartição, da produção, da semelhança, na medida em que elas alienam o prefixo RE nas simples generalidade da representação (DELEUZE, 2006).
Em que, de fato, consiste esse movimento de reconhecimento e classificação do intelecto? A resposta, nas palavras do autor, seria que “a recognição se define pelo exercício concordante de todas as faculdades sobre um objeto suposto como sendo o mesmo: é o mesmo objeto que pode ser visto, tocado, lembrado, imaginado, concebido...” (DELEUZE, 2006). Dito de outro modo: um objeto/coisa para ser entendido precisa emitir as informações concordantes para todas as faculdades possíveis a fim de que elas entrem em um consenso acerca do objeto/coisa podendo sistematizá-lo para conhecê-lo e, por fim, denominá-lo. No mais, decorre que “um objeto é reconhecido quando uma faculdade o visa como idêntico ao de uma outra ou, antes, quando todas as faculdades em conjunto referem seu dado e referem a si mesma a uma forma de identidade do objeto” (DELEUZE, 2006). Seguindo os apontamentos encetados pelo filósofo:
É suposto como naturalmente reto, porque ele não é uma faculdade como as outras, mas, referido a um sujeito, é a unidade de todas as outras faculdades que são apenas seus modos e que ele orienta sob a forma do Mesmo no modelo da recognição. O modelo da recognição está necessariamente compreendido na imagem do pensamento. Quer se considere o Teeteto de Platão, as Meditações de Descartes, a Crítica da razão pura de Kant, é ainda este modelo que reina e que “orienta” a análise filosófica do que significa pensar (DELEUZE, 2006).
O processo recognitivo é trivialmente utilizado para atribuir sentido àquilo que está diante da percepção. Como ao deparar-se com uma pessoa na rua cujo rosto se reconhece e constata ser aquele indivíduo alguém conhecido e, então, o cumprimenta. A questão é que esse processo não se limita ao reconhecimento básico da percepção. O pensamento representacional tem extensa dimensão e submete qualquer possibilidade de pensamento à ordem que se exerce em favor do ortodoxo, da moral; a “recognição celebra esponsais monstruosos em que o pensamento ‘reencontra’ o Estado, reencontra da ‘Igreja’, reencontra todos os valores do tempo que ela, sutilmente, fez com que passassem sob a forma pura de um eterno objeto qualquer” (DELEUZE, 2006). Ora, não é somente ao reconhecimento do objeto que ela serve, mas também para as atribuições de valores sobre as coisas no mundo; valores que são supostamente distribuídos pelo bom senso dos sujeitos. Contudo, será mesmo que o pensamento tem que seguir sempre uma linha reta? Não há curvas, atalhos, trilhos, zigue-zagues, voltas e idas e voltas, que o pensamento poderia executar? O pensamento não é maior e mais potente do que um reconhecimento? Deleuze esclarece: “é evidente que os atos de recognição existem e ocupam grande parte de nossa vida cotidiana [...]. Mas quem pode acreditar que o destino do pensamento se joga aí e que pensemos quando reconhecemos?” (DELEUZE, 2006). A centralidade da crítica face ao processo recognitivo norteia-se no aspecto limitador do pensamento; da recognição que “corta as asas” do pensamento, que o deixa passivo e inativo, sem pulsão para especulação. Que em contrapartida cria as normas, regras a serem seguidas pelo pensamento em apenas uma única direção. Em um contexto como esse a diferença é impensável por si mesma, afinal, como pensar o diferente em um processo em que tudo o que não é idêntico ou similar é visto como negativo e deve ser afastado do pensamento? Para o filósofo francês:
O que é preciso criticar nesta imagem do pensamento é ter fundado seu suposto direito na extrapolação de certos fatos, e fatos particularmente insignificantes, a banalidade cotidiana em pessoa, a Recognição, como se o pensamento não devesse procurar seus modelos em aventuras mais estranhas e menos comprometedoras (DELEUZE, 2006).
Fundada na imagem moral a recognição vê-se capaz do arbitramento e da classificação
constante daquilo que pode ou que não pode ser pensado a partir das direções dadas pela razão nesse modelo de pensamento. O pensamento tornou-se recognitivo e o entendimento sobre as causas e as coisas é operado pelo legislador desse pensar em função do re-conhecimento regulado pela representação. Em suma, se algo pode ser submetido ao processo recognitivo então ele pode ser pensado. Se ao ser pensado na recognição ele afirma uma relação causal então é um pensamento correto. Afinal, o ato da recognição está intrinsecamente inserido no princípio da representação, na medida em que há semelhança e correlação entre tudo no mundo, em uma contínua correspondência entre ideia e realidade. Ou seja, os problemas da existência passam a ser uma questão de identificação e de diferenciação sobre os acontecimentos e os existentes. Gilles Deleuze considera que ocorre uma redução do pensamento ao enquadrá-lo no ato recognitivo, pois estando submetido às ordens de reconhecimento da razão clássica, sem ter aí uma linha de fuga como fôlego para um pensamento-outro, o pensamento perde, em muito, sua capacidade criativa e propriamente pensante. Portanto, é na redução do pensamento ao propósito recognitivo que Deleuze elabora a sua crítica à recognição. A imagem dogmática do pensamento, por ter como base estrutural a recognição em busca do verdadeiro, classifica aquilo que pode ou não ser pensado segundo as direções da razão dentro do processo recognitivo. Limita os caminhos que pode o pensamento seguir e barra tudo que se apresenta como diferente, pois o considera desnecessário ao pensamento. O racionalismo clássico não é capaz de absorver e delimitar, segundo a sua perspectiva, tais potências do desigual. Por isso prefere marginalizá-lo e selecionar o que deve ou não ser pensado. Com isso retira qualquer subversão do pensamento tornando-o um beato que acompanha os valores vigentes como uma faculdade reconhecedora do que lhe é dado.
Filosofia
Psicanálise
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