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F I L Ó S O F O S
em 90 minutos
. . . . . . .
por Paul Strathern
Aristóteles em 90 minutos
Berkeley em 90 minutos
Bertrand Russell em 90 minutos
Confúcio em 90 minutos
Derrida em 90 minutos
Descartes em 90 minutos
Foucault em 90 minutos
Hegel em 90 minutos
Heidegger em 90 minutos
Hume em 90 minutos
Kant em 90 minutos
Kierkegaard em 90 minutos
Leibniz em 90 minutos
Locke em 90 minutos
Maquiavel em 90 minutos
Marx em 90 minutos
Nietzsche em 90 minutos
Platão em 90 minutos
Rousseau em 90 minutos
Santo Agostinho em 90 minutos
São Tomás de Aquino em 90 minutos
Sartre em 90 minutos
Schopenhauer em 90 minutos
Sócrates em 90 minutos
Spinoza em 90 minutos
Wittgenstein em 90 minutos
SPINOZA
(1632-1677)
em 90 minutos
Paul Strathern
Tradução:
Marcus Penchel
Consultoria:
Danilo Marcondes
Professor-titular do
Deptº de Filosofia, PUC-Rio
SUMÁRIO
. . . . . . . . . . .
Sobre o autor
Introdução
Vida e obra
Posfácio
Citações-chave
Cronologia de datas significativas da filosofia
Cronologia da vida de Spinoza
Leitura sugerida
Índice remissivo
SOBRE O AUTOR
. . . . . . . . . . .
Paul Strathern estudou filosofia no Trinity College de Dublin, lecionou filosofia e matemática
na Universidade de Kingston e é autor das séries “Filósofos em 90 minutos”, traduzida em
diversos países, e a mais recente “Cientistas em 90 minutos”. Escreveu cinco romances (entre
eles A Season in Abyssinia, ganhador do Prêmio Somerset Maugham), além de biografias e
livros de história e viagens. Jornalista free-lance, colaborou para o Observer, o Daily
Telegraph e o Irish Times. Tem uma filha e mora em Londres.
INTRODUÇÃO
. . . . . . . . . . .
Spinoza é o filósofo dos filósofos. Construiu um sistema metafísico de beleza surpreendente,
brilhante, tanto mais que não se inspira nem na realidade nem na experiência. Era um homem
profundamente religioso, embora aparentemente não professasse nenhuma fé específica. Sua
filosofia é permeada pela idéia de Deus e ele mesmo viveu uma vida de santo.
Conseqüentemente, foi abominado em vida por todas as religiões e, após a morte, suas obras
seriam difamadas, perseguidas e queimadas.
Hoje em dia, quando não se exige mais dos filósofos a crença em Deus, quando eles levam
— como todos nós — vidas escandalosas e têm que prestar atenção na realidade, Spinoza é
tido como o filósofo exemplar. Se eventualmente for canonizado, será o padroeiro dos
hipócritas.
A essência da filosofia de Spinoza é o seu sistema totalizante, que tudo abarca. Este situase
entre o mundo hierarquizado da certeza medieval e a crença emergente no poder da razão
como único meio de atingir a verdade. Tal sistema, produzido matematicamente, encara Deus
como Natureza (Deus sive Natura). A partir de suposições básicas (definições, axiomas) e
uma série de demonstrações geométricas, constrói um universo que vem a ser igualmente
Deus. É o exemplo clássico de panteísmo: a crença de que Deus e o universo são uma coisa
só. O que teve curioso reflexo na moderna hipótese de Gaia, que vê nosso planeta como um
vasto e único organismo ou uma célula auto-regulada. O sistema de Spinoza leva também a
uma ética holística semelhante à que defendem os ecologistas modernos. Maltrate o mundo e
você estará maltratando Deus; maltrate os outros e estará maltratando a si mesmo.
A teoria política de Spinoza também estava muito à frente de seu tempo. Ele acreditava
que o propósito do Estado era apenas proteger o indivíduo de modo a que pudesse livremente
desenvolver a si e a suas idéias através da razão iluminista.
A abordagem teísta e sistemática de Spinoza faz de sua filosofia uma anacrônica raridade.
Ironicamente, as conclusões que tirou desse antiquado sistema estão profundamente afinadas
com o pensamento moderno — do campo científico à política. Tanto o sistema como as
conclusões são de uma beleza sem par na história da filosofia. Se a beleza é a verdade e a
verdade é a beleza, como proclamou Keats, a filosofia de Spinoza é tudo o que sabemos e
precisamos saber.
VIDA E OBRA
. . . . . . . . . . .
Baruch (Benedito) de Spinoza nasceu em 4 de novembro de 1632 em Amsterdã. Descendente
de judeus portugueses sefarditas, seu sobrenome deriva da cidade de Espinoza, no noroeste da
Espanha. A família emigrou para a Holanda e pôde abandonar o pseudocristianismo a que era
forçada pela Inquisição, voltando ao judaísmo de seus antepassados. O pai de Spinoza era um
mercador bem-sucedido e a família morava numa casa elegante do Burgwal, perto da Velha
Sinagoga Portuguesa. A mãe, também de Portugal, morreu de parto quando Benedito tinha 6
anos. A infância de Spinoza foi marcada por perdas e aflições familiares. Tinha 22 anos
quando morreu o pai, depois de enterrar três esposas e quatro filhos.
Criado à sufocante maneira judaica da época, Spinoza era obrigado diariamente a estudar
horas a fio a Bíblia (o Velho Testamento cristão) e o Talmude (o abalizado repositório da
tradição judaica). Apesar do tédio terrível de um currículo tão severamente limitado, parece
que o menino gostava dos estudos e o pai achou que ele se tornaria rabino. Fora do horário
escolar, foi estimulado a tomar aulas de latim e grego antigo. Parece que a realidade e o
mundo moderno tiveram na sua educação papel tão insignificante quanto, mais tarde, na sua
filosofia. Mas Benedito Spinoza não era um jovem antiquado. Os estudantes judeus de
pensamento independente começavam a se irritar com as restrições da ortodoxia — sentiam
que suas exigências espirituais ultrapassavam as de uma pré-histórica tribo de nômades
asiáticos e passaram a questionar a Bíblia.
Os líderes da comunidade judaica preocupavam-se profundamente com essa tendência. As
Províncias Unidas dos Países Baixos eram uma sociedade tolerante — mas apenas se
comparadas à mentalidade Ku Klux Klan que predominava no resto da Europa. (Foi a
Inquisição espanhola desse período que inspirou o ridículo uniforme da Ku Klux Klan.) Os
judeus ainda não eram cidadãos na Holanda e críticas judaicas à Bíblia poderiam ser vistas
como ataques ao cristianismo.
Assim, a reação das autoridades judaicas não foi nada simpática quando Spinoza começou
a fazer ponto em volta da sinagoga divulgando suas idéias pouco ortodoxas. Segundo ele, os
autores do Pentateuco (os cinco livros iniciais da Bíblia) eram simplórios do ponto de vista
científico e também do ponto de vista teológico. Não bastasse isso, o jovem de 22 anos passou
a dizer também que não havia provas na Bíblia de que Deus tinha corpo, de que a alma era
imortal ou de que os anjos existiam (o combate de Jacó supostamente foi uma espécie de
ataque epilético).
Era praticamente impossível argumentar com aquele jovem brilhante. Então as autoridades
resolveram experimentar uma tática diferente. Primeiro tentaram silenciá-lo com ameaças
vagas, mas quando viram que Spinoza era cabeça dura demais ofereceram-lhe 1.000 florins
por ano para que se afastasse e guardasse suas idéias para si mesmo. (Naquela época um
estudante podia viver com 2.000 florins por ano.) Dadas as sérias blasfêmias que ele cometia,
foi uma atitude de surpreendente tolerância das autoridades judaicas. Mas Spinoza desprezou
a generosa oferta. Isso é tido em geral como um exemplo da sua santa insistência em dizer a
verdade. A comunidade judaica de Amsterdã no século XVII pode ser desculpada por encarar
as coisas de outra forma. O que poderiam fazer para obrigá-lo a calar-se?
Certo dia, à tardinha, quando Spinoza saía da sinagoga portuguesa, um homem acercou-se
dele. Na hora agá Spinoza percebeu a adaga na mão erguida do homem e recuou, levantando o
braço sob a capa para se proteger. O punhal rasgou a capa, mas Spinoza saiu ileso (e teria
guardado a capa rasgada “como lembrança”). O agressor é tido em geral como um fanático e é
bem possível que o fosse. Por outro lado, deve ter sido também um homem de coragem e
desprendimento, encarregando-se de livrar a comunidade de perigosa ameaça através de um
crime pelo qual seria com certeza pego e enforcado. Santidade e martírio podem exigir
também uma ousadia semelhante.
Como se não bastasse o atentado, Spinoza enviou longa carta aberta às autoridades da
sinagoga em que expunha detalhadamente suas opiniões, apoiando-as numa série de
argumentos lógicos que considerava irrefutáveis.
As autoridades da sinagoga decidiram então que não havia alternativa: teriam que
demonstrar à comunidade cristã que já não tinham mais nada a ver com Spinoza. Para elas
Spinoza deixou de existir, era um ex-judeu. Em julho de 1656 realizou-se uma grandiosa
cerimônia de excomunhão que, com todo estilo, baniu Spinoza da comunidade judaica.
Soprou-se o grande chifre, apagaram-se as velas uma a uma e a maldição foi proferida: “Com
o julgamento dos anjos e dos santos, por meio desta excomungamos, execramos e
anatematizamos Baruch de Espinoza. Maldito seja de dia e de noite, maldito ao deitar e ao se
levantar, maldito ao sair e ao entrar. O Senhor apagará seu nome de sob o sol e o expulsará
por seus malefícios de todas as tribos de Israel. Ninguém pode falar-lhe diretamente ou por
escrito nem lhe fazer favor algum ou estar sob o mesmo teto que ele nem dele se aproximar
menos de quatro côvados ou ler qualquer documento que tenha escrito ou ditado.” Com tais
recomendações, não é de espantar que os textos de Spinoza continuem até hoje desfrutando de
uma sôfrega procura tanto por parte de judeus quanto de gentios.
A excomunhão colocou no entanto em apuros o jovem de 23 anos. Seu pai havia morrido
no ano anterior, deixando-lhe toda a fortuna. Com isso, à maneira tradicional da época (tanto
entre judeus quanto gentios), houve uma áspera disputa de família em torno do testamento.
Rebekah, meia irmã de Spinoza, abriu processo sustentando que todos os bens eram por
direito seus.
Santo que era, Spinoza não precisava de toda aquela riqueza imerecida. Mas era também
filósofo e, como tal, achava impensável ser derrotado numa argumentação. Então contestou as
alegações da irmã. Depois de fazer todo mundo perder tempo e dar aos advogados o
costumeiro lucro, Spinoza ganhou o processo — para em seguida dizer à irmã que ela podia
ficar com tudo (exceto uma cama de baldaquim com cortinas que ele adorava). Depois de toda
uma série de rasgos filosóficos, Spinoza se viu praticamente quebrado. E depois da
excomunhão já não tinha sequer um bom teto judeu sob o qual colocar a sua cama.
Foi obrigado a acomodar-se com um amigo cristão, Affinius van den Ende, que tinha uma
escola particular em casa. Ex-jesuíta, Van den Ende tinha se tornado um liberal. Homem de
vasta leitura, especialmente clássica, além de mestre-escola ele se imaginava poeta e
dramaturgo. A Escola Affinius Van den Ende (Perto do Fim) gozava de bom conceito na
comunidade, embora alguns pais superangustiados tivessem tirado os filhos de lá ao
suspeitarem que as crianças estavam sendo instigadas a pensar por si mesmas. O livre
pensamento era absolutamente inaceitável do ponto de vista oficial, mas extra-oficialmente era
considerado apenas parte do processo educativo, uma breve fase pela qual passavam os
alunos no seu desenvolvimento, como também acontece agora.
Spinoza ganhava a vida lecionando na escolinha particular de van den Ende. Também
aproveitou para assistir algumas aulas, melhorando seu grego e latim, logo se adestrando em
matemática e tomando conhecimento da visão escolástica da filosofia aristotélica. Por essa
época começou a estudar os comentários sobre Aristóteles dos grandes estudiosos judeus
Moisés ben Maimon (que conhecemos como Maimônides) e Chasdai Creskas de Saragoça
(ilustre desconhecido praticamente para todos nós). Este considerava a matéria eterna e a
Criação simplesmente a imposição da ordem à matéria — doutrina que influenciaria
profundamente a filosofia de Spinoza.
De noite van den Ende apresentava a Spinoza os últimos textos de Descartes, que estavam
revolucionando a filosofia. A visão rigidamente mecanicista de Descartes sobre o
funcionamento do universo desempenharia um papel decisivo no pensamento de Spinoza, que
no entanto ignoraria o componente subjetivo moderno da filosofia cartesiana (e o principal
responsável por seu caráter revolucionário). Também foi provavelmente nessa época que
Spinoza leu o grande pensador quinhentista Giordano Bruno, um espírito livre e original cuja
curiosa mistura de idéias ocultistas e pensamento científico avançado levaria à excomunhão
tanto por protestantes como católicos (que houveram por bem queimá-lo na fogueira). Spinoza
ignorou também os fascinantes aspectos originais dessa filosofia (e uma fantástica magia
negra) em favor da crença metafísica de Giordano Bruno num universo infinito e panteístico.
Spinoza foi juntando um a um os ingredientes que, cozidos no forno quente do seu intelecto,
produziriam a incomparável confecção da sua filosofia, criação de infinita doçura com uma
saborosa variedade de cerejas filosóficas, observações deliciosas e um enjoativo creme
teológico, tudo sob uma cobertura de marzipanteísmo e rígido glacê geométrico, encimado
pela cintilante velinha da singularidade. (Veremos adiante que gosto tem tudo isso.)
Mas nessa época a doçura de Spinoza não era apenas filosófica. Teria se apaixonado pela
filha de van den Ende, Clara Maria. A julgar pelos retratos e descrições de Spinoza que
chegaram até nós, ele pode ter dado mais tarde na vida uma impressão um tanto esquisita, mas
no rapaz esses maneirismos de gênio ainda estavam com certeza adormecidos. Pelas fontes
sabemos que era baixo, moreno e tinha cabelo preto, crespo. “Percebe-se facilmente por sua
aparência que ele descende de judeus portugueses”, diz uma delas, enquanto outra o descreve
com ares de “sefardita importante”.
Clara Maria van den Ende ensinava música e os clássicos na escola do pai. Segundo uma
fonte, “não se destacava entre as mais belas, mas tinha muito Tino, um Humor jovial e grande
Capacidade” (para que não diz). Infelizmente apaixonou-se por um dos seus alunos, um rapaz
chamado Dirck Kerckrinck, com o qual acabaria por se casar.
Outras fontes desmentem essa história, ressaltando que Clara Maria tinha apenas 12 anos
nessa época. Tenha ou não Benedito Nabokov se apaixonado por Clara Lolita, outras
evidências indicam que Spinoza não foi essa figura de gênio sexualmente adormecido tão
querida dos seus primeiros hagiógrafos. Ele foi o único dos grandes filósofos a escrever com
penetrante percepção sobre o amor e o ciúme sexual. Na Ética há esta proposição: “Quanto
mais forte a emoção que imaginamos sentir por nós a pessoa que amamos, maior o nosso
orgulho.” A proposição seguinte diz: “Se alguém pensa existir entre o ser amado e outra
pessoa o mesmo sentimento amoroso ou mais íntimo ainda que o que existia quando só esse
alguém o amava, sentirá ódio por quem amou e inveja do rival.” E prossegue definindo o
ciúme como “as oscilações de sentimento que decorrem da experiência simultânea do amor e
do ódio, junto com a profunda inveja de uma terceira pessoa”.
O homem que escreveu isso certamente sofreu as emoções que descreve. E parece
improvável que uma menina de 12 anos tenha sido a causa exclusiva delas. Por quê? No seu
Tratado da correção do intelecto Spinoza menciona, sem dar detalhes, uma experiência
traumática que transformou sua vida: “Percebi que estava mergulhado em grande perigo e com
tremenda necessidade de aplicar toda a minha energia em encontrar um remédio, por mais
incertas que fossem suas conseqüências. Era como um homem que tem uma doença fatal, que
morrerá se não encontrar uma cura.” Isso o levou a direcionar suas energias para “o amor do
eterno e do infinito, única coisa que dá prazer à mente e a liberta de todo sofrimento. Por essa
razão é tão desejado e deve ser buscado com todas as nossas forças”. (Esse amor aparece na
filosofia de Spinoza como um dos seus conceitos poéticos mais elevados: amor intellectualis
dei — o amor intelectual de Deus.) Pelo que conhecemos de Spinoza, parece improvável que
ele visse o amor heterossexual como uma “doença fatal” que deva ser evitada “com todas as
nossas forças”. Mas quaisquer conjeturas freudianas sobre isso teriam que se basear num
conhecimento da vida e personalidade dele muito maior do que efetivamente possuímos.
Não muito depois do suposto caso com Clara, a Escola Van den Ende foi fechada —
quando o mestre diretor se retirou inesperadamente para a França, à maneira tradicional dos
diretores de escolas particulares. Teve na França um fim lamentável, ao se envolver numa
trama idiota para derrubar Luís XIV e fundar uma república utópica: foi enforcado em praça
pública.
Na década de 1650, Spinoza começou a aprender o ofício de fabricante de lentes. Havia
naquela época grande demanda de lentes na Holanda. Eram necessárias para os microscópios
usados no comércio em expansão de diamantes, para os telescópios náuticos e os óculos de
leitura (que se tornavam um equipamento da moda para as pessoas de meia idade, como é o
caso, hoje, das motocicletas de 1.000 cilindradas). Abandonou o magistério e passou a se
manter com a lapidação de lentes, o que faria até o fim da vida. Dizem que se tornou grande
perito nesse ofício e que suas lentes eram muito procuradas. A perícia pode não passar de
mito, mas sabemos com certeza dessa procura, embora o sucesso pouco beneficiasse o próprio
Spinoza. No século XIX, um antiquário de Amsterdã, Cornelius van Halewijn, começou a
vender lentes lapidadas por Spinoza a ricos negociantes judeus, professores alemães em visita
à Holanda e outros colecionadores. Não eram lentes de muito boa qualidade e hoje se calcula
que van Halewijn vendeu centenas delas. Talvez tivesse encontrado um depósito de lentes que
Spinoza não finalizara.
Spinoza retirou-se para o campo a fim de trabalhar a sério com lapidação. Passou a
produzir lentes e idéias originais em igual número. Por essa época, os poucos amigos que
tinha eram na maioria protestantes de uma seita semelhante à menonita, cuja independência e
temor a Deus conseguiram unir contra eles todos os outros cristãos holandeses. Foi também
por essa época que Spinoza trocou seu nome para a forma cristã Benedito (de significado
idêntico a Baruch — bendito, abençoado). Mas não há qualquer evidência de que se tenha
tornado cristão.
Por fim hospedeou-se em casa de um cirurgião dessa exigente seita, Hermann Homan, na
vila de Rijsburg, naquela época um lugarejo perdido às margens do Reno, perto de Leiden.
Essa casa ainda existe, em frente a uma plantação de batatas, numa tranqüila rua suburbana
hoje chamada Spinozalaan. O quarto de Spinoza deve ter dado para a planície de campos e
canais que ainda se estende até o horizonte sob o céu cinzento. Aí Spinoza escreveu duas
obras que seriam essenciais em toda a sua filosofia.
A primeira foi uma “versão geométrica” dos Princípios da filosofia de Descartes, vasta
especulação que o filósofo francês produziu no final da vida, embebida de todas as suas
teorias filosóficas e científicas. A intenção de Spinoza era transformar o pensamento de
Descartes numa série de demonstrações geométricas cuja verdade ou falsidade ficasse
imediatamente evidente para todos. Spinoza foi profundamente influenciado pelo pensamento
de Descartes, que transformou a filosofia de modo mais drástico que qualquer outro filósofo
anterior ou posterior. Mas se queria produzir boa filosofia e filosofia original, era
indispensável para Spinoza afastar-se dessa esmagadora influência. O que conseguiu
reduzindo o claro e saboroso estilo cartesiano a uma pedregosa e quase impenetrável
matemática.
O outro livro escrito por Spinoza nessa época foi o Curto tratado sobre Deus, o homem e
o bem-estar, em holandês. Contém muitas das idéias que em seguida apareceriam na sua
filosofia da maturidade. Infelizmente, quando veio a expor essa filosofia, decidiu fazê-lo não
em holandês corrente mas em latim, contorcendo a língua clássica no estilo “geométrico” a
que reduzira a obra de Descartes. O que tornou praticamente ilegível sua obra-prima, a Ética.
Todo o livro compartimenta-se, como uma peça de geometria euclidiana, em uma série de
definições, axiomas, proposições e demonstrações. Assim:
Definição
1. Um livro é algo que se pode ler.
2. Estilo é a maneira de se escrever um livro.
Axiomas
1. Lemos um livro porque queremos saber o que o autor diz.
2. O estilo de um livro tem grande importância para sua legibilidade.
Proposição
Este estilo é ilegível.
Demonstração
É provável que a maioria dos leitores já tenha desistido de ler esta demonstração. (Ver
Axioma 1.) Se você leu até aqui, com certeza não lerá mais se eu continuar usando este estilo.
(Ver Axioma 2.) Este estilo é, portanto, ilegível. QED
E assim por diante, ao longo de mais de duzentas páginas. Nem O náufrago prisioneiro
das seis virgens agüentaria um tratamento desses. Não é de espantar que pouca gente tenha
conseguido ler a Ética até o fim (Parte V, Proposição XLII, com sua demonstração, que inclui
referências a quatro proposições, uma definição e corolários de mais duas demonstrações
anteriores. QED). Uma pessoa que conseguiu chegar ao fim, Leibniz, afirma que, embora todo o
sistema filosófico de Spinoza seja bem amarrado, nem todas as suas demonstrações se
sucedem com rigor e precisão matemáticos. Assim, há uns volteios inesperados na trama; é
preciso apenas saber onde procurá-los.
Mas qual é exatamente a trama? Spinoza começa com oito definições, que estabelecem os
pressupostos básicos do seu universo e da sua filosofia. Elas definem:
1. uma coisa que é causa de si mesma;
2. uma coisa finita em seu gênero;
3. substância;
4. os atributos da substância;
5. os modos da substância;
6. Deus;
7. Liberdade;
8. Eternidade.
Como podemos ver pela própria natureza dessas definições, Spinoza começa encarando o
mundo de uma perspectiva extremamente racional e abstrata. O que se torna ainda mais
evidente ao analisarmos algumas definições:
– “Por causa de si (causa sui) entendo aquilo cuja essência envolve a existência, ou seja,
aquilo cuja natureza só pode ser concebida como existente.”
– “Diz-se que uma coisa é finita em seu gênero quando pode ser limitada por outra da
mesma natureza. Por exemplo, diz-se que um corpo é finito porque sempre podemos conceber
outro corpo maior. Igualmente, um pensamento é limitado por outro pensamento. Um corpo,
porém, não pode ser limitado por um pensamento, nem um pensamento por um corpo.”
Spinoza prossegue definindo dois conceitos absolutamente importantes para o seu sistema:
Deus e Eternidade.
– “Por Deus entendo um Ser absolutamente infinito, quer dizer, uma substância que
consiste de uma infinidade de atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e
infinita.”
– “Por Eternidade entendo a própria existência, concebida como seguindo-se
necessariamente da simples definição de uma coisa eterna.
Explicação – Tal existência, com efeito, é concebida como verdade eterna, assim como
essência da coisa: por isso não pode ser explicada pela duração ou tempo, mesmo que se
conceba a duração sem começo nem fim.”
A partir dessas definições Spinoza constrói, por meio de demonstrações euclidianas, um
sistema necessário, determinístico e irrefutável que compreende o universo inteiro. Cada
aspecto da existência é logicamente necessário e cada possibilidade lógica consistente tem
que existir. (A física moderna mostrou que sistemas logicamente inconsistentes podem também
existir, como na teoria quântica da luz, de modo que hoje o universo de Spinoza se apagaria.)
O universo de Spinoza é panteístico — quer dizer, o universo é Deus e vice-versa. Referese
a ele como Deus sive Natura: Deus ou Natureza. Esta é a única substância. Mas esse DeusUniverso
tem um número infinito de atributos. Só podemos perceber dois desses atributos: a
extensão e o pensamento. Esses dois atributos constituem o nosso mundo, como se fossem duas
dimensões, e não percebemos as infinitas dimensões restantes (menos duas).
Spinoza consegue superar o grande problema que derrotou Descartes, a saber: como a
mente (que trabalha racionalmente) interage com o corpo (que trabalha mecanicamente)? De
acordo com o sistema de Spinoza, “mente e corpo são o mesmo indivíduo concebido ora com
o atributo do pensamento, ora com o atributo da extensão”. Mente e corpo são meramente
aspectos diferentes da mesma coisa — Deus sive Natura percebido apenas com dois dos Seus
infinitos atributos.
Nossa percepção limita-se a apenas dois dos atributos infinitos de Deus, mas ambos
conformes à lógica do todo. “A ordem e conexão das idéias são idênticas à ordem e conexão
das coisas.” Causa e efeito ligam-se de forma tão rigorosa e irreversível como os processos
da razão. Assim, na vastidão do universo infinito de Spinoza, causa e efeito tornam-se parte de
uma necessidade lógica maior. Nosso mundo de extensão é logicamente determinado, seus
elos de causa e efeito são logicamente necessários, irreversíveis e impossíveis de contornar
(da mesma forma que a necessária seqüência lógica que tem lugar na mente). Exatamente do
mesmo modo, as coisas finitas decorrem necessariamente da substância infinita. Mas
continuam sendo parte de Deus sive Natura.
Nessas circunstâncias pode parecer supérfluo perguntar: como sabemos que esse ser
divino existe? Imaginem o mundo que percebemos se esse ser divino não existisse. Sem esse
suporte viveríamos num mundo sem substância metafísica, num universo a se desenrolar de
forma cega. Hoje em dia muitos se acham capazes de viver num mundo desses, mas Spinoza
não podia. Ele precisava provar a existência do seu Deus sive Natura. E para isso escolheu
uma demonstração característica da sua posição de ambivalência entre a hierarquia da certeza
medieval e o admirável mundo novo da emergente Idade da Razão.
O argumento ontológico era o preferido na Idade Média para provar a existência de Deus.
Resumidamente, ele postulava que a idéia de Deus era a maior que se podia conceber. Se essa
idéia não inclui o atributo da existência, então deve haver uma idéia ainda maior e exatamente
como ela que inclua tal atributo. Assim, a maior de todas as idéias possíveis deve existir, do
contrário uma idéia ainda maior seria possível. QED. Deus existe. Spinoza utilizou diversas
variações desse argumento na discussão da substância infinita única que chamou de “Deus ou
Natureza”. Primeiro toma a idéia de substância: “Assim, se alguém diz que tem uma idéia
clara e nítida — isto é, verdadeira — da substância e que mesmo assim duvida se tal
substância existe, seria o mesmo que dizer que tem uma idéia verdadeira mas ainda assim
suspeita que pode ser falsa.” Segue-se daí: “Uma vez que a existência pertence à natureza da
substância, sua definição deve necessariamente envolver a existência, de modo que de sua
mera definição pode-se concluir a sua existência.”
Sofística medieval em demasia? Os que vêm essa abordagem com ceticismo devem se
lembrar que ela continua bem afinada com o pensamento moderno. Cientistas contemporâneos
propuseram argumento semelhante para explicar uma série de noções decisivas, inclusive o
Big Bang e a ardilosa Teoria de Tudo (ou teoria unificada). Ninguém menos que Stephen
Hawking indagou: “Será a teoria unificada tão forte que implica sua própria existência?” Tal
argumento sugere a conclusão inevitável: o universo deve ser como é e teve que ser criado
porque nenhum outro universo (ou a ausência de um universo) era possível. Spinoza teria sem
dúvida endossado esse argumento metafísico. E como idéia metafísica suprema, o Deus sive
Natura de Spinoza pertence à categoria do Big Bang. Sua matemática euclidiana pode ter sido
superada, mas sua instigante beleza permanece incontestável.
Apesar dos decididos esforços geométricos de Spinoza, seu sistema metafísico exibe
muitos aspectos profundamente poéticos. Basta mencionar alguns: o objetivo do sábio deveria
ser o de tentar ver o universo como Deus o vê sub specie aeternitatis (“sob a perspectiva da
eternidade”). Todo corpo humano é parte do corpo de Deus, de modo que quando ferimos a
outros ferimos a nós mesmos. A felicidade de cada um depende da felicidade de todos. O
universo não pode ser explicado por referência a nada além — nem mesmo Deus, porque é
Deus. O universo, portanto, não tem sentido, embora ao mesmo tempo seja o seu próprio
sentido.
Muitas idéias de Spinoza exercem profunda influência e são esclarecedoras para quem não
acredita nem em Deus nem no sistema spinoziano. Sua teoria das emoções é particularmente
antecipadora. Ao contrário de tantas teorias filosóficas dos séculos passados, a de Spinoza
não parece inadequada ou ingênua (ou inteiramente errada simplesmente) à luz da psicologia
moderna. O desejo é definido como “a própria essência do homem”. O prazer “é a transição
humana de um estado de perfeição menor para um estado de maior perfeição”. A dor é o
oposto disso. Spinoza chega a afirmar: “A admiração é o pensamento de qualquer coisa que
fica fixado na mente porque não tem qualquer ligação com nenhum outro.” Considere-se isso à
luz da célebre afirmação de Platão: “A filosofia começa com a admiração.” Não é difícil
imaginar Spinoza, cheio de admiração, a contemplar o seu Deus, que não tem ligação com
qualquer outra coisa porque é tudo. Mas sua definição do amor como “prazer acompanhado da
idéia de uma causa externa” não parece combinar com sua concepção do amor intellectualis
dei (amor intelectual de Deus). Na visão de Spinoza (e do ponto de vista da moderna
psicologia), esse amor intelectual de Deus incluiria necessariamente um elemento de amorpróprio
— uma vez que Deus e toda a Natureza são a mesma coisa. E esse elemento não teria
uma causa externa. Spinoza tenta defender-se dessa acusação afirmando: “O amor intelectual
da mente por Deus é parte do amor infinito de Deus por si mesmo.” Mas isso parece apenas
confirmar a falha no argumento.
Apesar de evidentes inconsistências desse tipo, a teoria segue “demonstrando” vários
insights profundos. “Não há esperança sem medo nem medo sem esperança.” Tanto a
confiança como o desespero nascem “da idéia de uma coisa futura ou passada sobre a qual se
eliminou qualquer motivo para dúvida”.
Mas é exatamente essa questão da dúvida (e do erro) que revela uma grave falha na
filosofia de Spinoza. Ele mesmo não tinha dúvidas sobre a verdade e a certeza do seu
pensamento: “Não suponho ter encontrado a melhor filosofia, mas sei que é a verdadeira. Se
me perguntarem como posso saber isso, responderei que sei da mesma maneira que vocês
sabem que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois ângulos retos.” Spinoza encarava
o erro e a dúvida de forma neoplatônica, como uma ausência ou falta natural na nossa
percepção da verdade. Em outras palavras, a dúvida e o erro são de fato irreais, constituindo
apenas percepções inadequadas ou incompletas da verdade (que é a única realidade). Essa
concepção não é mais adequada que sua pretensão à certeza geométrica em filosofia. (E,
embora não pudesse saber disso, na geometria não euclidiana das superfícies curvas os três
ângulos de um triângulo nem sempre são iguais a dois ângulos retos.)
Segundo Spinoza, “o instinto de autopreservação é o fundamento básico e único da
virtude”. Infelizmente, se a sobrevivência é básica, como se explica o suicídio? Spinoza diz
que nesse caso “causas externas e ocultas … podem afetar o corpo de tal forma a fazê-lo
adotar outra natureza contrária à original”. Em outras palavras, o suicídio é inumano e uma
pessoa que comete suicídio não se comporta como ser humano. Isso, como a teoria da dúvida,
não parece satisfatório. Mas são falhas menores num sistema de grande sabedoria e
discernimento. Com efeito, a sutileza do entendimento (e a ausência de erros crassos) em
Spinoza é ainda mais espantosa por sua insistência na geometria em todas as circunstâncias:
“Encaro as ações e desejos humanos exatamente como se lidasse com linhas, planos e
sólidos.”
Ao manter essa abordagem, o próprio Spinoza parece ter adotado uma atitude um tanto
distanciada em relação ao mundo que nós, míseros mortais, habitamos. Segundo um
contemporâneo, “ele parecia viver completamente para dentro, sempre solitário, como que
perdido nos próprios pensamentos”. Com efeito, havia épocas em que “não saía de casa por
três meses”. (Quem já enfrentou um cinzento inverno holandês ou olhou atentamente aquelas
pinturas holandesas do século XVII com canais obstruídos pelo gelo pode não achar essa
atitude tão excêntrica assim.) Afora o absorvente trabalho, seus prazeres eram poucos mas
reveladores. Conta um antigo biógrafo que “ele pegava aranhas e as colocava para lutar umas
com as outras” ou, com uma lupa, “localizava moscas, colocava-as numa teia de aranha e
estudava o combate que se seguia com grande prazer, chegando por vezes a rir alto”. Em carta
a um amigo, diz Spinoza que “todo mundo observa com admiração e delícia nos animais as
coisas mesmas que detesta e encara com aversão nos homens”. Parece que sua sabedoria
sobre a natureza humana limitou-se à filosofia.
Mas a filosofia, apesar das raízes etimológicas da palavra, não está interessada no amor
do saber. Filosofia é um negócio sério e, como em qualquer negócio, você só sobrevive no
ramo eliminando a concorrência. Assim que a filosofia de Spinoza surgiu, todo filósofo digno
desse nome saltou na sua jugular. Infelizmente, todo o sistema de Spinoza se sustenta ou
desmorona naquelas definições iniciais sobre as quais se constrói todo o edifício. Se não
concordarmos com a definição de Spinoza para substância, acabou. Sem substância não há
universo. Então, como Spinoza define substância?
“Definição. Por substância entendo aquilo que é em si e concebido por si, quer dizer,
aquilo cujo conceito não tem necessidade do conceito de uma outra coisa para ser formado.”
Esperar que os filósofos concordassem mesmo com algo tão básico (ainda que
astuciosamente verbalizado) como isso foi ingenuidade de Spinoza. Mas o pior estava por vir,
quando os teólogos começaram a ler a Ética. Se Deus é meramente o universo determinístico,
nega-se a transcendência divina. Isso também liqüida com a personalidade de Deus (e sua
famosa ira), assim como seu livre-arbítrio de optar por obedecer às suas próprias leis (as leis
da natureza, da ciência etc.) ou mudar de idéia (milagres, atos divinos etc.). Na concepção de
Spinoza, podemos amar a Deus o quanto quisermos, mas não há como ele nos amar em troca.
Isso fez muita gente sentir-se profundamente desamada e face à perspectiva de não ser
recompensada por toda sua santidade. Ao tornar sagradas todas as coisas, Spinoza
desencadeou uma censura doida.
Felizmente ele percebeu que era isso que ocorreria e, assim, a Ética só foi publicada
postumamente. Durante sua vida, o livro foi distribuído apenas clandestinamente entre amigos
interessados em filosofia. Um deles, também habitante de Rijnsburg, não foi tão prudente — o
que serviu de alerta a Spinoza. Quando Adrian Koerbach publicou sua obra Luz em lugares
escuros, que criticava a religião, a prática médica e a moral dominante da época, foi levado
aos tribunais. Os acusadores pediram o confisco de todos os seus bens, a amputação do seu
polegar direito, a perfuração de sua língua com um espeto de ferro em brasa e trinta anos de
prisão. Koerbach deve ter ficado bem aliviado ao ser apenas multado em 6.000 florins e
sentenciado a dez anos de trabalhos forçados seguidos de exílio. Isso mostra os riscos que
corriam aqueles que pregavam publicamente idéias erradas, mesmo na Holanda liberal (cuja
tolerância moral não tinha paralelo na Europa ou no resto do mundo, exceto nos mares do sul
ou nos reinos piratas das Índias Ocidentais). Foi especificamente perguntado a Koerbach no
julgamento se de alguma maneira ele fora influenciado pelas idéias de Spinoza — o que ele
negou (não se sabe se por vaidade intelectual ou nobreza de espírito). Quer dizer, Spinoza
sabia para onde soprava o vento.
Em 1663 Spinoza mudou-se para Voorburg, subúrbio de Haia, e residiria nessa cidade
pelo resto da vida. Em carta que escreveu alguns anos depois, faz a única referência
intencional a si mesmo de que se tem notícia. (Outras referências, por exemplo sobre o
comportamento humano semelhante ao de insetos e o infortúnio do ciúme, não pretendiam ser
observações auto-reveladoras. Eram filosofia ou discurso de filósofo recolhido a solitária
hibernação.) Escrevendo a um amigo médico, ele conta como tentou inutilmente curar uma
febre com sangria (provavelmente usando sanguessugas, recurso médico comum na época).
Chega a dizer que gostaria de receber um pote da geléia de rosas vermelhas do amigo e
também que havia se recuperado de um ataque de sezão: “à força de uma boa dieta consegui
por fim expulsá-la, não sei para onde, e mandá-la passear, mas estou tomando cuidado para
que não volte”. Apesar da piada fraca (único exemplo do tipo em tudo o que Spinoza
escreveu), parece que ele estava mesmo preocupado com sua saúde. Devia ter uma
constituição frágil, perturbada por uma série de afecções menores — como desejaria um
hipocondríaco como Descartes (que se fora quinze anos antes para o grande armário de
remédios celestial).
Spinoza vivia de forma bem simples, num quarto de solteiro em pensão. Ali não apenas
dormia e escrevia como muitas vezes fazia as suas lentes. Não é preciso ter grande
imaginação para visualizar pilhas de papéis e livros abertos cobertos de uma fina camada de
pó de vidro. É possível também que tivesse uma janelinha de treliça com vista para a planície
campestre com plantações de batatas e canais sob o céu sombrio e cinzento. (O que
constituiria também uma útil fonte de insetos para suas aranhas domésticas.)
Conta uma fonte que Spinoza costumava “passar o dia inteiro apenas com um mingau de
leite e manteiga mais um jarro de cerveja”. Outras vezes, comia somente uma “papa de passas
com manteiga”. Segundo a mesma fonte, ele só bebia um quartilho (meio litro) de vinho por
mês — abstinência heróica na Holanda daquela época. Mas somos levados a suspeitar que
mesmo essa quantidade ele só bebia para fortificar o sangue. Conta-se que Spinoza teria
definido seu modo de vida dizendo que tratava “apenas de fazer os extremos se tocarem, como
uma cobra com o rabo na boca”.
Com pouco mais de 30 anos já tinha perdido a arrogância da juventude. Isso é geralmente
atribuído aos efeitos espirituais benéficos do gênio em floração, embora na maioria dos casos,
quando desabrocha o gênio em todo o seu exotismo, o efeito seja exatamente o oposto (a
megalomania e o solipsismo são os riscos inerentes a esse estado de fúria demoníaca). Na
verdade, a perda de arrogância deveu-se no caso de Spinoza provavelmente à lenta mas
inexorável percepção de que jamais poderia angariar em vida um amplo reconhecimento de
sua grande filosofia, à qual dedicou toda a vida. Qualquer esperança de publicação
gradualmente desvaneceu-se — terrível humilhação capaz de eliminar todo resquício de
orgulho.
Mesmo assim, Spinoza sentia necessidade de explicar-se: para demonstrar ao mundo e
especialmente a seus opositores religiosos que sua filosofia não era incompatível com a
crença ortodoxa em Deus. Assim, quando terminou de escrever a Ética, começou uma nova
obra intitulada Tratado teológico-político. Obra estranha, mistura de teoria política e
comentário bíblico. Disse aos amigos que tentava abrir caminho para uma eventual publicação
da Ética demonstrando que “a liberdade de filosofar é compatível com a pia devoção e a paz
do Estado”. Spinoza foi talvez o maior de todos os filósofos racionalistas, mas nesse
particular é difícil ver onde estava seu racionalismo. Seu deus impessoal e panteístico não tem
nada a ver com o Jeová bíblico e sua teoria de que ferimos a nós mesmos quando ferimos os
outros não afina nem com as atitudes religiosas de seu tempo (em relação aos hereges e
infiéis) nem com as atitudes políticas e morais da época (em relação a qualquer um). E sua
opinião de que os milagres bíblicos não passavam de eventos naturais deliberadamente
interpretados de modo equívocado com fins de propaganda religiosa tinha pouca chance de
despertar muitas resenhas brilhantes na imprensa da Igreja.
De qualquer forma, Spinoza tem umas coisas interessantes (e surpreendentemente
modernas) a dizer em matéria de teoria política. Seu pensamento foi de certa maneira uma
reação ao filósofo inglês Thomas Hobbes, que menos de vinte anos antes, em 1651, havia
publicado sua obra pioneira, o Leviatã. Nela Hobbes expôs a visão pessimista de que sem
governo “a vida do homem [é] solitária, pobre, detestável, estúpida e curta”. Os seres
humanos acharam insuportável essa condição natural e para superá-la se congregaram em
sociedades governadas. Qualquer forma de governo é melhor do que a ausência de governo,
de modo que devemos obedecer quem quer que esteja no poder.
Spinoza tinha uma visão mais benevolente da humanidade e sua teoria política era
essencialmente liberal. Em vez de apoiar o Estado a qualquer preço, acreditava que o Estado
ou quem o dirige só justifica o poder se garante a segurança dos cidadãos e permite que os
indivíduos “se desenvolvam mentalmente … e usem a razão sem restrições”. O Estado só
existe para proteger o indivíduo, que deve ser livre para perseguir seus próprios objetivos.
(Na visão otimista de Spinoza, isso implicava o controle das paixões e o uso da razão para
obter uma compreensão maior de si mesmo e do mundo. Não sabemos como se encaixaria aí
uma versão seiscentista do hooligan, o violento torcedor de futebol movido a cerveja, ou a
gentinha miúda.) Spinoza também defende, engenhosamente, que o Estado deve limitar os
próprios poderes, atuando de modo racional, o que implica a garantia de total liberdade de
pensamento e opinião. Mas aí discrimina realisticamente entre pensamento e ação. Devemos
ter liberdade de pensar o que quisermos, mas nossas ações devem ser limitadas pelo Estado.
E por ação entende também a manifestação pública do pensamento de qualquer maneira que
possa açular a turba.
A teoria política de Spinoza reflete bem sua própria situação na Holanda. Ali havia um
governo tolerante e liberdade de pensamento — dentro de certos limites. Os pensamentos de
Spinoza muitas vezes ultrapassavam esses limites, mas teimosamente ele sustentava o direito
de mantê-los, senão de publicá-los. E como acontecia na ameaçada Holanda do século XVII, o
dever primordial do governo devia ser garantir da melhor maneira possível a segurança dos
cidadãos.
O pensamento político de Spinoza estava muito além do seu tempo. Para nós pode parecer
por vezes um tanto ingênuo — e em sua época esse quase-utopismo era considerado uma
perigosa tolice ou pouco menos que ridículo. Mas sua atitude em relação ao Estado está bem
afinada com o atual pensamento dominante nas democracias liberais do mundo ocidentalizado.
A pessoa tem o direito a opiniões racistas, sexistas e mesmo a agressivas posições
politicamente corretas, mas é impedida de colocá-las em prática. Atiçar as massas à violência
contra os fumantes, por exemplo, é contra a lei.
Quando o Tratado foi finalmente publicado, em 1670, não se pode dizer que ajudou a
causa de Spinoza. Basta citar uma resenha bem típica, segundo a qual o livro foi “forjado no
Inferno por um judeu renegado e pelo diabo e publicado com o consentimento do sr. Jan de
Witt”. (De Witt era o estadista holandês, rival dos monarquistas, cuja habilidade política
ajudara a proteger a Holanda da postura agressiva tanto da Inglaterra quanto da França e bode
expiatório preferido dos reacionários para todos os males da época.)
Eram tempos conturbados para a Holanda e mesmo Spinoza não estava imune aos
acontecimentos ao redor, como podemos ver por suas teorias políticas no Tratado. Eram uma
mistura de quietismo e impraticabilidade que, no entanto, levou à proibição do livro por
quatro anos após a publicação. Em 1665 os holandeses estavam metidos numa guerra com a
Inglaterra, na qual se saíram melhor do que ninguém desde Guilherme, o Conquistador
(incluindo Napoleão e Hitler). Em dado momento subiram o Tâmisa e o Medway, atearam
fogo à frota inglesa, destruíram os estaleiros navais e tomaram o porto de Sheerness. Os
canhões holandeses foram ouvidos até em Londres, onde causaram pânico e levaram o
memorialista Samuel Pepys a fazer seu testamento. A paz foi arranjada com a ajuda de Luís
XIV, mas em 1672 os franceses passaram a reivindicar os Países Baixos espanhóis (hoje a
Bélgica) e invadiram a Holanda. Na turbulenta e alarmante situação política que se seguiu, de
Witt foi pego pela turba em Haia e trucidado. Quando Spinoza soube desse incidente, encheuse
de cólera, foi para o quarto e fez um cartaz com os dizeres: “Bárbaros mais infames”. Foi
como definiu a turba assassina. Pretendia marchar pelas ruas e pendurar o cartaz na parede
exatamente no lugar onde de Witt foi morto. Esse ato de imprudência suicida foi felizmente
impedido porque o senhorio descobriu o que ele pretendia fazer e trancou-o no quarto.
Por essa época Spinoza vivia já no município de Haia. Sua primeira moradia no centro da
cidade foi um quarto na Stille Verkade 32, então à margem de um canal hoje aterrado. (Uns 25
anos depois habitou esse mesmo quarto o pastor Celerus, primeiro biógrafo de Spinoza, e foi
ali que escreveu seu inestimável trabalho.) Mas o quarto acabou ficando muito caro para
Spinoza (mas não para o biógrafo, como aliás costuma acontecer aos biógrafos dos gênios) e
ele teve que se mudar para outro na Paviljoensgracht, em casa do pintor van der Spijk. Hoje a
casa é o museu Spinoza e conserva o quarto com revestimento de madeira nas paredes, velho
teto de vigas aparentes e espelhinho ao lado da janela onde o filósofo viveu os últimos dez
anos de vida.
De acordo com Celerus, que coletou material para a biografia com pessoas que
conheceram Spinoza, o filósofo estava sempre vestido de maneira impecável, apesar da
pobreza. Já outra fonte relata que “ele era muito relaxado em matéria de Roupas, em nada
melhores às do mais pobre cidadão”. Vagabundo ou janota? A julgar pelos retratos, Spinoza
provavelmente era desligado no vestir, ao nível dos punhos puídos dos fidalgos.
Ele continuou a lapidar suas lentes e a escrever. Começou a redigir uma gramática de
hebraico que nunca terminou, mas conseguiu concluir um Tratado do arco-íris, tema que
parece ter exercido curioso fascínio sobre os grandes filósofos do período. Também
Descartes e Leibniz escreveram sobre o arco-íris e, embora não se tratasse de assunto
filosófico tradicional e não houvesse portanto necessidade de manter a tradição filosófica de
fazer uma abordagem equivocada das coisas, foi exatamente o que fizeram tanto eles como
Spinoza.
A essa altura as obras de Spinoza circulavam às escondidas e um grupo se reunia
regularmente em Haia para discutir suas idéias. Desse grupo participava um rico estudante de
medicina chamado de Vries. Quando de Vries soube que Spinoza estava doente e podia morrer
em breve, decidiu doar-lhe 2.000 florins e uma anuidade de 500 florins. Mas Spinoza recusou
o presente e insistiu que a anuidade fosse reduzida a 300 florins. Tudo indica que se tornara
obcecado em preservar a independência intelectual, continuando assim a ganhar a vida com
dificuldade na fabricação de lentes. Já então era um pensador respeitado em toda a Europa
(falam por si as honrarias recebidas de autoridades religiosas) e várias celebridades
intelectuais iam visitá-lo no seu quarto empoeirado e cheio de teias de aranha.
Dessas figuras a mais interessante foi Ehrenfried Walter van Tschirnhaus, cientista alemão
que descobrira com seu assistente alquimista como fabricar a porcelana rígida que começaria
a ser produzida em Meissen no início do século XVIII, um pouco tarde demais para que fizesse
fortuna (ele morreu em 1708). Outro visitante era Leibniz, à época única mente filosófica do
nível de Spinoza na Europa continental. Spinoza discutiu suas idéias com Leibniz e até lhe
mostrou um exemplar da Ética e outros textos inéditos. Leibniz ficou tão impressionado com
esse material inédito que assim que regressou à Alemanha começou a plagiá-lo.
Em 1673, a cátedra de filosofia da Universidade de Heidelberg foi oferecida a Spinoza
pelo governante local, o conde palatino Carl Ludwig, com a condição de que ele não
lecionasse nada contrário aos ensinamentos da Igreja (o que mostra quanto o conde conhecia a
filosofia de Spinoza). O filósofo teve o bom senso de recusar o prestigioso posto.
Spinoza continuou a corresponder-se com ampla gama de eminentes intelectuais, entre eles
o velho amigo Heinrich Oldenburg, que conhecera em Rijnsburg. Muitos anos antes,
Oldenburg fora nomeado primeiro-secretário da Royal Society em Londres e parece que
ninguém questionou a permanência de um holandês no cargo durante toda a guerra com a
Holanda nem estranhou que ele continuasse a se corresponder com um compatriota que vivia
no país inimigo. A guerra atrasava um pouco a correspondência mas, afora isso, não interferiu
nas comunicações regulares entre os amigos de pena. Surpreendentemente, o intercâmbio de
idéias abstrusas entre os dois, que a qualquer censor digno desse nome pareceria obviamente
um código, não levantou suspeita de que um ou outro fosse espião. Era preciso então muito
mais (ou menos) para atrair essa atenção, como Spinoza logo descobriria.
Em maio de 1673 Spinoza recebeu um convite do estadista francês Condé para visitá-lo
em Utrecht e discutir suas idéias. Utrecht ficava a apenas 50 quilômetros de distância, mas na
época estava sob ocupação francesa. Spinoza recebeu salvo-conduto e partiu para conhecer
esse homem brilhante, amigo de Molière e Racine. Quando chegou a Utrecht, soube que Condé
tivera que se ausentar a serviço do Estado. Ficou por lá algumas semanas (com certeza
deixando espantados os chefs de cozinha com seus pedidos de mingau de leite e papa de uva
passa) e voltou então a Haia, onde logo se espalhou o boato de que era um espião francês. As
coisas assumiram rapidamente uma tendência perigosa. (Fazia apenas um ano que Jan de Witt
havia sido linchado.) Spinoza achou que a resposta para esses rumores era bem simples:
sairia à rua e anunciaria à multidão que absolutamente não era um espião. Felizmente seu
senhorio, que sofria fazia tempo, conseguiu mais uma vez trancafiá-lo na hora agá e, por fim, o
caso foi sendo esquecido.
Até hoje algo de misterioso envolve esse episódio. Suspeitou-se seriamente que Spinoza
fora enviado pelo governo holandês para secretas negociações políticas com Condé. Mas isso
é impensável considerando-se o clima carregado e as delicadas circunstâncias políticas da
época. É possível que Spinoza, por ser tão implausível como emissário, tenha simplesmente
recebido a incumbência de fazer a viagem levando alguma mensagem secreta.
Tinha então quarenta e poucos anos. As longas e árduas noites de reflexão solitária e a
parca subsistência que garantia com a fabricação de lentes começavam a cobrar tributos de
sua frágil constituição. É provável que seus pulmões tenham sido afetados pela inalação
contínua de pó de vidro. Passou a sofrer de tísica, devastadora tuberculose pulmonar. A partir
do verão de 1676, sua figura débil e consumida foi vista cada vez menos no bairro e, ao
chegar o inverno, ele se recolheu à cama. A saúde definhou rápido.
Spinoza morreu na sexta-feira 21 de fevereiro de 1677, quando seu senhorio se encontrava
na igreja. Assistia-o um velho amigo médico, o dr. Meyer. Reza uma curiosa história que o dr.
Meyer sumiu com uns trocados deixados por Spinoza em cima da mesa e uma faca com cabo
de prata. Isso parece ridículo, mas pode bem ter acontecido. Como é possível também que o
médico cleptomaníaco tenha surripiado todo o estoque de centenas de lentes que Spinoza
deixou inacabadas e mais tarde passaram às mãos do astuto antiquário Cornelius van
Halewijn.
Seja como for, o fato é que a maioria das pessoas teve a impressão de que Spinoza não
deixou muita coisa ao morrer. Até sua gananciosa meia irmã Rebekah achou que não havia
muito o que cobiçar dessa vez. Esses relatos chocam-se no entanto com outra evidência,
segundo a qual Spinoza deixou uma biblioteca de 160 volumes, “dos quais se preservou o
catálogo”. A coleção teria rendido uma soma considerável na época, quando os livros com
encadernação em couro eram usados tanto para leitura como decoração. Spinoza também
deixou trabalhos inéditos, incluindo a obra-prima pela qual será para sempre lembrado, a
Ética. Esses textos e cartas foram publicados no mesmo ano de sua morte como Opera
posthuma, mas anonimamente, pois Spinoza expressou o desejo de que nenhuma doutrina
fosse identificada a partir do seu nome. Seu executor testamentário observa: “Na 11ª definição
das Paixões [na Ética], onde explica a natureza da ambição, ele acusa claramente de vaidade
aqueles que fazem isso.”
No ano seguinte as autoridades fizeram o possível para contrariar o último desejo de
Spinoza, atraindo para sua Opera posthuma o máximo de atenção. A obra de Spinoza foi
identificada com o autor e proibida por “abalar” a fé e “vilipendiar a autenticidade dos
milagres”, toda ela considerada “profana, ateísta, blasfematória”. Nascia o spinozismo. E para
enriquecer a sua biografia, poucos anos depois o enciclopedista francês Bayle o definia no seu
Dictionnaire como “a hipótese mais monstruosa que se possa imaginar, a mais absurda”.
(Triste visão antiliberal partindo de uma pessoa que devido a suas crenças também achara
conveniente viver na tolerante Holanda.) Esse alto índice de críticas à obra de Spinoza
avançou fundo pelo século seguinte, quando ninguém menos que Hume classificou a sua
filosofia de “hipótese odiosa”.
Tão desligado desse tipo de crítica em morte como provavelmente o foi em vida, Spinoza
descansa no jazigo da praça Neukirk in Dam, no centro de Amsterdã.
POSFÁCIO
. . . . . . . . . . .
Spinoza cometeu o erro de ver o mundo de forma racional, quando ele nada tem,
evidentemente, de racional, seja em termos factuais ou em última análise. (Os matemáticos
modernos cometem erro semelhante ao ver o mundo de forma matemática.) Os filósofos
anteriores a Spinoza tendiam ingenuamente a encarar o mundo de um ponto de vista humano.
Os filósofos posteriores a ele insistiram nessa abordagem, com crescente consciência das suas
limitações. Spinoza, por outro lado, dispensou o ponto de vista humano, preferindo olhar o
mundo sub specie aeternitatis (sob a perspectiva da eternidade). Hoje em dia, filósofos e
cientistas concordam que é fútil procurar qualquer verdade última. As “verdades” que
podemos descobrir só podem ser “nossas” verdades, quer dizer, do nosso ponto de vista.
Qualquer padrão objetivo último é inconcebível e inexprimível. “Deus morreu” — isso
significa também que a eternidade é cega.
Spinoza afirmou que a busca da razão “desencantaria” o mundo. Com isso quis dizer que a
razão despojaria o mundo de seu lado sagrado e da superstição. Achava que esse seria apenas
um estágio em nossa compreensão de nós mesmos e do mundo. Se levássemos o pensamento
racional ao estágio seguinte, redescobriríamos Deus numa “religião do desencanto”. Era
demais para as autoridades religiosas da época, que suspeitavam que a maioria dos
racionalistas ficaria no primeiro estágio. E essas suspeitas foram mais do que confirmadas. A
maioria dos cientistas atuais se mantém no primeiro estágio spinoziano de desenvolvimento
racional. E mesmo aqueles que chegam a uma “religião de desencanto” permanecem afastados
de toda ortodoxia religiosa, à exceção talvez do budismo. Mas também foi o que aconteceu
com Spinoza. Com efeito, é difícil entender o que Spinoza quis dizer exatamente com essa
“religião do desencanto”. Um Deus universal que só pode ser adequadamente apreendido
aplicando-se a razão ao mundo circundante? Isso sugere que a “religião do desencanto” pode
ter sido na verdade uma antecipadora definição da ciência moderna: um universo panteístico
cuja verdade só pode ser apreendida através da razão, da matemática e da experimentação
racional, um deus-mundo em que o número é prece. Talvez fosse isso que Spinoza tinha em
mente e, com efeito, pode ser uma bela descrição poética da ciência moderna vista sub specie
aeternitatis. Infelizmente não é assim que a maioria dos cientistas modernos vê o universo.
O racionalismo introduzido por Descartes foi levado ao auge por Spinoza. Mas uma
década depois da morte de Spinoza o racionalismo foi superado pelo empirismo, tal como
formulado pelo filósofo inglês John Locke. A crença de que em última análise a verdade pode
ser descoberta pela razão deu lugar à crença de que a única maneira de conhecer a verdade é
através da experiência.
A contracorrente da metafísica alemã no século XIX fez renascerem as idéias de Spinoza na
bolsa filosófica. Renascimento em grande parte infeliz. O claro racionalismo do sistema de
Spinoza inspiraria Hegel a criar um sistema ainda mais vasto, no qual a elevada clareza seria
substituída pela metafísica fantástica alemã. Spinoza inspirou também o marxismo, nascido do
hegelianismo (por inversão deste). Mas o materialismo dialético não passa de uma sombra
lumpen do panteísmo geométrico de Spinoza.
A influência de Spinoza continua. Alguns matemáticos modernos que encaram a filosofia
com desprezo reservam para ele um lugar especial. Aliás, a crença de Spinoza num universo
racional tem contradições inerentes como a crença deles num universo matemático. A
explicação sistemática do mundo degenerou em um monturo de relativismos. Vivemos na era
pós-muro de Humpty-Dumpty, em que a filosofia de Spinoza não passa de um sonho poético.
Continua sendo, porém, uma das melhores jamais produzidas.
CITAÇÕES-CHAVE
. . . . . . . . . . .
As primeiras oito definições em que se baseia a demonstração “geométrica” do sistema
de Spinoza:
I. Por causa de si (causa sui) entendo aquilo cuja essência envolve a existência, ou seja,
aquilo cuja natureza só pode ser concebida como existente.
II. Diz-se que uma coisa é finita em seu gênero quando pode ser limitada por outra da
mesma natureza. Por exemplo, diz-se que um corpo é finito porque sempre podemos conceber
outro corpo maior. Igualmente, um pensamento é limitado por outro pensamento. Um corpo,
porém, não pode ser limitado por um pensamento, nem um pensamento por um corpo.
III. Por substância entendo o que é em si e concebido por si, quer dizer, aquilo cujo
conceito não precisa do conceito de outra coisa para ser formado.
IV. Por atributo entendo aquilo que o entendimento percebe da substância como
constituindo a sua essência.
V. Por modo entendo as alterações da substância, ou seja, aquilo que é em outra coisa,
pela qual também é concebido.
VI. Por Deus entendo um ser absolutamente infinito, quer dizer, uma substância que
consiste de uma infinidade de atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e
infinita.
VII. Diz-se que é livre uma coisa que existe por necessidade exclusiva de sua natureza e
que é determinada por si só a agir. Diz-se, ao contrário, necessária ou, antes, forçosa (coacta)
a coisa que é determinada por outra a existir e a agir de certa maneira definida e determinada.
VIII. Por eternidade entendo a própria existência, concebida como seguindo-se
necessariamente da simples definição de uma coisa eterna.
Ética, 1ª Parte: Sobre Deus, Definições
Um exemplo do panteísmo absoluto de Spinoza:
Fora Deus, nenhuma substância pode existir ou ser concebida.
Ética, 1ª Parte, Proposição 14
Outra prova da existência de Deus:
Como a capacidade de existir é um poder, segue-se que quanto mais realidade tiver a natureza
de uma coisa, maior será o seu poder de existir por si. Logo, um ser absolutamente infinito,
isto é, Deus, tem por si mesmo um poder absolutamente infinito de existir. Portanto ele existe
absolutamente.
Ética, 1ª Parte
Exemplos do determinismo radical de Spinoza:
Deus é a causa de todas as coisas, que existem nele.
Ética, 1ª Parte
Não há nada contingente na natureza, sendo todas as coisas determinadas por necessidade da
natureza divina a existir e a agir de uma forma definida.
Ética, 1ª Parte
As pessoas enganam-se quando pensam que são livres. Acham isso apenas porque têm
consciência de suas ações, mas continuam ignorando a causa efetiva dessas ações.
Ética, 2ª Parte
Os dois atributos:
Mente e corpo são um único e mesmo indivíduo, ora concebido com o atributo do pensamento,
ora com o atributo da extensão.
Ética, 2ª Parte
A idéia de governo em Spinoza, muito à frente de seu tempo, ainda que um tanto utópica:
O objetivo último do governo não é dirigir ou refrear pelo medo nem impor obediência, mas,
ao contrário, livrar todo homem do medo para que possa viver na maior segurança possível,
ou seja, reforçar seu direito natural de existir e tratar dos seus assuntos sem prejuízo para si
ou para os outros. O objetivo do governo não é transformar os homens de seres racionais em
bestas ou bonecos, mas capacitá-los a desenvolver corpo e mente em segurança e a usar a
razão sem restrições, sem ódio, ira ou trapaça nem fiscalização ciumenta e injusta. Com efeito,
o verdadeiro objetivo do governo é a liberdade.
Tratado teológico-político, cap.20
CRONOLOGIA DE DATAS
SIGNIFICATIVAS DA FILOSOFIA
. . . . . . . . . . .
séc.VI
a.C.
Começo da filosofia ocidental, com Tales de Mileto.
final
séc. VI
a.C.
Morte de Pitágoras.
399 a.C. Sócrates condenado à morte em Atenas.
c.387
a.C.
Em Atenas, Platão funda a Academia, primeira universidade.
335 a.C. Aristóteles funda o Liceu ateniense, escola rival da Academia.
324 d.C. Constantino muda a capital do Império Romano para Bizâncio.
400 d.C. Sto. Agostinho escreve suas Confissões. A filosofia é absorvida pela teologia
cristã.
410 d.C. Roma saqueada pelos visigodos, prenúncio da Idade das Trevas.
529 d.C. Fechamento da Academia de Atenas pelo imperador Justiniano, marcando o fim
do pensamento helênico.
meados
séc.XIII
Tomás de Aquino escreve seus comentários sobre Aristóteles. Era da
escolástica.
1453 Queda de Bizâncio (Constantinopla), tomada pelos turcos. Fim do Império
Bizantino.
1492 Colombo chega à América. Renascimento florentino, novo interesse pelo
aprendizado do grego.
1543 Copérnico publica Da revolução dos orbes celestes, provando
matematicamente que a Terra gira em torno do Sol.
1633 Galileu é forçado pela Igreja a renegar a teoria heliocêntrica do universo.
1641 Descartes publica as Meditações, início da filosofia moderna.
1677 Morte de Spinoza possibilita a publicação da Ética.
1687 Newton publica os Principia, que introduzem o conceito de gravidade.
1689 Locke publica Ensaio sobre o entendimento humano. Começo do empirismo.
1710 Berkeley publica Princípios do conhecimento humano, levando o empirismo a
novos extremos.
1716 Morte de Leibniz.
1739- Hume publica Tratado da natureza humana, levando o empirismo a seus
1740 limites lógicos. 1781 Kant, despertado do seu “sono dogmático” por Hume, publica a Crítica da
razão pura. Começa o período áureo da metafísica alemã.
1807 Hegel publica A fenomenologia do espírito, ponto alto da metafísica alemã.
1818 Schopenhauer publica O mundo como vontade e representação, introduzindo a
filosofia hindu na metafísica alemã.
1889 Depois de declarar que “Deus está morto”, Nietzsche sucumbe à loucura em
Turim.
1921 Wittgenstein publica o Tractatus logicophilosophicus, proclamando a “solução
final” para os problemas da filosofia.
década
de 1920
O Círculo de Viena propõe o positivismo lógico.
1927 Heidegger publica Ser e tempo, que prenuncia a separação entre filosofia
analítica e continental.
1943 Sartre publica O ser e o nada, desenvolvendo o pensamento de Heidegger e
estimulando o existencialismo.
1953 Publicação póstuma das Investigações filosóficas de Wittgenstein. Período
áureo da análise lingüística.
CRONOLOGIA DA VIDA
DE SPINOZA
. . . . . . . . . . .
1632 Nascimento de Spinoza, em Amsterdã.
1646 Nasce Leibniz.
1648 Fim da Guerra dos Trinta Anos, que deixou vastas regiões da Alemanha e Europa
Central arrasadas.
1650 Morre Descartes.
1654 Morte do pai de Spinoza e subseqüente processo legal contra a irmã.
1655 Fracassa atentado contra a vida de Spinoza.
1656 Spinoza é excomungado pelas autoridades religiosas judaicas.
1660 Mudança para Rijnsburg, perto de Leiden.
1663 Mudança para Haia.
1663-
65
Escreve a Ética.
1670 Publicado anonimamente o Tratado teológico-político.
1673 Recusa cátedra de filosofia na Universidade de Heidelberg.
1675 Conclui a Ética.
1676 Visita de Leibniz.
1677 Morte de Spinoza, em Haia. Publicação de sua obra-prima, a Ética.
LEITURA SUGERIDA
. . . . . . . . . . .
Frederick Copleston, History of Philosophy, vol.4: Descartes to Leibniz (Doubleday, 1994).
Tem quatro capítulos sobre a vida e as idéias de Spinoza.
Don Garrett (org.), The Cambridge Companion to Spinoza (Cambridge University Press,
1995). Vasta coletânea de ensaios sobre o filósofo holandês e temas relacionados por
diversos especialistas em Spinoza.
Roger Scruton, Spinoza (Oxford University Press, 1986). Opúsculo de uma série sobre
mestres do passado (Past Masters), o melhor resumo crítico das idéias de Spinoza.
The Ethics of Spinoza (Carol Publishing Group, 1995). A obra fundamental do filósofo sobre
metafísica e ética, vazada em estilo euclidiano.
Baruch Spinoza, Tractatus Theologico-Politicus, 2ª ed. (E.J. Brill, 1991). Com seu sistema
político e comentários bíblicos.
Espinosa, Seleção de Textos em Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, várias edições.
Marilena Chauí, Espinosa: uma filosofia da liberdade, São Paulo, Moderna, 1995.
Marilena Chauí, A nervura do real: Espinosa e a questão da liberdade. São Paulo,
Companhia das Letras, 1998.
ÍNDICE REMISSIVO
. . . . . . . . . . .
Aristóteles, 1
arrogância, perda da, 1
Bruno, Giordano, 1
Celerus, 1, 2
ciúme sexual, 1
Condé, príncipe de, 1
Descartes, René, 1; Princípios de filosofia, 2, 3, 4
Deus ou Natureza (Deus sive Natura), 1, 2
dieta, 1
Ende, Affinius van den, 1, 2
Ende, Clara Maria van den, 1
excomunhão, 1
Gaia, hipótese de, 1
Hawking, Stephen, 1
Hobbes, Thomas, 1;
Leviatã, 1
Homan, Hermann, 1
Keats, 1
Koerbach, Adrian: Luz em lugares escuros, 1
Leibniz, Gottfried Wilhelm, 1, 2, 3
Locke, John, 1
Maimônides, 1
Oldenburg, Heinrich, 1
ontológico, argumento, 1
Pepys, Samuel, 1
protestantes holandeses ortodoxos, 1
Spinoza, obras de: Ética, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7; Opera posthuma (inclui a Ética), 8; Curto tratado
sobre Deus, o homem e o bem-estar, 9; Tratado teológico-político, 10, 11, 12; Tratado da
correção do intelecto, 13; Tratado do arco-íris, 14
Talmude, 1
tísica, 1
Tschirnhaus, Ehrenfried Walter van, 1
Witt, Jan de, 1
C I E N T I S T A S
em 90 minutos
. . . . . . . .
por Paul Strathern
Arquimedes e a alavanca em 90 minutos
Bohr e a teoria quântica em 90 minutos
Crick, Watson e o DNA em 90 minutos
Curie e a radioatividade em 90 minutos
Darwin e a evolução em 90 minutos
Einstein e a relatividade em 90 minutos
Galileu e o sistema solar em 90 minutos
Hawking e os buracos negros em 90 minutos
Newton e a gravidade em 90 minutos
Oppenheimer e a bomba atômica em 90 minutos
Pitágoras e seu teorema em 90 minutos
Turing e o computador em 90 minutos
Título original:
Spinoza in 90 minutes
Tradução autorizada da primeira edição norte-americana
publicada em 1998 por Ivan R. Dee,
de Chicago, Estados Unidos
Copyright © 1998, Paul Strathern
Copyright da edição brasileira © 2000:
Jorge Zahar Editor Ltda.
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A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo
ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)
Ilustração: Lula
ISBN: 978-85-378-0532-9
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