Um dos mais fecundos sociólogos
contemporâneos, o polonês radicado na Inglaterra,
Zigmunt Bauman, tem se dedicado em sua vasta
obra1 à refl exão sobre a cultura do consumo e suas
implicações para a vida humana na sociedade que
chama de “líquido-moderna”2. Em seu recente
livro, A Arte da Vida, coloca o foco em um aspecto
central para a compreensão de nossa cultura:
quais referências e valores funda...mentam a busca
da felicidade no mundo contemporâneo e que
conseqüências estes acarretam para a identidade dos
indivíduos e seus relacionamentos sociais.
Em livro também recente, outro sociólogo
contemporâneo tratou do mesmo tema, o francês
Gilles Lipovetsky (A Felicidade Paradoxal, 2007).
Os dois se interessam por explorar a relação entre
consumo e felicidade, equação que é central para a
compreensão que ambos trazem da sociedade atual.
Porém, uma diferença fundamental entre ambos é
que Lipovetsky não vê de modo necessariamente
negativo o que chama de “hiperconsumo”:
“Evidentemente, o balanço humano e social da
sociedade hipermercantil não é muito lisonjeiro,
mas é negativo em todos os pontos? (...) Contra
a postura hipócrita de grande parte da crítica
do consumo, é preciso reconhecer os elementos
de positividade implicados na superfi cialidade
consumista” (LIPOVETSKY, 2007, p. 17).
Esta diferença marca a sociologia humanista
de Bauman, pois, para este, os ideais de consumo e
vida feliz no mundo capitalista trazem a “insolúvel
contradição interna de uma sociedade que estabelece
para todos os membros um padrão de felicidade
que a maioria destes ‘todos’ é incapaz de alcançar”
(p. 38). Para Bauman, a sociologia deve “dar sua
própria contribuição na batalha por uma sociedade
melhor, mais hospitaleira aos seres humanos e à sua
humanidade”3. A contribuição da sociologia, na
concepção do autor, está na possibilidade de fazer
as pessoas refl etirem sobre os valores que adotam e
reconhecerem seu potencial de escolha.
Bauman não vê confl ito entre o exercício
simultâneo dos papéis de sociólogo e de fi lósofo;
por isso, em A Arte da Vida combina resultados
de pesquisas sociológicas recentes, suas próprias
análises de depoimentos de consumidores e das
estratégias da publicidade, com um instigante
passeio pelas idéias de felicidade presentes nas
diversas correntes da fi losofi a, na sociologia clássica
e contemporânea. E ainda escreve com clareza, de
forma a ser entendido por um público bem mais
amplo do que os leitores da academia. Bauman
mostra que é possível fazer tudo isso mostrando
erudição e riqueza de interpretação.
Coerente com sua crítica de que “os estudos
sociais acadêmicos perderam a ligação com a
De: Zygmunt BAUMAN
A Arte da Vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
Por: GEÍSA MATTOS
Doutora em Sociologia. Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC).
O DEBATE SOBRE A FELICIDADE
NA SOCIEDADE LÍQUIDO-MODERNA
158 REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS v. 41 n. 1 2010
agenda pública”4, logo no início do livro ele aborda
um problema que tem ganhado espaço nessa agenda
recentemente: a crítica ao Produto Interno Bruto
(PIB) como parâmetro hegemônico para avaliar o
desenvolvimento dos países. O PIB mede somente
a quantidade de bens e serviços produzidos em uma
nação, em um determinado período de tempo, mas
não leva em consideração a qualidade, por exemplo,
do aproveitamento do tempo pelos seres humanos
envolvidos nessa produção5.
Como mostra a pesquisa de Michel Rustin6,
citada por Bauman, o aumento do PIB em países
como Grã-Bretanha e Estados Unidos não está
associado a um aumento do bem estar subjetivo
e sim ao crescimento de casos de depressão e das
estatísticas de violência. Um dos motivos apontados
pelo autor: “ganhar bastante dinheiro para adquirir
bens que só podem ser obtidos em lojas é um
ônus pesado sobre o tempo e a energia disponíveis
para obter e usufruir bens não-comerciais e nãonegociáveis”,
como o amor e a amizade (p. 12).
Bauman cita a pesquisa de Richard Layard7
segundo a qual há um limite para que o ganho em
termos de conforto e consumo seja capaz de gerar
mais bem estar subjetivo. Conforme as estatísticas
comparadas por Layard em vários países, os índices
de satisfação com a vida só crescem de modo
signifi cativo até o ponto em que carência e pobreza
são substituídas pela satisfação de necessidades
essenciais; e param de subir ou tendem a decrescer
quando se ultrapassa certo limite de conforto em
termos materiais.
A relação entre consumo e expectativa de
felicidade no mundo contemporâneo é amplamente
abordada pelo autor na “Introdução”. Em seu estilo
ensaístico, chega a uma metáfora exemplar do
conceito de felicidade do capitalismo atual: “Um
dos efeitos mais seminais de se igualar a felicidade
à compra de mercadorias que se espera que gerem
felicidade é afastar a probabilidade de a busca da
felicidade um dia chegar ao fi m. (...) Na pista da
felicidade não existe linha de chegada” (p. 17).
A partir da interpretação de Bauman sobre
o depoimento de uma consumidora adolescente8,
somos levados a compreender que está em jogo
no consumo adquirir e manter uma posição social
necessariamente reconhecida pela sociedade. O
certifi cado de validade do status adquirido, no entanto,
tem prazo curto quanto à sensação que proporciona
de ser visto como alguém que está “na trilha certa”.
Assim, o consumidor precisa voltar às lojas e adquirir
os produtos “certos” para o reforço da sensação de
estar no “páreo social”. (É interessante que seja de
uma adolescente o depoimento examinado pelo
autor, já que na sociedade atual o ideal de felicidade é
associado à idéia de juventude eterna).
Segundo Bauman, a ausência de felicidade
parece ser inadequada, em um mundo onde esta é
“facilmente alcançável” pelas promessas do consumo
e de transformação da identidade; então se segue
em busca do “verdadeiro eu” que se encontraria se
utilizasse os meios e habilidades “certos”. “O que de
fato é novo é o sonho gêmeo de fugir do próprio eu e
adquirir um novo feito sob encomenda – e a convicção
de que transformar esse sonho em realidade é algo
que está ao nosso alcance. Não apenas uma opção,
mas a mais fácil” (p. 24, grifos no original).
A mesma facilidade com que se busca
descartar identidades consideradas inadequadas é
vivida nos relacionamentos amorosos, como já havia
sido descrito pelo autor em Amor Líquido (2004).
“Compromissos são válidos até que a satisfação
desapareça ou caia abaixo de um padrão aceitável – e
nem um instante a mais” (p. 26). O ideal dos tempos
159
líquido-modernos é o Super Homem ou Homem
Superior de Niezstche, na interpretação de Bauman:
“o grande mestre da arte da auto-afi rmação, capaz
de se evadir ou escapar de todos os grilhões que
restringem a maioria dos mortais comuns”.
A questão de fundo com a qual o autor se
depara, no primeiro capítulo do livro (“As Misérias
da Felicidade”), concordando com Kant, é que não
é possível chegar a uma conclusão ao mesmo tempo
defi nitiva e consistente do que seja felicidade. Pois,
como também constata Bauman, “a felicidade de
uma pessoa pode ser bem difícil de distinguir do
horror de outra” (p. 39).
Neste ponto poderíamos colocar em
xeque a crítica da sociedade de consumo feita pelo
próprio autor nas 32 páginas que constituem a sua
“Introdução”. Se a felicidade é subjetiva e cultural,
com quais parâmetros podemos fazer a crítica
dos valores da sociedade atual? Bauman nos dá
elementos para admitir que a sociedade ocidental
“universaliza” um dado conceito de felicidade como
busca ansiosa, permanente, insaciável, baseada na
competição e no desejo de parecer melhor do que os
outros, no simulacro de um ideal sempre almejado
e nunca conquistado, senão por fugazes instantes do
consumo de um bem ou de uma relação amorosa,
esta destinada a ser substituída logo que apareçam
os primeiros sinais de insatisfação.
Porém, para fundamentar sua crítica, ele
faz um exame dos ideais de felicidade presentes nos
fi lósofos clássicos e estóicos, demonstrando que,
longe de ser intrínseco à espécie humana, o ideal de
felicidade atual foi sendo elaborado historicamente
a partir da ascensão da burguesia. Com ela, veio
aparecer “uma característica quase universal da vida
moderna: a tensão entre dois valores, segurança e
liberdade, igualmente cobiçados e indispensáveis a
uma vida feliz – mas, que pena, assustadoramente
difíceis de conciliar e usufruir conjuntamente” (p. 65).
Nesta última passagem, Bauman parece
ver como universal uma tensão que, conforme ele
mesmo demonstra ao longo do livro, é específi ca do
ideal de felicidade no mundo capitalista. Segurança
e liberdade podem não ser contraditórias em
outras culturas, onde estas mesmas palavras têm
outros signifi cados. Segurança para os hindus, por
exemplo, não signifi ca apego a valores materiais; ao
contrário, é o contato com a Divindade presente em
cada um que fortalece a noção de sentir-se seguro
e, ao mesmo tempo, livre de toda dependência das
circunstâncias externas para sentir bem estar.
Embora não faça referência à cultura hindu,
uma visão parecida é encontrada por Bauman nos
fi lósofos representantes do estoicismo, os quais
advogam que a verdadeira felicidade só pode ser
sentida voltando-se para dentro de si mesmo. Como
resumiu Pascal, citado pelo autor: “A causa única
da infelicidade do homem é que ele não sabe como
fi car quieto em seu quarto” (p. 51).
No mundo capitalista atual, ao contrário,
como mostra Bauman, o indivíduo é prisioneiro do
olhar do Outro, e só se sente seguro e “bem” se estiver
“melhor”, se for “invejado”, “apreciado”. O autor
mostra que o consumo é associado ao sentimento
de pertença a uma categoria exclusiva, distintivo
de bom gosto, discernimento e savoir-faire (p. 34).
A felicidade, construída dessa maneira, “exige que
se pareça estar sempre à frente dos competidores”
(p. 36). Tendo sempre o “outro” como referência,
a felicidade é obtida por provocar em alguém
sentimentos de superioridade.
Como nos convence o autor, guiar-se pelo
olhar do Outro frequentemente gera frustração
e ressentimento: “rancor causado pelo impulso
160 REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS v. 41 n. 1 2010
desesperado de evitar a autodepreciação e o
autodesprezo” (p. 37). Então, explodem os ódios
recíprocos, estimulados pelo medo e pela competição.
O tom pessimista do retrato que faz
Bauman da sociedade contemporânea, embora seja
bastante convincente, pode ser questionado sob
alguns aspectos. Se aceitarmos a sua tese de que a
modernidade passou de uma fase “sólida” – na qual
as identidades eram projetos “para toda a vida” – para
uma fase “líquida”, onde os sujeitos têm a sensação
de poder sempre “começar do zero” e mudar tudo,
podemos relativizar sua própria crítica à idéia de
que “identidades fl exíveis” seriam outro nome para
“pusilanimidade”, como ele assevera (p. 91). No
segundo capítulo do livro (“Nós, os artistas da vida”),
ele faz a crítica da “arte da vida” contemporânea por
esta refl etir essa ausência de sentido permanente.
“Este novo tipo de arte promete uma longa corrente,
aparentemente infi nita, de futuras alegrias” (p.
100); ao contrário de um “projeto de vida” tal como
pensado por Sartre, que estimulou a geração de
Bauman em suas conquistas, a juventude atual
não tem projetos de longo prazo. “A volatilidade,
vulnerabilidade e fragilidade de toda e qualquer
identidade coloca sobre os ombros daquele que
busca uma identidade o dever de desincumbir-se
diariamente das tarefas da identifi cação” (p. 105).
Ora, podemos ver a fl exibilidade como
um direito conquistado com a modernidade. Neste
sentido, há positividade em tomar a arte da vida como
arte de recriar-se permanentemente; de não estar
defi nido de “uma vez por todas”, de renovar sempre
nosso espírito jovem. O problema, responderia o
autor, é que a mudança permanente nos é imposta
como mais uma “necessidade de consumo”. E
ainda, argumentaria ele, a imposição da mudança
permanente gera a exclusão de muitos que não
podem gozar desta “liberdade” prometida (p. 105).
No terceiro e último capítulo (“A
Escolha”), ele se coloca a favor de uma sociologia
comprometida com uma ética que tenha o Outro
como referência, não como signo de vaidade
e reforço do próprio egocentrismo, mas como
reconhecimento que possibilite ao indivíduo sair
do “isolamento da existência” (p. 159). Retoma o
pensamento de Emmanuel Levinas, contra o que
interpreta em Nietzsche como o projeto de um
“Super Homem” comprometido apenas consigo
mesmo e com seu egoísmo.
Opondo as visões de Levinas e Nietzsche e
relacionando-as, respectivamente, a solidariedade,
responsabilidade e compartilhamento no primeiro;
e a aversão a toda forma de moral restritiva da
liberdade, no segundo, como sentidos na busca
da felicidade, ele adere à perspectiva do primeiro,
assumindo o parâmetro ético que adota para a
crítica dos valores do mundo contemporâneo.
A posição de Bauman nos faz lembrar a
discussão capitaneada pelo sociólogo português
Boaventura de Sousa Santos (2008) sobre as
mudanças nos paradigmas da ciência moderna, nas
quais o autor identifi ca uma tendência importante
de não mais separar valores cognitivos de valores
éticos e políticos. Esta, que é uma discussão sempre
em aberto nas ciências sociais, parece ser retomada
agora com os novos desafi os que a realidade nos
coloca: não é mais a questão marxista da luta
contra a opressão de uma classe social por outra,
mas a própria sobrevivência da espécie humana e
do planeta que está em jogo no debate atual sobre
o consumo. Neste sentido, a posição de Bauman é
parte de uma questão epistemológica mais ampla
que implica novas perspectivas sobre o papel da
ciência, e em particular, o papel das ciências sociais.
161
Notas
1 O autor publicou quase duas dezenas de livros no
Brasil, entre eles alguns dos mais citados são Modernidade
Líquida (2001), Comunidade: a Busca por
Segurança no Mundo Atual (2003), Amor Líquido
(2004), Identidade (2005), todos pela editora Jorge
Zahar.
2 A expressão modernidade líquida passou a ser utilizada
por Bauman em obras anteriores para evitar
confusão semântica com o que é chamado de “sociologia
da pós-modernidade”. Enquanto esta evitaria
qualquer tipo de julgamento de valor sobre “modos
de vida viciosos e virtuosos”, Bauman descreve de
modo profundamente crítico esta sociedade, por acreditar
que “o mundo pode ser diferente e melhor do
que é” (ver entrevista a Pallares-Burke, 2004, p. 9).
3 PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. “Entrevista
com Zigmunt Bauman”, Tempo Social, vol. 16,
nº 1, São Paulo, Junho de 2004, p. 5.
4 Idem, p. 5.
5 Em 2009, o presidente da França, Nicolas Sarcozy,
nomeou uma comissão de economistas e estatísticos,
liderados por dois vencedores do Prêmio Nobel
em Economia, Joseph Stiglitz e Amartya Sen, para
criar um novo indicador de desenvolvimento capaz
de “mudar nossas prioridades políticas e construir
sociedades mais felizes e ambientalmente mais justas”
(John Thornhill, Financial Times, reproduzido no
Valor Econômico, 30/01/2009). Na discussão em torno
de um novo índice capaz de medir a qualidade do
desenvolvimento, criou-se a idéia da sigla Felicidade
Interna Bruta (FIB), num jogo de palavras com o PIB.
6 RUSTIN, Michel. “What is wrong with happiness?”,
Soundings, verão de 2007, p. 67-84 (citado por Bauman,
p. 8-10).
7 LAYARD, Richard. Happiness: Lessons from a New
Science. Londres, Penguin, 2005.
8 A fonte de um dos depoimentos analisados por Bauman
é a primeira página de uma revista de moda britânica.
O autor interpreta exemplarmente o discurso
de uma adolescente reproduzido pela revista sobre
sua “loja favorita”.
contemporâneos, o polonês radicado na Inglaterra,
Zigmunt Bauman, tem se dedicado em sua vasta
obra1 à refl exão sobre a cultura do consumo e suas
implicações para a vida humana na sociedade que
chama de “líquido-moderna”2. Em seu recente
livro, A Arte da Vida, coloca o foco em um aspecto
central para a compreensão de nossa cultura:
quais referências e valores funda...mentam a busca
da felicidade no mundo contemporâneo e que
conseqüências estes acarretam para a identidade dos
indivíduos e seus relacionamentos sociais.
Em livro também recente, outro sociólogo
contemporâneo tratou do mesmo tema, o francês
Gilles Lipovetsky (A Felicidade Paradoxal, 2007).
Os dois se interessam por explorar a relação entre
consumo e felicidade, equação que é central para a
compreensão que ambos trazem da sociedade atual.
Porém, uma diferença fundamental entre ambos é
que Lipovetsky não vê de modo necessariamente
negativo o que chama de “hiperconsumo”:
“Evidentemente, o balanço humano e social da
sociedade hipermercantil não é muito lisonjeiro,
mas é negativo em todos os pontos? (...) Contra
a postura hipócrita de grande parte da crítica
do consumo, é preciso reconhecer os elementos
de positividade implicados na superfi cialidade
consumista” (LIPOVETSKY, 2007, p. 17).
Esta diferença marca a sociologia humanista
de Bauman, pois, para este, os ideais de consumo e
vida feliz no mundo capitalista trazem a “insolúvel
contradição interna de uma sociedade que estabelece
para todos os membros um padrão de felicidade
que a maioria destes ‘todos’ é incapaz de alcançar”
(p. 38). Para Bauman, a sociologia deve “dar sua
própria contribuição na batalha por uma sociedade
melhor, mais hospitaleira aos seres humanos e à sua
humanidade”3. A contribuição da sociologia, na
concepção do autor, está na possibilidade de fazer
as pessoas refl etirem sobre os valores que adotam e
reconhecerem seu potencial de escolha.
Bauman não vê confl ito entre o exercício
simultâneo dos papéis de sociólogo e de fi lósofo;
por isso, em A Arte da Vida combina resultados
de pesquisas sociológicas recentes, suas próprias
análises de depoimentos de consumidores e das
estratégias da publicidade, com um instigante
passeio pelas idéias de felicidade presentes nas
diversas correntes da fi losofi a, na sociologia clássica
e contemporânea. E ainda escreve com clareza, de
forma a ser entendido por um público bem mais
amplo do que os leitores da academia. Bauman
mostra que é possível fazer tudo isso mostrando
erudição e riqueza de interpretação.
Coerente com sua crítica de que “os estudos
sociais acadêmicos perderam a ligação com a
De: Zygmunt BAUMAN
A Arte da Vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
Por: GEÍSA MATTOS
Doutora em Sociologia. Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC).
O DEBATE SOBRE A FELICIDADE
NA SOCIEDADE LÍQUIDO-MODERNA
158 REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS v. 41 n. 1 2010
agenda pública”4, logo no início do livro ele aborda
um problema que tem ganhado espaço nessa agenda
recentemente: a crítica ao Produto Interno Bruto
(PIB) como parâmetro hegemônico para avaliar o
desenvolvimento dos países. O PIB mede somente
a quantidade de bens e serviços produzidos em uma
nação, em um determinado período de tempo, mas
não leva em consideração a qualidade, por exemplo,
do aproveitamento do tempo pelos seres humanos
envolvidos nessa produção5.
Como mostra a pesquisa de Michel Rustin6,
citada por Bauman, o aumento do PIB em países
como Grã-Bretanha e Estados Unidos não está
associado a um aumento do bem estar subjetivo
e sim ao crescimento de casos de depressão e das
estatísticas de violência. Um dos motivos apontados
pelo autor: “ganhar bastante dinheiro para adquirir
bens que só podem ser obtidos em lojas é um
ônus pesado sobre o tempo e a energia disponíveis
para obter e usufruir bens não-comerciais e nãonegociáveis”,
como o amor e a amizade (p. 12).
Bauman cita a pesquisa de Richard Layard7
segundo a qual há um limite para que o ganho em
termos de conforto e consumo seja capaz de gerar
mais bem estar subjetivo. Conforme as estatísticas
comparadas por Layard em vários países, os índices
de satisfação com a vida só crescem de modo
signifi cativo até o ponto em que carência e pobreza
são substituídas pela satisfação de necessidades
essenciais; e param de subir ou tendem a decrescer
quando se ultrapassa certo limite de conforto em
termos materiais.
A relação entre consumo e expectativa de
felicidade no mundo contemporâneo é amplamente
abordada pelo autor na “Introdução”. Em seu estilo
ensaístico, chega a uma metáfora exemplar do
conceito de felicidade do capitalismo atual: “Um
dos efeitos mais seminais de se igualar a felicidade
à compra de mercadorias que se espera que gerem
felicidade é afastar a probabilidade de a busca da
felicidade um dia chegar ao fi m. (...) Na pista da
felicidade não existe linha de chegada” (p. 17).
A partir da interpretação de Bauman sobre
o depoimento de uma consumidora adolescente8,
somos levados a compreender que está em jogo
no consumo adquirir e manter uma posição social
necessariamente reconhecida pela sociedade. O
certifi cado de validade do status adquirido, no entanto,
tem prazo curto quanto à sensação que proporciona
de ser visto como alguém que está “na trilha certa”.
Assim, o consumidor precisa voltar às lojas e adquirir
os produtos “certos” para o reforço da sensação de
estar no “páreo social”. (É interessante que seja de
uma adolescente o depoimento examinado pelo
autor, já que na sociedade atual o ideal de felicidade é
associado à idéia de juventude eterna).
Segundo Bauman, a ausência de felicidade
parece ser inadequada, em um mundo onde esta é
“facilmente alcançável” pelas promessas do consumo
e de transformação da identidade; então se segue
em busca do “verdadeiro eu” que se encontraria se
utilizasse os meios e habilidades “certos”. “O que de
fato é novo é o sonho gêmeo de fugir do próprio eu e
adquirir um novo feito sob encomenda – e a convicção
de que transformar esse sonho em realidade é algo
que está ao nosso alcance. Não apenas uma opção,
mas a mais fácil” (p. 24, grifos no original).
A mesma facilidade com que se busca
descartar identidades consideradas inadequadas é
vivida nos relacionamentos amorosos, como já havia
sido descrito pelo autor em Amor Líquido (2004).
“Compromissos são válidos até que a satisfação
desapareça ou caia abaixo de um padrão aceitável – e
nem um instante a mais” (p. 26). O ideal dos tempos
159
líquido-modernos é o Super Homem ou Homem
Superior de Niezstche, na interpretação de Bauman:
“o grande mestre da arte da auto-afi rmação, capaz
de se evadir ou escapar de todos os grilhões que
restringem a maioria dos mortais comuns”.
A questão de fundo com a qual o autor se
depara, no primeiro capítulo do livro (“As Misérias
da Felicidade”), concordando com Kant, é que não
é possível chegar a uma conclusão ao mesmo tempo
defi nitiva e consistente do que seja felicidade. Pois,
como também constata Bauman, “a felicidade de
uma pessoa pode ser bem difícil de distinguir do
horror de outra” (p. 39).
Neste ponto poderíamos colocar em
xeque a crítica da sociedade de consumo feita pelo
próprio autor nas 32 páginas que constituem a sua
“Introdução”. Se a felicidade é subjetiva e cultural,
com quais parâmetros podemos fazer a crítica
dos valores da sociedade atual? Bauman nos dá
elementos para admitir que a sociedade ocidental
“universaliza” um dado conceito de felicidade como
busca ansiosa, permanente, insaciável, baseada na
competição e no desejo de parecer melhor do que os
outros, no simulacro de um ideal sempre almejado
e nunca conquistado, senão por fugazes instantes do
consumo de um bem ou de uma relação amorosa,
esta destinada a ser substituída logo que apareçam
os primeiros sinais de insatisfação.
Porém, para fundamentar sua crítica, ele
faz um exame dos ideais de felicidade presentes nos
fi lósofos clássicos e estóicos, demonstrando que,
longe de ser intrínseco à espécie humana, o ideal de
felicidade atual foi sendo elaborado historicamente
a partir da ascensão da burguesia. Com ela, veio
aparecer “uma característica quase universal da vida
moderna: a tensão entre dois valores, segurança e
liberdade, igualmente cobiçados e indispensáveis a
uma vida feliz – mas, que pena, assustadoramente
difíceis de conciliar e usufruir conjuntamente” (p. 65).
Nesta última passagem, Bauman parece
ver como universal uma tensão que, conforme ele
mesmo demonstra ao longo do livro, é específi ca do
ideal de felicidade no mundo capitalista. Segurança
e liberdade podem não ser contraditórias em
outras culturas, onde estas mesmas palavras têm
outros signifi cados. Segurança para os hindus, por
exemplo, não signifi ca apego a valores materiais; ao
contrário, é o contato com a Divindade presente em
cada um que fortalece a noção de sentir-se seguro
e, ao mesmo tempo, livre de toda dependência das
circunstâncias externas para sentir bem estar.
Embora não faça referência à cultura hindu,
uma visão parecida é encontrada por Bauman nos
fi lósofos representantes do estoicismo, os quais
advogam que a verdadeira felicidade só pode ser
sentida voltando-se para dentro de si mesmo. Como
resumiu Pascal, citado pelo autor: “A causa única
da infelicidade do homem é que ele não sabe como
fi car quieto em seu quarto” (p. 51).
No mundo capitalista atual, ao contrário,
como mostra Bauman, o indivíduo é prisioneiro do
olhar do Outro, e só se sente seguro e “bem” se estiver
“melhor”, se for “invejado”, “apreciado”. O autor
mostra que o consumo é associado ao sentimento
de pertença a uma categoria exclusiva, distintivo
de bom gosto, discernimento e savoir-faire (p. 34).
A felicidade, construída dessa maneira, “exige que
se pareça estar sempre à frente dos competidores”
(p. 36). Tendo sempre o “outro” como referência,
a felicidade é obtida por provocar em alguém
sentimentos de superioridade.
Como nos convence o autor, guiar-se pelo
olhar do Outro frequentemente gera frustração
e ressentimento: “rancor causado pelo impulso
160 REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS v. 41 n. 1 2010
desesperado de evitar a autodepreciação e o
autodesprezo” (p. 37). Então, explodem os ódios
recíprocos, estimulados pelo medo e pela competição.
O tom pessimista do retrato que faz
Bauman da sociedade contemporânea, embora seja
bastante convincente, pode ser questionado sob
alguns aspectos. Se aceitarmos a sua tese de que a
modernidade passou de uma fase “sólida” – na qual
as identidades eram projetos “para toda a vida” – para
uma fase “líquida”, onde os sujeitos têm a sensação
de poder sempre “começar do zero” e mudar tudo,
podemos relativizar sua própria crítica à idéia de
que “identidades fl exíveis” seriam outro nome para
“pusilanimidade”, como ele assevera (p. 91). No
segundo capítulo do livro (“Nós, os artistas da vida”),
ele faz a crítica da “arte da vida” contemporânea por
esta refl etir essa ausência de sentido permanente.
“Este novo tipo de arte promete uma longa corrente,
aparentemente infi nita, de futuras alegrias” (p.
100); ao contrário de um “projeto de vida” tal como
pensado por Sartre, que estimulou a geração de
Bauman em suas conquistas, a juventude atual
não tem projetos de longo prazo. “A volatilidade,
vulnerabilidade e fragilidade de toda e qualquer
identidade coloca sobre os ombros daquele que
busca uma identidade o dever de desincumbir-se
diariamente das tarefas da identifi cação” (p. 105).
Ora, podemos ver a fl exibilidade como
um direito conquistado com a modernidade. Neste
sentido, há positividade em tomar a arte da vida como
arte de recriar-se permanentemente; de não estar
defi nido de “uma vez por todas”, de renovar sempre
nosso espírito jovem. O problema, responderia o
autor, é que a mudança permanente nos é imposta
como mais uma “necessidade de consumo”. E
ainda, argumentaria ele, a imposição da mudança
permanente gera a exclusão de muitos que não
podem gozar desta “liberdade” prometida (p. 105).
No terceiro e último capítulo (“A
Escolha”), ele se coloca a favor de uma sociologia
comprometida com uma ética que tenha o Outro
como referência, não como signo de vaidade
e reforço do próprio egocentrismo, mas como
reconhecimento que possibilite ao indivíduo sair
do “isolamento da existência” (p. 159). Retoma o
pensamento de Emmanuel Levinas, contra o que
interpreta em Nietzsche como o projeto de um
“Super Homem” comprometido apenas consigo
mesmo e com seu egoísmo.
Opondo as visões de Levinas e Nietzsche e
relacionando-as, respectivamente, a solidariedade,
responsabilidade e compartilhamento no primeiro;
e a aversão a toda forma de moral restritiva da
liberdade, no segundo, como sentidos na busca
da felicidade, ele adere à perspectiva do primeiro,
assumindo o parâmetro ético que adota para a
crítica dos valores do mundo contemporâneo.
A posição de Bauman nos faz lembrar a
discussão capitaneada pelo sociólogo português
Boaventura de Sousa Santos (2008) sobre as
mudanças nos paradigmas da ciência moderna, nas
quais o autor identifi ca uma tendência importante
de não mais separar valores cognitivos de valores
éticos e políticos. Esta, que é uma discussão sempre
em aberto nas ciências sociais, parece ser retomada
agora com os novos desafi os que a realidade nos
coloca: não é mais a questão marxista da luta
contra a opressão de uma classe social por outra,
mas a própria sobrevivência da espécie humana e
do planeta que está em jogo no debate atual sobre
o consumo. Neste sentido, a posição de Bauman é
parte de uma questão epistemológica mais ampla
que implica novas perspectivas sobre o papel da
ciência, e em particular, o papel das ciências sociais.
161
Notas
1 O autor publicou quase duas dezenas de livros no
Brasil, entre eles alguns dos mais citados são Modernidade
Líquida (2001), Comunidade: a Busca por
Segurança no Mundo Atual (2003), Amor Líquido
(2004), Identidade (2005), todos pela editora Jorge
Zahar.
2 A expressão modernidade líquida passou a ser utilizada
por Bauman em obras anteriores para evitar
confusão semântica com o que é chamado de “sociologia
da pós-modernidade”. Enquanto esta evitaria
qualquer tipo de julgamento de valor sobre “modos
de vida viciosos e virtuosos”, Bauman descreve de
modo profundamente crítico esta sociedade, por acreditar
que “o mundo pode ser diferente e melhor do
que é” (ver entrevista a Pallares-Burke, 2004, p. 9).
3 PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. “Entrevista
com Zigmunt Bauman”, Tempo Social, vol. 16,
nº 1, São Paulo, Junho de 2004, p. 5.
4 Idem, p. 5.
5 Em 2009, o presidente da França, Nicolas Sarcozy,
nomeou uma comissão de economistas e estatísticos,
liderados por dois vencedores do Prêmio Nobel
em Economia, Joseph Stiglitz e Amartya Sen, para
criar um novo indicador de desenvolvimento capaz
de “mudar nossas prioridades políticas e construir
sociedades mais felizes e ambientalmente mais justas”
(John Thornhill, Financial Times, reproduzido no
Valor Econômico, 30/01/2009). Na discussão em torno
de um novo índice capaz de medir a qualidade do
desenvolvimento, criou-se a idéia da sigla Felicidade
Interna Bruta (FIB), num jogo de palavras com o PIB.
6 RUSTIN, Michel. “What is wrong with happiness?”,
Soundings, verão de 2007, p. 67-84 (citado por Bauman,
p. 8-10).
7 LAYARD, Richard. Happiness: Lessons from a New
Science. Londres, Penguin, 2005.
8 A fonte de um dos depoimentos analisados por Bauman
é a primeira página de uma revista de moda britânica.
O autor interpreta exemplarmente o discurso
de uma adolescente reproduzido pela revista sobre
sua “loja favorita”.
A incerteza é o habitat natural da vida humana – ainda que a
esperança de escapar da incerteza seja o motor das atividades
humanas. Escapar da incerteza é um ingrediente fundamental,
mesmo que apenas tacitamente presumido, de todas e
quaisquer imagens compósitas da felicidade. É por isso que a
felicidade “genuína, adequada e total” sempre parece residir
em algum lugar à frente: tal como o horizont...e, que recua
quando se tente chegar mais perto dele.1
O desenvolvimento da ideologia de bem-estar pessoal, que exige de cada cidadão
“produtivo” o dever de desfrutar a sua vida da forma mais aprazível possível,
destoa, no entanto, da necessidade de o indivíduo inserido nesse mesmo
grupo social abrir mão do seu gozo material, caracteristicamente relaxante, em
prol da manutenção de um regime disciplinar cotidiano que muitas vezes lhe
gera intensos transtornos afetivos e psicofisiológicos. Para se manter um elevado
padrão de vida, o preço a ser pago é certamente doloroso: a contínua dedicação
ao mundo do trabalho, que rompe a esfera do ambiente estritamente profissional
e avança vorazmente sobre os sagrados espaços domiciliares. Entretanto,
apesar da situação estressante que a dedicação profissional impõe a cada um de
nós, esforçamo-nos para manter o funcionamento pleno desse sistema social, baseado
no esgotamento individual em prol do sucesso profissional, processo que
sustenta a organização civilizatória do mundo ocidental, cada vez menos sólido
em sua estrutura de segurança para os nossos projetos existenciais e aspirações
pessoais de enriquecimento e obtenção do sucesso almejado a cada instante.
1 BAUMAN, Zygmunt. A arte da vida, p. 31-32.
ESCRITOS IV
94
Imerso em uma práxis econômica que impede a fixidez da produtividade
humana, o indivíduo lida com a ameaça da flexibilidade profissional, a “dança
das cadeiras” da civilização capitalista. Para Richard Sennett, é bastante
natural que a flexibilidade cause ansiedade: as pessoas não sabem que riscos
serão compensados ou que caminhos seguir.2 Há sempre um afeto que espreita
a frágil sanidade de nossa sociedade pretensamente “bem-sucedida”: o
medo. “A paz de espírito, se a alcançarmos, será do tipo até segunda ordem”,
eis o argumento de Bauman.3 Ora, tememos perder o fruto de nossas conquistas
pessoais e nosso conforto material, seja pelas crises econômicas, seja
pela insegurança e instabilidade da vida urbana, e mesmo pelas catástrofes
naturais, que não fazem distinção entre os países ricos e os países em estado
de desenvolvimento.
A instabilidade econômica, não obstante os transtornos que ela causa em
nossa infraestrutura social e em nossa organização familiar, pode ser resolvida
com medidas políticas eficientes; os efeitos avassaladores da natureza podem
ser atenuados com ações eficientes de prevenção e socorro, capitaneadas pelas
forças governamentais; entretanto, a situação de violência se amplia cada vez
mais, não apenas nas grandes metrópoles, mas também em todos os espaços
ocupados por seres humanos, e é contra os transtornos dessa situação tensa que
nossa ordem social mais se vê obrigada a elaborar mecanismos de fuga psíquica
e defesa coercitiva. O alvo a ser atingido por essa reação protetora é a massa
humana, excluída da moral hedonista-consumista-líquida (que sustenta seus
parâmetros valorativos na ausência de compromissos interpessoais efetivamente
bilaterais). No auge da era da liquidez, o ser humano se despersonaliza e
adquire o estatuto de coisa a ser consumida, para, em seguida, ser descartada
por outrem, quando esta figura se cansa do uso continuado do objeto “homem”,
facilmente reposto por modelos similares. Na atual conjuntura das relações
interpessoais, ninguém é considerado insubstituível. Podemos dizer que essa
disposição valorativa é uma espécie de violência simbólica contra a dignidade
da condição humana, que é haver para cada pessoa uma singularidade própria,
intransferível. Esse processo de despersonalização do indivíduo, imerso no oce-
2 SENNETT, Richard. A corrosão do caráter, p. 9.
3 BAUMAN, Zygmunt. Comunidade, p, 19.
Zygmunt Bauman e administração da vida na era da liquidez
95
ano da indiferença existencial, é a característica por excelência da ideia de
“vida líquida” problematizada por Bauman, uma vida precária, em condições
de incerteza constante:
A vida na sociedade líquido-moderna é uma versão perniciosa da
dança das cadeiras, jogada para valer. O verdadeiro prêmio nessa
competição é a garantia (temporária) de ser excluído das fileiras dos
destruídos e evitar ser jogado no lixo.4
Esta é a “política” do medo cotidiano, que mantém as pessoas longe dos espaços
públicos e as afasta de uma sociabilidade mais sólida. Imerso nesse processo
rotativo de inclusão e exclusão instantâneas nas suas relações afetivas, a
“humanidade líquida” cada vez mais teme afirmar a potência unificadora do
amor, sentimento que, aliás, é dificilmente mensurável por critérios quantitativos
e cálculos estatísticos. É possível expressarmos adequadamente tal afeto
por alguém? Quando amamos, amamos a pessoa pelo que ela é ou pelo que ela
representa para nós? A “moralidade líquida” optou pela segunda possibilidade,
fazendo sempre da figura do outro um estranho que só adquire importância
quando se presta a satisfazer os nossos objetivos egoístas. Essa disposição afetiva
não é uma cruel novidade da era da técnica, mas certamente encontrou o seu
mais intenso nível de degradação existencial do homem em nossa terrível “Idade
de Ferro”, isto é, a “pós-modernidade líquida”. “A pessoa não se preocupa
com sua vida e felicidade, mas em tornar-se vendável”, diz Erich Fromm.5
No contexto da vivência líquida, amar se caracteriza sempre como um ato
arriscado, perigoso, pois não conhecemos de antemão o resultado final das nossas
experiências afetivas: só é possível nos preocuparmos com as consequências
que podemos prever, e somente delas que podemos lutar para escapar, como
diz Bauman.6 Uma vez que o outro é encarado apenas como uma peça que rapidamente
entra em processo de obsolescência, tranquilamente se usufrui o seu
4 BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida, p. 10.
5 FROMM, Erich. Análise do homem, p. 72.
6 BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido, p. 18.
ESCRITOS IV
96
potencial pessoal para que logo após se possa dispensá-lo, sem que haja quaisquer
crises de consciência da parte do indivíduo consumista de afetos e experiências,
típica máscara de Don Juan. A relação amorosa baseada na reciprocidade e no
respeito desvela o espírito de alteridade entre duas pessoas, que se compreendem
e se valorizam enquanto expressões subjetivas singulares. A necessidade mais
profunda do ser humano é superar seu estado de separação em relação ao outro,
deixando assim a prisão de sua solidão. Erich Fromm, manifestando grande convergência
com as questões problematizadas por Bauman, diz que “se eu amo o
outro, sinto-me um só com ele, mas com ele como ele é, e não na medida em que
preciso dele como objeto para meu uso”.7
Todavia, a magia “romântica” do amor se dissolveu na velocidade da vida
dinâmica da vertiginosa era da alta tecnologia. Por temermos a proximidade com
o outro, preferimos então abrir mão das relações amorosas concretas para adentramos
na dimensão das relações virtuais. Conforme os dizeres de Bauman, “é
preciso diluir as relações para que possamos consumi-las”.8 A grande vantagem
da prática amorosa mediatizada pela tela de computador é que evitamos assim a
intimidade indesejável com a presença do parceiro. Se porventura essa relação se
desgasta, basta que se aperte alguma tecla, para que assim se exclua para sempre
o contato dessa pessoa da lista. O mundo virtual, que deveria proporcionar a
aproximação entre os indivíduos, acaba então motivando ainda mais a ruptura
interpessoal, com o agravante de que o amor virtual se trata de uma ilusão afetiva,
ainda que supostamente prazerosa para aquele que dela se utiliza. Os relacionamentos
virtuais são assépticos e descartáveis, e não exigem o compromisso
efetivo de nenhuma das partes pretensamente envolvidas. Bauman define tanto
as “práticas amorosas” virtuais como os relacionamentos afetivos marcados por
um gosto pela efemeridade com o termo “relacionamento de bolso”, pois podemos
dispor deles quando necessário e depois tornar a guardá-los.9 De acordo com
essa perspectiva mega-hedonista, o mais conveniente é se relacionar com alguém
sem que haja afetivamente qualquer tipo de interação completa entre os parcei-
7 FROMM, Erich. A arte de amar, p, 35.
8 BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido, p. 10.
9 Ibid., p. 10.
Zygmunt Bauman e administração da vida na era da liquidez
97
ros, de modo que um acaba se tornando estranho ao outro, criando-se um jogo
de superficialidade pseudoamorosa. Conforme argumenta Anthony Giddens,
grande interlocutor intelectual de Bauman:
Para que um relacionamento tenha a probabilidade de durar, é necessário
o compromisso; mas qualquer um que se comprometa sem reservas
arrisca-se a sofrer muito no futuro, no caso do relacionamento
vir a se dissolver.10
Tememos amar plenamente alguém pelo fato de não querermos vir a ser
usados no máximo das nossas capacidades e sermos excluídos posteriormente,
quando a relação demonstrar os seus primeiros sinais de desgaste. Como destaca
Bauman, “desenvolvemos o crônico medo de sermos deixados para trás, de
sermos excluídos”.11 Não queremos ser violentados afetivamente pelo desgosto
da desilusão sentimental. Sennett, por sua vez, argumenta que nas relações íntimas,
o medo de se tornar dependente de outra pessoa é uma falta de confiança
nela; em vez disso, prevalecem nossas defesas.12 Há de se ressaltar que a própria
mídia é uma grande incentivadora dessa tendência dissolvente dos valores
elevados da cultura humana, pois continuamente ela despeja na massa social
a ideia de que está na moda o ato de se “ficar” com várias pessoas sem que se
mantenha compromisso duradouro com ninguém, uma vez que assim, segundo
os critérios dessa moral de consumo aplicada à dinâmica amorosa, amplia-se a
quantidade de experiências afetivas. Troca-se de parceiro como se troca de peça
de vestuário, e desse modo a lógica do descarte pessoal impera triunfante na
liquidez humana de nossa contemporaneidade. Mediante esse problema apresentado,
poderíamos indagar: quando alguém diz que “fica” com várias pessoas,
será que de fato essa pessoa “fica” com alguém? Aliás, será que podemos dizer
que a pessoa imersa na liquefação existencial da pós-modernidade é capaz de
ficar a sós algum momento consigo mesma, isto é, adquirir autoconsciência,
10 GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade, p. 152.
11 BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido, p. 29
12 SENNETT, Richard. A corrosão do caráter, p. 167.
ESCRITOS IV
98
interiorizar-se, compreender o seu próprio potencial criativo? A mídia, em vez
de motivar na coletividade social a busca efetiva por mais cultura, utiliza-se do
potencial consumidor do indivíduo para continuar exercendo o seu poder controlador
sobre as massas. Bauman salienta que
A autoridade das celebridades deriva da autoridade do número – ela
aumenta (e diminui) com o número de espectadores, ouvintes, compradores
de livros e discos. O número e diminuição de seu poder de
sedução (e, portanto, de conforto) estão sincronizados com os movimentos
de pêndulos dos índices de audiência da TV e da circulação de
tabloides.13
Talvez seja por isso que os grandes “heróis” da mídia se caracterizam geralmente
pela ausência de senso crítico acerca dos problemas reais que afetam
a organização social, pois a eles cabe apenas representar o papel de chamariz
de sedução do grande público, daí decorrendo a necessidade de se apresentarem
como corpos fortes, aparentemente saudáveis, pois essa beleza forjada nas clínicas
de estética se torna o estímulo para que a coletividade social copie tal padrão de
comportamento, consumindo as coisas cujas marcas publicitárias se identificam
com tais celebridades. Bauman questiona:
Os novos produtos despertam o entusiasmo dos consumidores porque
prometem fornecer aquilo de que eles precisam – mas como é que os
consumidores saberiam de que precisam e onde obtê-lo se não fossem
adequadamente informados?14
Muitas são as formulações possíveis para a erupção do medo humano, seja das
expressões mais sutis e veladas às mais ostensivas, diferença que, aliás, não atenua
o seu efeito subjugador do homem, pois o medo sempre motiva uma compreensão
obtusa da realidade; entretanto, o medo é mais assustador quando difuso, disperso,
indistinto, desvinculado, desancorado, flutuante, sem endereço nem moti-
13 BAUMAN, Zygmunt. Comunidade, p. 64.
14 BAUMAN, Zygmunt. Europa, p. 115
Zygmunt Bauman e administração da vida na era da liquidez
99
vo claros; quando nos assombra sem que haja uma explicação visível, quando a
ameaça que devemos temer pode ser vislumbrada em toda parte, mas em lugar
algum se pode vê-la, conforme salienta Bauman.15 Essa situação se manifesta nitidamente
no problema da violência nos grandes eixos urbanos, onde, por mais
que tenhamos noção de que há pontos geográficos problemáticos cuja frequência
convém ser evitada (ou quando muito frequentada com a máxima cautela
possível), descobrimos amargamente que em nenhum ponto da cidade estamos
de fato a salvo dos efeitos destrutivos da discórdia humana. Conforme Freud
argumenta em O futuro de uma ilusão:
Foi precisamente por causa dos perigos com que a natureza nos ameaça
que nos reunimos e criamos a civilização, a qual também, entre
outras coisas, se destina a tornar possível nossa vida comunal, pois a
principal missão, sua raison d’être [razão de ser] real, é nos defender
contra a natureza.16
Pois bem, esse paradigma do estabelecimento da ordem civilizada se modifica
na vida líquida da pós-modernidade. Criamos comunidades homogêneas em
padrões de comportamentos e valores como forma de nos contrapormos ao tipo
existencial do “Outro”, e sua desagradável diferença axiológica em relação aos
parâmetros que dogmaticamente consideramos eternos e sagrados; esta é, nessas
condições, a nova estrutura civilizatória que gerencia nossa existência no conturbado
mundo líquido. Tememos a proximidade do “Outro”, pois este, na visão
distorcida que dele fazemos, traz sempre consigo uma sombra ameaçadora,
capaz de desestabilizar o frágil suporte de nossa organização familiar, de nossa
atividade profissional e de nossa sociedade como um todo. Sendo o “Outro”
proclamado como o verdadeiro culpado por todo infortúnio da vida corriqueira,
tudo aquilo que é feito para minar a sua dita influência maléfica sobre nós se
torna válido. O agravante de tal situação é que muitas vezes colocamos o outro
em situações vexatórias ou em condições vitais degradantes, e ainda por cima
esperamos dele respostas positivas. Bauman argumenta que
15 BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido, p. 8
16 FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão, p. 26.
ESCRITOS IV
100
Os medos nos estimulam a assumir uma ação defensiva. Quando isso
ocorre, a ação defensiva confere proximidade e tangibilidade ao medo.
São nossas respostas que reclassificam as premonições sombrias como
realidade diária, dando corpo à palavra. O medo agora se estabeleceu,
saturando nossas rotinas cotidianas; praticamente não precisa de outros
estímulos exteriores, já que as ações que estimula, dia após dia,
fornecem toda a motivação e toda a energia de que ele necessita para se
reproduzir. Entre os mecanismos que buscam aproximar-se do modelo
de sonhos do moto-perpétuo, a autorreprodução do emaranhado do
medo e das ações inspiradas por esse sentimento está perto de reclamar
uma posição de destaque.17
Para que se lute contra os efeitos destrutivos da agressividade social, temos atualmente
ao nosso dispor uma série de recursos de segurança, elaborados em prol
da manutenção de nosso bem-estar pessoal e familiar diante das “ameaças” que
sofremos cotidianamente, e do caos urbano e da onda de violência que imperam
em nossa vertiginosa e líquida sociedade tecnocrática. Todavia, apesar dessa imensa
oferta de aparatos de proteção pessoal e dos mecanismos de afastamento e repressão
aos elementos considerados “socialmente indesejáveis”, será que de fato estamos
realmente seguros diante das ameaças que espreitam nossa frágil organização familiar
e profissional? Para Christopher Lasch, “em uma época carregada de problemas,
a vida cotidiana passa a ser um exercício de sobrevivência. Vive-se um dia
de cada vez”.18
O sentimento de medo diante da massa social marginalizada estimulou a
criação de sofisticados aparatos de segurança, mas apesar de utilizarmos todas
as combinações possíveis de instrumentos de proteção, não nos sentimos a salvo
dessas situações incômodas. Tanto pior, pois o medo, de tanto afligir a afetividade
do homem pós-moderno, torna-se um sentimento abstrato, não sabemos mais
efetivamente quem o motiva e por quê. Então, por um princípio de economia,
transferimos a responsabilidade moral desse medo para o “outro”, sempre ele, e
17 BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos, p. 15.
18 LASCH, Christopher. O mínimo eu, p. 9.
Zygmunt Bauman e administração da vida na era da liquidez
101
quem encarna a máscara da alteridade, nesse jogo dicotômico, é o grupo dos
deserdados socialmente.
Em decorrência da resolução dessa questão, cabe então que se faça outra: qual
o critério valorativo para determinarmos o teor e a intensidade corrosiva dos nossos
medos? Não seria nossa ansiedade consequente de uma tendenciosa incapacidade
de desenvolvermos autênticas relações interpessoais e dos contínuos preconceitos
cotidianos diante de todos aqueles que percebemos como incompatíveis
com nosso modo de ser? Toda pessoa que destoa de nosso padrão preestabelecido
de conduta e valores é prontamente estigmatizado como o “diferente”, portanto
como “desagradável” e potencial fonte de perigo para a manutenção de nosso
conforto existencial. “Diga-me quais são os seus valores e eu lhes direi qual é a sua
identidade”, comenta ironicamente Bauman.19 Afinal, a massificação da cultura
visa acima de tudo eliminar as supostas características discrepantes entre os indivíduos,
de modo que todos devem ser “iguais”, isto é, seguir os mesmos padrões
de comportamento, consumir as mesmas coisas e se guiar fielmente pelos ditames
da moda em voga. O fato de se ser diferente e destoar do padrão comportamental
estabelecido é sinal de “heresia” social. Em nome da manutenção da nossa conservadora
estabilidade social, é mais pertinente que toda a coletividade de indivíduos
viva massificada sob o imperativo do anonimato, ainda que isso resulte em prejuízo
para a inovação da cultura; aliás, a condição humana da era líquida pouco se
importa com o desenvolvimento de atividades culturais de genuíno refinamento
estético. A outra possibilidade seria se conceder maiores liberdades aos seres potencialmente
criativos, mas com o risco de haver convulsões sociais, caso acontecesse
de um membro dessa comunidade se singularizar de maneira excessiva em
relação aos demais carneiros de Panúrgio da era líquida. Na eventualidade dessa
pessoa conquistar sobre a massa amorfa da sociedade a admiração e a veneração,
essa circunstância tornaria tal indivíduo libertário um exemplo de dissidência da
ordem estabelecida, estimulando muitos outros a imitar o seu perfil singular.
A observação onisciente das atitudes individuais empreendida pelo organismo
social de controle preconiza acima de tudo retirar dos corpos humanos
a disposição para a ação e a reação diante dos eventos cotidianos, minando intrinsecamente
a sua força de contestação. Trata-se de um projeto de tornar os
19 BAUMAN, Zygmunt. Europa, p. 125.
ESCRITOS IV
102
ânimos individuais cada vez mais dóceis, com o objetivo de que a coletividade
social se torne submissa diante das determinações legais, o que demonstra um paralelo
com a domesticação de animais selvagens, os quais, mesmo que fisicamente
poderosos, acabaram por ser subjugados pelas habilidades técnicas dos homens.
Foucault considera que, ao enfraquecer as resistências individuais, o poder instituído
suprime radicalmente toda voz de dissensão diante das suas arbitrárias
manifestações de opressão.20
Analisando as infraestruturas das grandes metrópoles, podemos ver o contínuo
desenvolvimento de uma arquitetura do medo, modificando violentamente as disposições
estéticas dos paisagistas urbanos, que se encontraram então na urgência de
planejarem prédios e shoppings hiperseguros, como defesa contra as ameaças dos
“outros” – nesse contexto, as pessoas consideradas economicamente inviáveis e os
marginais sociais. Essa é a estética da segurança, que impõe uma lógica da vigilância
e da manutenção da devida distância aos tipos humanos estigmatizados como
“indesejáveis”. Em nossa sociedade líquida, “manter-se à distância parece a única
forma razoável de proceder”, diz Bauman.21 Uma vez que a realidade exterior se
apresenta sempre diante de nossa limitada percepção como ameaçadora e violenta,
os muros inexpugnáveis, as grades de proteção que delimitam nosso espaço vital e o
mundo de fora e as câmeras de monitoração cumprem o papel de garantir psiquicamente
nossa segurança pessoal, tornando-nos, todavia, dependentes desse paranoico
sistema de controle. Para Bauman,
Vigias eletrônicos, alarmes contra roubo e entradas e saídas estreitas
que se fecham sozinhas separam essa utopia miniaturizada do resto do
mundo, abandonado à sua confusão aparentemente inextirpável. Prodígios
de harmonia e perfeição são agora oferecidos como entretenimento
– para os passeios de domingo e o desfrute da família. Ninguém
supõe que sejam reais. A maioria, porém, concorda que melhoram a
realidade.22
20 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas, p. 103.
21 BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido, p. 93.
22 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência, p. 239.
Zygmunt Bauman e administração da vida na era da liquidez
103
O preço dessa vigilância ostensiva contínua talvez seja a perda da espontaneidade:
todos passam a viver como que participando da exibição ao vivo
de uma peça de teatro, onde os papéis não foram devidamente encenados; então,
para se evitar maiores vergonhas, cala-se o já mínimo discurso singular,
escondendo-se cada um sob as malhas do impessoal. Aproveitando as ideias de
Marshall McLuhan e sua difundida tese de que os meios de comunicação são
extensões do homem,23 podemos dizer que os incólumes muros de proteção que
construímos se tornaram também extensões hiperbólicas do corpo humano, na
sua sôfrega ânsia de se resguardar diante do tenebroso e agitado mundo exterior.
Afinal, a necessidade de nos enclausurarmos em espaços hermeticamente
fechados e vigiados continuamente, motiva, em contraparte, nosso próprio encarceramento
existencial e o medo por espaços livres, onde ficamos por alguns
instantes em contato com a realidade externa e, portanto, à mercê das ameaças
dos “estranhos”.
Bauman argumenta que “a liberdade sem segurança não tende a causar menos
infelicidade do que a segurança sem liberdade, e que necessitamos tanto de
liberdade como de segurança, e o sacrifício de qualquer um deles pode nos causar
sofrimentos”.24 Postulamos a impossibilidade de que nada pode nos afetar
enquanto estivermos dentro do espaço confortável de isolamento que criamos
em relação aos perigos do mundo externo, mas o preço disso é a redução de
nossa amplitude de movimentos, de modo que nos arriscamos a ver despontar
a infelicidade, a despeito da segurança material que obtivemos. “Contra o sofrimento
que pode advir dos relacionamentos humanos, a defesa mais imediata é
o isolamento voluntário, o manter-se à distância das outras pessoas”; “O homem
civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela
de segurança”, diz Freud em O mal-estar na civilização.25 A vida cotidiana
em nossa dinâmica pós-modernidade se resume em seguirmos um padrão mecânico
de ações, em que qualquer alteração da rotina pode gerar consequências
catastróficas para quem se aventura a arriscar algo de novo. “Não seremos hu-
23 MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem.
24 BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada, p. 58.
25 FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, p. 16, 72.
ESCRITOS IV
104
manos sem segurança ou sem liberdade; mas não podemos ter as duas ao mesmo
tempo e ambas na quantidade que quisermos”, conforme destaca Bauman.26 Nas
condições opressoras da era “líquida”, falar de “liberdade” na existência humana
é uma tarefa insólita. Analisando tal perspectiva de nossa era de decadência
existencial, Christopher Lasch afirma que “a liberdade passa ser a liberdade entre
a marca “x” e a marca “y”, entre amantes intercambiáveis, entre trabalhos intercambiáveis,
entre vizinhos intercambiáveis”.27
Como complemento aos aparatos técnicos de proteção física proporcionados
pela sociedade de controle, há que se lembrar que está ao dispor do “homem pós-
-moderno” o consumo contínuo de remédios tranquilizantes, para que o seu sono
e sua “sanidade psíquica” não sejam ameaçados pelo terror do pesadelo do “mundo
dos outros”. O medo público movimenta a economia social, seja na aquisição
dos produtos de segurança, seja no consumo dos remédios que proporcionam
momentamente uma sensação de alívio psíquico diante da realidade angustiante
do mundo exterior, pavor que retorna continuamente, para nosso desgosto. Bauman
considera que, na “idade líquida pós-moderna”,
O mundo é visto e sentido como menos convidativo. Parece um mundo
hostil, traiçoeiro, transpirando vingança, um mundo que agora precisa
ser transformado num lugar seguro para os ocidentais-feitos-turistas-
-e-comerciantes.28
Pensemos na hipótese de no futuro o sentimento de medo ser completamente
eliminado da condição humana. Qual seria a consequência imediata dessa revolução
existencial? Certamente um prejuízo imensurável para a nossa já combalida
economia, corroída pela grande crise financeira, afetando assim as indústrias automobilísticas,
que cada vez mais elaboram modelos de veículos protegidos contra
os ataques da violência social, as indústrias de aparatos técnicos de segurança,
que dependem do clima de insegurança pública para que os seus instrumentos de
26 BAUMAN, Zygmunt. Comunidade, p. 11.
27 LASCH, Christopher. O mínimo eu, p. 29.
28 BAUMAN, Zygmunt. Europa, p. 36.
Zygmunt Bauman e administração da vida na era da liquidez
105
proteção sejam adquiridos, assim como as indústrias farmacêuticas, que prosperam
financeiramente mediante a exploração psicofisiológica do medo humano
através do consumo dos remédios que eliminam temporariamente os inúmeros
desgostos da existência. Conforme destaca Bauman, “grande parte do capital
comercial pode ser – e é – acumulado a partir da insegurança e do medo”.29
Nessas condições, o medo se torna imprescindível para a manutenção da ordem
social, por mais extravagantemente absurda (e terrivelmente prejudicial para a
vida humana) que seja tal necessidade. Desse modo, será que de fato é conveniente
que o medo humano se extinga? Segundo Bauman,
No medo, a indústria do consumo encontra a mina de ouro sem fim
e autorrenovável que há muito procurava. Para a indústria do consumo,
o medo é, plena e verdadeiramente, um “recurso renovável”. O
medo se tornou o moto-perpétuo do mercado de consumo – e portanto
da economia mundial.30
Associada intimamente a esta questão, ainda há que se ressaltar que é por
meio da elevação do índice de medo na população de uma sociedade que o poder
estabelecido se outorga o direito de criar medidas de exceção contra as ameaças
que avançam de todas as direções. Esse dispositivo é elaborado não para que
se possa preservar o conforto material e existencial de um grupo beneficiado
imediatamente por tais ações coercitivas contra a grande massa humana
considerada econômica e existencialmente descartável, mas para em verdade
se aproveitar da fragilidade e da desmobilização política da população como
um todo. Quando esta é dominada pelo temor e pelas incertezas em relação
ao seu sombrio futuro, ela perde toda a sua força transformadora, tornandose
uma massa inerte, não obstante a quantidade numérica de seres humanos
que constituem esse grupo intrinsecamente anárquico, pois desprovido da
capacidade de mobilização social.
29 BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos, p. 18.
30 BAUMAN, Zygmunt. Europa, p. 96.
ESCRITOS IV
106
Bauman salienta que desde o começo o Estado moderno foi confrontado
com a tarefa assustadora de administrar o medo.31 O fator problemático é que o
poder normativo do Estado depende da passividade pública, que sucumbe perante
o medo de vir a perder a parca qualidade de vida duramente conquistada
e legitima suas ações arbitrárias mediante a ausência de uma genuína práxis
transformadora no povo. É por tal motivo que as sociedades tirânicas apelam
continuamente para a infiltração de elementos irracionais e supersticiosos na
ideologia dominante, como forma para conter de antemão a possibilidade de
surgir os ímpetos reivindicadores de uma dada população, quando esta se sente
prejudicada pelos abusos do poder despótico. Como destaca Erich Fromm, “o
poder, de um lado, e o medo, de outro, são sempre os esteios em que se apoia
a autoridade irracional”.32 O uso tendencioso do medo social pode auxiliar na
legitimação das “guerras preventivas”, situação percebida de forma excepcional
pela equipe do governo de George W. Bush, que soube manipular a opinião
publica norte-americana para estabelecer a destruição terrorista do território
iraquiano, utilizando-se, todavia, da retórica vazia de “defensor” da “Justiça”
e do “Bem”, projetando na imagem do “outro” o “Mal” em suas qualidades
mais radicais. Aliás, o discurso ideológico do medo projeta sempre no “outro” a
presença de características ignominiosas, quando na verdade é ele próprio que
é constituído por tais “qualidades”. Ataca-se a figura do “outro” pelo medo que
a sua presença simbólica provoca no modelo existencial sustentado pela fragilidade
psíquica das massas. Aproveitemos algumas contribuições de Chomsky
para o tema abordado: “Os monstros continuam a surgir, um após o outro.
Você amedronta, aterroriza e intimida a população para que ela se encolha de
medo e fique acovardada demais para sair do lugar”.33
Os meios de comunicação – especialmente aqueles que se aproveitam dos mecanismos
sensacionalistas de exposição das mazelas sociais – também seriam afetados
pela extinção do medo, pois não haveria mais a possibilidade de explorarem
a elevação dos níveis de audiência por meio dos estímulos estéticos fortes propor-
31 BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos, p, 65.
32 FROMM, Erich. Análise do homem, p. 22.
33 CHOMSKY, Noam. O controle da mídia: os espetaculares efeitos da propaganda, p. 39.
Zygmunt Bauman e administração da vida na era da liquidez
107
cionados pela exibição de cenas violentas, que exercem sobre a afetividade humana
um impacto ambíguo: ao mesmo tempo que geram a repugnância, geram
também o desejo de contemplação do horror. A sociedade de informação, na era
pós-moderna, continua sectária da “concupiscência do olhar”. Da mesma forma
que um desastre desperta a curiosidade de ver todos os detalhes possíveis no
indivíduo que se encontra próximo ao local desse acontecimento fatídico, assim
também se dá quando os desastres são transpostos para as imagens da televisão.
O máximo de prazer estético que pode ser fornecido ao telespectador por uma
rede de TV é a exibição ao vivo da morte de um indivíduo ou, em circunstâncias
mais atenuadas, dos conflitos entre forças policiais e criminosos, ações de assaltantes
ou, ainda, gravações ocultas de repórteres expondo as vendas de drogas
por traficantes. Em todas essas circunstâncias há no telespectador a erupção da
repugnância, do horror e da lamentação, mas também um gozo secreto de prazer,
pela oportunidade que lhe é concedida de ver, sentado confortavelmente na
sua poltrona, a destruição humana de múltiplas maneiras. Conforme argumenta
Christopher Lasch, “os jornais diários e os noticiários de televisão relatam
acontecimentos mais grotescos e bizarros que os sonhos mais extravagantes de
um escritor”.34 O resultado existencial dessa soma de imagens, todavia, não tarda
a aparecer, e é o medo, decorrente das impressões violentas motivadas pelo
constante ato de apreciação estética das mazelas sociais como espetáculo.
O indivíduo dominado pelo medo das ameaças sociais, protegido pela solidez
dos muros que separam o mundo “bárbaro” de sua vida privada, acredita talvez
que sua existência seja de fato real. Será mesmo? Ora, o seu estreito mundo
fechado, criado como uma fuga confortável perante o mal-estar da vida
urbana, na verdade é uma ilusão agradável gerada pela necessidade burguêslíquida
do homem de se considerar efetivamente seguro na sua ilha simbólica
rodeada de mazelas, ilusão similar a de uma “Terra do Nunca”, um conto de
fadas pós-moderno. A insurgência do medo exige que cada um faça de seu lar
um bunker equipado com todos os recursos necessários para a manutenção da
sobrevivência, para que se evite a menor exposição possível em áreas públicas,
repletas de pessoas “estranhas”. De acordo com Bauman,
34 LASCH, Christopher. O mínimo eu, p. 117.
ESCRITOS IV
108
O medo do desconhecido – no qual, mesmo que subliminarmente, estamos
envolvidos – busca desesperadamente algum tipo de alívio. As
ânsias acumuladas tendem a se descarregar sobre aquela categoria de
“forasteiros” escolhidos para encarnar a “estrangeiridade”, a não-familiaridade,
a opacidade do ambiente em que se vive e a indeterminação
dos perigos e das ameaças.35
A exaltação contínua da vida condominial decorre da ameaça social das classes
com maior poder aquisitivo no sentido de se libertar definitivamente dos
constantes problemas urbanos, de modo que todas as necessidades básicas da vida
cotidiana desse grupo social – de evidente índole asséptica – encontram as suas
instituições nesses aglomerados de identidades uniformes. Escolas, academias de
ginástica, padarias, hospitais, bancos e até mesmo igrejas devem estar situados
nesses locais partidários de sintonias axiológicas: a lógica do “igual”. Aliás, há
que se destacar que já existem faculdades (particulares) exercendo suas atividades
pedagógicas em condomínios para os seus eleitos habitantes. Seria importante
sabermos se existe alguma diferença curricular entre os cursos de graduação das
faculdades do “mundo exterior” e as faculdades do mundo condominial. Certamente
o cúmulo do disparate será existir um dia uma universidade pública
em funcionamento dentro de um condomínio pós-moderno. Obviamente, aqui
não se trata de criticar a vida comunitária típica dos condomínios de segurança
máxima, mas de se colocar em questão o desejo sôfrego de se obter o isolamento
asséptico em relação aos problemas da vida social dos núcleos urbanos, reduzindo
assim a amplitude de compreensão do “real” de todos aqueles que habitam
tais espaços, que passam a acreditar simbolicamente que o limitado território
ocupado pelo condomínio é uma cidade à parte em relação ao mundo exterior,
tão próximo fisicamente, tão distante social e existencialmente. Bauman destaca
que é nossa “obsessão com segurança”, assim como nossa intolerância a qualquer
brecha – ainda que mínima – no seu fornecimento, que se torna a fonte mais
prolífica, autorrenovável e provavelmente inexaurível de nossa ansiedade e do
nosso medo.36
35 BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade, p. 36-37.
36 BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido, p. 169.
Zygmunt Bauman e administração da vida na era da liquidez
109
“Os limites do mundo são os limites do meu condomínio”, esse deveria
ser o lema adotado por esse grupo seleto de habitantes do Éden moderno-
-líquido. Talvez uma situação também absurda, mas possível de vir a acontecer
no “futuro líquido”, seria um indivíduo nascer, amadurecer e morrer
no espaço condominial sem conhecer a realidade externa, sendo sepultado
no torrão natal que tanto amou ao longo de sua vida líquida (de máximo
controle e mínima emoção), localizado nos fundos desse território. Segundo
Bauman,
Para pessoas inseguras, desorientadas, confusas e assustadas pela instabilidade
e transitoriedade do mundo que habitam, a “comunidade”
parece uma alternativa tentadora. É um sonho agradável, uma visão
do paraíso: de tranquilidade, segurança física e paz espiritual.37
Podemos afirmar que o elemento mais paradoxal desse mecanismo de
controle permanente das aspirações individuais, conforme efetivado pelos
aparelhos normativos da sociedade de vigilância, reside na ideia de que o
bem-estar que o indivíduo tanto deseja obter somente pode ser conquistado
através da supressão de sua liberdade pessoal, pois é justamente a excessiva
flexibilidade das suas ações que motivam as circunstâncias que prejudicam
a ordem da frágil estabilidade social. Bauman destaca que “o mal-estar da
pós-modernidade nasce da liberdade, em vez da opressão”.38 Essa liberdade,
todavia, se revela como um grande engodo, pois em troca da segurança prometida
pela ideologia do conforto material, a vida em comunidade parece
nos privar dessa ansiada liberdade, sinal nítido da degeneração do sentimento
da esquálida paz e tranquilidade da nossa organização civilizatória.
Lasch argumenta que
A acusação máxima contra a civilização industrial não está apenas
em que ela tenha devastado a natureza, mas que tenha minado a
nossa confiança na continuidade e permanência do mundo feito
37 BAUMAN, Zygmunt. Identidade, p. 68.
38 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade, p. 156.
ESCRITOS IV
110
pelo homem ao cercar-nos com bens disponíveis e fantásticas imagens
de mercadorias.39
Ao trazer à tona os contundentes sintomas de empobrecimento e dissolução
das relações pessoais na nossa experiência da liquidez da “mal (dita)” pós-modernidade,
Bauman nos faz a seguinte pergunta retórica:
Você quer segurança? Abra mão de sua liberdade, ou pelo menos de
boa parte dela. Você quer poder confiar? Não confie em ninguém de
fora da comunidade. Você quer entendimento mútuo? Não fale com
estranhos, nem fale línguas estrangeiras. Você quer essa sensação aconchegante
do lar? Ponha alarmes em sua porta e câmeras de TV no acesso.
Você quer proteção? Não acolha estranhos e abstenha-se de agir de
modo esquisito ou de ter pensamentos bizarros. Você quer aconchego?
Não chegue perto da janela, e jamais a abra. O nó da questão é que se
você seguir esse conselho e mantiver as janelas fechadas, o ambiente
logo ficará abafado e, no limite, opressivo.40
Ser livre pressupõe uma responsabilidade difícil de suportar perante a líquida
vida social, cada vez mais diluída na ausência de uma autêntica compreensão e
valorização da figura do “Outro”, que é sempre imputado como o “estranho”, jamais
um potencial indivíduo capaz de interação. Comunidade significa “mesmice”,
a ausência do “outro”, especialmente um “outro” que teima em ser diferente,
e precisamente por isso é capaz de provocar surpresas desagradáveis e prejuízos.
As parcerias não se fortalecem e os medos não se dissipam. Segundo Bauman,
O tipo de incerteza, de obscuros medos e premonições em relação
ao futuro que assombram os homens e mulheres no ambiente fluido
e em perpétua transformação, em que as regras do jogo mudam no
39 LASCH, Christopher. O mínimo eu, p. 237.
40 BAUMAN, Zygmunt. Comunidade, p. 10.
Zygmunt Bauman e administração da vida na era da liquidez
111
meio da partida sem qualquer aviso ou padrão legível, não une os
sofredores: antes os divide e os separa.41
Nunca a humanidade conseguiu se livrar por grande espaço de tempo do
poder opressor desse ameaçador inimigo que é o medo, encarnado em diversas
figurações sociais e existenciais, e certamente nunca conseguiremos nos libertar
plenamente dele, situação que seria de fato uma utopia, e não uma análise
concreta da dinâmica fluida do mundo real, marcado pelas suas inúmeras
contingências e contradições. Todavia, podemos tornar a nossa vida, ainda que
espreitada pelo medo, mais saudável e afirmativa, se aceitarmos a finitude da
condição humana e nos esforçarmos pela instauração de uma prática ética que
valorize de fato a interatividade entre as pessoas, interatividade essa que é cada
vez mais liquefeita nos nossos ansiosos tempos pós-modernos. Conforme argumenta
Bauman,
O direito do Outro à sua estranheza é a única maneira pela qual
meu próprio direito pode expressar-se, estabelecer-se e defender-se.
É pelo direito do Outro que meu direito se coloca. “Ser responsável
pelo outro” e “ser responsável por si mesmo” vêm a ser a mesma
coisa.42
O discurso de Bauman apresenta de modo extremamente evidente a crueza
da “vida líquida”, mas ao mesmo tempo uma via de superação da crise de valores
que consome as qualidades da humanidade contemporânea. A sua consistência
argumentativa se manifesta justamente na possibilidade de analisarmos
o rumo existencial que escolhemos seguir na dita pós-modernidade, e a capacidade
de desenvolvermos uma orientação de vida mais sólida e substanciosa,
mediante a valorização das diferenças existenciais com as quais interagimos em
nossa existência cotidiana.
41 Ibid., p. 48.
42 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência, p. 249.
ESCRITOS IV
112
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esperança de escapar da incerteza seja o motor das atividades
humanas. Escapar da incerteza é um ingrediente fundamental,
mesmo que apenas tacitamente presumido, de todas e
quaisquer imagens compósitas da felicidade. É por isso que a
felicidade “genuína, adequada e total” sempre parece residir
em algum lugar à frente: tal como o horizont...e, que recua
quando se tente chegar mais perto dele.1
O desenvolvimento da ideologia de bem-estar pessoal, que exige de cada cidadão
“produtivo” o dever de desfrutar a sua vida da forma mais aprazível possível,
destoa, no entanto, da necessidade de o indivíduo inserido nesse mesmo
grupo social abrir mão do seu gozo material, caracteristicamente relaxante, em
prol da manutenção de um regime disciplinar cotidiano que muitas vezes lhe
gera intensos transtornos afetivos e psicofisiológicos. Para se manter um elevado
padrão de vida, o preço a ser pago é certamente doloroso: a contínua dedicação
ao mundo do trabalho, que rompe a esfera do ambiente estritamente profissional
e avança vorazmente sobre os sagrados espaços domiciliares. Entretanto,
apesar da situação estressante que a dedicação profissional impõe a cada um de
nós, esforçamo-nos para manter o funcionamento pleno desse sistema social, baseado
no esgotamento individual em prol do sucesso profissional, processo que
sustenta a organização civilizatória do mundo ocidental, cada vez menos sólido
em sua estrutura de segurança para os nossos projetos existenciais e aspirações
pessoais de enriquecimento e obtenção do sucesso almejado a cada instante.
1 BAUMAN, Zygmunt. A arte da vida, p. 31-32.
ESCRITOS IV
94
Imerso em uma práxis econômica que impede a fixidez da produtividade
humana, o indivíduo lida com a ameaça da flexibilidade profissional, a “dança
das cadeiras” da civilização capitalista. Para Richard Sennett, é bastante
natural que a flexibilidade cause ansiedade: as pessoas não sabem que riscos
serão compensados ou que caminhos seguir.2 Há sempre um afeto que espreita
a frágil sanidade de nossa sociedade pretensamente “bem-sucedida”: o
medo. “A paz de espírito, se a alcançarmos, será do tipo até segunda ordem”,
eis o argumento de Bauman.3 Ora, tememos perder o fruto de nossas conquistas
pessoais e nosso conforto material, seja pelas crises econômicas, seja
pela insegurança e instabilidade da vida urbana, e mesmo pelas catástrofes
naturais, que não fazem distinção entre os países ricos e os países em estado
de desenvolvimento.
A instabilidade econômica, não obstante os transtornos que ela causa em
nossa infraestrutura social e em nossa organização familiar, pode ser resolvida
com medidas políticas eficientes; os efeitos avassaladores da natureza podem
ser atenuados com ações eficientes de prevenção e socorro, capitaneadas pelas
forças governamentais; entretanto, a situação de violência se amplia cada vez
mais, não apenas nas grandes metrópoles, mas também em todos os espaços
ocupados por seres humanos, e é contra os transtornos dessa situação tensa que
nossa ordem social mais se vê obrigada a elaborar mecanismos de fuga psíquica
e defesa coercitiva. O alvo a ser atingido por essa reação protetora é a massa
humana, excluída da moral hedonista-consumista-líquida (que sustenta seus
parâmetros valorativos na ausência de compromissos interpessoais efetivamente
bilaterais). No auge da era da liquidez, o ser humano se despersonaliza e
adquire o estatuto de coisa a ser consumida, para, em seguida, ser descartada
por outrem, quando esta figura se cansa do uso continuado do objeto “homem”,
facilmente reposto por modelos similares. Na atual conjuntura das relações
interpessoais, ninguém é considerado insubstituível. Podemos dizer que essa
disposição valorativa é uma espécie de violência simbólica contra a dignidade
da condição humana, que é haver para cada pessoa uma singularidade própria,
intransferível. Esse processo de despersonalização do indivíduo, imerso no oce-
2 SENNETT, Richard. A corrosão do caráter, p. 9.
3 BAUMAN, Zygmunt. Comunidade, p, 19.
Zygmunt Bauman e administração da vida na era da liquidez
95
ano da indiferença existencial, é a característica por excelência da ideia de
“vida líquida” problematizada por Bauman, uma vida precária, em condições
de incerteza constante:
A vida na sociedade líquido-moderna é uma versão perniciosa da
dança das cadeiras, jogada para valer. O verdadeiro prêmio nessa
competição é a garantia (temporária) de ser excluído das fileiras dos
destruídos e evitar ser jogado no lixo.4
Esta é a “política” do medo cotidiano, que mantém as pessoas longe dos espaços
públicos e as afasta de uma sociabilidade mais sólida. Imerso nesse processo
rotativo de inclusão e exclusão instantâneas nas suas relações afetivas, a
“humanidade líquida” cada vez mais teme afirmar a potência unificadora do
amor, sentimento que, aliás, é dificilmente mensurável por critérios quantitativos
e cálculos estatísticos. É possível expressarmos adequadamente tal afeto
por alguém? Quando amamos, amamos a pessoa pelo que ela é ou pelo que ela
representa para nós? A “moralidade líquida” optou pela segunda possibilidade,
fazendo sempre da figura do outro um estranho que só adquire importância
quando se presta a satisfazer os nossos objetivos egoístas. Essa disposição afetiva
não é uma cruel novidade da era da técnica, mas certamente encontrou o seu
mais intenso nível de degradação existencial do homem em nossa terrível “Idade
de Ferro”, isto é, a “pós-modernidade líquida”. “A pessoa não se preocupa
com sua vida e felicidade, mas em tornar-se vendável”, diz Erich Fromm.5
No contexto da vivência líquida, amar se caracteriza sempre como um ato
arriscado, perigoso, pois não conhecemos de antemão o resultado final das nossas
experiências afetivas: só é possível nos preocuparmos com as consequências
que podemos prever, e somente delas que podemos lutar para escapar, como
diz Bauman.6 Uma vez que o outro é encarado apenas como uma peça que rapidamente
entra em processo de obsolescência, tranquilamente se usufrui o seu
4 BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida, p. 10.
5 FROMM, Erich. Análise do homem, p. 72.
6 BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido, p. 18.
ESCRITOS IV
96
potencial pessoal para que logo após se possa dispensá-lo, sem que haja quaisquer
crises de consciência da parte do indivíduo consumista de afetos e experiências,
típica máscara de Don Juan. A relação amorosa baseada na reciprocidade e no
respeito desvela o espírito de alteridade entre duas pessoas, que se compreendem
e se valorizam enquanto expressões subjetivas singulares. A necessidade mais
profunda do ser humano é superar seu estado de separação em relação ao outro,
deixando assim a prisão de sua solidão. Erich Fromm, manifestando grande convergência
com as questões problematizadas por Bauman, diz que “se eu amo o
outro, sinto-me um só com ele, mas com ele como ele é, e não na medida em que
preciso dele como objeto para meu uso”.7
Todavia, a magia “romântica” do amor se dissolveu na velocidade da vida
dinâmica da vertiginosa era da alta tecnologia. Por temermos a proximidade com
o outro, preferimos então abrir mão das relações amorosas concretas para adentramos
na dimensão das relações virtuais. Conforme os dizeres de Bauman, “é
preciso diluir as relações para que possamos consumi-las”.8 A grande vantagem
da prática amorosa mediatizada pela tela de computador é que evitamos assim a
intimidade indesejável com a presença do parceiro. Se porventura essa relação se
desgasta, basta que se aperte alguma tecla, para que assim se exclua para sempre
o contato dessa pessoa da lista. O mundo virtual, que deveria proporcionar a
aproximação entre os indivíduos, acaba então motivando ainda mais a ruptura
interpessoal, com o agravante de que o amor virtual se trata de uma ilusão afetiva,
ainda que supostamente prazerosa para aquele que dela se utiliza. Os relacionamentos
virtuais são assépticos e descartáveis, e não exigem o compromisso
efetivo de nenhuma das partes pretensamente envolvidas. Bauman define tanto
as “práticas amorosas” virtuais como os relacionamentos afetivos marcados por
um gosto pela efemeridade com o termo “relacionamento de bolso”, pois podemos
dispor deles quando necessário e depois tornar a guardá-los.9 De acordo com
essa perspectiva mega-hedonista, o mais conveniente é se relacionar com alguém
sem que haja afetivamente qualquer tipo de interação completa entre os parcei-
7 FROMM, Erich. A arte de amar, p, 35.
8 BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido, p. 10.
9 Ibid., p. 10.
Zygmunt Bauman e administração da vida na era da liquidez
97
ros, de modo que um acaba se tornando estranho ao outro, criando-se um jogo
de superficialidade pseudoamorosa. Conforme argumenta Anthony Giddens,
grande interlocutor intelectual de Bauman:
Para que um relacionamento tenha a probabilidade de durar, é necessário
o compromisso; mas qualquer um que se comprometa sem reservas
arrisca-se a sofrer muito no futuro, no caso do relacionamento
vir a se dissolver.10
Tememos amar plenamente alguém pelo fato de não querermos vir a ser
usados no máximo das nossas capacidades e sermos excluídos posteriormente,
quando a relação demonstrar os seus primeiros sinais de desgaste. Como destaca
Bauman, “desenvolvemos o crônico medo de sermos deixados para trás, de
sermos excluídos”.11 Não queremos ser violentados afetivamente pelo desgosto
da desilusão sentimental. Sennett, por sua vez, argumenta que nas relações íntimas,
o medo de se tornar dependente de outra pessoa é uma falta de confiança
nela; em vez disso, prevalecem nossas defesas.12 Há de se ressaltar que a própria
mídia é uma grande incentivadora dessa tendência dissolvente dos valores
elevados da cultura humana, pois continuamente ela despeja na massa social
a ideia de que está na moda o ato de se “ficar” com várias pessoas sem que se
mantenha compromisso duradouro com ninguém, uma vez que assim, segundo
os critérios dessa moral de consumo aplicada à dinâmica amorosa, amplia-se a
quantidade de experiências afetivas. Troca-se de parceiro como se troca de peça
de vestuário, e desse modo a lógica do descarte pessoal impera triunfante na
liquidez humana de nossa contemporaneidade. Mediante esse problema apresentado,
poderíamos indagar: quando alguém diz que “fica” com várias pessoas,
será que de fato essa pessoa “fica” com alguém? Aliás, será que podemos dizer
que a pessoa imersa na liquefação existencial da pós-modernidade é capaz de
ficar a sós algum momento consigo mesma, isto é, adquirir autoconsciência,
10 GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade, p. 152.
11 BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido, p. 29
12 SENNETT, Richard. A corrosão do caráter, p. 167.
ESCRITOS IV
98
interiorizar-se, compreender o seu próprio potencial criativo? A mídia, em vez
de motivar na coletividade social a busca efetiva por mais cultura, utiliza-se do
potencial consumidor do indivíduo para continuar exercendo o seu poder controlador
sobre as massas. Bauman salienta que
A autoridade das celebridades deriva da autoridade do número – ela
aumenta (e diminui) com o número de espectadores, ouvintes, compradores
de livros e discos. O número e diminuição de seu poder de
sedução (e, portanto, de conforto) estão sincronizados com os movimentos
de pêndulos dos índices de audiência da TV e da circulação de
tabloides.13
Talvez seja por isso que os grandes “heróis” da mídia se caracterizam geralmente
pela ausência de senso crítico acerca dos problemas reais que afetam
a organização social, pois a eles cabe apenas representar o papel de chamariz
de sedução do grande público, daí decorrendo a necessidade de se apresentarem
como corpos fortes, aparentemente saudáveis, pois essa beleza forjada nas clínicas
de estética se torna o estímulo para que a coletividade social copie tal padrão de
comportamento, consumindo as coisas cujas marcas publicitárias se identificam
com tais celebridades. Bauman questiona:
Os novos produtos despertam o entusiasmo dos consumidores porque
prometem fornecer aquilo de que eles precisam – mas como é que os
consumidores saberiam de que precisam e onde obtê-lo se não fossem
adequadamente informados?14
Muitas são as formulações possíveis para a erupção do medo humano, seja das
expressões mais sutis e veladas às mais ostensivas, diferença que, aliás, não atenua
o seu efeito subjugador do homem, pois o medo sempre motiva uma compreensão
obtusa da realidade; entretanto, o medo é mais assustador quando difuso, disperso,
indistinto, desvinculado, desancorado, flutuante, sem endereço nem moti-
13 BAUMAN, Zygmunt. Comunidade, p. 64.
14 BAUMAN, Zygmunt. Europa, p. 115
Zygmunt Bauman e administração da vida na era da liquidez
99
vo claros; quando nos assombra sem que haja uma explicação visível, quando a
ameaça que devemos temer pode ser vislumbrada em toda parte, mas em lugar
algum se pode vê-la, conforme salienta Bauman.15 Essa situação se manifesta nitidamente
no problema da violência nos grandes eixos urbanos, onde, por mais
que tenhamos noção de que há pontos geográficos problemáticos cuja frequência
convém ser evitada (ou quando muito frequentada com a máxima cautela
possível), descobrimos amargamente que em nenhum ponto da cidade estamos
de fato a salvo dos efeitos destrutivos da discórdia humana. Conforme Freud
argumenta em O futuro de uma ilusão:
Foi precisamente por causa dos perigos com que a natureza nos ameaça
que nos reunimos e criamos a civilização, a qual também, entre
outras coisas, se destina a tornar possível nossa vida comunal, pois a
principal missão, sua raison d’être [razão de ser] real, é nos defender
contra a natureza.16
Pois bem, esse paradigma do estabelecimento da ordem civilizada se modifica
na vida líquida da pós-modernidade. Criamos comunidades homogêneas em
padrões de comportamentos e valores como forma de nos contrapormos ao tipo
existencial do “Outro”, e sua desagradável diferença axiológica em relação aos
parâmetros que dogmaticamente consideramos eternos e sagrados; esta é, nessas
condições, a nova estrutura civilizatória que gerencia nossa existência no conturbado
mundo líquido. Tememos a proximidade do “Outro”, pois este, na visão
distorcida que dele fazemos, traz sempre consigo uma sombra ameaçadora,
capaz de desestabilizar o frágil suporte de nossa organização familiar, de nossa
atividade profissional e de nossa sociedade como um todo. Sendo o “Outro”
proclamado como o verdadeiro culpado por todo infortúnio da vida corriqueira,
tudo aquilo que é feito para minar a sua dita influência maléfica sobre nós se
torna válido. O agravante de tal situação é que muitas vezes colocamos o outro
em situações vexatórias ou em condições vitais degradantes, e ainda por cima
esperamos dele respostas positivas. Bauman argumenta que
15 BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido, p. 8
16 FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão, p. 26.
ESCRITOS IV
100
Os medos nos estimulam a assumir uma ação defensiva. Quando isso
ocorre, a ação defensiva confere proximidade e tangibilidade ao medo.
São nossas respostas que reclassificam as premonições sombrias como
realidade diária, dando corpo à palavra. O medo agora se estabeleceu,
saturando nossas rotinas cotidianas; praticamente não precisa de outros
estímulos exteriores, já que as ações que estimula, dia após dia,
fornecem toda a motivação e toda a energia de que ele necessita para se
reproduzir. Entre os mecanismos que buscam aproximar-se do modelo
de sonhos do moto-perpétuo, a autorreprodução do emaranhado do
medo e das ações inspiradas por esse sentimento está perto de reclamar
uma posição de destaque.17
Para que se lute contra os efeitos destrutivos da agressividade social, temos atualmente
ao nosso dispor uma série de recursos de segurança, elaborados em prol
da manutenção de nosso bem-estar pessoal e familiar diante das “ameaças” que
sofremos cotidianamente, e do caos urbano e da onda de violência que imperam
em nossa vertiginosa e líquida sociedade tecnocrática. Todavia, apesar dessa imensa
oferta de aparatos de proteção pessoal e dos mecanismos de afastamento e repressão
aos elementos considerados “socialmente indesejáveis”, será que de fato estamos
realmente seguros diante das ameaças que espreitam nossa frágil organização familiar
e profissional? Para Christopher Lasch, “em uma época carregada de problemas,
a vida cotidiana passa a ser um exercício de sobrevivência. Vive-se um dia
de cada vez”.18
O sentimento de medo diante da massa social marginalizada estimulou a
criação de sofisticados aparatos de segurança, mas apesar de utilizarmos todas
as combinações possíveis de instrumentos de proteção, não nos sentimos a salvo
dessas situações incômodas. Tanto pior, pois o medo, de tanto afligir a afetividade
do homem pós-moderno, torna-se um sentimento abstrato, não sabemos mais
efetivamente quem o motiva e por quê. Então, por um princípio de economia,
transferimos a responsabilidade moral desse medo para o “outro”, sempre ele, e
17 BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos, p. 15.
18 LASCH, Christopher. O mínimo eu, p. 9.
Zygmunt Bauman e administração da vida na era da liquidez
101
quem encarna a máscara da alteridade, nesse jogo dicotômico, é o grupo dos
deserdados socialmente.
Em decorrência da resolução dessa questão, cabe então que se faça outra: qual
o critério valorativo para determinarmos o teor e a intensidade corrosiva dos nossos
medos? Não seria nossa ansiedade consequente de uma tendenciosa incapacidade
de desenvolvermos autênticas relações interpessoais e dos contínuos preconceitos
cotidianos diante de todos aqueles que percebemos como incompatíveis
com nosso modo de ser? Toda pessoa que destoa de nosso padrão preestabelecido
de conduta e valores é prontamente estigmatizado como o “diferente”, portanto
como “desagradável” e potencial fonte de perigo para a manutenção de nosso
conforto existencial. “Diga-me quais são os seus valores e eu lhes direi qual é a sua
identidade”, comenta ironicamente Bauman.19 Afinal, a massificação da cultura
visa acima de tudo eliminar as supostas características discrepantes entre os indivíduos,
de modo que todos devem ser “iguais”, isto é, seguir os mesmos padrões
de comportamento, consumir as mesmas coisas e se guiar fielmente pelos ditames
da moda em voga. O fato de se ser diferente e destoar do padrão comportamental
estabelecido é sinal de “heresia” social. Em nome da manutenção da nossa conservadora
estabilidade social, é mais pertinente que toda a coletividade de indivíduos
viva massificada sob o imperativo do anonimato, ainda que isso resulte em prejuízo
para a inovação da cultura; aliás, a condição humana da era líquida pouco se
importa com o desenvolvimento de atividades culturais de genuíno refinamento
estético. A outra possibilidade seria se conceder maiores liberdades aos seres potencialmente
criativos, mas com o risco de haver convulsões sociais, caso acontecesse
de um membro dessa comunidade se singularizar de maneira excessiva em
relação aos demais carneiros de Panúrgio da era líquida. Na eventualidade dessa
pessoa conquistar sobre a massa amorfa da sociedade a admiração e a veneração,
essa circunstância tornaria tal indivíduo libertário um exemplo de dissidência da
ordem estabelecida, estimulando muitos outros a imitar o seu perfil singular.
A observação onisciente das atitudes individuais empreendida pelo organismo
social de controle preconiza acima de tudo retirar dos corpos humanos
a disposição para a ação e a reação diante dos eventos cotidianos, minando intrinsecamente
a sua força de contestação. Trata-se de um projeto de tornar os
19 BAUMAN, Zygmunt. Europa, p. 125.
ESCRITOS IV
102
ânimos individuais cada vez mais dóceis, com o objetivo de que a coletividade
social se torne submissa diante das determinações legais, o que demonstra um paralelo
com a domesticação de animais selvagens, os quais, mesmo que fisicamente
poderosos, acabaram por ser subjugados pelas habilidades técnicas dos homens.
Foucault considera que, ao enfraquecer as resistências individuais, o poder instituído
suprime radicalmente toda voz de dissensão diante das suas arbitrárias
manifestações de opressão.20
Analisando as infraestruturas das grandes metrópoles, podemos ver o contínuo
desenvolvimento de uma arquitetura do medo, modificando violentamente as disposições
estéticas dos paisagistas urbanos, que se encontraram então na urgência de
planejarem prédios e shoppings hiperseguros, como defesa contra as ameaças dos
“outros” – nesse contexto, as pessoas consideradas economicamente inviáveis e os
marginais sociais. Essa é a estética da segurança, que impõe uma lógica da vigilância
e da manutenção da devida distância aos tipos humanos estigmatizados como
“indesejáveis”. Em nossa sociedade líquida, “manter-se à distância parece a única
forma razoável de proceder”, diz Bauman.21 Uma vez que a realidade exterior se
apresenta sempre diante de nossa limitada percepção como ameaçadora e violenta,
os muros inexpugnáveis, as grades de proteção que delimitam nosso espaço vital e o
mundo de fora e as câmeras de monitoração cumprem o papel de garantir psiquicamente
nossa segurança pessoal, tornando-nos, todavia, dependentes desse paranoico
sistema de controle. Para Bauman,
Vigias eletrônicos, alarmes contra roubo e entradas e saídas estreitas
que se fecham sozinhas separam essa utopia miniaturizada do resto do
mundo, abandonado à sua confusão aparentemente inextirpável. Prodígios
de harmonia e perfeição são agora oferecidos como entretenimento
– para os passeios de domingo e o desfrute da família. Ninguém
supõe que sejam reais. A maioria, porém, concorda que melhoram a
realidade.22
20 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas, p. 103.
21 BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido, p. 93.
22 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência, p. 239.
Zygmunt Bauman e administração da vida na era da liquidez
103
O preço dessa vigilância ostensiva contínua talvez seja a perda da espontaneidade:
todos passam a viver como que participando da exibição ao vivo
de uma peça de teatro, onde os papéis não foram devidamente encenados; então,
para se evitar maiores vergonhas, cala-se o já mínimo discurso singular,
escondendo-se cada um sob as malhas do impessoal. Aproveitando as ideias de
Marshall McLuhan e sua difundida tese de que os meios de comunicação são
extensões do homem,23 podemos dizer que os incólumes muros de proteção que
construímos se tornaram também extensões hiperbólicas do corpo humano, na
sua sôfrega ânsia de se resguardar diante do tenebroso e agitado mundo exterior.
Afinal, a necessidade de nos enclausurarmos em espaços hermeticamente
fechados e vigiados continuamente, motiva, em contraparte, nosso próprio encarceramento
existencial e o medo por espaços livres, onde ficamos por alguns
instantes em contato com a realidade externa e, portanto, à mercê das ameaças
dos “estranhos”.
Bauman argumenta que “a liberdade sem segurança não tende a causar menos
infelicidade do que a segurança sem liberdade, e que necessitamos tanto de
liberdade como de segurança, e o sacrifício de qualquer um deles pode nos causar
sofrimentos”.24 Postulamos a impossibilidade de que nada pode nos afetar
enquanto estivermos dentro do espaço confortável de isolamento que criamos
em relação aos perigos do mundo externo, mas o preço disso é a redução de
nossa amplitude de movimentos, de modo que nos arriscamos a ver despontar
a infelicidade, a despeito da segurança material que obtivemos. “Contra o sofrimento
que pode advir dos relacionamentos humanos, a defesa mais imediata é
o isolamento voluntário, o manter-se à distância das outras pessoas”; “O homem
civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela
de segurança”, diz Freud em O mal-estar na civilização.25 A vida cotidiana
em nossa dinâmica pós-modernidade se resume em seguirmos um padrão mecânico
de ações, em que qualquer alteração da rotina pode gerar consequências
catastróficas para quem se aventura a arriscar algo de novo. “Não seremos hu-
23 MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem.
24 BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada, p. 58.
25 FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, p. 16, 72.
ESCRITOS IV
104
manos sem segurança ou sem liberdade; mas não podemos ter as duas ao mesmo
tempo e ambas na quantidade que quisermos”, conforme destaca Bauman.26 Nas
condições opressoras da era “líquida”, falar de “liberdade” na existência humana
é uma tarefa insólita. Analisando tal perspectiva de nossa era de decadência
existencial, Christopher Lasch afirma que “a liberdade passa ser a liberdade entre
a marca “x” e a marca “y”, entre amantes intercambiáveis, entre trabalhos intercambiáveis,
entre vizinhos intercambiáveis”.27
Como complemento aos aparatos técnicos de proteção física proporcionados
pela sociedade de controle, há que se lembrar que está ao dispor do “homem pós-
-moderno” o consumo contínuo de remédios tranquilizantes, para que o seu sono
e sua “sanidade psíquica” não sejam ameaçados pelo terror do pesadelo do “mundo
dos outros”. O medo público movimenta a economia social, seja na aquisição
dos produtos de segurança, seja no consumo dos remédios que proporcionam
momentamente uma sensação de alívio psíquico diante da realidade angustiante
do mundo exterior, pavor que retorna continuamente, para nosso desgosto. Bauman
considera que, na “idade líquida pós-moderna”,
O mundo é visto e sentido como menos convidativo. Parece um mundo
hostil, traiçoeiro, transpirando vingança, um mundo que agora precisa
ser transformado num lugar seguro para os ocidentais-feitos-turistas-
-e-comerciantes.28
Pensemos na hipótese de no futuro o sentimento de medo ser completamente
eliminado da condição humana. Qual seria a consequência imediata dessa revolução
existencial? Certamente um prejuízo imensurável para a nossa já combalida
economia, corroída pela grande crise financeira, afetando assim as indústrias automobilísticas,
que cada vez mais elaboram modelos de veículos protegidos contra
os ataques da violência social, as indústrias de aparatos técnicos de segurança,
que dependem do clima de insegurança pública para que os seus instrumentos de
26 BAUMAN, Zygmunt. Comunidade, p. 11.
27 LASCH, Christopher. O mínimo eu, p. 29.
28 BAUMAN, Zygmunt. Europa, p. 36.
Zygmunt Bauman e administração da vida na era da liquidez
105
proteção sejam adquiridos, assim como as indústrias farmacêuticas, que prosperam
financeiramente mediante a exploração psicofisiológica do medo humano
através do consumo dos remédios que eliminam temporariamente os inúmeros
desgostos da existência. Conforme destaca Bauman, “grande parte do capital
comercial pode ser – e é – acumulado a partir da insegurança e do medo”.29
Nessas condições, o medo se torna imprescindível para a manutenção da ordem
social, por mais extravagantemente absurda (e terrivelmente prejudicial para a
vida humana) que seja tal necessidade. Desse modo, será que de fato é conveniente
que o medo humano se extinga? Segundo Bauman,
No medo, a indústria do consumo encontra a mina de ouro sem fim
e autorrenovável que há muito procurava. Para a indústria do consumo,
o medo é, plena e verdadeiramente, um “recurso renovável”. O
medo se tornou o moto-perpétuo do mercado de consumo – e portanto
da economia mundial.30
Associada intimamente a esta questão, ainda há que se ressaltar que é por
meio da elevação do índice de medo na população de uma sociedade que o poder
estabelecido se outorga o direito de criar medidas de exceção contra as ameaças
que avançam de todas as direções. Esse dispositivo é elaborado não para que
se possa preservar o conforto material e existencial de um grupo beneficiado
imediatamente por tais ações coercitivas contra a grande massa humana
considerada econômica e existencialmente descartável, mas para em verdade
se aproveitar da fragilidade e da desmobilização política da população como
um todo. Quando esta é dominada pelo temor e pelas incertezas em relação
ao seu sombrio futuro, ela perde toda a sua força transformadora, tornandose
uma massa inerte, não obstante a quantidade numérica de seres humanos
que constituem esse grupo intrinsecamente anárquico, pois desprovido da
capacidade de mobilização social.
29 BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos, p. 18.
30 BAUMAN, Zygmunt. Europa, p. 96.
ESCRITOS IV
106
Bauman salienta que desde o começo o Estado moderno foi confrontado
com a tarefa assustadora de administrar o medo.31 O fator problemático é que o
poder normativo do Estado depende da passividade pública, que sucumbe perante
o medo de vir a perder a parca qualidade de vida duramente conquistada
e legitima suas ações arbitrárias mediante a ausência de uma genuína práxis
transformadora no povo. É por tal motivo que as sociedades tirânicas apelam
continuamente para a infiltração de elementos irracionais e supersticiosos na
ideologia dominante, como forma para conter de antemão a possibilidade de
surgir os ímpetos reivindicadores de uma dada população, quando esta se sente
prejudicada pelos abusos do poder despótico. Como destaca Erich Fromm, “o
poder, de um lado, e o medo, de outro, são sempre os esteios em que se apoia
a autoridade irracional”.32 O uso tendencioso do medo social pode auxiliar na
legitimação das “guerras preventivas”, situação percebida de forma excepcional
pela equipe do governo de George W. Bush, que soube manipular a opinião
publica norte-americana para estabelecer a destruição terrorista do território
iraquiano, utilizando-se, todavia, da retórica vazia de “defensor” da “Justiça”
e do “Bem”, projetando na imagem do “outro” o “Mal” em suas qualidades
mais radicais. Aliás, o discurso ideológico do medo projeta sempre no “outro” a
presença de características ignominiosas, quando na verdade é ele próprio que
é constituído por tais “qualidades”. Ataca-se a figura do “outro” pelo medo que
a sua presença simbólica provoca no modelo existencial sustentado pela fragilidade
psíquica das massas. Aproveitemos algumas contribuições de Chomsky
para o tema abordado: “Os monstros continuam a surgir, um após o outro.
Você amedronta, aterroriza e intimida a população para que ela se encolha de
medo e fique acovardada demais para sair do lugar”.33
Os meios de comunicação – especialmente aqueles que se aproveitam dos mecanismos
sensacionalistas de exposição das mazelas sociais – também seriam afetados
pela extinção do medo, pois não haveria mais a possibilidade de explorarem
a elevação dos níveis de audiência por meio dos estímulos estéticos fortes propor-
31 BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos, p, 65.
32 FROMM, Erich. Análise do homem, p. 22.
33 CHOMSKY, Noam. O controle da mídia: os espetaculares efeitos da propaganda, p. 39.
Zygmunt Bauman e administração da vida na era da liquidez
107
cionados pela exibição de cenas violentas, que exercem sobre a afetividade humana
um impacto ambíguo: ao mesmo tempo que geram a repugnância, geram
também o desejo de contemplação do horror. A sociedade de informação, na era
pós-moderna, continua sectária da “concupiscência do olhar”. Da mesma forma
que um desastre desperta a curiosidade de ver todos os detalhes possíveis no
indivíduo que se encontra próximo ao local desse acontecimento fatídico, assim
também se dá quando os desastres são transpostos para as imagens da televisão.
O máximo de prazer estético que pode ser fornecido ao telespectador por uma
rede de TV é a exibição ao vivo da morte de um indivíduo ou, em circunstâncias
mais atenuadas, dos conflitos entre forças policiais e criminosos, ações de assaltantes
ou, ainda, gravações ocultas de repórteres expondo as vendas de drogas
por traficantes. Em todas essas circunstâncias há no telespectador a erupção da
repugnância, do horror e da lamentação, mas também um gozo secreto de prazer,
pela oportunidade que lhe é concedida de ver, sentado confortavelmente na
sua poltrona, a destruição humana de múltiplas maneiras. Conforme argumenta
Christopher Lasch, “os jornais diários e os noticiários de televisão relatam
acontecimentos mais grotescos e bizarros que os sonhos mais extravagantes de
um escritor”.34 O resultado existencial dessa soma de imagens, todavia, não tarda
a aparecer, e é o medo, decorrente das impressões violentas motivadas pelo
constante ato de apreciação estética das mazelas sociais como espetáculo.
O indivíduo dominado pelo medo das ameaças sociais, protegido pela solidez
dos muros que separam o mundo “bárbaro” de sua vida privada, acredita talvez
que sua existência seja de fato real. Será mesmo? Ora, o seu estreito mundo
fechado, criado como uma fuga confortável perante o mal-estar da vida
urbana, na verdade é uma ilusão agradável gerada pela necessidade burguêslíquida
do homem de se considerar efetivamente seguro na sua ilha simbólica
rodeada de mazelas, ilusão similar a de uma “Terra do Nunca”, um conto de
fadas pós-moderno. A insurgência do medo exige que cada um faça de seu lar
um bunker equipado com todos os recursos necessários para a manutenção da
sobrevivência, para que se evite a menor exposição possível em áreas públicas,
repletas de pessoas “estranhas”. De acordo com Bauman,
34 LASCH, Christopher. O mínimo eu, p. 117.
ESCRITOS IV
108
O medo do desconhecido – no qual, mesmo que subliminarmente, estamos
envolvidos – busca desesperadamente algum tipo de alívio. As
ânsias acumuladas tendem a se descarregar sobre aquela categoria de
“forasteiros” escolhidos para encarnar a “estrangeiridade”, a não-familiaridade,
a opacidade do ambiente em que se vive e a indeterminação
dos perigos e das ameaças.35
A exaltação contínua da vida condominial decorre da ameaça social das classes
com maior poder aquisitivo no sentido de se libertar definitivamente dos
constantes problemas urbanos, de modo que todas as necessidades básicas da vida
cotidiana desse grupo social – de evidente índole asséptica – encontram as suas
instituições nesses aglomerados de identidades uniformes. Escolas, academias de
ginástica, padarias, hospitais, bancos e até mesmo igrejas devem estar situados
nesses locais partidários de sintonias axiológicas: a lógica do “igual”. Aliás, há
que se destacar que já existem faculdades (particulares) exercendo suas atividades
pedagógicas em condomínios para os seus eleitos habitantes. Seria importante
sabermos se existe alguma diferença curricular entre os cursos de graduação das
faculdades do “mundo exterior” e as faculdades do mundo condominial. Certamente
o cúmulo do disparate será existir um dia uma universidade pública
em funcionamento dentro de um condomínio pós-moderno. Obviamente, aqui
não se trata de criticar a vida comunitária típica dos condomínios de segurança
máxima, mas de se colocar em questão o desejo sôfrego de se obter o isolamento
asséptico em relação aos problemas da vida social dos núcleos urbanos, reduzindo
assim a amplitude de compreensão do “real” de todos aqueles que habitam
tais espaços, que passam a acreditar simbolicamente que o limitado território
ocupado pelo condomínio é uma cidade à parte em relação ao mundo exterior,
tão próximo fisicamente, tão distante social e existencialmente. Bauman destaca
que é nossa “obsessão com segurança”, assim como nossa intolerância a qualquer
brecha – ainda que mínima – no seu fornecimento, que se torna a fonte mais
prolífica, autorrenovável e provavelmente inexaurível de nossa ansiedade e do
nosso medo.36
35 BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade, p. 36-37.
36 BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido, p. 169.
Zygmunt Bauman e administração da vida na era da liquidez
109
“Os limites do mundo são os limites do meu condomínio”, esse deveria
ser o lema adotado por esse grupo seleto de habitantes do Éden moderno-
-líquido. Talvez uma situação também absurda, mas possível de vir a acontecer
no “futuro líquido”, seria um indivíduo nascer, amadurecer e morrer
no espaço condominial sem conhecer a realidade externa, sendo sepultado
no torrão natal que tanto amou ao longo de sua vida líquida (de máximo
controle e mínima emoção), localizado nos fundos desse território. Segundo
Bauman,
Para pessoas inseguras, desorientadas, confusas e assustadas pela instabilidade
e transitoriedade do mundo que habitam, a “comunidade”
parece uma alternativa tentadora. É um sonho agradável, uma visão
do paraíso: de tranquilidade, segurança física e paz espiritual.37
Podemos afirmar que o elemento mais paradoxal desse mecanismo de
controle permanente das aspirações individuais, conforme efetivado pelos
aparelhos normativos da sociedade de vigilância, reside na ideia de que o
bem-estar que o indivíduo tanto deseja obter somente pode ser conquistado
através da supressão de sua liberdade pessoal, pois é justamente a excessiva
flexibilidade das suas ações que motivam as circunstâncias que prejudicam
a ordem da frágil estabilidade social. Bauman destaca que “o mal-estar da
pós-modernidade nasce da liberdade, em vez da opressão”.38 Essa liberdade,
todavia, se revela como um grande engodo, pois em troca da segurança prometida
pela ideologia do conforto material, a vida em comunidade parece
nos privar dessa ansiada liberdade, sinal nítido da degeneração do sentimento
da esquálida paz e tranquilidade da nossa organização civilizatória.
Lasch argumenta que
A acusação máxima contra a civilização industrial não está apenas
em que ela tenha devastado a natureza, mas que tenha minado a
nossa confiança na continuidade e permanência do mundo feito
37 BAUMAN, Zygmunt. Identidade, p. 68.
38 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade, p. 156.
ESCRITOS IV
110
pelo homem ao cercar-nos com bens disponíveis e fantásticas imagens
de mercadorias.39
Ao trazer à tona os contundentes sintomas de empobrecimento e dissolução
das relações pessoais na nossa experiência da liquidez da “mal (dita)” pós-modernidade,
Bauman nos faz a seguinte pergunta retórica:
Você quer segurança? Abra mão de sua liberdade, ou pelo menos de
boa parte dela. Você quer poder confiar? Não confie em ninguém de
fora da comunidade. Você quer entendimento mútuo? Não fale com
estranhos, nem fale línguas estrangeiras. Você quer essa sensação aconchegante
do lar? Ponha alarmes em sua porta e câmeras de TV no acesso.
Você quer proteção? Não acolha estranhos e abstenha-se de agir de
modo esquisito ou de ter pensamentos bizarros. Você quer aconchego?
Não chegue perto da janela, e jamais a abra. O nó da questão é que se
você seguir esse conselho e mantiver as janelas fechadas, o ambiente
logo ficará abafado e, no limite, opressivo.40
Ser livre pressupõe uma responsabilidade difícil de suportar perante a líquida
vida social, cada vez mais diluída na ausência de uma autêntica compreensão e
valorização da figura do “Outro”, que é sempre imputado como o “estranho”, jamais
um potencial indivíduo capaz de interação. Comunidade significa “mesmice”,
a ausência do “outro”, especialmente um “outro” que teima em ser diferente,
e precisamente por isso é capaz de provocar surpresas desagradáveis e prejuízos.
As parcerias não se fortalecem e os medos não se dissipam. Segundo Bauman,
O tipo de incerteza, de obscuros medos e premonições em relação
ao futuro que assombram os homens e mulheres no ambiente fluido
e em perpétua transformação, em que as regras do jogo mudam no
39 LASCH, Christopher. O mínimo eu, p. 237.
40 BAUMAN, Zygmunt. Comunidade, p. 10.
Zygmunt Bauman e administração da vida na era da liquidez
111
meio da partida sem qualquer aviso ou padrão legível, não une os
sofredores: antes os divide e os separa.41
Nunca a humanidade conseguiu se livrar por grande espaço de tempo do
poder opressor desse ameaçador inimigo que é o medo, encarnado em diversas
figurações sociais e existenciais, e certamente nunca conseguiremos nos libertar
plenamente dele, situação que seria de fato uma utopia, e não uma análise
concreta da dinâmica fluida do mundo real, marcado pelas suas inúmeras
contingências e contradições. Todavia, podemos tornar a nossa vida, ainda que
espreitada pelo medo, mais saudável e afirmativa, se aceitarmos a finitude da
condição humana e nos esforçarmos pela instauração de uma prática ética que
valorize de fato a interatividade entre as pessoas, interatividade essa que é cada
vez mais liquefeita nos nossos ansiosos tempos pós-modernos. Conforme argumenta
Bauman,
O direito do Outro à sua estranheza é a única maneira pela qual
meu próprio direito pode expressar-se, estabelecer-se e defender-se.
É pelo direito do Outro que meu direito se coloca. “Ser responsável
pelo outro” e “ser responsável por si mesmo” vêm a ser a mesma
coisa.42
O discurso de Bauman apresenta de modo extremamente evidente a crueza
da “vida líquida”, mas ao mesmo tempo uma via de superação da crise de valores
que consome as qualidades da humanidade contemporânea. A sua consistência
argumentativa se manifesta justamente na possibilidade de analisarmos
o rumo existencial que escolhemos seguir na dita pós-modernidade, e a capacidade
de desenvolvermos uma orientação de vida mais sólida e substanciosa,
mediante a valorização das diferenças existenciais com as quais interagimos em
nossa existência cotidiana.
41 Ibid., p. 48.
42 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência, p. 249.
ESCRITOS IV
112
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capitalismo. Trad. de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Record, 2002.
Introdução:
O segredo mais bem guardado 7
da sociedade de consumidores
1. Consumismo versus consumo 37
2. Sociedade de consumidores 70
3. Cultura consumista 107
4. Baixas colaterais do consumismo 149
Notas 191
Índice remissivo 197
7...
. Introdução .
O segredo mais bem guardado
da sociedade de consumidores
Talvez não exista pior privação, pior carência,
que a dos perdedores na luta simbólica
por reconhecimento, por acesso a uma existência
socialmente reconhecida, em suma,
por humanidade.
Pierre Bourdieu, Meditações pascalianas
Consideremos três casos, escolhidos de maneira aleatória, dos
hábitos altamente mutáveis de nossa sociedade cada vez mais
“plugada”, ou, para ser mais preciso, sem fi o.
Caso 1. Em 2 de março de 2006, o Guardian anunciou que “nos
12 últimos meses as ‘redes sociais’ deixaram de ser o próximo
grande sucesso para se transformarem no sucesso do momento”.
1 As visitas ao site MySpace, que um ano antes era o líder inconteste
do novo veículo das “redes sociais”, multiplicaram-se
por seis, enquanto o site rival Spaces.MSN teve 11 vezes mais
acessos do que no ano anterior, e as visitas ao Bebo.com foram
multiplicadas por 61.
Um crescimento de fato impressionante – ainda que o surpreendente
sucesso do Bebo, recém-chegado à internet na época
da reportagem, possa se revelar fogo de palha: como adverte
um especialista nos modismos da internet, “pelo menos 40% dos
dez mais acessados este ano não serão nada daqui a um ano”.
“Lançar um novo site de rede social”, explica ele, é “como abrir o
mais novo bar em uma área nobre” (só por ser o mais novo, uma
casa brilhando de tão nova ou recém-reformada e reaberta, esse
8 Vida para consumo
bar atrairia uma multidão “até que murchasse, o que aconteceria
com tanta certeza quanto a chegada da ressaca no dia seguinte”,
passando seus poderes magnéticos ao “próximo mais novo” na
eterna corrida para ser “o point mais quente”, o último “assunto
do momento”, o lugar onde “todo mundo que é alguém precisa
ser visto”).
Uma vez que fi nquem seus pés numa escola ou numa comunidade,
seja ela física ou eletrônica, os sites de “rede social” se
espalham à velocidade de uma “infecção virulenta ao extremo”.
Com muita rapidez, deixaram de ser apenas uma opção entre
muitas para se tornarem o endereço default de um número crescente
de jovens, homens e mulheres. Obviamente, os inventores
e promotores das redes eletrônicas tocaram uma corda sensível –
ou num nervo exposto e tenso que há muito esperava o tipo
certo de estímulo. Eles podem ter motivos para se vangloriar de
terem satisfeito uma necessidade real, generalizada e urgente. E
qual seria ela? “No cerne das redes sociais está o intercâmbio de
informações pessoais.” Os usuários fi cam felizes por “revelarem
detalhes íntimos de suas vidas pessoais”, “fornecerem informações
precisas” e “compartilharem fotografi as”. Estima-se que
61% dos adolescentes britânicos com idades entre 13 e 17 anos
“têm um perfi l pessoal num site de rede” que possibilite “relacionar-
se on-line”.2
Na Grã-Bretanha, lugar em que o uso popular de recursos
eletrônicos de ponta está ciberanos atrás do Extremo Oriente, os
usuários ainda podem acreditar que as “redes sociais” expressam
sua liberdade de escolha, e mesmo que constituam uma forma de
rebeldia e auto-afi rmação juvenil (suposição tornada ainda mais
verossímil pelos sinais de pânico que o ardor sem precedentes,
induzido pela web e a ela dirigido, desencadeia a cada dia entre
seus pais e professores, e pelas reações nervosas dos diretores
que interditam o acesso ao Bebo e similares a partir dos compu -
tadores de suas escolas). Mas na Coréia do Sul, por exemplo, onde
grande porção da vida social já é, como parte da rotina, mediada
eletronicamente (ou melhor, onde a vida social já se transformou
Introdução 9
em vida eletrônica ou cibervida, e a maior parte dela se passa na
companhia de um computador, um iPod ou um celular, e apenas
secundariamente ao lado de seres de carne e osso), é óbvio para
os jovens que eles não têm sequer uma pitada de escolha. Onde
eles vivem, levar a vida social eletronicamente mediada não é
mais uma opção, mas uma necessidade do tipo “pegar ou largar”.
A “morte social” está à espreita dos poucos que ainda não
se integraram ao Cyworld, líder sul-coreano no cibermercado da
“cultura mostre e diga”.
Seria um erro grave, contudo, supor que o impulso que leva
à exibição pública do “eu interior” e a disposição de satisfazer
esse impulso sejam manifestações de um vício/anseio singular,
puramente geracional e relacionado aos adolescentes, por natureza
ávidos, como tendem a ser, para colocar um pé na “rede”
(termo que está rapidamente substituindo “sociedade”, tanto no
discurso das ciências sociais quanto na linguagem popular) e lá
permanecer, embora sem muita certeza quanto à melhor maneira
de atingir tal objetivo. O novo pendor pela confi ssão pública
não pode ser explicado por fatores “específi cos da idade” – não
só por eles. Eugène Enriquez resumiu a mensagem que se pode
extrair das crescentes evidências coletadas em todos os setores do
mundo líquido-moderno dos consumidores:
Desde que não se esqueça que o que antes era invisível – a parcela
de intimidade, a vida interior de cada pessoa – agora deve ser
exposto no palco público (principalmente nas telas de TV, mas
também na ribalta literária), vai-se compreender que aqueles que
zelam por sua invisibilidade tendem a ser rejeitados, colocados de
lado ou considerados suspeitos de um crime. A nudez física, social
e psíquica está na ordem do dia.3
Os adolescentes equipados com confessionários eletrônicos
portáteis são apenas aprendizes treinando e treinados na arte de
viver numa sociedade confessional – uma sociedade notória por eliminar
a fronteira que antes separava o privado e o público, por transformar
o ato de expor publicamente o privado numa virtude e
10 Vida para consumo
num dever públicos, e por afastar da comunicação pública qualquer
coisa que resista a ser reduzida a confi dências privadas,
assim como aqueles que se recusam a confi denciá-las. Como
Jim Gamble, diretor de uma agência de monitoramento de
rede, admitiu ao Guardian, “ela representa tudo aquilo que se
vê no playground – a única diferença é que nesse playground
não há professores, policiais ou moderadores que fi cam de
olho no que se passa”.
Caso 2. No mesmo dia, embora numa página bem diferente
e sem conexão temática, organizada por outro editor, o Guardian
informava ao leitor que “sistemas informáticos estão sendo
usados para rejeitá-lo de maneira mais efi caz, dependendo de
seu valor para a companhia para a qual você está ligando”.4 Ou
seja, tais sistemas possibilitam que sejam armazenados os registros
dos clientes, classifi cando-os a partir de “1”, os clientes de
primeira classe que devem ser atendidos no exato momento da
ligação e prontamente remetidos a um agente sênior, até “3” (os
que “vivem no charco”, como foram classifi cados no jargão da
empresa), a serem colocados no fi nal da fi la – e, quando afi nal
são atendidos, conectados a um agente de baixo escalão.
Assim como no Caso 1, difi cilmente seria possível culpar a
tecnologia pela nova prática. O novo e refi nado software veio
para ajudar os administradores que já tinham a imensa necessidade
de classifi car o crescente exército de clientes ao telefone
para que fosse possível executar as práticas divisórias e exclusivistas
que já estavam em operação, mas que até o momento eram
realizadas com a ajuda de ferramentas primitivas – produtos do
tipo “faça-você-mesmo”, feitos em casa ou por uma indústria
doméstica, que exigiam mais tempo e eram, é evidente, menos
efi cazes. Como assinalou o porta-voz de uma das companhias
fornecedoras desses sistemas, “a tecnologia só faz pegar os processos
em operação e torná-los mais efi cientes” – o que signifi ca
de maneira instantânea e automática, poupando os empregados
da incômoda tarefa de coletar informações, estudar registros, faIntrodução
11
zer avaliações e tomar decisões distintas a cada chamada, assim
como a responsabilidade pelas conseqüências decorrentes. O
que, na ausência do equipamento técnico adequado, eles teriam
de avaliar forçando o próprio cérebro e gastando grande parte
do precioso tempo da companhia é a rentabilidade potencial do
cliente para a empresa: o volume de dinheiro ou crédito à disposição
do cliente e sua disponibilidade de se desfazer desse capital.
“As empresas precisam identifi car os clientes menos valiosos”,
explica outro executivo. Em outras palavras, elas necessitam de
uma espécie de “vigilância negativa”, ao estilo do Big Brother
de Orwell ou do tipo panóptico, uma geringonça semelhante a
uma peneira que basicamente executa a tarefa de desviar os indesejáveis
e manter na linha os clientes habituais – reapresentada
como o efeito fi nal de uma limpeza bem-feita. Elas precisam
de uma forma para alimentar o banco de dados com o tipo de
informação capaz, acima de tudo, de rejeitar os “consumidores
falhos” – essas ervas daninhas do jardim do consumo, pessoas
sem dinheiro, cartões de crédito e/ou entusiasmo por compras,
e imunes aos afagos do marketing. Assim, como resultado da seleção
negativa, só jogadores ávidos e ricos teriam a permissão de
permanecer no jogo do consumo.
Caso 3. Poucos dias depois, outro editor, em outra página, informava
aos leitores que Charles Clarke, ministro britânico do
Interior, havia anunciado um novo sistema de imigração, “baseado
em pontuações”, destinado a “atrair os melhores e mais
inteligentes”5 e, é claro, repelir e manter afastados todos os demais,
ainda que essa parte da declaração de Clarke fosse difícil
de detectar na versão apresentada no comunicado à imprensa –
totalmente omitida ou relegada às letras miúdas. A quem deve
atrair o novo sistema? Aqueles com mais dinheiro para investir e
mais habilidades para ganhá-lo. “Isso vai nos permitir assegurar”,
disse o ministro do Interior, que “só venham para o Reino Unido
as pessoas dotadas das habilidades de que o país necessita, evitando,
ao mesmo tempo, que os destituídos dessas habilidades se
12 Vida para consumo
candidatem.” E como vai funcionar esse sistema? Por exemplo:
Kay, uma jovem da Nova Zelândia, com diploma de mestrado,
mas com um emprego humilde e muito mal pago, não conseguiu
atingir os 75 pontos que a habilitariam a requerer a imigração.
Precisaria, em primeiro lugar, obter uma oferta de emprego de
uma empresa britânica, o que então seria registrado em seu favor,
como prova de que suas habilidades são do tipo “que o país
necessita”.
Charles Clarke não é o primeiro a aplicar à seleção de seres
humanos a regra do mercado de escolher o melhor produto da
prateleira. Como assinalou Nicolas Sarkozy, ex-ministro do Interior
e atual presidente francês, “a imigração seletiva é praticada
por quase todas as democracias do mundo”. E ele prosseguiu
exigindo que “a França seja capaz de escolher seus imigrantes
segundo nossas necessidades”.6
Três casos apresentados em três diferentes seções do jornal e
supostamente pertencentes a domínios da vida muito distintos,
cada qual governado por seu próprio conjunto de regras,
supervisionado e administrado por agências mutuamente independentes.
Casos que parecem tão dessemelhantes, que dizem
respeito a pessoas com origens, idades e interesses amplamente
diversos, confrontadas com desafi os bastante variados e lutando
para resolver problemas muito diferentes. Pode-se indagar:
haveria alguma razão para colocá-las lado a lado e considerá-las
como espécimes de uma mesma categoria? A resposta é sim, há
uma razão, e muito poderosa, para conectá-las.
Os colegiais de ambos os sexos que expõem suas qualidades
com avidez e entusiasmo na esperança de atrair a atenção para
eles e, quem sabe, obter o reconhecimento e a aprovação exigidos
para permanecer no jogo da sociabilidade; os clientes potenciais
com necessidade de ampliar seus registros de gastos e limites de
crédito para obter um serviço melhor; os pretensos imigrantes
lutando para acumular pontuação, como prova da existência de
uma demanda por seus serviços, para que seus requerimentos
Introdução 13
sejam levados em consideração – todas as três categorias de pessoas,
aparentemente tão distintas, são aliciadas, estimuladas ou
forçadas a promover uma mercadoria atraente e desejável. Para
tanto, fazem o máximo possível e usam os melhores recursos que
têm à disposição para aumentar o valor de mercado dos produtos
que estão vendendo. E os produtos que são encorajadas a
colocar no mercado, promover e vender são elas mesmas.
São, ao mesmo tempo, os promotores das mercadorias e as
mercadorias que promovem. São, simultaneamente, o produto e
seus agentes de marketing, os bens e seus vendedores (e permitam-
me acrescentar que qualquer acadêmico que já se inscreveu
para um emprego como docente ou para receber fundos de pesquisa
vai reconhecer suas próprias difi culdades nessa experiência).
Seja lá qual for o nicho em que possam ser encaixados pelos
construtores de tabelas estatísticas, todos habitam o mesmo
espaço social conhecido como mercado. Não importa a rubrica
sob a qual sejam classifi cados por arquivistas do governo ou jornalistas
investigativos, a atividade em que todos estão engajados
(por escolha, necessidade ou, o que é mais comum, ambas) é o
marketing. O teste em que precisam passar para obter os prêmios
sociais que ambicionam exige que remodelem a si mesmos como
mercadorias, ou seja, como produtos que são capazes de obter
atenção e atrair demanda e fregueses.
Siegfried Kracauer foi um pensador dotado da estranha capacidade
de distinguir os contornos quase invisíveis e incipientes
de tendências indicativas do futuro ainda perdidos numa massa
disforme de modismos e idiossincrasias passageiros. Ainda no
fi nal da década de 1920, quando a iminente transformação da
sociedade de produtores em sociedade de consumidores estava
num estágio embrionário ou, na melhor das hipóteses, incipiente,
e portanto passava despercebida a observadores menos atentos
e perspicazes, ele havia notado que
a corrida aos inúmeros salões de beleza nasce, em parte, de
preocupações existenciais, e o uso de cosméticos nem sempre é um
luxo. Por medo de caírem em desuso como obsoletos, senhoras e
14 Vida para consumo
cavalheiros tingem o cabelo, enquanto quarentões praticam esportes
para se manterem esguios. “Como posso fi car bela?”, indaga o título
de um folheto recém-lançado no mercado; os anúncios de jornal
dizem que ele apresenta maneiras de “permanecer jovem e bonita
agora e para sempre”.7
Os hábitos emergentes que Kracauer registrou na década de
1920 como uma curiosidade berlinense digna de nota avançaram
e se espalharam como fogo numa fl oresta, até se transformarem
em rotina diária (ou pelo menos num sonho) por todo o planeta.
Oitenta anos depois, Germaine Greer observava que “mesmo
nos rincões mais distantes do noroeste da China, as mulheres
deixavam de lado seus pijamas em favor de sutiãs acolchoados
e saias insinuantes, faziam permanente e pintavam seus cabelos
lisos, e economizavam para comprar cosméticos. Isso era chamado
de liberalização.”8
Meio século após Kracauer observar e descrever as novas
paixões das mulheres berlinenses, outro notável pensador alemão,
Jürgen Habermas, escrevendo à época em que a sociedade
de produtores estava chegando ao fi nal de seus dias, e portanto
com o benefício da percepção a posteriori, apresentava a “comodifi
cação do capital e do trabalho” como a principal função, a
própria raison d’être, do Estado capitalista. Ele apontou que, se
a reprodução da sociedade capitalista é obtida mediante encontros
transnacionais interminavelmente repetidos entre o capital
no papel de comprador e o trabalho no de mercadoria, então o
Estado capitalista deve cuidar para que esses encontros ocorram
com regularidade e atinjam seus propósitos, ou seja, culminem
em transações de compra e venda.
No entanto, para que se alcance tal culminação em todos
os encontros, ou ao menos em um número signifi cativo deles, o
capital deve ser capaz de pagar o preço corrente da mercadoria,
estar disposto a fazê-lo e ser estimulado a agir de acordo com
essa disposição – garantido por uma política de seguros endossada
pelo Estado contra os riscos causados pelos notórios caprichos
dos mercados de produtos. O trabalho, por outro lado, deve
Introdução 15
ser mantido em condição impecável, pronto para atrair o olhar
de potenciais compradores, conseguir a aprovação destes e aliciá-
los a comprar o que estão vendo. Assim como encorajar os
capitalistas a gastarem seu dinheiro com mão-de-obra, torná-la
atraente para esses compradores é pouco provável sem a ativa
colaboração do Estado. As pessoas em busca de trabalho precisam
ser adequadamente nutridas e saudáveis, acostumadas a um
comportamento disciplinado e possuidoras das habilidades exigidas
pelas rotinas de trabalho dos empregos que procuram.
Hoje em dia, défi cits de poder e recursos afl igem a maioria
dos Estados-nação que luta para desempenhar a contento a
tarefa da comodifi cação – défi cits causados pela exposição do
capital nativo à competição cada vez mais intensa resultante da
globalização dos mercados de capitais, trabalho e mercadorias,
e pela difusão planetária das modernas formas de produção e
comércio, assim como dos défi cits provocados pelos custos, em
rápido crescimento, do “Estado de bem-estar social”, esse instrumento
supremo e talvez indispensável da comodifi cação do
trabalho.
Aconteceu que, no caminho entre a sociedade de produtores e a
sociedade de consumidores, as tarefas envolvidas na comodifi -
cação e recomodifi cação do capital e do trabalho passaram por
processos simultâneos de desregulamentação e privatização contínuas,
profundas e aparentemente irreversíveis, embora ainda
incompletas.
A velocidade e o ritmo acelerado desses processos foram e
continuam a ser tudo, menos uniformes. Na maioria dos países
(embora não em todos), eles parecem muito menos radicais no
caso do trabalho do que até agora o foram em relação ao capital,
cujos novos empreendimentos continuam a ser estimulados –
quase como regra – pelos cofres governamentais numa escala
crescente e não reduzida. Além disso, a capacidade e a disposição
do capital para comprar trabalho continuam sendo reforçadas
com regularidade pelo Estado, que faz o possível para manter
16 Vida para consumo
baixo o “custo da mão-de-obra” mediante o desmantelamento
dos mecanismos de barganha coletiva e proteção do emprego, e
pela imposição de freios jurídicos às ações defensivas dos sindicatos
– e que com muita freqüência mantêm a solvência das empresas
taxando importações, oferecendo incentivos fi scais para
exportações e subsidiando os dividendos dos acionistas por meio
de comissões governamentais pagas com dinheiro público. Para
apoiar, por exemplo, a fracassada promessa da Casa Branca de
manter baixos os preços nos postos de gasolina sem ameaçar os
lucros dos acionistas, o governo Bush confi rmou, em fevereiro
de 2006, que iria renunciar a 7 bilhões de dólares em royalties nos
próximos cinco anos (soma que alguns estimam ser o quádruplo),
a fi m de encorajar a indústria norte-americana do petróleo
a prospectar o produto nas águas de propriedade pública do
golfo do México (“É como dar subsídios a um peixe para que ele
nade”, foi a reação de um deputado a essa notícia: “É indefensável
subsidiar essas empresas com os preços do petróleo e do gás tão
elevados”.)9
A tarefa da recomodifi cação do trabalho foi a mais afetada
até agora pelos processos gêmeos da desregulamentação e da
privatização. Essa tarefa está sendo excluída da responsabilidade
governamental direta, mediante a “terceirização”, completa ou
parcial, do arcabouço institucional essencial à prestação de serviços
cruciais para manter vendável a mão-de-obra (como no
caso de escolas, habitações, cuidados com os idosos e um número
crescente de serviços médicos). Assim, a preocupação de
garantir a “vendabilidade” da mão-de-obra em massa é deixada
para homens e mulheres como indivíduos (por exemplo: transferindo
os custos da aquisição de habilidades profi ssionais para
fundos privados – e pessoais), e estes são agora aconselhados por
políticos e persuadidos por publicitários a usarem seus próprios
recursos e bom senso para permanecerem no mercado, aumentarem
seu valor mercadológico, ou pelo menos não o deixarem
cair, e obterem o reconhecimento de potenciais compradores.
Tendo passado vários anos observando de perto (quase
como participante) os mutáveis padrões de emprego nos setoIntrodução
17
res mais avançados da economia norte-americana, Arlie Russell
Hochschild descobriu e documentou tendências surpreendentemente
semelhantes às encontradas na Europa e descritas de
forma muito detalhada por Luc Boltanski e Eve Chiapello como
o “novo espírito do capitalismo”. A preferência, entre os empregadores,
por empregados “fl utuantes”, descomprometidos, fl exíveis,
“generalistas” e, em última instância, descartáveis (do tipo
“pau-pra-toda-obra”, em vez de especializados e submetidos a
um treinamento estritamente focalizado), foi o mais seminal de
seus achados. Nas palavras do próprio Hochschild:
Desde 1997, um novo termo – “chateação zero”*1– começou a
circular em silêncio pelo Vale do Silício, terra natal da revolução
informática nos Estados Unidos. Em sua origem, signifi cava o movimento
sem fricção de um objeto físico como uma bicicleta ou um
skate. Depois foi aplicado a empregados que, independentemente
de incentivos fi nanceiros, trocavam com facilidade de emprego.
Mais recentemente, passou a signifi car “descomprometido” ou
“desobrigado”. Um empregador “pontocom” pode comentar, com
aprovação, sobre um empregado: “Ele é um chateação zero”, querendo
dizer que ele está disponível para assumir atribuições extras,
responder a chamados de emergência, ou ser realocado a qualquer
momento. Segundo Po Bronson, pesquisador da cultura do Vale
do Silício, “chateação zero é ótimo. Por algum tempo, os novos
candidatos eram jocosamente indagados sobre seu ‘coefi ciente de
chateação’”.10
Morar a alguma distância do Vale do Silício e/ou carregar o
peso de uma mulher ou fi lho aumentam o “coefi ciente de chateação”
e reduzem as chances de emprego do candidato. Os empregadores
desejam que seus futuros empregados nadem em vez
de caminhar e pratiquem surfe em vez de nadar. O empregado
ideal seria uma pessoa sem vínculos, compromissos ou ligações
emocionais anteriores, e que evite estabelecê-los agora; uma pes-
* Em inglês, “zero drag”. (N.T.)
18 Vida para consumo
soa pronta a assumir qualquer tarefa que lhe apareça e preparada
para se reajustar e refocalizar de imediato suas próprias inclinações,
abraçando novas prioridades e abandonando as adquiridas
anteriormente; uma pessoa acostumada a um ambiente em que
“acostumar-se” em si – a um emprego, habilidade ou modo de
fazer as coisas – é algo malvisto e, portanto, imprudente; além
de tudo, uma pessoa que deixará a empresa quando não for mais
necessária, sem queixa nem processo. Uma pessoa que também
considera as perspectivas de longo prazo, as trajetórias de carreira
gravadas na pedra e qualquer tipo de estabilidade mais desconcertantes
e assustadoras do que a ausência das mesmas.
A arte da “recomodifi cação” do trabalho em sua forma nova
e atualizada é singularmente imprópria para ser aprendida a partir
da pesada burocracia governamental, notoriamente inerte,
presa à tradição, resistente à mudança e amante da rotina. E essa
burocracia é particularmente imprópria para cultivá-la, ensinála
e inculcá-la. É melhor deixar esse trabalho para os mercados de
consumo, já conhecidos por sua perícia em treinar seus clientes
em artes similares e por fl orescerem a partir disso. E assim se faz.
Transferir para o mercado a tarefa de recomodifi car o trabalho é
o signifi cado mais profundo da conversão do Estado ao culto da
“desregulamentação” e da “privatização”.
O mercado de trabalho é um dos muitos mercados de produtos em
que se inscrevem as vidas dos indivíduos; o preço de mercado da
mão-de-obra é apenas um dos muitos que precisam ser acompanhados,
observados e calculados nas atividades da vida individual.
Mas em todos os mercados valem as mesmas regras.
Primeira: o destino fi nal de toda mercadoria colocada à venda
é ser consumida por compradores. Segunda: os compradores
desejarão obter mercadorias para consumo se, e apenas se, consumi-
las for algo que prometa satisfazer seus desejos. Terceira: o
preço que o potencial consumidor em busca de satisfação está
preparado para pagar pelas mercadorias em oferta dependerá da
credibilidade dessa promessa e da intensidade desses desejos.
Introdução 19
Os encontros dos potenciais consumidores com os potenciais
objetos de consumo tendem a se tornar as principais unidades
na rede peculiar de interações humanas conhecida, de maneira
abreviada, como “sociedade de consumidores”. Ou melhor,
o ambiente existencial que se tornou conhecido como “sociedade
de consumidores” se distingue por uma reconstrução das relações
humanas a partir do padrão, e à semelhança, das relações
entre os consumidores e os objetos de consumo. Esse feito notável
foi alcançado mediante a anexação e colonização, pelos mercados
de consumo, do espaço que se estende entre os indivíduos – esse
espaço em que se estabelecem as ligações que conectam os seres
humanos e se erguem as cercas que os separam.
Numa enorme distorção e perversão da verdadeira substância
da revolução consumista, a sociedade de consumidores é com
muita freqüência representada como se estivesse centralizada em
torno das relações entre o consumidor, fi rmemente estabelecido
na condição de sujeito cartesiano, e a mercadoria, designada para
o papel de objeto cartesiano, ainda que nessas representações o
centro de gravidade do encontro sujeito-objeto seja transferido,
de forma decisiva, da área da contemplação para a esfera da atividade.
Quando se trata de atividade, o sujeito cartesiano pensante
(que percebe, examina, compara, calcula, atribui relevância
e torna inteligível) se depara – tal como ocorreu durante a contemplação
– com uma multiplicidade de objetos espaciais (de
percepção, exame, comparação, cálculo, atribuição de relevância,
compreensão), mas agora também com a tarefa de lidar com eles:
movimentá-los, apropriar-se deles, usá-los, descartá-los.
O grau de soberania em geral atribuído ao sujeito para narrar
a atividade de consumo é questionado e posto em dúvida
de modo incessante. Como Don Slater assinalou com precisão,
o retrato dos consumidores pintado nas descrições eruditas da
vida de consumo varia entre os extremos de “patetas e idiotas
culturais” e “heróis da modernidade”. No primeiro pólo, os consumidores
são representados como o oposto de agentes soberanos:
ludibriados por promessas fraudulentas, atraídos, seduzi20
Vida para consumo
dos, impelidos e manobrados de outras maneiras por pressões
fl agrantes ou sub-reptícias, embora invariavelmente poderosas.
No outro extremo, o suposto retrato do consumidor encapsula
todas as virtudes pelas quais a modernidade deseja ser louvada
– como a racionalidade, a forte autonomia, a capacidade de
autodefi nição e de auto-afi rmação violenta. Tais retratos representam
um portador de “determinação e inteligência heróicas
que podem transformar a natureza e a sociedade e submetê-las à
autoridade dos desejos dos indivíduos, escolhidos livremente no
plano privado”.11
A questão, porém, é que em ambas as versões – quer sejam
apresentados como patetas da publicidade ou heróicos praticantes
do impulso autopropulsor para a autoridade – os consumidores
são removidos e colocados fora do universo de seus potenciais
objetos de consumo. Na maioria das descrições, o mundo
formado e sustentado pela sociedade de consumidores fi ca claramente
dividido entre as coisas a serem escolhidas e os que as
escolhem; as mercadorias e seus consumidores: as coisas a serem
consumidas e os seres humanos que as consomem. Contudo, a
sociedade de consumidores é o que é precisamente por não ser
nada desse tipo. O que a separa de outras espécies de sociedade é
exatamente o embaçamento e, em última instância, a eliminação
das divisões citadas acima.
Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar
sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter
segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar
de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas
de uma mercadoria vendável. A “subjetividade” do “sujeito”, e a
maior parte daquilo que essa subjetividade possibilita ao sujeito
atingir, concentra-se num esforço sem fi m para ela própria se
tornar, e permanecer, uma mercadoria vendável. A característica
mais proeminente da sociedade de consumidores – ainda que
cuidadosamente disfarçada e encoberta – é a transformação dos
consumidores em mercadorias; ou antes, sua dissolução no mar
de mercadorias em que, para citar aquela que talvez seja a mais
Introdução 21
citada entre as muitas sugestões citáveis de Georg Simmel, os diferentes
signifi cados das coisas, “e portanto as próprias coisas,
são vivenciados como imateriais”, aparecendo “num tom uniformemente
monótono e cinzento” – enquanto tudo “fl utua com
igual gravidade específi ca na corrente constante do dinheiro”.12
A tarefa dos consumidores, e o principal motivo que os estimula
a se engajar numa incessante atividade de consumo, é sair dessa
invisibilidade e imaterialidade cinza e monótona, destacandose
da massa de objetos indistinguíveis “que fl utuam com igual
gravidade específi ca” e assim captar o olhar dos consumidores
(blasé!)...
O primeiro álbum gravado por Corinne Bailey Rae, cantora
de 27 anos nascida em Leeds e contratada em 2005 por um
homem do Departamento de Artistas & Repertório da EMI, ganhou
o disco de platina em apenas quatro meses.13 Um fato extraordinário.
Uma em cada um milhão ou centenas de milhões
de pessoas chegam ao estrelato depois de uma breve aparição numa
banda independente e de um emprego como atendente numa
boate de música soul. Uma probabilidade não maior, talvez ainda
menor, do que a de ganhar na loteria (mas observemos que, semana
após semana, milhões de pessoas continuam comprando
bilhetes lotéricos). “Minha mãe é professora de uma escola primária”,
disse Corinne a um entrevistador, “e quando ela pergunta
aos meninos o que eles querem ser quando crescer, eles dizem:
‘Famoso.’ Ela pergunta por que motivo e eles respondem: ‘Não
sei, só quero ser famoso.’”
Nesses sonhos, “ser famoso” não signifi ca nada mais (mas
também nada menos!) do que aparecer nas primeiras páginas de
milhares de revistas e em milhões de telas, ser visto, notado, comentado
e, portanto, presumivelmente desejado por muitos – assim
como sapatos, saias ou acessórios exibidos nas revistas luxuosas
e nas telas de TV, e por isso vistos, notados, comentados, desejados...
“Há mais coisas na vida além da mídia”, observa Germaine
Greer, “mas não muito ... Na era da informação, a invisibilidade é
equivalente à morte.” A recomodifi cação constante, ininterrupta,
22 Vida para consumo
é para a mercadoria. Logo, também para o consumidor, equivale
ao que é o metabolismo para os organismos vivos.
Além de sonhar com a fama, outro sonho, o de não mais se
dissolver e permanecer dissolvido na massa cinzenta, sem face e
insípida das mercadorias, de se tornar uma mercadoria notável,
notada e cobiçada, uma mercadoria comentada, que se destaca
da massa de mercadorias, impossível de ser ignorada, ridicularizada
ou rejeitada. Numa sociedade de consumidores, tornar-se
uma mercadoria desejável e desejada é a matéria de que são feitos
os sonhos e os contos de fadas.
Escrevendo de dentro da incipiente sociedade de produtores,
Karl Marx censurou os economistas da época pela falácia do
“fetichismo da mercadoria”: o hábito de, por ação ou omissão,
ignorar ou esconder a interação humana por trás do movimento
das mercadorias. Como se estas, por conta própria,
travassem relações entre si a despeito da mediação humana.
A descoberta da compra e venda da capacidade de trabalho
como a essência das “relações industriais” ocultas no fenômeno
da “circulação de mercadorias”, insistiu Marx, foi tão
chocante quanto revolucionária: um primeiro passo rumo à
restauração da substância humana na realidade cada vez mais
desumanizada da exploração capitalista.
Um pouco mais tarde, Karl Polanyi abriria outro buraco
na ilusão provocada pelo fetichismo da mercadoria: sim, diria
ele, a capacidade de trabalho era vendida e comprada como se
fosse uma mercadoria como outra qualquer, mas não, insistiria
Polanyi, a capacidade de trabalho não era nem poderia ser uma
mercadoria “como” outra qualquer. A impressão de que o trabalho
era pura e simplesmente uma mercadoria só podia ser uma
grande mistifi cação do verdadeiro estado das coisas, já que a
“capacidade de trabalho” não pode ser comparada nem vendida
em separado de seus portadores. De maneira distinta de outras
mercadorias, os compradores não podem levar sua compra para
casa. O que compraram não se torna sua propriedade exclusiIntrodução
23
va e incondicional, e eles não estão livres para utere et abutere (usar
e abusar) dela à vontade, como estão no caso de outras aquisições.
A transação que parece “apenas comercial” (recordemos a
queixa de Thomas Carlyle, no início do século XX, de que relações
humanas multifacetadas tinham sido reduzidas a um mero
“nexo fi nanceiro”) inevitavelmente liga portadores e compradores
num vínculo mútuo e numa interdependência estreita. No
mercado de trabalho, um relacionamento humano nasce de cada
transação comercial; cada contrato de trabalho é outra refutação
do fetichismo da mercadoria, e na seqüência de cada transação
logo aparecem provas de sua falsidade, assim como da ilusão ou
auto-ilusão subseqüente.
Se foi o destino do fetichismo da mercadoria ocultar das vistas
a substância demasiado humana da sociedade de produtores,
é papel do fetichismo da subjetividade ocultar a realidade demasiado
comodifi cada da sociedade de consumidores.
A “subjetividade” numa sociedade de consumidores, assim
como a “mercadoria” numa sociedade de produtores, é (para usar
o oportuno conceito de Bruno Latour) um fatiche*2– um produto
profundamente humano elevado à categoria de autoridade
sobre-humana mediante o esquecimento ou a condenação à irrelevância
de suas origens demasiado humanas, juntamente com
o conjunto de ações humanas que levaram ao seu aparecimento
e que foram condição sine qua non para que isso ocorresse.
No caso da mercadoria na sociedade de produtores, foi o ato de
comprar e vender sua capacidade de trabalho que, ao dotá-la
de um valor de mercado, transformou o produto do trabalho
numa mercadoria – de uma forma não visível (e sendo oculta)
na aparência de uma interação autônoma de mercadorias. No
caso da subjetividade na sociedade de consumidores, é a vez de
comprar e vender os símbolos empregados na construção da
identidade – a expressão supostamente pública do “self” que na
verdade é o “simulacro” de Jean Baudrillard, colocando a “repre-
* No original, faitishe. (N.T.)
24 Vida para consumo
sentação” no lugar daquilo que ela deveria representar –, a serem
eliminados da aparência do produto fi nal.
A “subjetividade” dos consumidores é feita de opções de
compra – opções assumidas pelo sujeito e seus potenciais compradores;
sua descrição adquire a forma de uma lista de compras.
O que se supõe ser a materialização da verdade interior do self é
uma idealização dos traços materiais – “objetifi cados” – das escolhas
do consumidor.
Algum tempo atrás, uma das cada vez mais numerosas agências
de encontros pela internet (parship.co.uk) conduziu uma
pesquisa que mostrou que dois terços dos solteiros que usaram
serviços de encontros em 2005 (cerca de 3,6 milhões) recorreram
à internet. O negócio de “encontros pela internet” obteve 12 milhões
de libras naquele ano e se espera que atinja 47 milhões em
2008.14 Nos seis meses que precederam a pesquisa, a proporção
de solteiros que acreditavam poder encontrar o parceiro certo na
internet cresceu de 35 para 50% – e a tendência é aumentar mais.
Comentando esses dados, o autor de um dos “artigos spiked”*3
publicados na web observa:
Isso refl ete uma mudança fundamental na forma como as pessoas
são estimuladas a pensar sobre seus relacionamentos pessoais e
organizar suas vidas, com a intimidade apresentada em público e
sujeita a normas contratuais que se poderia associar à compra de
um carro, uma casa ou a uma viagem de férias.15
Compartilhando a opinião expressa por outro escritor “spiked”,
16 o autor acredita que os usuários potenciais são estimulados
a migrar para os serviços de internet como uma “opção
mais segura e controlada”, que lhes permite evitar “o risco e a
imprevisibilidade dos encontros face a face”. “O medo de estar só
remete as pessoas aos computadores, enquanto o perigo repre-
* Bauman faz referência ao site www.spiked-online.com, cujo objetivo é, como
podemos ler no próprio site, “expandir os horizontes da humanidade por meio de
uma guerra cultural de palavras contra a misantropia, o puritanismo, o preconceito,
o ludismo, o iliberalismo e o irracionalismo em todas as suas formas”. (N.T.)
Introdução 25
sentado pelos estranhos estimula o adiamento dos encontros na
vida real.” Mas há um preço a ser pago. Jonathan Keane ressalta
“o senso arrepiante de desconforto e injúria” que atormenta
as pessoas, não importa quanto tentem evitá-lo, à medida que
passam de um site para outro, assim como costumavam virar as
páginas de um catálogo, na busca de um parceiro ideal.17
Claramente, as pessoas que recorrem às agências da internet
em busca de ajuda foram mimadas pelo mercado de consumo,
amigável ao usuário, que promete tornar toda escolha segura e
qualquer transação única e sem compromisso, um ato “sem custos
ocultos”, “nada mais a pagar, nunca”, “sem amarras”, “nenhum
agente para ligar”. O efeito colateral (é possível se dizer, usando
uma expressão que está na moda, “a baixa colateral”) dessa existência
mimada – minimizando os riscos, reduzindo bastante ou
abolindo a responsabilidade e portanto produzindo uma subjetividade
dos protagonistas neutralizada a priori – revelou-se,
contudo, um volume considerável de “desabilitação”*4 social.
A companhia de seres humanos de carne e osso faz com que
os clientes habituais das agências de encontros pela internet, adequadamente
preparados pelas práticas do mercado de produtos,
sintam-se constrangidos. Os tipos de mercadorias com as quais
foram treinados a se sociabilizar são para tocar, mas não têm
mãos para tocar, são despidas para serem examinadas, mas não
devolvem o olhar nem requerem que este seja devolvido, e assim
se abstêm de se expor ao escrutínio do examinador, enquanto
placidamente se expõem ao exame do cliente. Podemos examiná-
las por inteiro sem temer que nossos olhos – as janelas dos segredos
mais privados da alma – sejam eles próprios examinados.
Grande parte da atração exercida pelas agências da internet deriva
da reclassifi cação dos parceiros humanos procurados como
os tipos de mercadorias com as quais os consumidores treinados
estão acostumados a se defrontar e que sabem muito bem mane-
* Em inglês, deskilling – processo pelo qual a mão-de-obra especializada é eliminada
pela introdução de tecnologias operadas por trabalhadores semiqualifi cados ou sem
qualifi cação. (N.T.)
26 Vida para consumo
jar. Quanto mais experientes e “maduros” se tornam os clientes,
mais fi cam surpresos, confusos e embaraçados quando chegam
“face a face” e descobrem que os olhares devem ser devolvidos e
que, nas “transações”, eles, os sujeitos, também são objetos.
Nas lojas, as mercadorias são acompanhadas por respostas
para todas as perguntas que seus potenciais compradores poderiam
desejar fazer antes de tomarem a decisão de adquiri-las, mas
elas próprias se mantêm educadamente silenciosas e não fazem
perguntas, muito menos embaraçosas. As mercadorias confessam
tudo que há para ser confessado, e ainda mais – sem exigir
reciprocidade. Mantêm-se no papel de “objeto” cartesiano – totalmente
dóceis, matérias obedientes a serem manejadas, moldadas
e colocadas em bom uso pelo onipotente sujeito. Pela simples
docilidade, elevam o comprador à categoria de sujeito soberano,
incontestado e desobrigado – uma categoria nobre e lisonjeira
que reforça o ego. Desempenhando o papel de objetos de maneira
impecável e realista o bastante para convencer, os bens do
mercado suprem e reabastecem, de forma perpétua, a base epistemológica
e praxiológica do “fetichismo da subjetividade”.
Como compradores, fomos adequadamente preparados pelos
gerentes de marketing e redatores publicitários a desempenhar
o papel de sujeito – um faz-de-conta que se experimenta
como verdade viva; um papel desempenhado como “vida real”,
mas que com o passar do tempo afasta essa vida real, despindo-a,
nesse percurso, de todas as chances de retorno. E à medida que
mais e mais necessidades da vida, antes obtidas com difi culdade,
sem o luxo do serviço de intermediação proporcionado pelas
redes de compras, tornam-se “comodizados” (a privatização do
fornecimento de água, por exemplo, levando invariavelmente à
água engarrafada nas prateleiras das lojas), as fundações do “fetichismo
da subjetividade” são ampliadas e consolidadas. Para
completar a versão popular e revista do cogito de Descartes,
“Compro, logo sou...”, deveria ser acrescentado “um sujeito”. E
à medida que o tempo gasto em compras se torna mais longo
(fi sicamente ou em pensamento, em carne e osso ou eletroniIntrodução
27
camente), multiplicam-se as oportunidades para se fazer esse
acréscimo.
Entrar na web para escolher/comprar um parceiro segue a mesma
tendência mais ampla das compras pela internet. Cada vez
mais pessoas preferem comprar em websites do que em lojas.
Conveniência (entrega em domicílio) e economia de gasolina
compõem a explicação imediata, embora parcial. O conforto
espiritual obtido ao se substituir um vendedor pelo monitor é
igualmente importante, se não mais.
Um encontro face a face exige o tipo de habilidade social
que pode inexistir ou se mostrar inadequado em certas pessoas,
e um diálogo sempre signifi ca se expor ao desconhecido: é como
se tornar refém do destino. É tão mais reconfortante saber que é
a minha mão, só ela, que segura o mouse e o meu dedo, apenas
ele, que repousa sobre o botão. Nunca vai acontecer de um inadvertido
(e incontrolado!) trejeito em meu rosto ou uma vacilante
mas reveladora expressão de desejo deixar vazar e trair para a
pessoa do outro lado do diálogo um volume maior de meus pensamentos
ou intenções mais íntimas do que eu estava preparado
para divulgar.
Em Soziologie der Sinne, “Sociologia dos sentidos”, Georg
Simmel observa que o olhar que dirijo inadvertidamente a outra
pessoa revela meu próprio eu. O olhar que dirijo na esperança de
obter um lampejo de seu estado mental e/ou de seu coração tende
a ser expressivo, e as emoções mais íntimas mostradas dessa maneira
não podem ser refreadas ou camufl adas com facilidade – a
menos que eu seja um ator profi ssional bastante treinado. Faz sentido,
portanto, imitar o suposto hábito do avestruz de enterrar a
cabeça na areia e desviar ou baixar os olhos. Não olhando o outro
nos olhos, torno meu eu interior (para ser mais exato, meus pensamentos
e emoções mais íntimos) invisível, inescrutável...
Agora, na era dos desktops, laptops, dispositivos eletrônicos e
celulares que cabem na palma da mão, a maioria de nós tem uma
quantidade mais do que sufi ciente de areia para enterrar a cabeça.
28 Vida para consumo
Não precisamos mais nos preocupar com a habilidade superior
do vendedor para ler rostos, com seu poder de persuasão ou com
nossos momentos de fraqueza. Meus temores e esperanças, desejos
e dúvidas continuarão sendo o que devem ser: meus e apenas
meus. Não vou me apressar em pressionar as teclas “compre agora”
e “confi rme” antes de ter coletado, listado e examinado todos
os “prós” e “contras” das diversas escolhas possíveis. Enquanto eu
continuar seguindo dessa maneira prudente, a hora da avaliação,
de dar a sentença, aquele ponto sem retorno com desculpas do
tipo “tarde demais para reconsiderar”, “não há como voltar atrás”
e “não é possível recomeçar”, é mantido a distância. Sou o único
no comando. Sinto-me protegido dos complôs e subterfúgios
dos desconhecidos e impenetráveis outros – mas também de mim
mesmo, de um aspecto que esteja me escapando, de agir “impulsivamente”,
de uma forma que posso vir a lamentar – não tenho
como saber – pelo resto da vida. Isso se aplica à compra de carros,
cortadores de grama, home theaters, laptops ou a uma viagem de
férias. Por que não se aplicaria à aquisição de parceiros?
E por fim, num mundo em que uma novidade tentadora
corre atrás da outra a uma velocidade de tirar o fôlego, num
mundo de incessantes novos começos, viajar esperançoso parece
mais seguro e muito mais encantador do que a perspectiva
da chegada: a alegria está toda nas compras, enquanto a
aquisição em si, com a perspectiva de ficar sobrecarregado
com seus efeitos diretos e colaterais possivelmente incômodos
e inconvenientes, apresenta uma alta probabilidade de
frustração, dor e remorso. E como as lojas da internet permanecem
abertas o tempo todo, pode-se esticar à vontade o
tempo de satisfação não contaminada por qualquer preocupação
com frustrações futuras. Uma escapada para fazer compras
não precisa ser uma excursão muito planejada – pode ser
fragmentada numa série de agradáveis momentos de excitação,
profusamente borrifados sobre todas as outras atividades
existenciais, acrescentando cores brilhantes aos recantos mais
sombrios ou monótonos.
Introdução 29
O problema, evidentemente, é que procurar um parceiro não se
encaixa muito bem no esquema comprar-e-pagar – muito menos
uma companhia para a vida.
A ajuda que pode ser dada pela internet na eterna guerra
preventiva contra os riscos e ansiedades que enchem até as bordas
a vida de um selecionador em uma sociedade de selecionadores
tende a permanecer limitada e com uma sensação do tipo “até
certo ponto”. Pode aplacar algumas ansiedades do pesquisador
enquanto dura a pesquisa, mas não vai ultrapassar o momento
de realização a que se espera e deseja que conduza a viagem de
descoberta, e do qual se acredita que ela extraia sua atração e
motivo. Tal como o fetichismo da mercadoria que assombrava a
sociedade de produtores, o fetichismo da subjetividade que assombra
a sociedade de consumidores se baseia, em última instância,
numa ilusão.
O poder produtivo dos produtores não poderia ser isolado
dos próprios produtores, dos quais era o poder inalienável.
Um custo invisível, embora pesado e inescapável, da transação de
compra e venda de mão-de-obra era, portanto, um laço complexo,
multifacetado e, acima de tudo, recíproco, ligando compradores
e vendedores enquanto durasse o processo de produção a que
a força de trabalho adquirida deveria servir. Esse vínculo signifi -
cava que era precipitada a conclusão de que haveria uma longa,
talvez interminável, cadeia de choques de interesses, fortes antagonismos
ou inimizades abertas, escaramuças diárias e longas
guerras de reconhecimento. É mais ou menos a mesma história
quando se trata da compra de uma “força de prazer”: ainda que
sejam listadas no site da agência de encontros da maneira mais
completa e honesta, as fantásticas qualidades prazerosas procuradas
pelos surfi stas da internet em seus parceiros potenciais, e
pelas quais são orientadas suas escolhas, não podem ser isoladas
das pessoas que as possuem, da mesma forma que a força de trabalho
não podia ser separada dos produtores a que pertencia.
De maneira distinta da fi cção eletronicamente improvisada
a partir de uma série de atributos pré-selecionados, a pessoa
30 Vida para consumo
real é dotada de uma língua para falar e de ouvidos para escutar.
Deseja que o parceiro eleito olhe em seus olhos e se disponha
a expor seus próprios olhos ao exame do outro, tem emoções
esperando para serem despertadas, assim como a capacidade de
despertá-las, e uma biografi a apenas sua, juntamente com uma
personalidade, expectativas e um modelo de felicidade biografi -
camente moldados: nada que lembre nem de longe o passivo, dócil,
submisso e maleável “objeto” cartesiano. A maldição da mútua
“atoria” (aquela mistura “impura” do “ator” com o “autor”,
muito provavelmente incapaz de ser purifi cada em função do
irredutível poder autoral de todos os atores e da virtual impossibilidade
de “reiterações puras” de movimentos padronizados)
vai tirar a máscara da ilusão da “subjetividade pura”. Nenhum
conjunto de precauções pode mudar esse fato ou “purgar” a relação
dessa maldição: ela vai pairar sobre a série de tentativas dedicadas
e engenhosas de mudá-la, não importa quanto durem.
Há limites até onde se pode estender a “soberania do consumidor”
prometida pela sociedade dos consumidores – limites intransponíveis
–, e de cada encontro entre seres humanos esses
limites tendem a emergir fortalecidos, apesar (ou por causa) das
pressões para retraçá-los.
O fetichismo da subjetividade, tal como, antes dele, o fetichismo
da mercadoria, baseia-se numa mentira, e assim é pela
mesma razão de seu predecessor – ainda que as duas variedades
de fetichismo centralizem duas operações encobertas em lados
opostos da dialética sujeito-objeto entranhada na condição existencial
humana. Ambas as variações tropeçam e caem diante do
mesmo obstáculo: a teimosia do sujeito humano, que resiste bravamente
às repetidas tentativas de objetifi cá-lo.
Na sociedade de consumidores, a dualidade sujeito-objeto
tende a ser incluída sob a dualidade consumidor-mercadoria. Nas
relações humanas, a soberania do sujeito é, portanto, reclassifi cada
e representada como a soberania do consumidor – enquanto a
resistência ao objeto, derivada de sua soberania não inteiramente
Introdução 31
suprimida, embora rudimentar, é oferecida à percepção como a
inadequação, inconsistência ou imperfeição de uma mercadoria
mal escolhida.
O consumismo dirigido para o mercado tem uma receita
para enfrentar esse tipo de inconveniência: a troca de uma
mercadoria defeituosa, ou apenas imperfeita e não plenamente
satisfatória, por uma nova e aperfeiçoada. A receita tende a
ser reapresentada como um estratagema a que os consumidores
experientes recorrem automaticamente de modo quase irrefl etido,
a partir de um hábito aprendido e interiorizado. Afi nal de
contas, nos mercados de consumidores-mercadorias, a necessidade
de substituir objetos de consumo “defasados”, menos que
plenamente satisfatórios e/ou não mais desejados está inscrita
no design dos produtos e nas campanhas publicitárias calculadas
para o crescimento constante das vendas. A curta expectativa de
vida de um produto na prática e na utilidade proclamada está
incluída na estratégia de marketing e no cálculo de lucros: tende
a ser preconcebida, prescrita e instilada nas práticas dos consumidores
mediante a apoteose das novas ofertas (de hoje) e a difamação
das antigas (de ontem).
Entre as maneiras com que o consumidor enfrenta a insatisfação,
a principal é descartar os objetos que a causam. A sociedade
de consumidores desvaloriza a durabilidade, igualando
“velho” a “defasado”, impróprio para continuar sendo utilizado
e destinado à lata de lixo. É pela alta taxa de desperdício, e pela
decrescente distância temporal entre o brotar e o murchar do
desejo, que o fetichismo da subjetividade se mantém vivo e digno
de crédito, apesar da interminável série de desapontamentos
que ele causa. A sociedade de consumidores é impensável sem
uma fl orescente indústria de remoção do lixo. Não se espera dos
consumidores que jurem lealdade aos objetos que obtêm com a
intenção de consumir.
O padrão cada vez mais comum de uma “relação pura”, revelado
e descrito por Anthony Giddens em seu livro Transformações
da intimidade, pode ser interpretado como um transplan32
Vida para consumo
te da regra do mercado de bens para o domínio dos vínculos
humanos. A prática da “relação pura”, bastante observada e por
vezes louvada no folclore popular e em sua representação pelos
meios de comunicação, pode ser visualizada à semelhança da
presumida ou postulada soberania do consumidor. O impacto
da diferença entre o relacionamento parceiro-parceiro e o ato de
adquirir bens de consumo comuns, distinção essa muito profunda,
originada na reciprocidade do acordo necessário para que a
relação se inicie, é minimizado (se não tornado totalmente irrelevante)
pela cláusula que torna a decisão de um dos parceiros sufi -
ciente para encerrá-la. É essa cláusula que põe a nu a similaridade
sobreposta à diferença: no modelo de uma “relação pura”, tal
como nos mercados de bens, os parceiros têm o direito de tratar
um ao outro como tratam os objetos de consumo. Uma vez que
a permissão (e a prescrição) de rejeitar e substituir um objeto de
consumo que não traz mais satisfação total seja estendida às relações
de parceria, os parceiros são reduzidos ao status de objetos
de consumo. De maneira paradoxal, eles são classifi cados assim
por causa de sua luta para obter e monopolizar as prerrogativas
do consumidor soberano...
Uma “relação pura” centralizada na utilidade e na satisfação
é, evidentemente, o exato oposto de amizade, devoção, solidariedade
e amor – todas aquelas relações “Eu-Você” destinadas a
desempenhar o papel de cimento no edifício do convívio humano.
Sua “pureza” é avaliada, em última instância, pela ausência de
ingredientes eticamente carregados. A atração de uma “relação
pura” está na deslegitimação, para citar Ivan Klima, de questões
como: “Onde está a fronteira entre o direito à felicidade pessoal
e a um novo amor, por um lado, e o egoísmo irresponsável que
desintegraria a família e talvez prejudicasse os fi lhos, de outro?”18
Em última instância, essa atração está em estabelecer o atar e
desatar de vínculos humanos como ações moralmente “adiafóricas”
(indiferentes, neutras), que portanto livram os atores da
responsabilidade que o amor, para o bem ou para o mal, promete
e luta para construir e preservar. “A criação de um relacionamenIntrodução
33
to bom e duradouro”, em total oposição à busca de prazer por
meio de objetos de consumo, “exige um esforço enorme” – um
aspecto que a “relação pura” nega de forma enfática em nome de
alguns outros valores, entre os quais não fi gura a responsabilidade
pelo outro, fundamental em termos éticos. Mas aquilo com o que
o amor, em completa oposição a um mero desejo de satisfação,
deve ser comparado, sugere Klima,
é a criação de uma obra de arte ... Isso também exige imaginação,
concentração total, a combinação de todos os aspectos da personalidade
humana, sacrifício pessoal por parte do artista e liberdade
absoluta. Mas acima de tudo, tal como se dá com a criação artística,
o amor exige ação, ou seja, atividades e comportamentos não-rotineiros,
assim como uma atenção constante à natureza intrínseca
do parceiro, o esforço de compreender sua individualidade, além
de respeito. E, por fi m, ele precisa de tolerância, da consciência de
que não deve impor suas perspectivas ou opiniões ao companheiro
ou atrapalhar sua felicidade.
O amor, podemos dizer, abstém-se de prometer uma passagem
fácil para a felicidade e a signifi cação. Uma “relação pura”
inspirada por práticas consumistas promete que essa passagem
será fácil e livre de problemas, enquanto faz a felicidade e o propósito
reféns do destino – é mais como ganhar na loteria do que
um ato de criação e esforço.
Enquanto escrevo estas palavras, foi publicado um excelente
estudo das muitas faces do consumismo, organizado por John
Brewer e Frank Trentmann.19 Na introdução, os dois extraíram
a seguinte conclusão de um levantamento exaustivo das abordagens
disponíveis para o estudo do fenômeno:
Começaremos este capítulo comentando a notável riqueza e diversidade
do consumo moderno e a difi culdade de acomodar essa variedade
num único arcabouço interpretativo ... Nenhuma narrativa singular
do consumo, nenhuma tipologia singular do consumidor e nenhuma
versão monolítica da cultura de consumo será sufi ciente ...
34 Vida para consumo
E eles nos advertem que, ao enfrentarmos a desanimadora
tarefa de compor essa visão coesa dos consumidores e de suas estratégias
de vida, devemos “reconhecer que esses mercados estão
necessariamente incrustados em complexas matrizes políticas e
culturais que conferem aos atos de consumo sua ressonância
e importância específi cas. Só então seremos capazes de fazer justiça
ao consumo moderno em todo o seu poder e plenitude”.
Eles estão absolutamente certos. O que escrevo aqui é mais
uma ilustração da tese deles, outro acréscimo às incontáveis perspectivas
cognitivas a partir das quais o fenômeno do consumo
moderno tem sido examinado até agora. Uma tentativa não menos
(embora se espere que não mais) parcial do que aquelas que
pretendem complementar em vez de corrigir, que dirá substituir.
Neste livro, pretendo propor três “tipos ideais”: o do consumismo,
o da sociedade de consumidores e o da cultura consumista.
Sobre as bases metodológicas e a importância cognitiva dos tipos
ideais, ver Capítulo 1; mas deve-se enfatizar já aqui que os
“tipos ideais” não são instantâneos nem imagens da realidade
social, mas tentativas de construir modelos de seus elementos essenciais
e de sua confi guração, destinados a tornar inteligíveis as
evidências da experiência, que de outro modo pareceriam caóticas
e fragmentadas. Tipos ideais não são descrições da realidade
social, mas instrumentos de sua análise e – ao que se espera – de
sua compreensão. Seu propósito é fazer com que nosso retrato
da sociedade que habitamos “faça sentido”. Para atingir esse
propósito, eles deliberadamente postulam mais homogeneidade,
consistência e lógica no mundo social empírico do que a experiência
diária torna visível e nos permite captar. Suas raízes se
fi ncam profundamente no solo da experiência e das práticas humanas
cotidianas. Mas para conseguir uma melhor visão de tais
práticas, assim como de suas causas e motivos, precisam de uma
distância que lhes permita abraçar o campo como um todo – de
modo que a visão das práticas humanas se torne mais abrangente
e mais clara para o analista, revelando também, espera-se, as
causas e os motivos de suas ações aos próprios atores.
Introdução 35
Estou plenamente consciente da “mixórdia” (complexidade,
multilateralidade, heterogeneidade) que nossa experiência comum
da realidade nos torna disponível. Mas também estou consciente
de que modelos “adequados ao nível do signifi cado”, como
diria Max Weber, são indispensáveis para qualquer compreensão,
e até para a própria consciência das similaridades e diferenças,
conexões e descontinuidades que se ocultam por trás da desconcertante
variedade de experiências. Os tipos ideais que aqui proponho
devem ser “pensados com” e servir de instrumentos para
“ver com”.
Com a mesma idéia em mente, proponho alguns conceitos
que, espero, possam ajudar na apreensão de fenômenos e processos
novos ou emergentes que elidem com as redes conceituais
mais antigas – como “tempo pontilhista”, “comodifi cação dos
consumidores” ou “fetichismo da subjetividade”. Por fi m, tento
registrar o impacto dos padrões de interação e avaliação consumistas
acerca de vários aspectos aparentemente desconexos do
ambiente social, como política e democracia, divisões e estratifi -
cação social, comunidades e parcerias, construção de identidade,
produção e uso do conhecimento ou preferências valorativas.
A invasão, a conquista e a colonização da rede de relações pelas visões
de mundo e padrões comportamentais inspirados e feitos
sob medida pelos mercados de produtos, assim como as fontes
de ressentimento, dissensão e ocasional resistência às forças de
ocupação, da mesma forma que a questão dos limites intransponíveis
(se existe algum) ao domínio dos ocupantes, são os
principais temas deste livro. As formas sociais e a cultura da vida
contemporânea são examinadas uma vez mais e reinterpretadas
à luz desses temas.
Inevitavelmente, a história que se pretende contar aqui será
inconclusa – na verdade, com fi nal em aberto –, como tende a ser
qualquer reportagem enviada do campo de batalha.
O segredo mais bem guardado 7
da sociedade de consumidores
1. Consumismo versus consumo 37
2. Sociedade de consumidores 70
3. Cultura consumista 107
4. Baixas colaterais do consumismo 149
Notas 191
Índice remissivo 197
7...
. Introdução .
O segredo mais bem guardado
da sociedade de consumidores
Talvez não exista pior privação, pior carência,
que a dos perdedores na luta simbólica
por reconhecimento, por acesso a uma existência
socialmente reconhecida, em suma,
por humanidade.
Pierre Bourdieu, Meditações pascalianas
Consideremos três casos, escolhidos de maneira aleatória, dos
hábitos altamente mutáveis de nossa sociedade cada vez mais
“plugada”, ou, para ser mais preciso, sem fi o.
Caso 1. Em 2 de março de 2006, o Guardian anunciou que “nos
12 últimos meses as ‘redes sociais’ deixaram de ser o próximo
grande sucesso para se transformarem no sucesso do momento”.
1 As visitas ao site MySpace, que um ano antes era o líder inconteste
do novo veículo das “redes sociais”, multiplicaram-se
por seis, enquanto o site rival Spaces.MSN teve 11 vezes mais
acessos do que no ano anterior, e as visitas ao Bebo.com foram
multiplicadas por 61.
Um crescimento de fato impressionante – ainda que o surpreendente
sucesso do Bebo, recém-chegado à internet na época
da reportagem, possa se revelar fogo de palha: como adverte
um especialista nos modismos da internet, “pelo menos 40% dos
dez mais acessados este ano não serão nada daqui a um ano”.
“Lançar um novo site de rede social”, explica ele, é “como abrir o
mais novo bar em uma área nobre” (só por ser o mais novo, uma
casa brilhando de tão nova ou recém-reformada e reaberta, esse
8 Vida para consumo
bar atrairia uma multidão “até que murchasse, o que aconteceria
com tanta certeza quanto a chegada da ressaca no dia seguinte”,
passando seus poderes magnéticos ao “próximo mais novo” na
eterna corrida para ser “o point mais quente”, o último “assunto
do momento”, o lugar onde “todo mundo que é alguém precisa
ser visto”).
Uma vez que fi nquem seus pés numa escola ou numa comunidade,
seja ela física ou eletrônica, os sites de “rede social” se
espalham à velocidade de uma “infecção virulenta ao extremo”.
Com muita rapidez, deixaram de ser apenas uma opção entre
muitas para se tornarem o endereço default de um número crescente
de jovens, homens e mulheres. Obviamente, os inventores
e promotores das redes eletrônicas tocaram uma corda sensível –
ou num nervo exposto e tenso que há muito esperava o tipo
certo de estímulo. Eles podem ter motivos para se vangloriar de
terem satisfeito uma necessidade real, generalizada e urgente. E
qual seria ela? “No cerne das redes sociais está o intercâmbio de
informações pessoais.” Os usuários fi cam felizes por “revelarem
detalhes íntimos de suas vidas pessoais”, “fornecerem informações
precisas” e “compartilharem fotografi as”. Estima-se que
61% dos adolescentes britânicos com idades entre 13 e 17 anos
“têm um perfi l pessoal num site de rede” que possibilite “relacionar-
se on-line”.2
Na Grã-Bretanha, lugar em que o uso popular de recursos
eletrônicos de ponta está ciberanos atrás do Extremo Oriente, os
usuários ainda podem acreditar que as “redes sociais” expressam
sua liberdade de escolha, e mesmo que constituam uma forma de
rebeldia e auto-afi rmação juvenil (suposição tornada ainda mais
verossímil pelos sinais de pânico que o ardor sem precedentes,
induzido pela web e a ela dirigido, desencadeia a cada dia entre
seus pais e professores, e pelas reações nervosas dos diretores
que interditam o acesso ao Bebo e similares a partir dos compu -
tadores de suas escolas). Mas na Coréia do Sul, por exemplo, onde
grande porção da vida social já é, como parte da rotina, mediada
eletronicamente (ou melhor, onde a vida social já se transformou
Introdução 9
em vida eletrônica ou cibervida, e a maior parte dela se passa na
companhia de um computador, um iPod ou um celular, e apenas
secundariamente ao lado de seres de carne e osso), é óbvio para
os jovens que eles não têm sequer uma pitada de escolha. Onde
eles vivem, levar a vida social eletronicamente mediada não é
mais uma opção, mas uma necessidade do tipo “pegar ou largar”.
A “morte social” está à espreita dos poucos que ainda não
se integraram ao Cyworld, líder sul-coreano no cibermercado da
“cultura mostre e diga”.
Seria um erro grave, contudo, supor que o impulso que leva
à exibição pública do “eu interior” e a disposição de satisfazer
esse impulso sejam manifestações de um vício/anseio singular,
puramente geracional e relacionado aos adolescentes, por natureza
ávidos, como tendem a ser, para colocar um pé na “rede”
(termo que está rapidamente substituindo “sociedade”, tanto no
discurso das ciências sociais quanto na linguagem popular) e lá
permanecer, embora sem muita certeza quanto à melhor maneira
de atingir tal objetivo. O novo pendor pela confi ssão pública
não pode ser explicado por fatores “específi cos da idade” – não
só por eles. Eugène Enriquez resumiu a mensagem que se pode
extrair das crescentes evidências coletadas em todos os setores do
mundo líquido-moderno dos consumidores:
Desde que não se esqueça que o que antes era invisível – a parcela
de intimidade, a vida interior de cada pessoa – agora deve ser
exposto no palco público (principalmente nas telas de TV, mas
também na ribalta literária), vai-se compreender que aqueles que
zelam por sua invisibilidade tendem a ser rejeitados, colocados de
lado ou considerados suspeitos de um crime. A nudez física, social
e psíquica está na ordem do dia.3
Os adolescentes equipados com confessionários eletrônicos
portáteis são apenas aprendizes treinando e treinados na arte de
viver numa sociedade confessional – uma sociedade notória por eliminar
a fronteira que antes separava o privado e o público, por transformar
o ato de expor publicamente o privado numa virtude e
10 Vida para consumo
num dever públicos, e por afastar da comunicação pública qualquer
coisa que resista a ser reduzida a confi dências privadas,
assim como aqueles que se recusam a confi denciá-las. Como
Jim Gamble, diretor de uma agência de monitoramento de
rede, admitiu ao Guardian, “ela representa tudo aquilo que se
vê no playground – a única diferença é que nesse playground
não há professores, policiais ou moderadores que fi cam de
olho no que se passa”.
Caso 2. No mesmo dia, embora numa página bem diferente
e sem conexão temática, organizada por outro editor, o Guardian
informava ao leitor que “sistemas informáticos estão sendo
usados para rejeitá-lo de maneira mais efi caz, dependendo de
seu valor para a companhia para a qual você está ligando”.4 Ou
seja, tais sistemas possibilitam que sejam armazenados os registros
dos clientes, classifi cando-os a partir de “1”, os clientes de
primeira classe que devem ser atendidos no exato momento da
ligação e prontamente remetidos a um agente sênior, até “3” (os
que “vivem no charco”, como foram classifi cados no jargão da
empresa), a serem colocados no fi nal da fi la – e, quando afi nal
são atendidos, conectados a um agente de baixo escalão.
Assim como no Caso 1, difi cilmente seria possível culpar a
tecnologia pela nova prática. O novo e refi nado software veio
para ajudar os administradores que já tinham a imensa necessidade
de classifi car o crescente exército de clientes ao telefone
para que fosse possível executar as práticas divisórias e exclusivistas
que já estavam em operação, mas que até o momento eram
realizadas com a ajuda de ferramentas primitivas – produtos do
tipo “faça-você-mesmo”, feitos em casa ou por uma indústria
doméstica, que exigiam mais tempo e eram, é evidente, menos
efi cazes. Como assinalou o porta-voz de uma das companhias
fornecedoras desses sistemas, “a tecnologia só faz pegar os processos
em operação e torná-los mais efi cientes” – o que signifi ca
de maneira instantânea e automática, poupando os empregados
da incômoda tarefa de coletar informações, estudar registros, faIntrodução
11
zer avaliações e tomar decisões distintas a cada chamada, assim
como a responsabilidade pelas conseqüências decorrentes. O
que, na ausência do equipamento técnico adequado, eles teriam
de avaliar forçando o próprio cérebro e gastando grande parte
do precioso tempo da companhia é a rentabilidade potencial do
cliente para a empresa: o volume de dinheiro ou crédito à disposição
do cliente e sua disponibilidade de se desfazer desse capital.
“As empresas precisam identifi car os clientes menos valiosos”,
explica outro executivo. Em outras palavras, elas necessitam de
uma espécie de “vigilância negativa”, ao estilo do Big Brother
de Orwell ou do tipo panóptico, uma geringonça semelhante a
uma peneira que basicamente executa a tarefa de desviar os indesejáveis
e manter na linha os clientes habituais – reapresentada
como o efeito fi nal de uma limpeza bem-feita. Elas precisam
de uma forma para alimentar o banco de dados com o tipo de
informação capaz, acima de tudo, de rejeitar os “consumidores
falhos” – essas ervas daninhas do jardim do consumo, pessoas
sem dinheiro, cartões de crédito e/ou entusiasmo por compras,
e imunes aos afagos do marketing. Assim, como resultado da seleção
negativa, só jogadores ávidos e ricos teriam a permissão de
permanecer no jogo do consumo.
Caso 3. Poucos dias depois, outro editor, em outra página, informava
aos leitores que Charles Clarke, ministro britânico do
Interior, havia anunciado um novo sistema de imigração, “baseado
em pontuações”, destinado a “atrair os melhores e mais
inteligentes”5 e, é claro, repelir e manter afastados todos os demais,
ainda que essa parte da declaração de Clarke fosse difícil
de detectar na versão apresentada no comunicado à imprensa –
totalmente omitida ou relegada às letras miúdas. A quem deve
atrair o novo sistema? Aqueles com mais dinheiro para investir e
mais habilidades para ganhá-lo. “Isso vai nos permitir assegurar”,
disse o ministro do Interior, que “só venham para o Reino Unido
as pessoas dotadas das habilidades de que o país necessita, evitando,
ao mesmo tempo, que os destituídos dessas habilidades se
12 Vida para consumo
candidatem.” E como vai funcionar esse sistema? Por exemplo:
Kay, uma jovem da Nova Zelândia, com diploma de mestrado,
mas com um emprego humilde e muito mal pago, não conseguiu
atingir os 75 pontos que a habilitariam a requerer a imigração.
Precisaria, em primeiro lugar, obter uma oferta de emprego de
uma empresa britânica, o que então seria registrado em seu favor,
como prova de que suas habilidades são do tipo “que o país
necessita”.
Charles Clarke não é o primeiro a aplicar à seleção de seres
humanos a regra do mercado de escolher o melhor produto da
prateleira. Como assinalou Nicolas Sarkozy, ex-ministro do Interior
e atual presidente francês, “a imigração seletiva é praticada
por quase todas as democracias do mundo”. E ele prosseguiu
exigindo que “a França seja capaz de escolher seus imigrantes
segundo nossas necessidades”.6
Três casos apresentados em três diferentes seções do jornal e
supostamente pertencentes a domínios da vida muito distintos,
cada qual governado por seu próprio conjunto de regras,
supervisionado e administrado por agências mutuamente independentes.
Casos que parecem tão dessemelhantes, que dizem
respeito a pessoas com origens, idades e interesses amplamente
diversos, confrontadas com desafi os bastante variados e lutando
para resolver problemas muito diferentes. Pode-se indagar:
haveria alguma razão para colocá-las lado a lado e considerá-las
como espécimes de uma mesma categoria? A resposta é sim, há
uma razão, e muito poderosa, para conectá-las.
Os colegiais de ambos os sexos que expõem suas qualidades
com avidez e entusiasmo na esperança de atrair a atenção para
eles e, quem sabe, obter o reconhecimento e a aprovação exigidos
para permanecer no jogo da sociabilidade; os clientes potenciais
com necessidade de ampliar seus registros de gastos e limites de
crédito para obter um serviço melhor; os pretensos imigrantes
lutando para acumular pontuação, como prova da existência de
uma demanda por seus serviços, para que seus requerimentos
Introdução 13
sejam levados em consideração – todas as três categorias de pessoas,
aparentemente tão distintas, são aliciadas, estimuladas ou
forçadas a promover uma mercadoria atraente e desejável. Para
tanto, fazem o máximo possível e usam os melhores recursos que
têm à disposição para aumentar o valor de mercado dos produtos
que estão vendendo. E os produtos que são encorajadas a
colocar no mercado, promover e vender são elas mesmas.
São, ao mesmo tempo, os promotores das mercadorias e as
mercadorias que promovem. São, simultaneamente, o produto e
seus agentes de marketing, os bens e seus vendedores (e permitam-
me acrescentar que qualquer acadêmico que já se inscreveu
para um emprego como docente ou para receber fundos de pesquisa
vai reconhecer suas próprias difi culdades nessa experiência).
Seja lá qual for o nicho em que possam ser encaixados pelos
construtores de tabelas estatísticas, todos habitam o mesmo
espaço social conhecido como mercado. Não importa a rubrica
sob a qual sejam classifi cados por arquivistas do governo ou jornalistas
investigativos, a atividade em que todos estão engajados
(por escolha, necessidade ou, o que é mais comum, ambas) é o
marketing. O teste em que precisam passar para obter os prêmios
sociais que ambicionam exige que remodelem a si mesmos como
mercadorias, ou seja, como produtos que são capazes de obter
atenção e atrair demanda e fregueses.
Siegfried Kracauer foi um pensador dotado da estranha capacidade
de distinguir os contornos quase invisíveis e incipientes
de tendências indicativas do futuro ainda perdidos numa massa
disforme de modismos e idiossincrasias passageiros. Ainda no
fi nal da década de 1920, quando a iminente transformação da
sociedade de produtores em sociedade de consumidores estava
num estágio embrionário ou, na melhor das hipóteses, incipiente,
e portanto passava despercebida a observadores menos atentos
e perspicazes, ele havia notado que
a corrida aos inúmeros salões de beleza nasce, em parte, de
preocupações existenciais, e o uso de cosméticos nem sempre é um
luxo. Por medo de caírem em desuso como obsoletos, senhoras e
14 Vida para consumo
cavalheiros tingem o cabelo, enquanto quarentões praticam esportes
para se manterem esguios. “Como posso fi car bela?”, indaga o título
de um folheto recém-lançado no mercado; os anúncios de jornal
dizem que ele apresenta maneiras de “permanecer jovem e bonita
agora e para sempre”.7
Os hábitos emergentes que Kracauer registrou na década de
1920 como uma curiosidade berlinense digna de nota avançaram
e se espalharam como fogo numa fl oresta, até se transformarem
em rotina diária (ou pelo menos num sonho) por todo o planeta.
Oitenta anos depois, Germaine Greer observava que “mesmo
nos rincões mais distantes do noroeste da China, as mulheres
deixavam de lado seus pijamas em favor de sutiãs acolchoados
e saias insinuantes, faziam permanente e pintavam seus cabelos
lisos, e economizavam para comprar cosméticos. Isso era chamado
de liberalização.”8
Meio século após Kracauer observar e descrever as novas
paixões das mulheres berlinenses, outro notável pensador alemão,
Jürgen Habermas, escrevendo à época em que a sociedade
de produtores estava chegando ao fi nal de seus dias, e portanto
com o benefício da percepção a posteriori, apresentava a “comodifi
cação do capital e do trabalho” como a principal função, a
própria raison d’être, do Estado capitalista. Ele apontou que, se
a reprodução da sociedade capitalista é obtida mediante encontros
transnacionais interminavelmente repetidos entre o capital
no papel de comprador e o trabalho no de mercadoria, então o
Estado capitalista deve cuidar para que esses encontros ocorram
com regularidade e atinjam seus propósitos, ou seja, culminem
em transações de compra e venda.
No entanto, para que se alcance tal culminação em todos
os encontros, ou ao menos em um número signifi cativo deles, o
capital deve ser capaz de pagar o preço corrente da mercadoria,
estar disposto a fazê-lo e ser estimulado a agir de acordo com
essa disposição – garantido por uma política de seguros endossada
pelo Estado contra os riscos causados pelos notórios caprichos
dos mercados de produtos. O trabalho, por outro lado, deve
Introdução 15
ser mantido em condição impecável, pronto para atrair o olhar
de potenciais compradores, conseguir a aprovação destes e aliciá-
los a comprar o que estão vendo. Assim como encorajar os
capitalistas a gastarem seu dinheiro com mão-de-obra, torná-la
atraente para esses compradores é pouco provável sem a ativa
colaboração do Estado. As pessoas em busca de trabalho precisam
ser adequadamente nutridas e saudáveis, acostumadas a um
comportamento disciplinado e possuidoras das habilidades exigidas
pelas rotinas de trabalho dos empregos que procuram.
Hoje em dia, défi cits de poder e recursos afl igem a maioria
dos Estados-nação que luta para desempenhar a contento a
tarefa da comodifi cação – défi cits causados pela exposição do
capital nativo à competição cada vez mais intensa resultante da
globalização dos mercados de capitais, trabalho e mercadorias,
e pela difusão planetária das modernas formas de produção e
comércio, assim como dos défi cits provocados pelos custos, em
rápido crescimento, do “Estado de bem-estar social”, esse instrumento
supremo e talvez indispensável da comodifi cação do
trabalho.
Aconteceu que, no caminho entre a sociedade de produtores e a
sociedade de consumidores, as tarefas envolvidas na comodifi -
cação e recomodifi cação do capital e do trabalho passaram por
processos simultâneos de desregulamentação e privatização contínuas,
profundas e aparentemente irreversíveis, embora ainda
incompletas.
A velocidade e o ritmo acelerado desses processos foram e
continuam a ser tudo, menos uniformes. Na maioria dos países
(embora não em todos), eles parecem muito menos radicais no
caso do trabalho do que até agora o foram em relação ao capital,
cujos novos empreendimentos continuam a ser estimulados –
quase como regra – pelos cofres governamentais numa escala
crescente e não reduzida. Além disso, a capacidade e a disposição
do capital para comprar trabalho continuam sendo reforçadas
com regularidade pelo Estado, que faz o possível para manter
16 Vida para consumo
baixo o “custo da mão-de-obra” mediante o desmantelamento
dos mecanismos de barganha coletiva e proteção do emprego, e
pela imposição de freios jurídicos às ações defensivas dos sindicatos
– e que com muita freqüência mantêm a solvência das empresas
taxando importações, oferecendo incentivos fi scais para
exportações e subsidiando os dividendos dos acionistas por meio
de comissões governamentais pagas com dinheiro público. Para
apoiar, por exemplo, a fracassada promessa da Casa Branca de
manter baixos os preços nos postos de gasolina sem ameaçar os
lucros dos acionistas, o governo Bush confi rmou, em fevereiro
de 2006, que iria renunciar a 7 bilhões de dólares em royalties nos
próximos cinco anos (soma que alguns estimam ser o quádruplo),
a fi m de encorajar a indústria norte-americana do petróleo
a prospectar o produto nas águas de propriedade pública do
golfo do México (“É como dar subsídios a um peixe para que ele
nade”, foi a reação de um deputado a essa notícia: “É indefensável
subsidiar essas empresas com os preços do petróleo e do gás tão
elevados”.)9
A tarefa da recomodifi cação do trabalho foi a mais afetada
até agora pelos processos gêmeos da desregulamentação e da
privatização. Essa tarefa está sendo excluída da responsabilidade
governamental direta, mediante a “terceirização”, completa ou
parcial, do arcabouço institucional essencial à prestação de serviços
cruciais para manter vendável a mão-de-obra (como no
caso de escolas, habitações, cuidados com os idosos e um número
crescente de serviços médicos). Assim, a preocupação de
garantir a “vendabilidade” da mão-de-obra em massa é deixada
para homens e mulheres como indivíduos (por exemplo: transferindo
os custos da aquisição de habilidades profi ssionais para
fundos privados – e pessoais), e estes são agora aconselhados por
políticos e persuadidos por publicitários a usarem seus próprios
recursos e bom senso para permanecerem no mercado, aumentarem
seu valor mercadológico, ou pelo menos não o deixarem
cair, e obterem o reconhecimento de potenciais compradores.
Tendo passado vários anos observando de perto (quase
como participante) os mutáveis padrões de emprego nos setoIntrodução
17
res mais avançados da economia norte-americana, Arlie Russell
Hochschild descobriu e documentou tendências surpreendentemente
semelhantes às encontradas na Europa e descritas de
forma muito detalhada por Luc Boltanski e Eve Chiapello como
o “novo espírito do capitalismo”. A preferência, entre os empregadores,
por empregados “fl utuantes”, descomprometidos, fl exíveis,
“generalistas” e, em última instância, descartáveis (do tipo
“pau-pra-toda-obra”, em vez de especializados e submetidos a
um treinamento estritamente focalizado), foi o mais seminal de
seus achados. Nas palavras do próprio Hochschild:
Desde 1997, um novo termo – “chateação zero”*1– começou a
circular em silêncio pelo Vale do Silício, terra natal da revolução
informática nos Estados Unidos. Em sua origem, signifi cava o movimento
sem fricção de um objeto físico como uma bicicleta ou um
skate. Depois foi aplicado a empregados que, independentemente
de incentivos fi nanceiros, trocavam com facilidade de emprego.
Mais recentemente, passou a signifi car “descomprometido” ou
“desobrigado”. Um empregador “pontocom” pode comentar, com
aprovação, sobre um empregado: “Ele é um chateação zero”, querendo
dizer que ele está disponível para assumir atribuições extras,
responder a chamados de emergência, ou ser realocado a qualquer
momento. Segundo Po Bronson, pesquisador da cultura do Vale
do Silício, “chateação zero é ótimo. Por algum tempo, os novos
candidatos eram jocosamente indagados sobre seu ‘coefi ciente de
chateação’”.10
Morar a alguma distância do Vale do Silício e/ou carregar o
peso de uma mulher ou fi lho aumentam o “coefi ciente de chateação”
e reduzem as chances de emprego do candidato. Os empregadores
desejam que seus futuros empregados nadem em vez
de caminhar e pratiquem surfe em vez de nadar. O empregado
ideal seria uma pessoa sem vínculos, compromissos ou ligações
emocionais anteriores, e que evite estabelecê-los agora; uma pes-
* Em inglês, “zero drag”. (N.T.)
18 Vida para consumo
soa pronta a assumir qualquer tarefa que lhe apareça e preparada
para se reajustar e refocalizar de imediato suas próprias inclinações,
abraçando novas prioridades e abandonando as adquiridas
anteriormente; uma pessoa acostumada a um ambiente em que
“acostumar-se” em si – a um emprego, habilidade ou modo de
fazer as coisas – é algo malvisto e, portanto, imprudente; além
de tudo, uma pessoa que deixará a empresa quando não for mais
necessária, sem queixa nem processo. Uma pessoa que também
considera as perspectivas de longo prazo, as trajetórias de carreira
gravadas na pedra e qualquer tipo de estabilidade mais desconcertantes
e assustadoras do que a ausência das mesmas.
A arte da “recomodifi cação” do trabalho em sua forma nova
e atualizada é singularmente imprópria para ser aprendida a partir
da pesada burocracia governamental, notoriamente inerte,
presa à tradição, resistente à mudança e amante da rotina. E essa
burocracia é particularmente imprópria para cultivá-la, ensinála
e inculcá-la. É melhor deixar esse trabalho para os mercados de
consumo, já conhecidos por sua perícia em treinar seus clientes
em artes similares e por fl orescerem a partir disso. E assim se faz.
Transferir para o mercado a tarefa de recomodifi car o trabalho é
o signifi cado mais profundo da conversão do Estado ao culto da
“desregulamentação” e da “privatização”.
O mercado de trabalho é um dos muitos mercados de produtos em
que se inscrevem as vidas dos indivíduos; o preço de mercado da
mão-de-obra é apenas um dos muitos que precisam ser acompanhados,
observados e calculados nas atividades da vida individual.
Mas em todos os mercados valem as mesmas regras.
Primeira: o destino fi nal de toda mercadoria colocada à venda
é ser consumida por compradores. Segunda: os compradores
desejarão obter mercadorias para consumo se, e apenas se, consumi-
las for algo que prometa satisfazer seus desejos. Terceira: o
preço que o potencial consumidor em busca de satisfação está
preparado para pagar pelas mercadorias em oferta dependerá da
credibilidade dessa promessa e da intensidade desses desejos.
Introdução 19
Os encontros dos potenciais consumidores com os potenciais
objetos de consumo tendem a se tornar as principais unidades
na rede peculiar de interações humanas conhecida, de maneira
abreviada, como “sociedade de consumidores”. Ou melhor,
o ambiente existencial que se tornou conhecido como “sociedade
de consumidores” se distingue por uma reconstrução das relações
humanas a partir do padrão, e à semelhança, das relações
entre os consumidores e os objetos de consumo. Esse feito notável
foi alcançado mediante a anexação e colonização, pelos mercados
de consumo, do espaço que se estende entre os indivíduos – esse
espaço em que se estabelecem as ligações que conectam os seres
humanos e se erguem as cercas que os separam.
Numa enorme distorção e perversão da verdadeira substância
da revolução consumista, a sociedade de consumidores é com
muita freqüência representada como se estivesse centralizada em
torno das relações entre o consumidor, fi rmemente estabelecido
na condição de sujeito cartesiano, e a mercadoria, designada para
o papel de objeto cartesiano, ainda que nessas representações o
centro de gravidade do encontro sujeito-objeto seja transferido,
de forma decisiva, da área da contemplação para a esfera da atividade.
Quando se trata de atividade, o sujeito cartesiano pensante
(que percebe, examina, compara, calcula, atribui relevância
e torna inteligível) se depara – tal como ocorreu durante a contemplação
– com uma multiplicidade de objetos espaciais (de
percepção, exame, comparação, cálculo, atribuição de relevância,
compreensão), mas agora também com a tarefa de lidar com eles:
movimentá-los, apropriar-se deles, usá-los, descartá-los.
O grau de soberania em geral atribuído ao sujeito para narrar
a atividade de consumo é questionado e posto em dúvida
de modo incessante. Como Don Slater assinalou com precisão,
o retrato dos consumidores pintado nas descrições eruditas da
vida de consumo varia entre os extremos de “patetas e idiotas
culturais” e “heróis da modernidade”. No primeiro pólo, os consumidores
são representados como o oposto de agentes soberanos:
ludibriados por promessas fraudulentas, atraídos, seduzi20
Vida para consumo
dos, impelidos e manobrados de outras maneiras por pressões
fl agrantes ou sub-reptícias, embora invariavelmente poderosas.
No outro extremo, o suposto retrato do consumidor encapsula
todas as virtudes pelas quais a modernidade deseja ser louvada
– como a racionalidade, a forte autonomia, a capacidade de
autodefi nição e de auto-afi rmação violenta. Tais retratos representam
um portador de “determinação e inteligência heróicas
que podem transformar a natureza e a sociedade e submetê-las à
autoridade dos desejos dos indivíduos, escolhidos livremente no
plano privado”.11
A questão, porém, é que em ambas as versões – quer sejam
apresentados como patetas da publicidade ou heróicos praticantes
do impulso autopropulsor para a autoridade – os consumidores
são removidos e colocados fora do universo de seus potenciais
objetos de consumo. Na maioria das descrições, o mundo
formado e sustentado pela sociedade de consumidores fi ca claramente
dividido entre as coisas a serem escolhidas e os que as
escolhem; as mercadorias e seus consumidores: as coisas a serem
consumidas e os seres humanos que as consomem. Contudo, a
sociedade de consumidores é o que é precisamente por não ser
nada desse tipo. O que a separa de outras espécies de sociedade é
exatamente o embaçamento e, em última instância, a eliminação
das divisões citadas acima.
Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar
sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter
segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar
de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas
de uma mercadoria vendável. A “subjetividade” do “sujeito”, e a
maior parte daquilo que essa subjetividade possibilita ao sujeito
atingir, concentra-se num esforço sem fi m para ela própria se
tornar, e permanecer, uma mercadoria vendável. A característica
mais proeminente da sociedade de consumidores – ainda que
cuidadosamente disfarçada e encoberta – é a transformação dos
consumidores em mercadorias; ou antes, sua dissolução no mar
de mercadorias em que, para citar aquela que talvez seja a mais
Introdução 21
citada entre as muitas sugestões citáveis de Georg Simmel, os diferentes
signifi cados das coisas, “e portanto as próprias coisas,
são vivenciados como imateriais”, aparecendo “num tom uniformemente
monótono e cinzento” – enquanto tudo “fl utua com
igual gravidade específi ca na corrente constante do dinheiro”.12
A tarefa dos consumidores, e o principal motivo que os estimula
a se engajar numa incessante atividade de consumo, é sair dessa
invisibilidade e imaterialidade cinza e monótona, destacandose
da massa de objetos indistinguíveis “que fl utuam com igual
gravidade específi ca” e assim captar o olhar dos consumidores
(blasé!)...
O primeiro álbum gravado por Corinne Bailey Rae, cantora
de 27 anos nascida em Leeds e contratada em 2005 por um
homem do Departamento de Artistas & Repertório da EMI, ganhou
o disco de platina em apenas quatro meses.13 Um fato extraordinário.
Uma em cada um milhão ou centenas de milhões
de pessoas chegam ao estrelato depois de uma breve aparição numa
banda independente e de um emprego como atendente numa
boate de música soul. Uma probabilidade não maior, talvez ainda
menor, do que a de ganhar na loteria (mas observemos que, semana
após semana, milhões de pessoas continuam comprando
bilhetes lotéricos). “Minha mãe é professora de uma escola primária”,
disse Corinne a um entrevistador, “e quando ela pergunta
aos meninos o que eles querem ser quando crescer, eles dizem:
‘Famoso.’ Ela pergunta por que motivo e eles respondem: ‘Não
sei, só quero ser famoso.’”
Nesses sonhos, “ser famoso” não signifi ca nada mais (mas
também nada menos!) do que aparecer nas primeiras páginas de
milhares de revistas e em milhões de telas, ser visto, notado, comentado
e, portanto, presumivelmente desejado por muitos – assim
como sapatos, saias ou acessórios exibidos nas revistas luxuosas
e nas telas de TV, e por isso vistos, notados, comentados, desejados...
“Há mais coisas na vida além da mídia”, observa Germaine
Greer, “mas não muito ... Na era da informação, a invisibilidade é
equivalente à morte.” A recomodifi cação constante, ininterrupta,
22 Vida para consumo
é para a mercadoria. Logo, também para o consumidor, equivale
ao que é o metabolismo para os organismos vivos.
Além de sonhar com a fama, outro sonho, o de não mais se
dissolver e permanecer dissolvido na massa cinzenta, sem face e
insípida das mercadorias, de se tornar uma mercadoria notável,
notada e cobiçada, uma mercadoria comentada, que se destaca
da massa de mercadorias, impossível de ser ignorada, ridicularizada
ou rejeitada. Numa sociedade de consumidores, tornar-se
uma mercadoria desejável e desejada é a matéria de que são feitos
os sonhos e os contos de fadas.
Escrevendo de dentro da incipiente sociedade de produtores,
Karl Marx censurou os economistas da época pela falácia do
“fetichismo da mercadoria”: o hábito de, por ação ou omissão,
ignorar ou esconder a interação humana por trás do movimento
das mercadorias. Como se estas, por conta própria,
travassem relações entre si a despeito da mediação humana.
A descoberta da compra e venda da capacidade de trabalho
como a essência das “relações industriais” ocultas no fenômeno
da “circulação de mercadorias”, insistiu Marx, foi tão
chocante quanto revolucionária: um primeiro passo rumo à
restauração da substância humana na realidade cada vez mais
desumanizada da exploração capitalista.
Um pouco mais tarde, Karl Polanyi abriria outro buraco
na ilusão provocada pelo fetichismo da mercadoria: sim, diria
ele, a capacidade de trabalho era vendida e comprada como se
fosse uma mercadoria como outra qualquer, mas não, insistiria
Polanyi, a capacidade de trabalho não era nem poderia ser uma
mercadoria “como” outra qualquer. A impressão de que o trabalho
era pura e simplesmente uma mercadoria só podia ser uma
grande mistifi cação do verdadeiro estado das coisas, já que a
“capacidade de trabalho” não pode ser comparada nem vendida
em separado de seus portadores. De maneira distinta de outras
mercadorias, os compradores não podem levar sua compra para
casa. O que compraram não se torna sua propriedade exclusiIntrodução
23
va e incondicional, e eles não estão livres para utere et abutere (usar
e abusar) dela à vontade, como estão no caso de outras aquisições.
A transação que parece “apenas comercial” (recordemos a
queixa de Thomas Carlyle, no início do século XX, de que relações
humanas multifacetadas tinham sido reduzidas a um mero
“nexo fi nanceiro”) inevitavelmente liga portadores e compradores
num vínculo mútuo e numa interdependência estreita. No
mercado de trabalho, um relacionamento humano nasce de cada
transação comercial; cada contrato de trabalho é outra refutação
do fetichismo da mercadoria, e na seqüência de cada transação
logo aparecem provas de sua falsidade, assim como da ilusão ou
auto-ilusão subseqüente.
Se foi o destino do fetichismo da mercadoria ocultar das vistas
a substância demasiado humana da sociedade de produtores,
é papel do fetichismo da subjetividade ocultar a realidade demasiado
comodifi cada da sociedade de consumidores.
A “subjetividade” numa sociedade de consumidores, assim
como a “mercadoria” numa sociedade de produtores, é (para usar
o oportuno conceito de Bruno Latour) um fatiche*2– um produto
profundamente humano elevado à categoria de autoridade
sobre-humana mediante o esquecimento ou a condenação à irrelevância
de suas origens demasiado humanas, juntamente com
o conjunto de ações humanas que levaram ao seu aparecimento
e que foram condição sine qua non para que isso ocorresse.
No caso da mercadoria na sociedade de produtores, foi o ato de
comprar e vender sua capacidade de trabalho que, ao dotá-la
de um valor de mercado, transformou o produto do trabalho
numa mercadoria – de uma forma não visível (e sendo oculta)
na aparência de uma interação autônoma de mercadorias. No
caso da subjetividade na sociedade de consumidores, é a vez de
comprar e vender os símbolos empregados na construção da
identidade – a expressão supostamente pública do “self” que na
verdade é o “simulacro” de Jean Baudrillard, colocando a “repre-
* No original, faitishe. (N.T.)
24 Vida para consumo
sentação” no lugar daquilo que ela deveria representar –, a serem
eliminados da aparência do produto fi nal.
A “subjetividade” dos consumidores é feita de opções de
compra – opções assumidas pelo sujeito e seus potenciais compradores;
sua descrição adquire a forma de uma lista de compras.
O que se supõe ser a materialização da verdade interior do self é
uma idealização dos traços materiais – “objetifi cados” – das escolhas
do consumidor.
Algum tempo atrás, uma das cada vez mais numerosas agências
de encontros pela internet (parship.co.uk) conduziu uma
pesquisa que mostrou que dois terços dos solteiros que usaram
serviços de encontros em 2005 (cerca de 3,6 milhões) recorreram
à internet. O negócio de “encontros pela internet” obteve 12 milhões
de libras naquele ano e se espera que atinja 47 milhões em
2008.14 Nos seis meses que precederam a pesquisa, a proporção
de solteiros que acreditavam poder encontrar o parceiro certo na
internet cresceu de 35 para 50% – e a tendência é aumentar mais.
Comentando esses dados, o autor de um dos “artigos spiked”*3
publicados na web observa:
Isso refl ete uma mudança fundamental na forma como as pessoas
são estimuladas a pensar sobre seus relacionamentos pessoais e
organizar suas vidas, com a intimidade apresentada em público e
sujeita a normas contratuais que se poderia associar à compra de
um carro, uma casa ou a uma viagem de férias.15
Compartilhando a opinião expressa por outro escritor “spiked”,
16 o autor acredita que os usuários potenciais são estimulados
a migrar para os serviços de internet como uma “opção
mais segura e controlada”, que lhes permite evitar “o risco e a
imprevisibilidade dos encontros face a face”. “O medo de estar só
remete as pessoas aos computadores, enquanto o perigo repre-
* Bauman faz referência ao site www.spiked-online.com, cujo objetivo é, como
podemos ler no próprio site, “expandir os horizontes da humanidade por meio de
uma guerra cultural de palavras contra a misantropia, o puritanismo, o preconceito,
o ludismo, o iliberalismo e o irracionalismo em todas as suas formas”. (N.T.)
Introdução 25
sentado pelos estranhos estimula o adiamento dos encontros na
vida real.” Mas há um preço a ser pago. Jonathan Keane ressalta
“o senso arrepiante de desconforto e injúria” que atormenta
as pessoas, não importa quanto tentem evitá-lo, à medida que
passam de um site para outro, assim como costumavam virar as
páginas de um catálogo, na busca de um parceiro ideal.17
Claramente, as pessoas que recorrem às agências da internet
em busca de ajuda foram mimadas pelo mercado de consumo,
amigável ao usuário, que promete tornar toda escolha segura e
qualquer transação única e sem compromisso, um ato “sem custos
ocultos”, “nada mais a pagar, nunca”, “sem amarras”, “nenhum
agente para ligar”. O efeito colateral (é possível se dizer, usando
uma expressão que está na moda, “a baixa colateral”) dessa existência
mimada – minimizando os riscos, reduzindo bastante ou
abolindo a responsabilidade e portanto produzindo uma subjetividade
dos protagonistas neutralizada a priori – revelou-se,
contudo, um volume considerável de “desabilitação”*4 social.
A companhia de seres humanos de carne e osso faz com que
os clientes habituais das agências de encontros pela internet, adequadamente
preparados pelas práticas do mercado de produtos,
sintam-se constrangidos. Os tipos de mercadorias com as quais
foram treinados a se sociabilizar são para tocar, mas não têm
mãos para tocar, são despidas para serem examinadas, mas não
devolvem o olhar nem requerem que este seja devolvido, e assim
se abstêm de se expor ao escrutínio do examinador, enquanto
placidamente se expõem ao exame do cliente. Podemos examiná-
las por inteiro sem temer que nossos olhos – as janelas dos segredos
mais privados da alma – sejam eles próprios examinados.
Grande parte da atração exercida pelas agências da internet deriva
da reclassifi cação dos parceiros humanos procurados como
os tipos de mercadorias com as quais os consumidores treinados
estão acostumados a se defrontar e que sabem muito bem mane-
* Em inglês, deskilling – processo pelo qual a mão-de-obra especializada é eliminada
pela introdução de tecnologias operadas por trabalhadores semiqualifi cados ou sem
qualifi cação. (N.T.)
26 Vida para consumo
jar. Quanto mais experientes e “maduros” se tornam os clientes,
mais fi cam surpresos, confusos e embaraçados quando chegam
“face a face” e descobrem que os olhares devem ser devolvidos e
que, nas “transações”, eles, os sujeitos, também são objetos.
Nas lojas, as mercadorias são acompanhadas por respostas
para todas as perguntas que seus potenciais compradores poderiam
desejar fazer antes de tomarem a decisão de adquiri-las, mas
elas próprias se mantêm educadamente silenciosas e não fazem
perguntas, muito menos embaraçosas. As mercadorias confessam
tudo que há para ser confessado, e ainda mais – sem exigir
reciprocidade. Mantêm-se no papel de “objeto” cartesiano – totalmente
dóceis, matérias obedientes a serem manejadas, moldadas
e colocadas em bom uso pelo onipotente sujeito. Pela simples
docilidade, elevam o comprador à categoria de sujeito soberano,
incontestado e desobrigado – uma categoria nobre e lisonjeira
que reforça o ego. Desempenhando o papel de objetos de maneira
impecável e realista o bastante para convencer, os bens do
mercado suprem e reabastecem, de forma perpétua, a base epistemológica
e praxiológica do “fetichismo da subjetividade”.
Como compradores, fomos adequadamente preparados pelos
gerentes de marketing e redatores publicitários a desempenhar
o papel de sujeito – um faz-de-conta que se experimenta
como verdade viva; um papel desempenhado como “vida real”,
mas que com o passar do tempo afasta essa vida real, despindo-a,
nesse percurso, de todas as chances de retorno. E à medida que
mais e mais necessidades da vida, antes obtidas com difi culdade,
sem o luxo do serviço de intermediação proporcionado pelas
redes de compras, tornam-se “comodizados” (a privatização do
fornecimento de água, por exemplo, levando invariavelmente à
água engarrafada nas prateleiras das lojas), as fundações do “fetichismo
da subjetividade” são ampliadas e consolidadas. Para
completar a versão popular e revista do cogito de Descartes,
“Compro, logo sou...”, deveria ser acrescentado “um sujeito”. E
à medida que o tempo gasto em compras se torna mais longo
(fi sicamente ou em pensamento, em carne e osso ou eletroniIntrodução
27
camente), multiplicam-se as oportunidades para se fazer esse
acréscimo.
Entrar na web para escolher/comprar um parceiro segue a mesma
tendência mais ampla das compras pela internet. Cada vez
mais pessoas preferem comprar em websites do que em lojas.
Conveniência (entrega em domicílio) e economia de gasolina
compõem a explicação imediata, embora parcial. O conforto
espiritual obtido ao se substituir um vendedor pelo monitor é
igualmente importante, se não mais.
Um encontro face a face exige o tipo de habilidade social
que pode inexistir ou se mostrar inadequado em certas pessoas,
e um diálogo sempre signifi ca se expor ao desconhecido: é como
se tornar refém do destino. É tão mais reconfortante saber que é
a minha mão, só ela, que segura o mouse e o meu dedo, apenas
ele, que repousa sobre o botão. Nunca vai acontecer de um inadvertido
(e incontrolado!) trejeito em meu rosto ou uma vacilante
mas reveladora expressão de desejo deixar vazar e trair para a
pessoa do outro lado do diálogo um volume maior de meus pensamentos
ou intenções mais íntimas do que eu estava preparado
para divulgar.
Em Soziologie der Sinne, “Sociologia dos sentidos”, Georg
Simmel observa que o olhar que dirijo inadvertidamente a outra
pessoa revela meu próprio eu. O olhar que dirijo na esperança de
obter um lampejo de seu estado mental e/ou de seu coração tende
a ser expressivo, e as emoções mais íntimas mostradas dessa maneira
não podem ser refreadas ou camufl adas com facilidade – a
menos que eu seja um ator profi ssional bastante treinado. Faz sentido,
portanto, imitar o suposto hábito do avestruz de enterrar a
cabeça na areia e desviar ou baixar os olhos. Não olhando o outro
nos olhos, torno meu eu interior (para ser mais exato, meus pensamentos
e emoções mais íntimos) invisível, inescrutável...
Agora, na era dos desktops, laptops, dispositivos eletrônicos e
celulares que cabem na palma da mão, a maioria de nós tem uma
quantidade mais do que sufi ciente de areia para enterrar a cabeça.
28 Vida para consumo
Não precisamos mais nos preocupar com a habilidade superior
do vendedor para ler rostos, com seu poder de persuasão ou com
nossos momentos de fraqueza. Meus temores e esperanças, desejos
e dúvidas continuarão sendo o que devem ser: meus e apenas
meus. Não vou me apressar em pressionar as teclas “compre agora”
e “confi rme” antes de ter coletado, listado e examinado todos
os “prós” e “contras” das diversas escolhas possíveis. Enquanto eu
continuar seguindo dessa maneira prudente, a hora da avaliação,
de dar a sentença, aquele ponto sem retorno com desculpas do
tipo “tarde demais para reconsiderar”, “não há como voltar atrás”
e “não é possível recomeçar”, é mantido a distância. Sou o único
no comando. Sinto-me protegido dos complôs e subterfúgios
dos desconhecidos e impenetráveis outros – mas também de mim
mesmo, de um aspecto que esteja me escapando, de agir “impulsivamente”,
de uma forma que posso vir a lamentar – não tenho
como saber – pelo resto da vida. Isso se aplica à compra de carros,
cortadores de grama, home theaters, laptops ou a uma viagem de
férias. Por que não se aplicaria à aquisição de parceiros?
E por fim, num mundo em que uma novidade tentadora
corre atrás da outra a uma velocidade de tirar o fôlego, num
mundo de incessantes novos começos, viajar esperançoso parece
mais seguro e muito mais encantador do que a perspectiva
da chegada: a alegria está toda nas compras, enquanto a
aquisição em si, com a perspectiva de ficar sobrecarregado
com seus efeitos diretos e colaterais possivelmente incômodos
e inconvenientes, apresenta uma alta probabilidade de
frustração, dor e remorso. E como as lojas da internet permanecem
abertas o tempo todo, pode-se esticar à vontade o
tempo de satisfação não contaminada por qualquer preocupação
com frustrações futuras. Uma escapada para fazer compras
não precisa ser uma excursão muito planejada – pode ser
fragmentada numa série de agradáveis momentos de excitação,
profusamente borrifados sobre todas as outras atividades
existenciais, acrescentando cores brilhantes aos recantos mais
sombrios ou monótonos.
Introdução 29
O problema, evidentemente, é que procurar um parceiro não se
encaixa muito bem no esquema comprar-e-pagar – muito menos
uma companhia para a vida.
A ajuda que pode ser dada pela internet na eterna guerra
preventiva contra os riscos e ansiedades que enchem até as bordas
a vida de um selecionador em uma sociedade de selecionadores
tende a permanecer limitada e com uma sensação do tipo “até
certo ponto”. Pode aplacar algumas ansiedades do pesquisador
enquanto dura a pesquisa, mas não vai ultrapassar o momento
de realização a que se espera e deseja que conduza a viagem de
descoberta, e do qual se acredita que ela extraia sua atração e
motivo. Tal como o fetichismo da mercadoria que assombrava a
sociedade de produtores, o fetichismo da subjetividade que assombra
a sociedade de consumidores se baseia, em última instância,
numa ilusão.
O poder produtivo dos produtores não poderia ser isolado
dos próprios produtores, dos quais era o poder inalienável.
Um custo invisível, embora pesado e inescapável, da transação de
compra e venda de mão-de-obra era, portanto, um laço complexo,
multifacetado e, acima de tudo, recíproco, ligando compradores
e vendedores enquanto durasse o processo de produção a que
a força de trabalho adquirida deveria servir. Esse vínculo signifi -
cava que era precipitada a conclusão de que haveria uma longa,
talvez interminável, cadeia de choques de interesses, fortes antagonismos
ou inimizades abertas, escaramuças diárias e longas
guerras de reconhecimento. É mais ou menos a mesma história
quando se trata da compra de uma “força de prazer”: ainda que
sejam listadas no site da agência de encontros da maneira mais
completa e honesta, as fantásticas qualidades prazerosas procuradas
pelos surfi stas da internet em seus parceiros potenciais, e
pelas quais são orientadas suas escolhas, não podem ser isoladas
das pessoas que as possuem, da mesma forma que a força de trabalho
não podia ser separada dos produtores a que pertencia.
De maneira distinta da fi cção eletronicamente improvisada
a partir de uma série de atributos pré-selecionados, a pessoa
30 Vida para consumo
real é dotada de uma língua para falar e de ouvidos para escutar.
Deseja que o parceiro eleito olhe em seus olhos e se disponha
a expor seus próprios olhos ao exame do outro, tem emoções
esperando para serem despertadas, assim como a capacidade de
despertá-las, e uma biografi a apenas sua, juntamente com uma
personalidade, expectativas e um modelo de felicidade biografi -
camente moldados: nada que lembre nem de longe o passivo, dócil,
submisso e maleável “objeto” cartesiano. A maldição da mútua
“atoria” (aquela mistura “impura” do “ator” com o “autor”,
muito provavelmente incapaz de ser purifi cada em função do
irredutível poder autoral de todos os atores e da virtual impossibilidade
de “reiterações puras” de movimentos padronizados)
vai tirar a máscara da ilusão da “subjetividade pura”. Nenhum
conjunto de precauções pode mudar esse fato ou “purgar” a relação
dessa maldição: ela vai pairar sobre a série de tentativas dedicadas
e engenhosas de mudá-la, não importa quanto durem.
Há limites até onde se pode estender a “soberania do consumidor”
prometida pela sociedade dos consumidores – limites intransponíveis
–, e de cada encontro entre seres humanos esses
limites tendem a emergir fortalecidos, apesar (ou por causa) das
pressões para retraçá-los.
O fetichismo da subjetividade, tal como, antes dele, o fetichismo
da mercadoria, baseia-se numa mentira, e assim é pela
mesma razão de seu predecessor – ainda que as duas variedades
de fetichismo centralizem duas operações encobertas em lados
opostos da dialética sujeito-objeto entranhada na condição existencial
humana. Ambas as variações tropeçam e caem diante do
mesmo obstáculo: a teimosia do sujeito humano, que resiste bravamente
às repetidas tentativas de objetifi cá-lo.
Na sociedade de consumidores, a dualidade sujeito-objeto
tende a ser incluída sob a dualidade consumidor-mercadoria. Nas
relações humanas, a soberania do sujeito é, portanto, reclassifi cada
e representada como a soberania do consumidor – enquanto a
resistência ao objeto, derivada de sua soberania não inteiramente
Introdução 31
suprimida, embora rudimentar, é oferecida à percepção como a
inadequação, inconsistência ou imperfeição de uma mercadoria
mal escolhida.
O consumismo dirigido para o mercado tem uma receita
para enfrentar esse tipo de inconveniência: a troca de uma
mercadoria defeituosa, ou apenas imperfeita e não plenamente
satisfatória, por uma nova e aperfeiçoada. A receita tende a
ser reapresentada como um estratagema a que os consumidores
experientes recorrem automaticamente de modo quase irrefl etido,
a partir de um hábito aprendido e interiorizado. Afi nal de
contas, nos mercados de consumidores-mercadorias, a necessidade
de substituir objetos de consumo “defasados”, menos que
plenamente satisfatórios e/ou não mais desejados está inscrita
no design dos produtos e nas campanhas publicitárias calculadas
para o crescimento constante das vendas. A curta expectativa de
vida de um produto na prática e na utilidade proclamada está
incluída na estratégia de marketing e no cálculo de lucros: tende
a ser preconcebida, prescrita e instilada nas práticas dos consumidores
mediante a apoteose das novas ofertas (de hoje) e a difamação
das antigas (de ontem).
Entre as maneiras com que o consumidor enfrenta a insatisfação,
a principal é descartar os objetos que a causam. A sociedade
de consumidores desvaloriza a durabilidade, igualando
“velho” a “defasado”, impróprio para continuar sendo utilizado
e destinado à lata de lixo. É pela alta taxa de desperdício, e pela
decrescente distância temporal entre o brotar e o murchar do
desejo, que o fetichismo da subjetividade se mantém vivo e digno
de crédito, apesar da interminável série de desapontamentos
que ele causa. A sociedade de consumidores é impensável sem
uma fl orescente indústria de remoção do lixo. Não se espera dos
consumidores que jurem lealdade aos objetos que obtêm com a
intenção de consumir.
O padrão cada vez mais comum de uma “relação pura”, revelado
e descrito por Anthony Giddens em seu livro Transformações
da intimidade, pode ser interpretado como um transplan32
Vida para consumo
te da regra do mercado de bens para o domínio dos vínculos
humanos. A prática da “relação pura”, bastante observada e por
vezes louvada no folclore popular e em sua representação pelos
meios de comunicação, pode ser visualizada à semelhança da
presumida ou postulada soberania do consumidor. O impacto
da diferença entre o relacionamento parceiro-parceiro e o ato de
adquirir bens de consumo comuns, distinção essa muito profunda,
originada na reciprocidade do acordo necessário para que a
relação se inicie, é minimizado (se não tornado totalmente irrelevante)
pela cláusula que torna a decisão de um dos parceiros sufi -
ciente para encerrá-la. É essa cláusula que põe a nu a similaridade
sobreposta à diferença: no modelo de uma “relação pura”, tal
como nos mercados de bens, os parceiros têm o direito de tratar
um ao outro como tratam os objetos de consumo. Uma vez que
a permissão (e a prescrição) de rejeitar e substituir um objeto de
consumo que não traz mais satisfação total seja estendida às relações
de parceria, os parceiros são reduzidos ao status de objetos
de consumo. De maneira paradoxal, eles são classifi cados assim
por causa de sua luta para obter e monopolizar as prerrogativas
do consumidor soberano...
Uma “relação pura” centralizada na utilidade e na satisfação
é, evidentemente, o exato oposto de amizade, devoção, solidariedade
e amor – todas aquelas relações “Eu-Você” destinadas a
desempenhar o papel de cimento no edifício do convívio humano.
Sua “pureza” é avaliada, em última instância, pela ausência de
ingredientes eticamente carregados. A atração de uma “relação
pura” está na deslegitimação, para citar Ivan Klima, de questões
como: “Onde está a fronteira entre o direito à felicidade pessoal
e a um novo amor, por um lado, e o egoísmo irresponsável que
desintegraria a família e talvez prejudicasse os fi lhos, de outro?”18
Em última instância, essa atração está em estabelecer o atar e
desatar de vínculos humanos como ações moralmente “adiafóricas”
(indiferentes, neutras), que portanto livram os atores da
responsabilidade que o amor, para o bem ou para o mal, promete
e luta para construir e preservar. “A criação de um relacionamenIntrodução
33
to bom e duradouro”, em total oposição à busca de prazer por
meio de objetos de consumo, “exige um esforço enorme” – um
aspecto que a “relação pura” nega de forma enfática em nome de
alguns outros valores, entre os quais não fi gura a responsabilidade
pelo outro, fundamental em termos éticos. Mas aquilo com o que
o amor, em completa oposição a um mero desejo de satisfação,
deve ser comparado, sugere Klima,
é a criação de uma obra de arte ... Isso também exige imaginação,
concentração total, a combinação de todos os aspectos da personalidade
humana, sacrifício pessoal por parte do artista e liberdade
absoluta. Mas acima de tudo, tal como se dá com a criação artística,
o amor exige ação, ou seja, atividades e comportamentos não-rotineiros,
assim como uma atenção constante à natureza intrínseca
do parceiro, o esforço de compreender sua individualidade, além
de respeito. E, por fi m, ele precisa de tolerância, da consciência de
que não deve impor suas perspectivas ou opiniões ao companheiro
ou atrapalhar sua felicidade.
O amor, podemos dizer, abstém-se de prometer uma passagem
fácil para a felicidade e a signifi cação. Uma “relação pura”
inspirada por práticas consumistas promete que essa passagem
será fácil e livre de problemas, enquanto faz a felicidade e o propósito
reféns do destino – é mais como ganhar na loteria do que
um ato de criação e esforço.
Enquanto escrevo estas palavras, foi publicado um excelente
estudo das muitas faces do consumismo, organizado por John
Brewer e Frank Trentmann.19 Na introdução, os dois extraíram
a seguinte conclusão de um levantamento exaustivo das abordagens
disponíveis para o estudo do fenômeno:
Começaremos este capítulo comentando a notável riqueza e diversidade
do consumo moderno e a difi culdade de acomodar essa variedade
num único arcabouço interpretativo ... Nenhuma narrativa singular
do consumo, nenhuma tipologia singular do consumidor e nenhuma
versão monolítica da cultura de consumo será sufi ciente ...
34 Vida para consumo
E eles nos advertem que, ao enfrentarmos a desanimadora
tarefa de compor essa visão coesa dos consumidores e de suas estratégias
de vida, devemos “reconhecer que esses mercados estão
necessariamente incrustados em complexas matrizes políticas e
culturais que conferem aos atos de consumo sua ressonância
e importância específi cas. Só então seremos capazes de fazer justiça
ao consumo moderno em todo o seu poder e plenitude”.
Eles estão absolutamente certos. O que escrevo aqui é mais
uma ilustração da tese deles, outro acréscimo às incontáveis perspectivas
cognitivas a partir das quais o fenômeno do consumo
moderno tem sido examinado até agora. Uma tentativa não menos
(embora se espere que não mais) parcial do que aquelas que
pretendem complementar em vez de corrigir, que dirá substituir.
Neste livro, pretendo propor três “tipos ideais”: o do consumismo,
o da sociedade de consumidores e o da cultura consumista.
Sobre as bases metodológicas e a importância cognitiva dos tipos
ideais, ver Capítulo 1; mas deve-se enfatizar já aqui que os
“tipos ideais” não são instantâneos nem imagens da realidade
social, mas tentativas de construir modelos de seus elementos essenciais
e de sua confi guração, destinados a tornar inteligíveis as
evidências da experiência, que de outro modo pareceriam caóticas
e fragmentadas. Tipos ideais não são descrições da realidade
social, mas instrumentos de sua análise e – ao que se espera – de
sua compreensão. Seu propósito é fazer com que nosso retrato
da sociedade que habitamos “faça sentido”. Para atingir esse
propósito, eles deliberadamente postulam mais homogeneidade,
consistência e lógica no mundo social empírico do que a experiência
diária torna visível e nos permite captar. Suas raízes se
fi ncam profundamente no solo da experiência e das práticas humanas
cotidianas. Mas para conseguir uma melhor visão de tais
práticas, assim como de suas causas e motivos, precisam de uma
distância que lhes permita abraçar o campo como um todo – de
modo que a visão das práticas humanas se torne mais abrangente
e mais clara para o analista, revelando também, espera-se, as
causas e os motivos de suas ações aos próprios atores.
Introdução 35
Estou plenamente consciente da “mixórdia” (complexidade,
multilateralidade, heterogeneidade) que nossa experiência comum
da realidade nos torna disponível. Mas também estou consciente
de que modelos “adequados ao nível do signifi cado”, como
diria Max Weber, são indispensáveis para qualquer compreensão,
e até para a própria consciência das similaridades e diferenças,
conexões e descontinuidades que se ocultam por trás da desconcertante
variedade de experiências. Os tipos ideais que aqui proponho
devem ser “pensados com” e servir de instrumentos para
“ver com”.
Com a mesma idéia em mente, proponho alguns conceitos
que, espero, possam ajudar na apreensão de fenômenos e processos
novos ou emergentes que elidem com as redes conceituais
mais antigas – como “tempo pontilhista”, “comodifi cação dos
consumidores” ou “fetichismo da subjetividade”. Por fi m, tento
registrar o impacto dos padrões de interação e avaliação consumistas
acerca de vários aspectos aparentemente desconexos do
ambiente social, como política e democracia, divisões e estratifi -
cação social, comunidades e parcerias, construção de identidade,
produção e uso do conhecimento ou preferências valorativas.
A invasão, a conquista e a colonização da rede de relações pelas visões
de mundo e padrões comportamentais inspirados e feitos
sob medida pelos mercados de produtos, assim como as fontes
de ressentimento, dissensão e ocasional resistência às forças de
ocupação, da mesma forma que a questão dos limites intransponíveis
(se existe algum) ao domínio dos ocupantes, são os
principais temas deste livro. As formas sociais e a cultura da vida
contemporânea são examinadas uma vez mais e reinterpretadas
à luz desses temas.
Inevitavelmente, a história que se pretende contar aqui será
inconclusa – na verdade, com fi nal em aberto –, como tende a ser
qualquer reportagem enviada do campo de batalha.
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