O Processo de Interpretação e a Evolução Psicossocial
TODOS COMETEMOS TRAIÇÕES NO PROCESSO DE INTERPRETAÇÃO
Nestes textos estudaremos
alguns fenômenos fundamentais que estão na base da formação da personalidade e
da evolução social do homem. Algumas importantes perguntas serão respondidas.
Como o homem desenvolve os alicerces básicos da sua personalidade? Qual é o
real papel da educação nesse processo? Por que os manuais de educação pouco
funcionam? Por que logo depois que uma teoria é produzida ela sofre uma curva
ascendente de desenvolvimento, mas com o passar do tempo ela se estanca?
Compreenderemos que a
inteligência prioriza a evolução da história intrapsíquica, da consciência
existencial, da construção de pensamentos, da transformação da energia
emocional, enfim, prioriza a revolução criativa e evolutiva das idéias e,
conseqüentemente, o processo de desenvolvimento da personalidade. Ficaremos
surpresos ao descobrir que não evoluímos em todos os campos da cultura apenas
porque quisemos conscientemente evoluir, mas também porque temos fenômenos
inconscientes que produzem essa evolução. A compreensão desses fenômenos
revela-nos alguns segredos fundamentais da requintada capacidade de pensar e
do desenvolvimento social de nossa espécie.
Além dessas questões, também
compreenderemos duas atitudes anti-humanistas que saturam as sociedades
modernas: a discriminação e o culto ao personalismo, que faz com que uma grande
maioria superadmire uma minoria de políticos, intelectuais, artistas, líderes
místicos e gravite em torno dela.
A discriminação procura
anular o "outro", impedindo de alguma forma que ele seja livre,
enquanto o culto ao personalismo anula a si mesmo e contrai a própria liberdade
crítica de pensar. A discriminação e o excesso de admiração são duas faces da
mesma doença da interpretação. Até mesmo nas ciências há essas duas atitudes
anti-humanistas. Ambas abortam o mundo das idéias, maculam a inteligência. A
ciência e as sociedades foram drasticamente prejudicadas por elas. Há diversas
formas de discriminação e supervalorização intelectuais que circulam nas
ciências.
Neste capítulo, farei uma
exposição sobre o processo de interpretação gerando as mudanças contínuas nas
idéias e pensamentos. O processo de interpretação é realizado pela atuação dos
fenômenos que atuam desde a recepção de um estímulo físico (como, por exemplo,
imagem, sons) e intra-orgânico (exemplo, droga ou medicamento psicotrópico) até
a atuação do conjunto de fenômenos intrapsíquicos, nos bastidores da mente, que
são responsáveis por gerar a construtividade de pensamentos, emoções e motivações.
Como me preocupo com a
cidadania da ciência, ou seja, com a aplicação psicossocial da teoria que
desenvolvo, farei a abordagem do processo de interpretação usando o exemplo da
infidelidade da interpretação dos profissionais da Psicologia, da Sociologia,
da Filosofia, da educação etc. com relação à teoria que abraçam e às distorções
da interpretação ocorridas na observação dos fenômenos.
O excesso de admiração dos
discípulos de um pensador por sua teoria pode abortar a liberdade crítica e
criativa dos pensamentos, gerando discípulos que são apenas retransmissores do
conhecimento, mas não pensadores capazes de expandir qualitativamente as
idéias.
Utilizar uma teoria é
importante; mas admirá-la excessivamente e gravitar em torno dela é uma doença
anti-humanística e desinteligente da interpretação, pois aborta a capacidade
crítica de pensar.
É criticável o sistema de
discipulado que há nas ciências, cultivada pela admiração excessiva de um
discípulo pela teoria ou pelo teórico que a produziu, ou até mesmo pela
corrente eclética de pensamento que abraça. Dizer-se freudiano, junguiano,
spinosista, hegeliano, marxista, piagetiano etc. é uma ofensa à inteligência, é
uma ingenuidade empírica, pois, como veremos, todos os discípulos traem
interpretativamente, nos bastidores de sua mente, a teoria que adotam. A defesa
radical de uma teoria nos coloca num cárcere intelectual, num aprisco teórico.
Todos os discípulos são micro
ou macroinfiéis aos seus mestres, pois fazem micro ou macrotraições da
interpretação quando utilizam as teorias que eles produziram, devido ao sistema
de co-interferência de variáveis presentes, a cada momento, nos processos da
construção de pensamentos. Essa frase, que parece uma crítica, na realidade
esconde alguns segredos da evolução psicossocial do homem.
Para ilustrar o processo de
infidelidade da interpretação ocorrida nas ciências, tomarei o exemplo dos
psicoterapeutas e suas relações com a teoria psicológica. Os psicanalistas que
se dizem radicalmente freudianos, tanto os professores nas faculdades de
Psicologia como os psicoterapeutas pertencentes aos institutos de Psicanálise,
embora objetivem ser fiéis à Psicanálise, sempre foram, ainda que
inconscientemente, infiéis à teoria psicanalítica, sempre traíram Freud.
Não há discípulos fiéis nas
ciências e na produção cultural. Essa afirmação pode inquietar muitos
psicoterapeutas e muitos cientistas que utilizam uma teoria como suporte da
interpretação, mas ela é uma realidade inevitável, pois é fundamentada em
princípios universais ligados ao processo de interpretação e, conseqüentemente,
ao processo de construção dos pensamentos.
Todos os seres humanos são
micro ou macrotraidores da interpretação, mesmo que apreciem a fidelidade
teórica e se esmerem por alcançá-la. Porém, jamais deveríamos pensar que a
traição da interpretação a que me refiro, que acontece nos bastidores
inconscientes da inteligência, é um processo maléfico ou destrutivo; pelo
contrário, ela expande as possibilidades de construção da teoria, promove a
revolução das idéias, contribuindo significativamente para a evolução do
conhecimento.
Quando contemplamos um mesmo
quadro de pintura em dois momentos distintos ou quando sofremos uma mesma
ofensa também em dois momentos, era de se esperar que o processo de
interpretação gerasse a mesma qualidade e quantidade de cadeias de pensamentos
e de transformações da energia emocional nos dois momentos, já que os estímulos
interpretados foram os mesmos. Porém, o processo de organização, caos e
reorganização da energia psíquica não sofre ação apenas do estímulo observado,
mas da história intrapsíquica (arquivada na memória), da qualidade da energia
emocional e motivacional, do gerenciamento do eu, do fenômeno da autochecagem
da memória, do fenômeno da psicoadaptação etc, que são variáveis intrapsíquicas
que flutuam e evoluem a cada momento existencial. Como o campo de energia
psíquica está num fluxo vital contínuo de autotransformações essenciais, essas
variáveis também estão em contínuo processo de transformação. Disso podemos
concluir que um mesmo observador pode, em dois momentos diferentes, produzir
cadeias de pensamentos e experiências emocionais distintas diante da
contemplação de um mesmo estímulo.
O processo de interpretação
conduz o homem, ainda que ele não tenha consciência disso, a realizar micro ou
macrotraições da interpretação. Por isso, num momento, podemos ficar inspirados
ao contemplar o belo contido num quadro de pintura; noutro momento podemos
ficar inertes diante dele. Num momento, podemos ficar profundamente angustiados
com determinada ofensa; noutro, podemos ficar insensíveis ou pouco angustiados
diante da mesma ofensa, produzida pelo mesmo ofensor num mesmo ambiente. A
construtividade de pensamentos ultrapassa os limites da lógica.
O processo de traição da
interpretação, caracterizado pelas modificações das variáveis intrapsíquicas
e, conseqüentemente, da produção de conhecimento (pensamento consciente) diante
da contemplação dos estímulos extrapsíquicos (comportamento das pessoas,
imagens, sons etc.) e intrapsíquicos (fantasias, idéias antecipatórias,
angústias, reações fóbicas etc.) contribui significativamente, como veremos,
não só para a evolução espontânea de uma teoria, mas também para a evolução do
homem em todos os seus amplos aspectos psicossociais, tais como a evolução das
correntes literárias, da pintura, da arquitetura, dos paradigmas
socioculturais, do pensamento filosófico. As traições da interpretação,
ocorridas espontaneamente nos bastidores da mente de cada ser humano,
contribuem também para a evolução do processo de formação de sua personalidade
e de sua história.
As traições da interpretação
ocorrem desde a aurora da vida fetal, pois nessa fase já se inicia, como
comentarei, a produção das matrizes dos pensamentos essenciais (inconscientes)
a partir da leitura multifocal da memória pelo fenômeno da autochecagem da
memória e pelo fenômeno do autofluxo. A construção de cadeias de pensamentos
sofre a influência de múltiplas variáveis, gerando inúmeras distorções
inconscientes. Do ponto de vista teórico, isso deve ocorrer até quando a mente
dos fetos interpreta os mesmos estímulos intra-uterinos. Provavelmente, em
muitas situações os fetos não produzem as mesmas matrizes de pensamentos
inconscientes e as mesmas reações emocionais diante dos mesmos estímulos. Tais
distorções da interpretação enriquecem as experiências psíquicas e a formação
da história intrapsíquica fetal.
Sem a existência das micro ou
macrotraições da interpretação, que muitas vezes são produzidas de modo
clandestino na mente, a revolução da construção de novas idéias seria
abortada e, assim, a história humana seria paralisante, uma mesmice.
Há, na Sociologia e na
Psicologia, um grande conhecimento das evoluções psicossociais determinadas e
promovidas pelo "eu", ou seja, do "eu" como agente
histórico das evoluções, produzindo arte, construindo relações sociais,
produzindo conhecimento científico, transmitindo conhecimento etc. Contudo,
provavelmente essas ciências ainda não incorporaram o conhecimento das
sofisticadas evoluções psicossociais espontâneas e inconscientes ocorridas na
clandestinidade da mente humana, geradas pelos complexos sistemas de co-interferências
das variáveis da interpretação, capazes de levar o homem a fazer micro ou
macrointerpretações diante da exposição dos mesmos estímulos ou de estímulos
semelhantes e, conseqüentemente, levá-lo a realizar micro ou macroproduções
distintas do conhecimento diante da contemplação de um mesmo estímulo em dois
momentos diferentes.
Essa exposição é tão séria,
que implica dizer que os juízes, os jurados, os promotores, os políticos, os
psicoterapeutas, os médicos etc. possuem, a cada momento existencial, micro ou
macrodistorções em seus processos de interpretação diante dos mesmos estímulos,
gerando micro ou macrodistinções nas suas idéias e decisões. A produção de
pensamentos não é linearmente lógica, principalmente quando ela se refere às
questões existenciais que envolvem interpretações mais complexas. A isenção
completa de ânimo, de distorções da interpretação, da participação de nossa
própria história era nossas observações e julgamentos é impossível. Porém, é
possível aprender a nos esvaziar dos tendencialismos, principalmente se
vivenciarmos, no processo de interpretação, a arte da dúvida, a arte da crítica
e a busca do caos intelectual, que são importantíssimos procedimentos de
pesquisa e análise.
Devemos olhar a ciência e as
relações sociais da perspectiva da democracia das idéias. No campo da
democracia das idéias, o que se exige não é a busca radical da fidelidade da
interpretação, a eliminação radical das distorções da interpretação, mas o
desenvolvimento de uma consciência crítica dessas distorções e uma busca de
fidelidade a essa consciência.
AS DISTORÇÕES NA INTERPRETAÇÃO E SUA RELAÇÃO COM A EVOLUÇÃO DA PERSONALIDADE
As infidelidades da
interpretação são multifocais, ocorrem em todas as esferas do processo de
interpretação. Elas ocorrem na ciência, quando um cientista contempla um
estímulo em dois momentos distintos. Elas ocorrem no processo de utilização de
uma teoria. Também ocorrem com relação à própria história intrapsíquica, ou
seja: quando recordamos o passado, nunca o fazemos de maneira original, mas
reconstruímos interpretativamente o passado. Nessa reconstrução cometemos
invariavelmente micro ou macrotraições com relação às suas dimensões. Por isso,
as recordações de nossas dores e angústias existenciais são reduzidas em relação
às experiências originais.
O homem, desde sua vida
fetal, embora utilize contínua e intensamente sua história intrapsíquica
arquivada em sua memória, nos processos de construção dos pensamentos
"trai" inconscientemente essa história quando contempla estímulos
semelhantes, pois no processo de leitura e utilização da mesma ocorre, como
disse, diversos sistemas de co-interferências de variáveis da interpretação que
provocam diferenças na interpretação e, conseqüentemente, nos limites e no
alcance das idéias, das análises, da síntese, da lógica dos pensamentos e das
reações emocionais produzidas.
A conclusão psicossocial e
filosófica dessa importante abordagem teórica é que somos intelectualmente
diferentes a cada momento. Reagimos, pensamos, nos emocionamos, analisamos,
sintetizamos etc. de maneira diferente a cada momento. Somos emocional e
intelectualmente macro ou microdiferentes a cada momento de nossas vidas; por
isso, produzimos diariamente milhares de pensamentos e emoções diferentes.
Pergunto: os milhares de
pensamentos e emoções que vivenciamos diariamente foram todos determinados e
produzidos logicamente pelo eu? Fiz essa pergunta, como disse, a inúmeras
pessoas, e todas elas responderam o que eu já havia constatado na pesquisa, ou
seja, que só uma pequena parte desses pensamentos e emoções foi determinada e
produzida logicamente pelo eu. Muitos cientistas não têm noção das
conseqüências psicológicas e sociológicas desse fato, da seriedade científica
do que é responder que tais experiências foram produzidas fora do controle do
eu. Esse fato importantíssimo provavelmente nunca foi investigado pelas
teorias psicológicas e sociológicas. Ele está na raiz da Sociologia, pois
envolve a construção e evolução das relações humanas, e na raiz da Psicologia,
pois envolve o processo de formação da personalidade.
Algumas variáveis da
interpretação, como estudamos, tais como o fenômeno da psicoadaptação, a
história intrapsíquica, a energia emocional, o fenômeno da credibilidade
autógena, a âncora da memória etc, não têm uma linearidade psicodinâmica
estável, lógica, mas flutuante e evolutiva; por isso, são capazes de provocar
distorções da interpretação e, conseqüentemente, a produção de cadeias de
pensamentos distintas, mesmo quando contemplamos estímulos idênticos.
AS DISTORÇÕES DA INTERPRETAÇÃO PRODUZINDO A EVOLUÇÃO SOCIAL
Todo ser humano, da meninice
à velhice, ao interpretar estímulos semelhantes (elogios, ofensas, reações
discriminatórias, estressantes estímulos psicossociais etc), produz
experiências psíquicas distintas. Até mesmo o feto, ao interpretar estímulos
semelhantes (temperatura e viscosidade do líquido amniótico, contração da
parede intra-uterina, substâncias neuroendócrinas maternas que passam pela
barreira placentária etc), também produz experiências micro ou macrodistintas,
devido à flutuabilidade e evolutividade das variáveis que participam do
processo de interpretação desses estímulos. Tal abordagem, como disse, abre os
horizontes para compreendermos o nascedouro e o desenvolvimento da evolução
psicossocial do homem.
Se ocorre a produção de
experiências distintas diante da interpretação de estímulos semelhantes,
podemos prever que elas ocorrem quantitativa e qualitativamente em muito maior
dimensão diante da interpretação de estímulos distintos. A produção de
experiências micro ou macrodistíntas, ocorrida no palco da mente humana, é
registrada automaticamente pelo fenômeno RAM (registro automático da memória).
Todos os pensamentos, angústias, prazeres, reações fóbicas são registrados na
memória, não por opção intelectual, mas involuntariamente, o que faz com que a
memória seja rees-crita continuamente, transformando, assim, os pilares da
personalidade. No computador, as informações são registradas através de um
comando; no homem, são registradas involuntariamente. No Homo sapiens, conquistar
uma história intrapsíquica é uma inevitabilidade.
O registro inevitável e
contínuo das experiências intelecto-emocionais contribui para a evolutividade
inconsciente da história intrapsíquica que é uma variável da interpretação
fundamental que promove, impulsiona, o processo de construtividade de
pensamentos e o processo de formação da personalidade.
A formação e desenvolvimento
da história intrapsíquica na memória não depende apenas da intervenção do
processo educacional sociofamiliar, que ministra conhecimento, regras
comportamentais, paradigmas culturais, mas principalmente pela atuação de um
conjunto de variáveis, na qual se incluem diversos fenômenos inconscientes, que
se operacionalizam espontaneamente e silenciosamente nos bastidores da mente.
É intelectualmente superficial achar que uma pessoa se tornou culta porque
freqüentou anos de escola, se tornou um cientista porque freqüentou uma grande
universidade e se doutorou nela.
A escolaridade e mesmo a
leitura dos livros só podem contribuir com a expansão da cultura e a produção
das idéias de alguém porque ocorrem na mente inúmeras, silenciosas e complexas
etapas da interpretação não administradas pelo processo educacional, e que são
responsáveis pelo indescritível processo de registro, de leitura da memória, de
construtividade dos pensamentos e de formação da consciência existencial.
O sistema de variáveis que
atuam nos bastidores da mente, associado ao irresistível caos intrapsíquico que
desorganiza as estruturas psicodinâmicas (idéias, pensamentos, emoções,
motivações etc), abrem continuamente as possibilidades de construção da
inteligência, gerando assim, silenciosamente, em cada ser humano uma produção
contínua de novas idéias, que são registradas, lidas e utilizadas na construção
de novas cadeias de pensamentos, promovendo a evolução da história
intrapsíquica e da personalidade e, num sentido mais amplo, a evolução da
história psicossocial do homem.
Reitero: devido ao sistema de
co-interferência das variáveis da interpretação que atuam nos bastidores da
mente, não somos fiéis no processo de observação, interpretação e produção de
conhecimento, ou seja, não reproduzimos as mesmas experiências psíquicas
diante da contemplação dos mesmos estímulos ou de estímulos semelhantes. Por
incrível que pareça, nem quando resgatamos as experiências psíquicas passadas
ocorre uma recordação pura, original, das mesmas, mas uma interpretação que
sofre diversos encadeamentos distorcidos.
Como vimos, ao contrário do
que pensamos, não existem recordações do passado, mas reconstruções do passado,
fundamentadas na interpretação das complexas experiências psíquicas que foram
registradas na história intrapsíquica arquivada na memória. Todas as finíssimas
"arquiteturas psicodinâmicas" contidas nas experiências psíquicas,
tais como as idéias, os pensamentos antecipatórios, as inspirações, as
ansiedades, os desesperos, as reações fóbicas, os prazeres etc, antes de serem
desorganizadas pelo caos intrapsíquico, são registradas no arquivo existencial
da memória, que chamo de história intrapsíquica, pelo fenômeno do registro
automático da memória.
Se não houvesse a atuação
psicodinâmica do fenômeno RAM, fração de segundo antes da desorganização das
experiências psíquicas pelo caos intrapsíquico, e se não houvesse o tecido do
córtex cerebral intacto, sem degenerações, isquemias, traumas ou tumores, para
receber a ação deste fenômeno intrapsíquico, nenhum ser humano teria uma
história intrapsíquica e, conseqüentemente, nenhum ser humano desenvolveria a
construtividade de pensamentos e a consciência existencial.
A HISTÓRIA INTRAPSÍQUICA (PASSADO) É ESSENCIALMENTE IRRETORNÁVEL
Um dia, ministrando um curso
sobre a construtividade de pensamentos para uma equipe multidisciplinar de
profissionais que cuidam de pacientes autistas, perguntei a eles se, quando
recordam seu passado, resgatam a originalidade das suas experiências psíquicas.
Eles me disseram que sim. Eu disse-lhes que isso era impossível, que a energia
psíquica das idéias e das emoções do passado é essencialmente irretornável,
pois ela não está no passado, mas evoluiu no presente.
A energia psíquica, ao
contrário do que muitos psicólogos pensam, não se depositou nem se arquivou na
memória como energia psíquica, mas como um sistema de códigos físico-quimicos
que representam essas experiências, as RPSs (representações psicossemânticas).
Eu disse, para surpresa deles, que a energia psíquica vive num fluxo vital de
transformações que evolui constantemente, por isso as idéias, as análises, os
pensamentos antecipatórios, os pensamentos sobre o passado, as emoções etc,
são continuamente produzidos. Quando essas experiências são registradas, elas
perdem sua essencialidade original, tornando-se um sistema de códigos
físico-quimicos "pobres" em relação à originalidade das experiências
psíquicas.
A história é registrada
quando a experiência psíquica se descaracteriza ou se desorganiza
essencialmente e evolui na construtividade de outras experiências. O processo
de resgate da história intrapsiquica não é uma simples lembrança, mas um
processo de interpretação complexo e cheio de segredos, capaz de produzir
cadeias de pensamentos e experiências emocionais a partir dos sistemas de
códigos físico-quimicos "frios" e "restritos" contidos na
memória.
A leitura da história
intrapsiquica, associada à participação de um conjunto de variáveis da
interpretação, faz com que o resgate das experiências passadas não obedeça a
uma linearidade lógica e, por isso, não resgata as mesmas dimensões das idéias,
dos prazeres, das frustrações, das angústias etc, contidas nas experiências
originais.
Depois de minha exposição
para a equipe multidisciplinar que cuidava de pacientes autistas, obviamente
mais detalhada do que esta síntese, um participante do curso disse-me que havia
entendido o que eu dissera, pois vivenciou esse processo através de uma
experiência traumática no passado, porém sem entendê-lo na época. Ele comentou
que há anos havia atropelado uma pessoa que veio a falecer. Embora não tivesse
culpa no acidente, disse que havia sofrido intensamente com o fato. Toda vez
que o recordava, se angustiava muito. Porém, com o passar do tempo, o processo
de recordação não trazia os mesmos níveis de angústia como nas primeiras vezes,
e ele não entendia a causa disso. Através da abordagem sobre os processos de
construção dos pensamentos, ele compreendeu que o processo de registro
descaracteriza a realidade essencial da experiência original, e o processo de
resgate, devido à ação de um conjunto de variáveis, não reconstrói interpretativamente
a mesma intensidade das angústias e das cadeias de pensamento produzidas na
experiência original. O distanciamento do processo de interpretação do passado
e as próprias experiências originais do passado ficam mais claros à medida que
o tempo passa.
Nenhum ganhador do Oscar, do
prêmio Nobel, de disputas esportivas, de pleitos eleitorais etc, consegue
manter os mesmos níveis de prazer e auto-estima contidos nas experiências
originais produzidas na época da premiação. Com o passar do tempo, o prazer se
reduz e, às vezes, até se estanca diante dessas "recordações".
Quando reconstruímos
interpretativamente o passado, fazemos micro ou macrotraições em relação à
originalidade essencial das experiências do passado. As teorias psicológicas e
educacionais precisam incorporar o conhecimento relativo ao processo de
interpretação da história. Os psicanalistas e outros psicoterapeutas que
procuram resgatar e analisar a história inconsciente dos seus pacientes têm de
estar cientes de que a história é irrevogável, que aquilo que o paciente traz
na técnica de associação livre não é a sua história pura, original, mas a
história reconstruída interpretativamente e, portanto, passível de inúmeras
distorções da interpretação. Na realidade, no processo psicoterapêutico, como
em todas as esferas das relações humanas, ocorre uma cadeia de distorções da
interpretação. O paciente distorce a sua história e o psicoterapeuta distorce a
história do paciente já distorcida. Por isso, o que está em jogo no processo
psicoterapêutico não é a verdade em si, não é trabalhar a verdade em si, mas a
"reconstrução da verdade" e o "trabalhar dessa reconstrução da
verdade" e, principalmente, a expansão da consciência crítica e da
capacidade de o próprio paciente trabalhar as suas dores, perdas, frustrações e
conflitos interpessoais.
A história intrapsíquica é
fundamental para a construção de pensamentos e para a produção da consciência
existencial, mas a história em si mesma é irretornável essencialmente. Por isso,
todos temos a grande responsabilidade de reconstruí-la interpretativamente com
adequação para evitar determinados níveis de contaminações da interpretação em
nossos julgamentos, na compreensão de mundo, nas reações intrapsíquicas. A
interpretação adequada também é importante para fornecer subsídios para trabalharmos
e reciclarmos criticamente os registros inconscientes das experiências
passadas e, assim, aliviarmos nossas tensões, fobias, ansiedades e sintomas
psicossomáticos do presente.
AS TRAIÇÕES DA INTERPRETAÇÃO OCORRIDAS NA UTILIZAÇÃO DAS TEORIAS
Nenhum psicoterapeuta,
sociólogo, filósofo, jurista, cientista etc, no processo de interpretação de
uma teoria, resgata as dimensões das idéias de um teórico. No processo de
interpretação da teoria já ocorrem traições da interpretação, que continuam à
medida que se exercem. Dois profissionais, usando a mesma teoria para
interpretar um mesmo fenômeno, produzem conhecimentos micro ou macrodistintos
sobre ele. Até um mesmo profissional utilizando a mesma teoria em dois momentos
distintos, para interpretar um mesmo estímulo, pode produzir conhecimento micro
ou macrodistinto sobre ele.
Quando a teoria é
interpretada, ela deixa de ser a teoria do teórico para ser a teoria do
interpretador. Quando a "teoria interpretada" é arquivada na memória,
as idéias que ela contém perdem suas dimensões essenciais intelecto-emocionais,
o que favorece a continuação de traições da interpretação. Quando o
interpretador (ex., discípulo de uma teoria) resgata as idéias da "teoria
interpretada" na sua memória, ele, agora, trai a si mesmo pois, como
disse, esse resgate não é uma recordação original, mas uma interpretação,
passível de inúmeras distorções. Assim, o discípulo de uma teoria não apenas
trai interpretativamente a teoria que abraça, mas também trai, ainda que
minimamente, a si mesmo, ou seja, trai as dimensões das próprias idéias que
produziu nas primeiras interpretações que fez da teoria. Por isso, ainda que se
deva procurar fidelidade no processo de utilização de uma teoria como suporte
da interpretação, é inevitável que haja microtraições da interpretação. Isso
ocorre porque a mente ativa a evolução da história intrapsíquica, ainda que
seja às custas de microtraições da interpretação inconscientes e não pela determinação
do "eu". Este tema envolve alguns princípios fundamentais do processo
de formação da personalidade e da construção das relações humanas e da
história social.
Por que temos que reconstruir
interpretativamente o passado e não resgatar a sua essencialidade original? Um
dos motivos é que a mente, através da operacionalidade dos fenômenos
intrapsíquicos, dá prioridade à evolução da história intrapsíquica e
psicossocial e não à paralisia dessas histórias.
Se uma mãe, ao perder um
filho, recordasse ao longo do tempo os mesmos níveis de sofrimento decorrente
das experiências originais, ela paralisaria a evolução da sua história
intrapsíquica. Nesse caso, sua história se tornaria um luto crônico, uma
extensão dramática e contínua do velório do filho. Felizmente isso não ocorre.
Já estudamos a atuação inconsciente do fenômeno da psicoadaptação em textos
posteriores, vimos que ele produz uma redução nos níveis de dor, bem como de
prazer, no processo de resgate contínuo das experiências passadas. O fenômeno
da psicoadaptação é um dos fenômenos que evoluem ao longo do processo
existencial, o que contribui, conseqüentemente, para a produção de diferenças
de interpretação, tanto diante do resgate das experiências passadas como
diante dos estímulos (fenômenos) do presente.
Provavelmente, a maioria dos
teóricos das diversas áreas das ciências, bem como seus discípulos, não
compreenderam a mente por esse prisma; não compreenderam que ocorrem
inevitavelmente microtraições da interpretação porque ela dá prioridade à evolução
da história intrapsíquica e psicossocial, na qual se inclui a evolução do
conhecimento teórico.
No campo das psicoterapias,
não poucos psicoterapeutas se perdem na compreensão dos labirintos da mente;
eles pensam, como disse, que estão interpretando a realidade essencial dos
conflitos dos seus pacientes, quando na realidade estão interpretando a
reinterpretação da história dos seus pacientes. Muitos podem argumentar que,
quando se lembram do passado, sentem e pensam a mesma coisa que sentiram e
pensaram no passado, mas isto não é verdade; é fruto de uma análise superficial
dos limites e do alcance das emoções e dos pensamentos nos dois momentos
históricos: o passado e o presente. Pode haver aproximação no processo de
construção das experiências passadas, mas haverá inevitavelmente, como disse,
microdistinções.
Somos micro ou macroinfiéis
em relação ã história intrapsíquica, aos estímulos contemplados, aos
conhecimentos coloquiais e científicos e às teorias. Tal infidelidade da
interpretação, embora contribua muito para a construção e evolução das idéias,
da arte e da personalidade, nem sempre é qualitativamente construtiva e
evolutiva.
Nas ciências, o processo de
utilização das teorias, das idéias e das teses de outros cientistas produzem
também diversas infldelidades e traições da interpretação. É possível que
muitas dessas infidelidades da interpretação não remetam a uma evolução
qualitativa da teoria, principalmente se no processo de utilização de uma
teoria não houver honestidade científica e o mínimo de consciência crítica
capazes de auxiliar o processo de revisão do conhecimento produzido e da teoria
utilizada.
Estes assuntos revelam alguns
dos mais profundos segredos da evolução psicossocial do homem, contidos no
inconsciente. O homem evolui psicossocialmente tanto pela administração
consciente da sua construtividade de pensamentos quanto pelo sistema de
co-interferências das variáveis que geram micro ou macrodistinções
inconscientes da interpretação.
Há um Homo interpres, no
cerne da psique humana, micro ou macro-distinto a cada momento da
interpretação. Não somos os mesmos a cada momento existencial. Nosso processo
de interpretação está em contínuo processo de mudança, porque algumas variáveis
que o constituem evoluem e flutuam continuamente. Uma parte significativa das
transformações das idéias filosóficas, do pensamento sociopolítico, das
correntes literárias, da estética das artes, dos paradigmas socioculturais, das
posturas intelectuais, é produzida por essa revolução clandestina que ocorre silenciosamente
no processo de interpretação. Se o leitor ler dez vezes os textos deste livro,
terá provavelmente dez produções de cadeias de pensamentos micro ou
macrodistintas, expressando diversas impressões, reações emocionais, entendimento.
Por isso, quanto mais estudamos, mais expandimos o mundo das idéias.
TODOS OS DISCÍPULOS SÃO INFIÉIS
Os discípulos de uma teoria
não reproduzem, como disse, a originalidade, a pureza das idéias, os limites e
o alcance do conhecimento, as emoções e motivações que foram vivenciadas pelo
autor e registradas em livros. Até os discípulos das ciências físicas traem a
completeza original das idéias contidas nas teorias que utilizam.
O discurso teórico de um
discípulo pode parecer igual ao do teórico; mas, se forem analisados os
labirintos intelectuais que estão na base dos discursos, é possível encontrar
as distinções e, às vezes, até macrodistinções disfarçadas dialeticamente, e
que estão subjacentes ao sistemas de códigos que confeccionam as frases, as
idéias, os pensamentos. Quando dez pessoas julgam uma obra de arte, a
contemplação do belo não será igual para todos os observadores, mas,
provavelmente, haverá inúmeras dimensões qualitativas e quantitativas
subjacentes à idéia do belo.
Quando um discípulo de uma
teoria a estuda nos livros ou ouve a exposição dela diretamente do seu autor,
ele não incorpora a realidade essencial da teoria, pois a teoria escrita ou
falada é um sistema de código visual e sonoro. Em contato com esse sistema de
código, o discípulo tem de interpretá-la. Interpretando-a, a compreensão dela
não tem as mesmas dimensões qualitativas e quantitativas das idéias do autor,
ainda que a diferença de pensamento esteja disfarçada dialeticamente. Os
discípulos de uma teoria traem-na interpretativamente. Essa traição da
interpretação inconsciente, associada a um questionamento consciente, poderá
levar um discípulo a deixar de ser um mero espectador passivo da teoria, para
ser alguém que contribui com o desenvolvimento das suas idéias.
Diante dessa exposição,
pergunto: Quem são os piores inimigos de uma teoria? Os piores inimigos de uma
teoria são aqueles que a superdimensionam, que gravitam em torno dela e a
defendem radicalmente, pois são incapazes de contribuir para criticá-la,
reciclá-la e expandi-la. Se os discípulos de uma teoria não são capazes de
realizar críticas conscientes à teoria que abraçam, com medo de serem infiéis a
ela ou com medo de serem banidos da sociedade científica ou psicoterapêutica a
que pertencem, eles a trairão inconscientemente, através da co-interferência
das variáveis que atuam clandestinamente nos seus processos de construção do
pensamento. Os piores inimigos de uma teoria são aqueles que desconhecem os
limites e o alcance de uma teoria, as sofisticadas relações entre a verdade
essencial e a verdade científica e, principalmente, aqueles discípulos que
defendem radicalmente a teoria que abraçam, que juram fidelidade ingênua a ela
e não compreendem que a traem nos bastidores de sua mente. Os discípulos
radicais de uma teoria, os "ianos" ou os "istas",
confinam-se em um aprisco teórico, submetem-se a um cárcere intelectual, que
compromete a liberdade de pensar e a consciência crítica. Nesse cárcere
intelectual, ainda que inconscientemente, eles prejudicam a sua atuação
socioprofissional, estancam a evolução da teoria e contraem o mundo das
idéias.
É provável que grande parte
das sociedades científicas e psicoterapêuticas não compreendam adequadamente as
etapas do processo de interpretação e o processo de traição da interpretação que
ocorre nos bastidores da mente dos seus membros. É provável que muitos
professores de graduação universitária e de pós-graduação cometam o
autoritarismo das idéias na transmissibilidade do conhecimento e na orientação
dos alunos, por não compreender adequadamente os labirintos do processo de
interpretação, os limites de uma teoria, e que os processos de construção dos
pensamentos ultrapassam os limites da lógica. Vários alunos de Psicologia já
me disseram que alguns dos seus professores afirmaram, em sala de aula, que
são freudianos radicais e que não aceitam qualquer outra teoria sobre a personalidade.
Esses tais, além de serem ingênuos intelectualmente, são traidores da teoria a
que julgam ser fiéis e, o que é pior, exercem uma ditadura do pensamento,
engessando, assim, a inteligência dos alunos.
Não existem discípulos fiéis
e não existem teorias essencialmente verdadeiras e completas, pois além de não
haver verdade essencial no pensamento dialético e no antidialético, a ciência
é inesgotável. O pensamento dialético é um sistema de intenções conscientes e
virtuais que acusa (define) e discursa sobre a verdade essencial sem nunca
incorporá-la essencialmente.
O excesso de admiração e
"endeusamento" de uma teoria ou de um teórico por parte dos discípulos
radicais não apenas inibe sua evolutividade, mas também cultiva a produção de
opositores igualmente radicais, que a criticam pelo próprio radicalismo dos
discípulos e não através de uma análise mais adequada e isenta de paixões.
Os freudianos, junguianos,
hegelianos, marxistas, piagetianos etc, enfim, os que aderem radicalmente a
uma teoria, que são incapazes de criticá-la, de reciclá-la e de expandi-la são,
ao contrário do que pensam, seus piores inimigos, são os que mais destroem sua
credibilidade ao longo da história. As grandes teorias sociais, políticas,
econômicas, culturais, acabam sendo destruídas, não pelos seus opositores, mas
pelos seus defensores radicais, que são incapazes de reciclá-la e adequá-la
historicamente.
Esses acidentes intelectuais
não estão presentes apenas nas ciências da cultura, mas também nas ciências
físicas e correlatas, bem como em todas as esferas das relações sociais.
Só o fato de alguém dizer-se
freudiano, junguiano, spinosista, ou qualquer expressão que indique ser ele
um discípulo contumaz de um teórico ou de uma teoria de qualquer
natureza é uma expressão da ingenuidade intelectual. A adesão não-crítica a uma
teoria bloqueia a catalisação das idéias e a utilização humanística da própria
teoria.
Todos os freudianos são
traidores da interpretação da teoria psicanalítica de Sigmund Freud. O excesso
de admiração e a defesa radical de uma teoria são um dos motivos que também
abortam a produção de novas safras de pensadores, pois reduzem a capacidade
crítica de pensar e bloqueiam a expansibilidade análise do defensor radical.
Os discípulos que gravitam em
torno de uma teoria e são incapazes de criticá-la se tornam retransmissores do
conhecimento e não pensadores que promovem novas idéias. Esse é um dos mais
importantes motivos que sufocaram e sufocam a formação de pensadores.
Expressarei sinteticamente os
mecanismos psicossociais que exterminam com a safra de pensadores na
Psicologia, na Sociologia, na Filosofia, na Educação e em todas as demais áreas
da cultura. Um pensador começa a observar, a interpretar e a produzir
conhecimento sobre os fenômenos. Sua produção de conhecimento conflita com as
idéias vigentes. Como ele tem de optar em ser fiel às suas idéias ou
submeter-se ao conhecimento vigente, ele opta por se rebelar contra este. Por
fim, sua produção de conhecimento se expande e se torna uma teoria ou uma
corrente de pensamento. Suas idéias cativam seus primeiros discípulos, que se
tornam, não meros discípulos, mas colaboradores, que debaixo do calor da
rebeldia do pensador, das perspectivas da sua teoria e das possíveis
discriminações sofridas por ele se tornam também produtores de conhecimento
capazes de utilizar, reciclar e expandir a teoria que abraçam.
A teoria, em seus estágios
iniciais, que ainda não se tornou uma instituição intocável, gera nos
discípulos divergências na interpretação e, conseqüentemente, divergências na
produção de conhecimento. O teórico não consegue controlar essas divergências;
por isso elas parecem ruins, pois comprometem a unidade da teoria, mas, na
realidade, expandem o mundo das idéias. Foi através desses mecanismos
psicossociais que, provavelmente, Sócrates, Platão, Hegel, Freud, Piaget etc.
agregaram inicialmente não apenas discípulos, mas pensadores. Porém, nas
gerações posteriores, ocorre a produção dos discípulos radicais, aqueles que
institucionalizam o conhecimento, que supervalorizam a teoria ou a corrente de
pensamento e que são incapazes de criticá-la e reciclá-la. Assim, morre a safra
de pensadores e somente algures ou alhures ocorre a produção de alguns deles.
Usar as teorias para se
produzir as teses científicas é legítimo e pode ser importantíssimo para
expandir a produção do conhecimento cultural e científico, mas querer submeter
exclusivamente os comportamentos e os fenômenos físicos que observarmos dentro
dos seus limites, retrai a evolução das idéias.
Tanto os teóricos como os
discípulos de uma teoria têm que aprender a conhecer alguns pilares do processo
de construção do pensamento e de interpretação. A ciência é inesgotável e todas
as teorias são redutoras da inesgotabilidade do conhecimento; por isso, todas
elas precisam ser continuamente revisadas.
Os desastres do socialismo,
do capitalismo, da globalização das informações, da globalização da economia
estão na incapacidade intelectual dos seus defensores de reciclá-los e
expandi-los continuamente respeitando as avenidas da democracia das idéias.
Qualquer pensador-teórico faz
freqüentemente microtraições inconscientes ao interpretar sua própria teoria,
pois discutir, ler e refletir sobre as próprias idéias não quer dizer
resgatá-las com pureza, originalidade, mas reconstruí-las interpretativamente
na mente com micro ou macrotraições.
As microtraições da
interpretação geram uma promoção evolutiva inconsciente importante de uma
teoria ou de qualquer produção científica. As microtraições inconscientes da
interpretação são produzidas, como comentei, inevitavelmente pelos sistemas de
co-interferências das variáveis que flutuam e evoluem continuamente nos
bastidores inconscientes da inteligência e que geram os sistemas de
encadeamentos distorcidos na racionalidade, ou seja, na construção das cadeias
de pensamentos. Se não houvesse esses espetáculos na mente humana, seria
impossível produzir milhares de pensamentos, idéias, análises, reações
ansiosas, prazeres, inseguranças, desejos, etc, distintos diariamente. A vida
humana seria uma mesmice insuportável, um tédio existencial, pois não teria sua
maior fonte de entretenimento.
O fenômeno da psicoadaptação,
a âncora da memória, a energia emocional, a história intrapsíquica, o fenômeno
do autofluxo etc, são fenômenos que se apresentam qualitativamente distintos a
cada momento, fazendo com que os processos de construção da inteligência sofram
sistemas de encadeamentos distorcidos que geram as distorções inevitáveis da
interpretação que, por sua vez, geram uma variabilidade nas dimensões
qualitativas e quantitativas dos pensamentos, idéias, conceitos, análises,
emoções.
A história intrapsíquica se
expande diariamente, através da atuação psicodinâmica do fenômeno do registro
automático da memória. A energia emocional flutua a cada momento, levando-nos
a experimentar diversos tipos de estresses, prazeres, ansiedades. O fenômeno
da psicoadaptação evolui continuamente ao longo da trajetória existencial,
fazendo-nos reduzir a capacidade de experimentar prazer ou dor diante da
exposição dos mesmos estímulos. A âncora da memória desloca constantemente o
território de leitura da memória. O fenômeno do autofluxo financia o fluxo
vital da energia psíquica, através da reorganização do caos dessa energia, da
leitura espontânea da memória e da abertura, a cada momento, das possibilidades
de construção de novos pensamentos.
A flutuabilidade e
evolutividade dessas variáveis da interpretação provocam um riquíssimo sistema
de encadeamento distorcido no processo de interpretação, expressa por micro ou
macrotraições da interpretação, que produz diariamente milhares de idéias
distintas, uma verdadeira revolução de idéias nos bastidores da psique humana.
As traições inconscientes da
interpretação, somadas à revisão crítica do conhecimento pelo eu, foram e são
os dois pilares fundamentais que sustentam a evolução de qualquer teoria
científica, de qualquer estereótipo social, de qualquer paradigma
sociocultural, de qualquer ideologia política, de qualquer sistema
socioeconômico, sociopolítico e socioeducacional, enfim, de qualquer área da
história psicossocial humana.
O ZELO EXCESSIVO DE FREUD PELA PSICANÁLISE CONTRAPONDO-SE À DEMOCRACIA DAS IDÉIAS
Após serem produzidas, todas
as teorias continuam evoluindo, não apenas pelo gerenciamento exercido pelo
"eu", mas também pela flutuabilidade e evolutividade das variáveis da
interpretação e pelos sistemas de encadeamentos distorcidos que atuam nos
processos de construção do pensamento do teórico e de seus discípulos.
Freud, embora fosse um
inteligente e respeitável teórico, um pensador sobre o inconsciente, não
compreendeu algumas áreas fundamentais do inconsciente, principalmente as que
se relacionam com os complexos sistemas de co-interferências mútuas das
variáveis intrapsíquicas e com os sofisticados sistemas de encadeamentos
distorcidos ocorridos no processo da construtividade de pensamentos.
Se ele tivesse tal
conhecimento, teria compreendido que as traições da interpretação são
inevitáveis na construção dos pensamentos; teria compreendido que tanto ele
como seus discípulos traíam inconscientemente a teoria psicanalítica. Se ele
tivesse esse conhecimento, também teria compreendido, apreciado e cultivado a
democracia das idéias, não seria tão rígido com os limites e contornos teóricos
da psicanálise e, conseqüentemente, não teria banido da família psicanalítica
os que pensavam contrariamente às suas idéias, tais como Carl Gustav Jung e
Alfred Adler.10
Muitos filósofos e pensadores
não compreenderam a democracia das idéias. Não compreenderam que ela está muito
acima da democracia política e que ela nem mesmo é uma opção ideológica, mas
uma inevitabilidade nas ciências e nas relações humanas. A democracia das
idéias é expressa pela rejeição a toda e qualquer forma de discriminação; pelo
respeito e consideração pelas idéias do "outro", ainda que possamos
discordar delas, pelo direito personalíssimo "meu" e do "outro"
de pensar e ser livre. A democracia das idéias é derivada de um corpo de
conhecimento universal ocorrido nos processos de construção do pensamento, tais
como: a flutuabilidade e evolutividade das variáveis da interpretação, o
sistema de encadeamento distorcido, as traições inconscientes da interpretação,
a liberdade criativa e plasticidade construtiva dos pensamentos dialéticos, a
virtualidade da consciência existencial, a inesgotabilidade do conhecimento,
etc.
O Homo sapiens micro
ou macroviolou os direitos humanos, mesmo nos ambientes menos suspeitos, porque
ele pouco conheceu a democracia das idéias, pouco compreendeu que a divergência
de idéias é uma inevitabilidade e não apenas uma opção do eu, pois há um Homo
interpres que o constitui intrinsecamente e que é micro e macrodistinto a
cada momento existencial.
Temos de compreender que a
verdade essencial, embora uma pérola a ser procurada ansiosamente pela pesquisa
científica, pela pesquisa empírica, é inalcançável pela consciência
existencial, cuja natureza é antiessencial ou virtual; por isso, os pensamentos
dialéticos, apesar de acusar e discursar teoricamente sobre os objetos e
fenômenos de estudos, jamais incorporam a realidade essencial intrínseca dos
mesmos.
Todos os teóricos, cientistas
e pensadores são andejos da virtualidade dialética que percorrem e esquadrinham
os territórios essenciais dos fenômenos extrapsíquicos e intrapsíquicos, porém
sem nunca encontrá-los na sua essencialidade. Porém, apesar de nunca
incorporarmos pela consciência existencial a realidade essencial do mundo que
contemplamos, nossa produção de conhecimentos pode produzir, como comentarei,
conseqüências científicas, tais como verificabilidades, aplicabilidades e
previsibilidades. Sem essas conseqüências, a ciência não existiria.
Muitos poderiam reclamar do
fato de a consciência existencial não incorporar a realidade essencial dos
fenômenos, do fato de que milhões de pensamentos sobre um objeto são apenas um
discurso virtual intencional sobre ele, pois nunca atinge em si mesmo a
realidade essencial do objeto. Não poucos pensadores tentaram superar a
distância entre o pensamento e o objeto, pois não perceberam que essa distância
é infinita, que existe um antiespaço entre o pensamento consciente (virtual) e
a realidade essencial do objeto. Porém, temos de compreender que a nossa
incrível liberdade criativa e plasticidade construtiva dos pensamentos
conscientes advêm da própria limitação da natureza antiessencial e virtual dos
mesmos.
Se os discursos dos
pensamentos conscientes tivessem de incorporar a realidade intrínseca dos
objetos sobre os quais se discursa, nós jamais seríamos seres pensantes. Os
astrônomos jamais poderiam abordar os astros e os químicos jamais poderiam
discursar sobre os átomos e as moléculas que nunca tocaram; os psicólogos jamais
poderiam discorrer sobre as emoções intangíveis sensorialmente e inacessíveis
essencialmente. Se a construtividade dos pensamentos não operasse na esfera da
virtualidade, não poderíamos antecipar fatos futuros, pois estes ainda não
aconteceram; nem poderíamos discorrer sobre experiências passadas, pois estas
são irrevogáveis essencialmente; nem poderíamos pensar sobre qualquer coisa ou
pessoa sem que elas penetrassem no "tecido" dos nossos pensamentos.
A virtualidade dos
pensamentos produz, como comentei, limites intransponíveis na sua práxis ou
"materialização", mas, ao mesmo tempo, produz uma liberdade criativa
e uma plasticidade dialética indescritíveis.
Só é possível a existência da
revolução criativa e evolutiva das idéias porque as idéias são produzidas na
esfera da virtualidade, pois nessa esfera elas conquistam uma plasticidade e
liberdade que superam a necessidade de incorporação da realidade essencial do
mundo que somos e em que estamos.
O FLUXO CONTÍNUO DOS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DA MENTE GERANDO A REVOLUÇÃO INEVITÁVEL E CLANDESTINA DAS IDÉIAS
Penso que os cursos de
Psicologia, Sociologia, Filosofia, Educação, Direito, Psiquiatria etc,
precisam compreender e incorporar o conhecimento básico sobre o funcionamento
da mente. Com respeito aos cursos de Psicologia, há grandes lacunas na formação
dos psicólogos clínicos, que saem motivados a abraçar uma teoria da
personalidade.
A postura de se abraçar uma
teoria como suporte da interpretação e como validação dos procedimentos
psicoterapêuticos, sem um processo de filtragem crítica das idéias nela
contida, se deve à imaturidade científica da Psicologia na compreensão dos
processos de construção dos pensamentos.
Seria importante que as
sociedades de Psicoterapia (Psicanálise, Psicoterapia analítica, Psicodrama,
Logoterapia, cognitiva, comportamental etc.) promovessem cursos sobre os
sistemas de encadeamentos distorcidos ocorridos na construtividade de
pensamentos; sobre os sistemas de co-interferências das variáveis da
interpretação que conduzem à ocorrência de micro e macrotraições da
interpretação do Homo interpus, passíveis de ocorrer no processo
psicoterapêutíco; sobre a necessidade de promover a revolução construtiva das
idéias dos pacientes e torná-los agentes ativos e críticos no "ambiente da
psicoterapia", e não espectadores passivos das interpretações e dos
procedimentos psicoterapêuticos.
Pode não ser confortável para
um psicoterapeuta promover a capacidade crítica de pensar dos pacientes e
incentivá-los a criticar suas próprias interpretações e procedimentos
psicoterapêuticos, mas tal atitude, além de se afinar com a democracia das
idéias, contribui muito para promover a revolução das idéias, expandir a
capacidade de superar seus fracassos, refinar o processo de superação dos
estímulos estressantes e tornar os próprios pacientes agentes modificadores da
sua história psicossocial.
Os psicoterapeutas,
independentemente se não incorporarem um conhecimento básico sobre o
funcionamento da mente e o processo de interpretação, poderão exercer o
processo psicoterapêutíco fora do campo da democracia das idéias, produzindo
interpretações e procedimentos sem dar aos pacientes o direito de discuti-los e
criticá-los. Assim, podem criar uma relação psicoterapeuta-paciente desigual,
em que eles, os psicoterapeutas, exercem uma poderosa influência sobre os
pacientes, gerando um microclima de autoritarismo das idéias, submetendo o
mundo dos pacientes às restritas dimensões da teoria que abraçam e das
interpretações e procedimentos que produzem. Tal postura psicoterapêutica
contrai e, às vezes, pode até abortar o desenvolvimento da capacidade crítica
de pensar dos pacientes ("iatrogenia psicoterapêutíca"), fazendo com
que estes gravitem em torno da "órbita intelectual" dos seus psicoterapeutas.
A dependência do terapeuta encarcera a inteligência.
Princípios semelhantes podem
ocorrer no processo educacional. Professores que desconhecem os processos de
construção da inteligência podem ter uma postura tão rígida e unidirecional no
processo educacional que contraem ou abortam a capacidade crítica de pensar dos
seus alunos, tornando-os espectadores passivos do conhecimento, com grande
dificuldade para expressar suas dúvidas e criticar seus professores e as
idéias por eles expressas, o que revela uma "iatrogenia
socioeducacional". O processo educacional unidirecional,
"a-histórico-crítico-existencial" e exteriorizante pouco alavanca e
redireciona a espetacular revolução da construção das idéias que ocorre
clandestinamente na mente dos alunos e, conseqüentemente, pouco contribui para
expandir neles o humanismo e a cidadania.
Os professores e os
psicoterapeutas precisam compreender que, de fato, eles não fazem muito no
processo socioeducacional e psicoterapêutico; no máximo, contribuem para
estimular a produção das idéias que ocorre espontaneamente em seus alunos e
pacientes. Sem a operação espontânea e inevitável dos fenômenos que constroem
os pensamentos, o homem nem mesmo desenvolveria sua personalidade e nem teria
condições de conquistar a consciência de si mesmo e do mundo que o circunda.
Ilustres pensadores abordaram
o princípio fundamental que rege o processo de formação da personalidade.
Sigmund Freud" abordou o princípio do prazer; Carl Gustav Jung 12,
o self (eu) criador; Alfred Adler 13, a busca de
superioridade; Erich Fromm 14 abordou, entre outros fatores, a busca
de proteção e segurança; Viktor Frankl 15 abordou a busca do sentido
existencial etc. Porém, há um princípio globalizante, um princípio dos
princípios, que é a fonte que incorpora todos os princípios postulados pelos
demais autores e que está na base de todos os processos de construção
inconscientes e conscientes da mente, que é o fluxo vital da energia psíquica.
Vejamos.
A energia psíquica, como
disse, está num fluxo vital contínuo e inevitável. Cada idéia, pensamento,
análise, reação fóbica, humor deprimido, desejo, reação instintiva etc,
produzida inconscientemente e manifestada nos palcos conscientes da mesma se
descaracteriza e é registrada na história intrapsíquica.
A leitura da história
intrapsíquica, sob a influência dos sistemas de variáveis intrapsíquicas,
produzirá um universo de novas idéias que promoverá a expansão dos alicerces
da personalidade. A medida que novas idéias, pensamentos, análises, reações
emocionais e motivacionais são produzidos na mente, eles novamente se
desorganizam caoticamente e, ao mesmo tempo, são registrados no arquivo
existencial da memória pelo fenômeno RAM.
Registrar ou arquivar as
experiências psíquicas na memória não é, como vimos, um processo opcional do
homem, mas um processo involuntário e inevitável. Mesmo que possamos rejeitar
contundentemente as ofensas, as discriminações e as experiências mais
angustiantes que vivenciamos, elas serão inevitavelmente, à medida que caminham
para o caos psicodinâmico, registradas no arquivo da memória pelo fenômeno RAM.
Se a ausência dessa "opção" traz alguns transtornos, traz também,
como comentei, imprescindíveis benefícios à psique, tal como a preservação da
história intrapsíquica, pois sem ela viveríamos um contínuo, indescritível e
dramático estado inconsciente. Embora não seja possível optar por ter ou não a
história intrapsíquica, é possível, no entanto, reciclá-la e reorganizá-la.
O campo de energia psíquica é
tão complexo que, simultaneamente ao processo de desorganização das idéias, das
emoções e das motivações, ocorre o desenvolvimento da história intrapsíquica.
Com a expansão da história intrapsíquica estimula-se a produção de novas
cadeias de pensamentos, reações emocionais e experiências existenciais, que
alavancarão o desenvolvimento da personalidade. Através desse desenvolvimento,
ocorrerá a "busca do prazer", o "self criador", a
"busca de proteção e segurança", a "busca de
superioridade", a "busca do sentido existencial", que são os
princípios que gravitam em torno da órbita globalizante do princípio do fluxo
vital da energia psíquica. Portanto, os princípios estabelecidos por outros
teóricos são "sintomas" do fluxo vital que ocorre no cerne da psique
humana.
Existe, por incrível que
pareça, um paralelo entre o desenvolvimento da personalidade humana e das
teorias científicas. Embora ambas possam ser evolutivamente recicladas e
promovidas pelo "eu", pelo determinismo do pensamento dialético
(lógico), na realidade esse determinismo apenas "pega carona
psicodinâmica" no fluxo vital espontâneo e inevitável dos fenômenos que
reorganizam a energia psíquica.
O "eu" só pode
pensar "o que quer", "quando quer" e na "freqüência e
velocidade que quer" porque, na base inconsciente da mente, há um grupo de
fenômenos que realizam tarefas psicodinâmicas extremamente refinadas, tais
como a leitura dos endereços da memória e a organização de dados.
As matrizes dos pensamentos
essenciais são inconscientes; porém, na medida em que são geradas, sofrem, como
vimos, um intrincado processo de leitura virtual que produz o espetáculo da
construção dos pensamentos conscientes (dialéticos e antidialéticos).
O Homo sapiens é tão
sofisticado que podemos dizer que o controle das idéias, das argumentações, das
análises, das sínteses, das previsibilidades tempo-espaciais é operacionalizado
em cima de um processo inevitável, multifocal e multidirecional gerado pelo Homo
interpres. O Homo sapiens não é sapiens porque quer, ou seja,
não é um ser pensante porque determina sê-lo, mas porque é inevitável sê-lo. O
fluxo vital dos fenômenos que organizam e reorganizam o caos da energia
psíquica torna o homem um ser inevitavelmente pensante, um ser inevitavelmente
consciente.
Muitos filósofos e teóricos
da Psicologia procuraram ansiosamente compreender como se forma a consciência
do homem, que chamo de consciência existencial ou "eu". Alguns até
mesmo dizem que essa compreensão é o maior desafio da ciência. Realmente, essa
compreensão não apenas revela os segredos inconscientes do homem, pois o
espetáculo da construção da consciência é produzido por fenômenos
inconscientes, mas também os segredos intrínsecos da própria ciência, pois a
ciência é uma manifestação da consciência.
Devido a alguns limites dos
pensamentos conscientes usadas na investigação da própria consciência, a
ciência jamais irá alcançar algumas respostas, pois a natureza dos pensamentos
conscientes é "antiessencial", virtual e, como vimos, o que é virtual
nunca incorpora a realidade intrínseca daquilo que é essencial; apenas a
discursa, a conceitua, a define. Porém, em detrimento das limitações da
consciência em compreender a si mesma, é possível compreender diversas peças
intelectuais dos processos de construção da psique que nos constituem
intrinsecamente como seres que pensam, se emocionam e têm consciência
existencial do mundo que somos e em que estamos.
TODO AUTOR DEIXA DE SER PROPRIETÁRIO DE SUAS IDÉIAS QUANDO AS PUBLICA. O JULGAMENTO DA INTERPRETAÇÃO DAS IDÉIAS PERTENCE AO LEITOR
Os fenômenos responsáveis pela
construção dos pensamentos são inacessíveis essencialmente e intangíveis
(imperceptíveis) sensorialmente, o que dificulta intensamente o processo de
observação, interpretação e produção de conhecimento sobre eles. Essa
dificuldade gerou grandes confusões teóricas na Psicologia, na Filosofia, na
Educação e em outras ciências.
Não poucos cientistas, ao
conquistar reconhecimento social, diminuem significativamente sua produção
intelectual. Ao contrário do mundo profissional, no universo científico os aplausos,
se inadequadamente trabalhados, podem fechar as janelas da inteligência e
conspirar contra o livre pensamento. Isso se deve à atuação do fenômeno da
psicoadaptação na terceira etapa inconsciente do processo de interpretação. A
fase mais produtiva de um cientista muitas vezes ocorre quando ele não tem
estética socioacadêmica; quando a ciência é sua única paixão; quando ele se
considera um aprendiz diante da sua inesgotabilidade e considera que a grandeza
das idéias é muito mais importante do que a hierarquia acadêmica e do que a
conquista de títulos.
O sistema acadêmico pode
libertar o pensamento ou encerrá-lo num cárcere. Freqüentemente ele o
aprisiona. Todos somos inconscientemente micro ou macroinfiéis ao nosso
processo de interpretação, o que expande, como disse, a evolutividade das
próprias idéias. Porém, falo de uma outra fidelidade: a fidelidade à
consciência crítica, aos princípios que norteiam a honestidade intelectual.
Devemos procurar ansiosamente ser fiéis aos princípios que norteiam a honestidade
intelectual, independentemente dos constrangimentos sociais que possamos
vivenciar pelas nossas idéias e pela prática dessa honestidade. O homem que
não ê fiel às suas idéias, fiel à sua consciência, tem uma dívida impagável
consigo mesmo.
Diante da exposição sobre o
processo de interpretação, estou convencido de que a democracia das idéias
deva ser exercida em todos os níveis das relações humanas, em destaque na
ciência. As idéias de um cientista ou pensador, incluindo os produtores de
arte, à medida que ele as expressa em livros ou em qualquer outro meio de
comunicação, deixa de ser do próprio autor e passa a pertencer invariavelmente
ao observador. Interpretar, ou seja, ser um Homo interpres, não ê uma
opção do Homo intelligens, mas seu destino inevitável.
A Mona Lisa deixa de
ser de Da Vinci e passa a pertencer ao observador, que, ao interpretá-la,
acrescenta "cores" e "formas" próprias em sua mente, ou
seja, acrescenta cadeias de pensamentos e experiências emocionais próprias no
processo de observação e interpretação.
Do mesmo modo, a teoria de um
teórico deixa de pertencer a ele mesmo e passa a pertencer ao observador
(leitor ou utilizador da teoria) que, ao interpretá-la, ainda que com
critérios, acrescentará a ela suas particularidades sobre as quais o autor
jamais terá controle. Por isso, cumpre ao observador a responsabilidade de
interpretar uma obra, não apenas com liberdade, mas também com consciência
crítica, procurando descontaminar-se no processo de interpretação, tanto quanto
possível, de cientificismos e psicologismos.
O autor só pode julgar sua
obra para si mesmo. Ele jamais poderá transferir ou abortar o direito do
julgamento do observador; caso contrário, ele pratica o autoritarismo das
idéias e a ditadura dos discursos teóricos.
O direito à interpretação do
observador é inalienável e intransferível. Mesmo os ditadores políticos não
podem sufocar completamente o direito do julgamento da interpretação dos
consócios de uma sociedade; não podem abortar a revolução clandestina das
idéias que ocorrem nos bastidores de sua mente; por isso, como disse, todos os
sistemas político-econômicos opressivos reciclam-se inevitavelmente ao longo da
história.
Penso que todo teórico,
cientista, pensador ou produtor de arte, não apenas deveria aceitar, mas até
mesmo estimular, os que entram em contato com sua obra a julgá-la com
liberdade e consciência crítica, até porque, nos labirintos da sua mente, todo
observador realiza inconsciente e inevitavelmente esse julgamento com micro ou
macrotraições.
Nas sociedades modernas, a
estética sobrepuja o conteúdo. Essa doença intelectual contaminou também a
ciência, pois a procedência universitária, a fama do centro de pesquisa, os
títulos acadêmicos, o país de origem de um cientista se tornam um marketing socioacadêmico
e sociopolítico inconsciente, que pesa sutilmente na interpretação, julgamento
e credibilidade do observador.
Tais sutilezas, que
influenciam o processo de interpretação, ocorrem em todas as esferas das
relações sociais. Creio que a maioria dos cientistas e dos demais produtores de
conhecimento não tem como evitar totalmente a estética socioacadêmica e outras
influências passíveis de contaminar a interpretação; por isso eles deveriam
estimular o julgamento das suas idéias pelo observador onde elas são expressas,
seja nos livros, nas salas de aula, nos congressos, na imprensa. Esta atitude
está dentro do contexto da democracia das idéias.
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