domingo, 26 de janeiro de 2014

O Processo de Interpretação e a Evolução Psicossocial

O Processo de Interpretação e a Evolução Psicossocial


TODOS COMETEMOS TRAIÇÕES NO PROCESSO DE INTERPRETAÇÃO

Nestes textos estudaremos alguns fenômenos fundamentais que es­tão na base da formação da personalidade e da evolução social do homem. Algumas importantes perguntas serão respondidas. Como o homem desenvolve os alicerces básicos da sua personalidade? Qual é o real papel da educação nesse processo? Por que os manuais de educação pouco funcionam? Por que logo depois que uma teoria é produzida ela sofre uma curva ascendente de desenvolvimento, mas com o passar do tempo ela se estanca?
Compreenderemos que a inteligência prioriza a evolução da história intrapsíquica, da consciência existencial, da construção de pensamentos, da transformação da energia emocional, enfim, prioriza a revolução criati­va e evolutiva das idéias e, conseqüentemente, o processo de desenvolvi­mento da personalidade. Ficaremos surpresos ao descobrir que não evolu­ímos em todos os campos da cultura apenas porque quisemos consciente­mente evoluir, mas também porque temos fenômenos inconscientes que produzem essa evolução. A compreensão desses fenômenos revela-nos al­guns segredos fundamentais da requintada capacidade de pensar e do desen­volvimento social de nossa espécie.
Além dessas questões, também compreenderemos duas atitudes anti-humanistas que saturam as sociedades modernas: a discriminação e o culto ao personalismo, que faz com que uma grande maioria superadmire uma minoria de políticos, intelectuais, artistas, líderes místicos e gravite em tor­no dela.
A discriminação procura anular o "outro", impedindo de alguma forma que ele seja livre, enquanto o culto ao personalismo anula a si mesmo e contrai a própria liberdade crítica de pensar. A discriminação e o excesso de admiração são duas faces da mesma doença da interpretação. Até mes­mo nas ciências há essas duas atitudes anti-humanistas. Ambas abortam o mundo das idéias, maculam a inteligência. A ciência e as sociedades foram drasticamente prejudicadas por elas. Há diversas formas de discriminação e supervalorização intelectuais que circulam nas ciências.
Neste capítulo, farei uma exposição sobre o processo de interpretação gerando as mudanças contínuas nas idéias e pensamentos. O processo de interpretação é realizado pela atuação dos fenômenos que atuam desde a recepção de um estímulo físico (como, por exemplo, imagem, sons) e intra-orgânico (exemplo, droga ou medicamento psicotrópico) até a atuação do conjunto de fenômenos intrapsíquicos, nos bastidores da mente, que são responsáveis por gerar a construtividade de pensamentos, emoções e moti­vações.
Como me preocupo com a cidadania da ciência, ou seja, com a aplica­ção psicossocial da teoria que desenvolvo, farei a abordagem do processo de interpretação usando o exemplo da infidelidade da interpretação dos profissionais da Psicologia, da Sociologia, da Filosofia, da educação etc. com relação à teoria que abraçam e às distorções da interpretação ocorri­das na observação dos fenômenos.
O excesso de admiração dos discípulos de um pensador por sua teoria pode abortar a liberdade crítica e criativa dos pensamentos, gerando discí­pulos que são apenas retransmissores do conhecimento, mas não pensado­res capazes de expandir qualitativamente as idéias.
Utilizar uma teoria é importante; mas admirá-la excessivamente e gravitar em torno dela é uma doença anti-humanística e desinteligente da interpre­tação, pois aborta a capacidade crítica de pensar.
É criticável o sistema de discipulado que há nas ciências, cultivada pela admiração excessiva de um discípulo pela teoria ou pelo teórico que a produziu, ou até mesmo pela corrente eclética de pensamento que abraça. Dizer-se freudiano, junguiano, spinosista, hegeliano, marxista, piagetiano etc. é uma ofensa à inteligência, é uma ingenuidade empírica, pois, como veremos, todos os discípulos traem interpretativamente, nos bastidores de sua mente, a teoria que adotam. A defesa radical de uma teoria nos coloca num cárcere intelectual, num aprisco teórico.
Todos os discípulos são micro ou macroinfiéis aos seus mestres, pois fazem micro ou macrotraições da interpretação quando utilizam as teorias que eles produziram, devido ao sistema de co-interferência de variáveis presentes, a cada momento, nos processos da construção de pensamentos. Essa frase, que parece uma crítica, na realidade esconde alguns segredos da evolução psicossocial do homem.
Para ilustrar o processo de infidelidade da interpretação ocorrida nas ciências, tomarei o exemplo dos psicoterapeutas e suas relações com a teoria psicológica. Os psicanalistas que se dizem radicalmente freudianos, tanto os professores nas faculdades de Psicologia como os psicoterapeutas pertencentes aos institutos de Psicanálise, embora objetivem ser fiéis à Psi­canálise, sempre foram, ainda que inconscientemente, infiéis à teoria psicanalítica, sempre traíram Freud.
Não há discípulos fiéis nas ciências e na produção cultural. Essa afirma­ção pode inquietar muitos psicoterapeutas e muitos cientistas que utilizam uma teoria como suporte da interpretação, mas ela é uma realidade inevitá­vel, pois é fundamentada em princípios universais ligados ao processo de interpretação e, conseqüentemente, ao processo de construção dos pensa­mentos.
Todos os seres humanos são micro ou macrotraidores da interpretação, mesmo que apreciem a fidelidade teórica e se esmerem por alcançá-la. Porém, jamais deveríamos pensar que a traição da interpretação a que me refiro, que acontece nos bastidores inconscientes da inteligência, é um pro­cesso maléfico ou destrutivo; pelo contrário, ela expande as possibilidades de construção da teoria, promove a revolução das idéias, contribuindo sig­nificativamente para a evolução do conhecimento.
Quando contemplamos um mesmo quadro de pintura em dois momen­tos distintos ou quando sofremos uma mesma ofensa também em dois mo­mentos, era de se esperar que o processo de interpretação gerasse a mesma qualidade e quantidade de cadeias de pensamentos e de transformações da energia emocional nos dois momentos, já que os estímulos interpretados foram os mesmos. Porém, o processo de organização, caos e reorganização da energia psíquica não sofre ação apenas do estímulo observado, mas da história intrapsíquica (arquivada na memória), da qualidade da energia emocional e motivacional, do gerenciamento do eu, do fenômeno da autochecagem da memória, do fenômeno da psicoadaptação etc, que são variáveis intrapsíquicas que flutuam e evoluem a cada momento existenci­al. Como o campo de energia psíquica está num fluxo vital contínuo de autotransformações essenciais, essas variáveis também estão em contínuo processo de transformação. Disso podemos concluir que um mesmo obser­vador pode, em dois momentos diferentes, produzir cadeias de pensamen­tos e experiências emocionais distintas diante da contemplação de um mes­mo estímulo.
O processo de interpretação conduz o homem, ainda que ele não tenha consciência disso, a realizar micro ou macrotraições da interpretação. Por isso, num momento, podemos ficar inspirados ao contemplar o belo conti­do num quadro de pintura; noutro momento podemos ficar inertes diante dele. Num momento, podemos ficar profundamente angustiados com de­terminada ofensa; noutro, podemos ficar insensíveis ou pouco angustiados diante da mesma ofensa, produzida pelo mesmo ofensor num mesmo am­biente. A construtividade de pensamentos ultrapassa os limites da lógica.
O processo de traição da interpretação, caracterizado pelas modifica­ções das variáveis intrapsíquicas e, conseqüentemente, da produção de conhecimento (pensamento consciente) diante da contemplação dos estí­mulos extrapsíquicos (comportamento das pessoas, imagens, sons etc.) e intrapsíquicos (fantasias, idéias antecipatórias, angústias, reações fóbicas etc.) contribui significativamente, como veremos, não só para a evolução espon­tânea de uma teoria, mas também para a evolução do homem em todos os seus amplos aspectos psicossociais, tais como a evolução das correntes lite­rárias, da pintura, da arquitetura, dos paradigmas socioculturais, do pensa­mento filosófico. As traições da interpretação, ocorridas espontaneamente nos bastidores da mente de cada ser humano, contribuem também para a evolução do processo de formação de sua personalidade e de sua história.
As traições da interpretação ocorrem desde a aurora da vida fetal, pois nessa fase já se inicia, como comentarei, a produção das matrizes dos pen­samentos essenciais (inconscientes) a partir da leitura multifocal da memó­ria pelo fenômeno da autochecagem da memória e pelo fenômeno do autofluxo. A construção de cadeias de pensamentos sofre a influência de múltiplas variáveis, gerando inúmeras distorções inconscientes. Do ponto de vista teórico, isso deve ocorrer até quando a mente dos fetos interpreta os mesmos estímulos intra-uterinos. Provavelmente, em muitas situações os fetos não produzem as mesmas matrizes de pensamentos inconscientes e as mesmas reações emocionais diante dos mesmos estímulos. Tais distorções da interpretação enriquecem as experiências psíquicas e a formação da his­tória intrapsíquica fetal.
Sem a existência das micro ou macrotraições da interpretação, que muitas vezes são produzidas de modo clandestino na mente, a revolução da construção de novas idéias seria abortada e, assim, a história humana seria paralisante, uma mesmice.
Há, na Sociologia e na Psicologia, um grande conhecimento das evolu­ções psicossociais determinadas e promovidas pelo "eu", ou seja, do "eu" como agente histórico das evoluções, produzindo arte, construindo rela­ções sociais, produzindo conhecimento científico, transmitindo conhecimento etc. Contudo, provavelmente essas ciências ainda não incorporaram o co­nhecimento das sofisticadas evoluções psicossociais espontâneas e incons­cientes ocorridas na clandestinidade da mente humana, geradas pelos com­plexos sistemas de co-interferências das variáveis da interpretação, capazes de levar o homem a fazer micro ou macrointerpretações diante da exposi­ção dos mesmos estímulos ou de estímulos semelhantes e, conseqüente­mente, levá-lo a realizar micro ou macroproduções distintas do conheci­mento diante da contemplação de um mesmo estímulo em dois momentos diferentes.
Essa exposição é tão séria, que implica dizer que os juízes, os jurados, os promotores, os políticos, os psicoterapeutas, os médicos etc. possuem, a cada momento existencial, micro ou macrodistorções em seus processos de interpretação diante dos mesmos estímulos, gerando micro ou macrodis­tinções nas suas idéias e decisões. A produção de pensamentos não é line­armente lógica, principalmente quando ela se refere às questões existen­ciais que envolvem interpretações mais complexas. A isenção completa de ânimo, de distorções da interpretação, da participação de nossa própria história era nossas observações e julgamentos é impossível. Porém, é possí­vel aprender a nos esvaziar dos tendencialismos, principalmente se vivenciarmos, no processo de interpretação, a arte da dúvida, a arte da crítica e a busca do caos intelectual, que são importantíssimos procedimen­tos de pesquisa e análise.
Devemos olhar a ciência e as relações sociais da perspectiva da demo­cracia das idéias. No campo da democracia das idéias, o que se exige não é a busca radical da fidelidade da interpretação, a eliminação radical das distorções da interpretação, mas o desenvolvimento de uma consciência crítica dessas distorções e uma busca de fidelidade a essa consciência.

AS DISTORÇÕES NA INTERPRETAÇÃO E SUA RELAÇÃO COM A EVOLUÇÃO DA PERSONALIDADE

As infidelidades da interpretação são multifocais, ocorrem em todas as esferas do processo de interpretação. Elas ocorrem na ciência, quando um cientista contempla um estímulo em dois momentos distintos. Elas ocor­rem no processo de utilização de uma teoria. Também ocorrem com rela­ção à própria história intrapsíquica, ou seja: quando recordamos o passa­do, nunca o fazemos de maneira original, mas reconstruímos interpretativamente o passado. Nessa reconstrução cometemos invariavelmente micro ou macrotraições com relação às suas dimensões. Por isso, as recor­dações de nossas dores e angústias existenciais são reduzidas em relação às experiências originais.
O homem, desde sua vida fetal, embora utilize contínua e intensamente sua história intrapsíquica arquivada em sua memória, nos processos de construção dos pensamentos "trai" inconscientemente essa história quando contempla estímulos semelhantes, pois no processo de leitura e utilização da mesma ocorre, como disse, diversos sistemas de co-interferências de variáveis da interpretação que provocam diferenças na interpretação e, conseqüentemente, nos limites e no alcance das idéias, das análises, da síntese, da lógica dos pensamentos e das reações emocionais produzidas.
A conclusão psicossocial e filosófica dessa importante abordagem teóri­ca é que somos intelectualmente diferentes a cada momento. Reagimos, pensamos, nos emocionamos, analisamos, sintetizamos etc. de maneira di­ferente a cada momento. Somos emocional e intelectualmente macro ou microdiferentes a cada momento de nossas vidas; por isso, produzimos diariamente milhares de pensamentos e emoções diferentes.
Pergunto: os milhares de pensamentos e emoções que vivenciamos diaria­mente foram todos determinados e produzidos logicamente pelo eu? Fiz essa pergunta, como disse, a inúmeras pessoas, e todas elas responderam o que eu já havia constatado na pesquisa, ou seja, que só uma pequena parte desses pensamentos e emoções foi determinada e produzida logicamente pelo eu. Muitos cientistas não têm noção das conseqüências psicológicas e sociológicas desse fato, da seriedade científica do que é responder que tais experiências foram produzidas fora do controle do eu. Esse fato importan­tíssimo provavelmente nunca foi investigado pelas teorias psicológicas e sociológicas. Ele está na raiz da Sociologia, pois envolve a construção e evolução das relações humanas, e na raiz da Psicologia, pois envolve o processo de formação da personalidade.
Algumas variáveis da interpretação, como estudamos, tais como o fenô­meno da psicoadaptação, a história intrapsíquica, a energia emocional, o fenômeno da credibilidade autógena, a âncora da memória etc, não têm uma linearidade psicodinâmica estável, lógica, mas flutuante e evolutiva; por isso, são capazes de provocar distorções da interpretação e, conseqüen­temente, a produção de cadeias de pensamentos distintas, mesmo quando contemplamos estímulos idênticos.

AS DISTORÇÕES DA INTERPRETAÇÃO PRODUZINDO A EVOLUÇÃO SOCIAL

Todo ser humano, da meninice à velhice, ao interpretar estímulos se­melhantes (elogios, ofensas, reações discriminatórias, estressantes estímulos psicossociais etc), produz experiências psíquicas distintas. Até mesmo o feto, ao interpretar estímulos semelhantes (temperatura e viscosidade do líquido amniótico, contração da parede intra-uterina, substâncias neuroendócrinas maternas que passam pela barreira placentária etc), também pro­duz experiências micro ou macrodistintas, devido à flutuabilidade e evolutividade das variáveis que participam do processo de interpretação desses estímulos. Tal abordagem, como disse, abre os horizontes para compreen­dermos o nascedouro e o desenvolvimento da evolução psicossocial do homem.
Se ocorre a produção de experiências distintas diante da interpretação de estímulos semelhantes, podemos prever que elas ocorrem quantitativa e qualitativamente em muito maior dimensão diante da interpretação de estí­mulos distintos. A produção de experiências micro ou macrodistíntas, ocor­rida no palco da mente humana, é registrada automaticamente pelo fenô­meno RAM (registro automático da memória). Todos os pensamentos, an­gústias, prazeres, reações fóbicas são registrados na memória, não por opção intelectual, mas involuntariamente, o que faz com que a memória seja rees-crita continuamente, transformando, assim, os pilares da personalidade. No computador, as informações são registradas através de um comando; no homem, são registradas involuntariamente. No Homo sapiens, conquistar uma história intrapsíquica é uma inevitabilidade.
O registro inevitável e contínuo das experiências intelecto-emocionais contribui para a evolutividade inconsciente da história intrapsíquica que é uma variável da interpretação fundamental que promove, impulsiona, o processo de construtividade de pensamentos e o processo de formação da personalidade.
A formação e desenvolvimento da história intrapsíquica na memória não depende apenas da intervenção do processo educacional sociofamiliar, que ministra conhecimento, regras comportamentais, paradigmas culturais, mas principalmente pela atuação de um conjunto de variáveis, na qual se incluem diversos fenômenos inconscientes, que se operacionalizam espon­taneamente e silenciosamente nos bastidores da mente. É intelectualmente superficial achar que uma pessoa se tornou culta porque freqüentou anos de escola, se tornou um cientista porque freqüentou uma grande universi­dade e se doutorou nela.
A escolaridade e mesmo a leitura dos livros só podem contribuir com a expansão da cultura e a produção das idéias de alguém porque ocorrem na mente inúmeras, silenciosas e complexas etapas da interpretação não admi­nistradas pelo processo educacional, e que são responsáveis pelo indescritível processo de registro, de leitura da memória, de construtividade dos pensa­mentos e de formação da consciência existencial.
O sistema de variáveis que atuam nos bastidores da mente, associado ao irresistível caos intrapsíquico que desorganiza as estruturas psicodinâmicas (idéias, pensamentos, emoções, motivações etc), abrem continuamente as possibilidades de construção da inteligência, gerando assim, silenciosamen­te, em cada ser humano uma produção contínua de novas idéias, que são registradas, lidas e utilizadas na construção de novas cadeias de pensamen­tos, promovendo a evolução da história intrapsíquica e da personalidade e, num sentido mais amplo, a evolução da história psicossocial do homem.
Reitero: devido ao sistema de co-interferência das variáveis da interpre­tação que atuam nos bastidores da mente, não somos fiéis no processo de observação, interpretação e produção de conhecimento, ou seja, não re­produzimos as mesmas experiências psíquicas diante da contemplação dos mesmos estímulos ou de estímulos semelhantes. Por incrível que pareça, nem quando resgatamos as experiências psíquicas passadas ocorre uma recordação pura, original, das mesmas, mas uma interpretação que sofre diversos encadeamentos distorcidos.
Como vimos, ao contrário do que pensamos, não existem recordações do passado, mas reconstruções do passado, fundamentadas na interpreta­ção das complexas experiências psíquicas que foram registradas na história intrapsíquica arquivada na memória. Todas as finíssimas "arquiteturas psicodinâmicas" contidas nas experiências psíquicas, tais como as idéias, os pensamentos antecipatórios, as inspirações, as ansiedades, os desesperos, as reações fóbicas, os prazeres etc, antes de serem desorganizadas pelo caos intrapsíquico, são registradas no arquivo existencial da memória, que chamo de história intrapsíquica, pelo fenômeno do registro automático da memória.
Se não houvesse a atuação psicodinâmica do fenômeno RAM, fração de segundo antes da desorganização das experiências psíquicas pelo caos intrapsíquico, e se não houvesse o tecido do córtex cerebral intacto, sem degenerações, isquemias, traumas ou tumores, para receber a ação deste fenômeno intrapsíquico, nenhum ser humano teria uma história intrapsíquica e, conseqüentemente, nenhum ser humano desenvolveria a construtividade de pensamentos e a consciência existencial.

A HISTÓRIA INTRAPSÍQUICA (PASSADO) É ESSENCIALMENTE IRRETORNÁVEL

Um dia, ministrando um curso sobre a construtividade de pensamentos para uma equipe multidisciplinar de profissionais que cuidam de pacientes autistas, perguntei a eles se, quando recordam seu passado, resgatam a originalidade das suas experiências psíquicas. Eles me disseram que sim. Eu disse-lhes que isso era impossível, que a energia psíquica das idéias e das emoções do passado é essencialmente irretornável, pois ela não está no passado, mas evoluiu no presente.
A energia psíquica, ao contrário do que muitos psicólogos pensam, não se depositou nem se arquivou na memória como energia psíquica, mas como um sistema de códigos físico-quimicos que representam essas experiências, as RPSs (representações psicossemânticas). Eu disse, para surpresa deles, que a energia psíquica vive num fluxo vital de transforma­ções que evolui constantemente, por isso as idéias, as análises, os pensa­mentos antecipatórios, os pensamentos sobre o passado, as emoções etc, são continuamente produzidos. Quando essas experiências são registradas, elas perdem sua essencialidade original, tornando-se um sistema de códi­gos físico-quimicos "pobres" em relação à originalidade das experiências psíquicas.
A história é registrada quando a experiência psíquica se descaracteriza ou se desorganiza essencialmente e evolui na construtividade de outras experiências. O processo de resgate da história intrapsiquica não é uma simples lembrança, mas um processo de interpretação complexo e cheio de segredos, capaz de produzir cadeias de pensamentos e experiências emocionais a partir dos sistemas de códigos físico-quimicos "frios" e "restri­tos" contidos na memória.
A leitura da história intrapsiquica, associada à participação de um con­junto de variáveis da interpretação, faz com que o resgate das experiências passadas não obedeça a uma linearidade lógica e, por isso, não resgata as mesmas dimensões das idéias, dos prazeres, das frustrações, das angústias etc, contidas nas experiências originais.
Depois de minha exposição para a equipe multidisciplinar que cuidava de pacientes autistas, obviamente mais detalhada do que esta síntese, um participante do curso disse-me que havia entendido o que eu dissera, pois vivenciou esse processo através de uma experiência traumática no passa­do, porém sem entendê-lo na época. Ele comentou que há anos havia atro­pelado uma pessoa que veio a falecer. Embora não tivesse culpa no aciden­te, disse que havia sofrido intensamente com o fato. Toda vez que o recor­dava, se angustiava muito. Porém, com o passar do tempo, o processo de recordação não trazia os mesmos níveis de angústia como nas primeiras vezes, e ele não entendia a causa disso. Através da abordagem sobre os processos de construção dos pensamentos, ele compreendeu que o proces­so de registro descaracteriza a realidade essencial da experiência original, e o processo de resgate, devido à ação de um conjunto de variáveis, não reconstrói interpretativamente a mesma intensidade das angústias e das cadei­as de pensamento produzidas na experiência original. O distanciamento do processo de interpretação do passado e as próprias experiências originais do passado ficam mais claros à medida que o tempo passa.
Nenhum ganhador do Oscar, do prêmio Nobel, de disputas esportivas, de pleitos eleitorais etc, consegue manter os mesmos níveis de prazer e auto-estima contidos nas experiências originais produzidas na época da premiação. Com o passar do tempo, o prazer se reduz e, às vezes, até se estanca diante dessas "recordações".
Quando reconstruímos interpretativamente o passado, fazemos micro ou macrotraições em relação à originalidade essencial das experiências do passado. As teorias psicológicas e educacionais precisam incorporar o co­nhecimento relativo ao processo de interpretação da história. Os psicanalis­tas e outros psicoterapeutas que procuram resgatar e analisar a história inconsciente dos seus pacientes têm de estar cientes de que a história é irrevogável, que aquilo que o paciente traz na técnica de associação livre não é a sua história pura, original, mas a história reconstruída interpre­tativamente e, portanto, passível de inúmeras distorções da interpretação. Na realidade, no processo psicoterapêutico, como em todas as esferas das relações humanas, ocorre uma cadeia de distorções da interpretação. O paciente distorce a sua história e o psicoterapeuta distorce a história do paciente já distorcida. Por isso, o que está em jogo no processo psico­terapêutico não é a verdade em si, não é trabalhar a verdade em si, mas a "reconstrução da verdade" e o "trabalhar dessa reconstrução da verdade" e, principalmente, a expansão da consciência crítica e da capacidade de o próprio paciente trabalhar as suas dores, perdas, frustrações e conflitos interpessoais.
A história intrapsíquica é fundamental para a construção de pensamen­tos e para a produção da consciência existencial, mas a história em si mes­ma é irretornável essencialmente. Por isso, todos temos a grande responsa­bilidade de reconstruí-la interpretativamente com adequação para evitar determinados níveis de contaminações da interpretação em nossos julga­mentos, na compreensão de mundo, nas reações intrapsíquicas. A interpre­tação adequada também é importante para fornecer subsídios para traba­lharmos e reciclarmos criticamente os registros inconscientes das experiên­cias passadas e, assim, aliviarmos nossas tensões, fobias, ansiedades e sinto­mas psicossomáticos do presente.

AS TRAIÇÕES DA INTERPRETAÇÃO OCORRIDAS NA UTILIZAÇÃO DAS TEORIAS

Nenhum psicoterapeuta, sociólogo, filósofo, jurista, cientista etc, no processo de interpretação de uma teoria, resgata as dimensões das idéias de um teórico. No processo de interpretação da teoria já ocorrem traições da interpretação, que continuam à medida que se exercem. Dois profissio­nais, usando a mesma teoria para interpretar um mesmo fenômeno, produ­zem conhecimentos micro ou macrodistintos sobre ele. Até um mesmo profissional utilizando a mesma teoria em dois momentos distintos, para interpretar um mesmo estímulo, pode produzir conhecimento micro ou macrodistinto sobre ele.
Quando a teoria é interpretada, ela deixa de ser a teoria do teórico para ser a teoria do interpretador. Quando a "teoria interpretada" é arquivada na memória, as idéias que ela contém perdem suas dimensões essenciais intelecto-emocionais, o que favorece a continuação de traições da interpre­tação. Quando o interpretador (ex., discípulo de uma teoria) resgata as idéias da "teoria interpretada" na sua memória, ele, agora, trai a si mesmo pois, como disse, esse resgate não é uma recordação original, mas uma interpretação, passível de inúmeras distorções. Assim, o discípulo de uma teoria não apenas trai interpretativamente a teoria que abraça, mas tam­bém trai, ainda que minimamente, a si mesmo, ou seja, trai as dimensões das próprias idéias que produziu nas primeiras interpretações que fez da teoria. Por isso, ainda que se deva procurar fidelidade no processo de utili­zação de uma teoria como suporte da interpretação, é inevitável que haja microtraições da interpretação. Isso ocorre porque a mente ativa a evolu­ção da história intrapsíquica, ainda que seja às custas de microtraições da interpretação inconscientes e não pela determinação do "eu". Este tema envolve alguns princípios fundamentais do processo de formação da perso­nalidade e da construção das relações humanas e da história social.
Por que temos que reconstruir interpretativamente o passado e não resgatar a sua essencialidade original? Um dos motivos é que a mente, através da operacionalidade dos fenômenos intrapsíquicos, dá prioridade à evolução da história intrapsíquica e psicossocial e não à paralisia dessas histórias.
Se uma mãe, ao perder um filho, recordasse ao longo do tempo os mesmos níveis de sofrimento decorrente das experiências originais, ela paralisaria a evolução da sua história intrapsíquica. Nesse caso, sua história se tornaria um luto crônico, uma extensão dramática e contínua do velório do filho. Felizmente isso não ocorre. Já estudamos a atuação inconsciente do fenômeno da psicoadaptação em textos posteriores, vimos que ele produz uma redução nos níveis de dor, bem como de prazer, no processo de resgate contínuo das experiências passadas. O fenômeno da psicoadaptação é um dos fenômenos que evoluem ao longo do processo existencial, o que contribui, conseqüentemente, para a produção de diferenças de interpreta­ção, tanto diante do resgate das experiências passadas como diante dos estímulos (fenômenos) do presente.
Provavelmente, a maioria dos teóricos das diversas áreas das ciências, bem como seus discípulos, não compreenderam a mente por esse prisma; não compreenderam que ocorrem inevitavelmente microtraições da inter­pretação porque ela dá prioridade à evolução da história intrapsíquica e psicossocial, na qual se inclui a evolução do conhecimento teórico.
No campo das psicoterapias, não poucos psicoterapeutas se perdem na compreensão dos labirintos da mente; eles pensam, como disse, que estão interpretando a realidade essencial dos conflitos dos seus pacientes, quan­do na realidade estão interpretando a reinterpretação da história dos seus pacientes. Muitos podem argumentar que, quando se lembram do passa­do, sentem e pensam a mesma coisa que sentiram e pensaram no passado, mas isto não é verdade; é fruto de uma análise superficial dos limites e do alcance das emoções e dos pensamentos nos dois momentos históricos: o passado e o presente. Pode haver aproximação no processo de construção das experiências passadas, mas haverá inevitavelmente, como disse, microdistinções.
Somos micro ou macroinfiéis em relação ã história intrapsíquica, aos estímulos contemplados, aos conhecimentos coloquiais e científicos e às teorias. Tal infidelidade da interpretação, embora contribua muito para a construção e evolução das idéias, da arte e da personalidade, nem sempre é qualitativamente construtiva e evolutiva.
Nas ciências, o processo de utilização das teorias, das idéias e das teses de outros cientistas produzem também diversas infldelidades e traições da interpretação. É possível que muitas dessas infidelidades da interpretação não remetam a uma evolução qualitativa da teoria, principalmente se no processo de utilização de uma teoria não houver honestidade científica e o mínimo de consciência crítica capazes de auxiliar o processo de revisão do conhecimento produzido e da teoria utilizada.
Estes assuntos revelam alguns dos mais profundos segredos da evolu­ção psicossocial do homem, contidos no inconsciente. O homem evolui psicossocialmente tanto pela administração consciente da sua construtividade de pensamentos quanto pelo sistema de co-interferências das variáveis que geram micro ou macrodistinções inconscientes da interpretação.
Há um Homo interpres, no cerne da psique humana, micro ou macro-distinto a cada momento da interpretação. Não somos os mesmos a cada momento existencial. Nosso processo de interpretação está em contínuo processo de mudança, porque algumas variáveis que o constituem evoluem e flutuam continuamente. Uma parte significativa das transformações das idéias filosóficas, do pensamento sociopolítico, das correntes literárias, da estética das artes, dos paradigmas socioculturais, das posturas intelectuais, é produzida por essa revolução clandestina que ocorre silenciosamente no processo de interpretação. Se o leitor ler dez vezes os textos deste livro, terá provavelmente dez produções de cadeias de pensamentos micro ou macrodistintas, expressando diversas impressões, reações emocionais, en­tendimento. Por isso, quanto mais estudamos, mais expandimos o mundo das idéias.

TODOS OS DISCÍPULOS SÃO INFIÉIS

Os discípulos de uma teoria não reproduzem, como disse, a originalida­de, a pureza das idéias, os limites e o alcance do conhecimento, as emoções e motivações que foram vivenciadas pelo autor e registradas em livros. Até os discípulos das ciências físicas traem a completeza original das idéias con­tidas nas teorias que utilizam.
O discurso teórico de um discípulo pode parecer igual ao do teórico; mas, se forem analisados os labirintos intelectuais que estão na base dos discursos, é possível encontrar as distinções e, às vezes, até macrodistinções disfarçadas dialeticamente, e que estão subjacentes ao sistemas de códigos que confeccionam as frases, as idéias, os pensamentos. Quando dez pes­soas julgam uma obra de arte, a contemplação do belo não será igual para todos os observadores, mas, provavelmente, haverá inúmeras dimensões qualitativas e quantitativas subjacentes à idéia do belo.
Quando um discípulo de uma teoria a estuda nos livros ou ouve a exposição dela diretamente do seu autor, ele não incorpora a realidade essencial da teoria, pois a teoria escrita ou falada é um sistema de código visual e sonoro. Em contato com esse sistema de código, o discípulo tem de interpretá-la. Interpretando-a, a compreensão dela não tem as mesmas di­mensões qualitativas e quantitativas das idéias do autor, ainda que a dife­rença de pensamento esteja disfarçada dialeticamente. Os discípulos de uma teoria traem-na interpretativamente. Essa traição da interpretação in­consciente, associada a um questionamento consciente, poderá levar um discípulo a deixar de ser um mero espectador passivo da teoria, para ser alguém que contribui com o desenvolvimento das suas idéias.
Diante dessa exposição, pergunto: Quem são os piores inimigos de uma teoria? Os piores inimigos de uma teoria são aqueles que a superdimensionam, que gravitam em torno dela e a defendem radicalmente, pois são incapazes de contribuir para criticá-la, reciclá-la e expandi-la. Se os discípu­los de uma teoria não são capazes de realizar críticas conscientes à teoria que abraçam, com medo de serem infiéis a ela ou com medo de serem banidos da sociedade científica ou psicoterapêutica a que pertencem, eles a trairão inconscientemente, através da co-interferência das variáveis que atuam clandestinamente nos seus processos de construção do pensamento. Os piores inimigos de uma teoria são aqueles que desconhecem os limites e o alcance de uma teoria, as sofisticadas relações entre a verdade essencial e a verdade científica e, principalmente, aqueles discípulos que defendem radicalmente a teoria que abraçam, que juram fidelidade ingênua a ela e não compreendem que a traem nos bastidores de sua mente. Os discípulos radicais de uma teoria, os "ianos" ou os "istas", confinam-se em um aprisco teórico, submetem-se a um cárcere intelectual, que compromete a liberda­de de pensar e a consciência crítica. Nesse cárcere intelectual, ainda que inconscientemente, eles prejudicam a sua atuação socioprofissional, estan­cam a evolução da teoria e contraem o mundo das idéias.
É provável que grande parte das sociedades científicas e psicoterapêuticas não compreendam adequadamente as etapas do processo de interpretação e o processo de traição da interpretação que ocorre nos bastidores da men­te dos seus membros. É provável que muitos professores de graduação universitária e de pós-graduação cometam o autoritarismo das idéias na transmissibilidade do conhecimento e na orientação dos alunos, por não compreender adequadamente os labirintos do processo de interpretação, os limites de uma teoria, e que os processos de construção dos pensamen­tos ultrapassam os limites da lógica. Vários alunos de Psicologia já me dis­seram que alguns dos seus professores afirmaram, em sala de aula, que são freudianos radicais e que não aceitam qualquer outra teoria sobre a perso­nalidade. Esses tais, além de serem ingênuos intelectualmente, são traido­res da teoria a que julgam ser fiéis e, o que é pior, exercem uma ditadura do pensamento, engessando, assim, a inteligência dos alunos.
Não existem discípulos fiéis e não existem teorias essencialmente ver­dadeiras e completas, pois além de não haver verdade essencial no pensa­mento dialético e no antidialético, a ciência é inesgotável. O pensamento dialético é um sistema de intenções conscientes e virtuais que acusa (defi­ne) e discursa sobre a verdade essencial sem nunca incorporá-la essencial­mente.
O excesso de admiração e "endeusamento" de uma teoria ou de um teórico por parte dos discípulos radicais não apenas inibe sua evolutividade, mas também cultiva a produção de opositores igualmente radicais, que a criticam pelo próprio radicalismo dos discípulos e não através de uma aná­lise mais adequada e isenta de paixões.
Os freudianos, junguianos, hegelianos, marxistas, piagetianos etc, en­fim, os que aderem radicalmente a uma teoria, que são incapazes de criticá-la, de reciclá-la e de expandi-la são, ao contrário do que pensam, seus piores inimigos, são os que mais destroem sua credibilidade ao longo da história. As grandes teorias sociais, políticas, econômicas, culturais, acabam sendo destruídas, não pelos seus opositores, mas pelos seus defensores radi­cais, que são incapazes de reciclá-la e adequá-la historicamente.
Esses acidentes intelectuais não estão presentes apenas nas ciências da cultura, mas também nas ciências físicas e correlatas, bem como em todas as esferas das relações sociais.
Só o fato de alguém dizer-se freudiano, junguiano, spinosista, ou qual­quer expressão que indique ser ele um discípulo contumaz de um teórico ou de uma teoria de qualquer natureza é uma expressão da ingenuidade intelectual. A adesão não-crítica a uma teoria bloqueia a catalisação das idéias e a utilização humanística da própria teoria.
Todos os freudianos são traidores da interpretação da teoria psicanalítica de Sigmund Freud. O excesso de admiração e a defesa radical de uma teoria são um dos motivos que também abortam a produção de novas safras de pensadores, pois reduzem a capacidade crítica de pensar e bloqueiam a expansibilidade análise do defensor radical.
Os discípulos que gravitam em torno de uma teoria e são incapazes de criticá-la se tornam retransmissores do conhecimento e não pensadores que promovem novas idéias. Esse é um dos mais importantes motivos que sufo­caram e sufocam a formação de pensadores.
Expressarei sinteticamente os mecanismos psicossociais que extermi­nam com a safra de pensadores na Psicologia, na Sociologia, na Filosofia, na Educação e em todas as demais áreas da cultura. Um pensador começa a observar, a interpretar e a produzir conhecimento sobre os fenômenos. Sua produção de conhecimento conflita com as idéias vigentes. Como ele tem de optar em ser fiel às suas idéias ou submeter-se ao conhecimento vigente, ele opta por se rebelar contra este. Por fim, sua produção de co­nhecimento se expande e se torna uma teoria ou uma corrente de pensa­mento. Suas idéias cativam seus primeiros discípulos, que se tornam, não meros discípulos, mas colaboradores, que debaixo do calor da rebeldia do pensador, das perspectivas da sua teoria e das possíveis discriminações sofridas por ele se tornam também produtores de conhecimento capazes de utilizar, reciclar e expandir a teoria que abraçam.
A teoria, em seus estágios iniciais, que ainda não se tornou uma institui­ção intocável, gera nos discípulos divergências na interpretação e, conseqüentemente, divergências na produção de conhecimento. O teórico não consegue controlar essas divergências; por isso elas parecem ruins, pois comprometem a unidade da teoria, mas, na realidade, expandem o mundo das idéias. Foi através desses mecanismos psicossociais que, provavelmen­te, Sócrates, Platão, Hegel, Freud, Piaget etc. agregaram inicialmente não apenas discípulos, mas pensadores. Porém, nas gerações posteriores, ocor­re a produção dos discípulos radicais, aqueles que institucionalizam o co­nhecimento, que supervalorizam a teoria ou a corrente de pensamento e que são incapazes de criticá-la e reciclá-la. Assim, morre a safra de pensa­dores e somente algures ou alhures ocorre a produção de alguns deles.
Usar as teorias para se produzir as teses científicas é legítimo e pode ser importantíssimo para expandir a produção do conhecimento cultural e ci­entífico, mas querer submeter exclusivamente os comportamentos e os fe­nômenos físicos que observarmos dentro dos seus limites, retrai a evolução das idéias.
Tanto os teóricos como os discípulos de uma teoria têm que aprender a conhecer alguns pilares do processo de construção do pensamento e de interpretação. A ciência é inesgotável e todas as teorias são redutoras da inesgotabilidade do conhecimento; por isso, todas elas precisam ser conti­nuamente revisadas.
Os desastres do socialismo, do capitalismo, da globalização das infor­mações, da globalização da economia estão na incapacidade intelectual dos seus defensores de reciclá-los e expandi-los continuamente respeitando as avenidas da democracia das idéias.
Qualquer pensador-teórico faz freqüentemente microtraições incons­cientes ao interpretar sua própria teoria, pois discutir, ler e refletir sobre as próprias idéias não quer dizer resgatá-las com pureza, originalidade, mas reconstruí-las interpretativamente na mente com micro ou macrotraições.
As microtraições da interpretação geram uma promoção evolutiva in­consciente importante de uma teoria ou de qualquer produção científica. As microtraições inconscientes da interpretação são produzidas, como co­mentei, inevitavelmente pelos sistemas de co-interferências das variáveis que flutuam e evoluem continuamente nos bastidores inconscientes da in­teligência e que geram os sistemas de encadeamentos distorcidos na racionalidade, ou seja, na construção das cadeias de pensamentos. Se não houvesse esses espetáculos na mente humana, seria impossível produzir milhares de pensamentos, idéias, análises, reações ansiosas, prazeres, inse­guranças, desejos, etc, distintos diariamente. A vida humana seria uma mesmice insuportável, um tédio existencial, pois não teria sua maior fonte de entretenimento.
O fenômeno da psicoadaptação, a âncora da memória, a energia emo­cional, a história intrapsíquica, o fenômeno do autofluxo etc, são fenôme­nos que se apresentam qualitativamente distintos a cada momento, fazendo com que os processos de construção da inteligência sofram sistemas de encadeamentos distorcidos que geram as distorções inevitáveis da interpre­tação que, por sua vez, geram uma variabilidade nas dimensões qualitati­vas e quantitativas dos pensamentos, idéias, conceitos, análises, emoções.
A história intrapsíquica se expande diariamente, através da atuação psicodinâmica do fenômeno do registro automático da memória. A ener­gia emocional flutua a cada momento, levando-nos a experimentar diver­sos tipos de estresses, prazeres, ansiedades. O fenômeno da psicoadaptação evolui continuamente ao longo da trajetória existencial, fazendo-nos redu­zir a capacidade de experimentar prazer ou dor diante da exposição dos mesmos estímulos. A âncora da memória desloca constantemente o territó­rio de leitura da memória. O fenômeno do autofluxo financia o fluxo vital da energia psíquica, através da reorganização do caos dessa energia, da leitura espontânea da memória e da abertura, a cada momento, das possi­bilidades de construção de novos pensamentos.
A flutuabilidade e evolutividade dessas variáveis da interpretação pro­vocam um riquíssimo sistema de encadeamento distorcido no processo de interpretação, expressa por micro ou macrotraições da interpretação, que produz diariamente milhares de idéias distintas, uma verdadeira revolução de idéias nos bastidores da psique humana.
As traições inconscientes da interpretação, somadas à revisão crítica do conhecimento pelo eu, foram e são os dois pilares fundamentais que sus­tentam a evolução de qualquer teoria científica, de qualquer estereótipo social, de qualquer paradigma sociocultural, de qualquer ideologia políti­ca, de qualquer sistema socioeconômico, sociopolítico e socioeducacional, enfim, de qualquer área da história psicossocial humana.

O ZELO EXCESSIVO DE FREUD PELA PSICANÁLISE CONTRAPONDO-SE À DEMOCRACIA DAS IDÉIAS

Após serem produzidas, todas as teorias continuam evoluindo, não ape­nas pelo gerenciamento exercido pelo "eu", mas também pela flutuabilidade e evolutividade das variáveis da interpretação e pelos sistemas de encadea­mentos distorcidos que atuam nos processos de construção do pensamento do teórico e de seus discípulos.
Freud, embora fosse um inteligente e respeitável teórico, um pensador sobre o inconsciente, não compreendeu algumas áreas fundamentais do inconsciente, principalmente as que se relacionam com os complexos sistemas de co-interferências mútuas das variáveis intrapsíquicas e com os sofisti­cados sistemas de encadeamentos distorcidos ocorridos no processo da construtividade de pensamentos.
Se ele tivesse tal conhecimento, teria compreendido que as traições da interpretação são inevitáveis na construção dos pensamentos; teria compre­endido que tanto ele como seus discípulos traíam inconscientemente a teo­ria psicanalítica. Se ele tivesse esse conhecimento, também teria compreen­dido, apreciado e cultivado a democracia das idéias, não seria tão rígido com os limites e contornos teóricos da psicanálise e, conseqüentemente, não teria banido da família psicanalítica os que pensavam contrariamente às suas idéias, tais como Carl Gustav Jung e Alfred Adler.10
Muitos filósofos e pensadores não compreenderam a democracia das idéias. Não compreenderam que ela está muito acima da democracia polí­tica e que ela nem mesmo é uma opção ideológica, mas uma inevitabilidade nas ciências e nas relações humanas. A democracia das idéias é expressa pela rejeição a toda e qualquer forma de discriminação; pelo respeito e consideração pelas idéias do "outro", ainda que possamos discordar delas, pelo direito personalíssimo "meu" e do "outro" de pensar e ser livre. A democracia das idéias é derivada de um corpo de conhecimento universal ocorrido nos processos de construção do pensamento, tais como: a flutuabilidade e evolutividade das variáveis da interpretação, o sistema de encadeamento distorcido, as traições inconscientes da interpretação, a li­berdade criativa e plasticidade construtiva dos pensamentos dialéticos, a virtualidade da consciência existencial, a inesgotabilidade do conhecimen­to, etc.
O Homo sapiens micro ou macroviolou os direitos humanos, mesmo nos ambientes menos suspeitos, porque ele pouco conheceu a democracia das idéias, pouco compreendeu que a divergência de idéias é uma inevitabilidade e não apenas uma opção do eu, pois há um Homo interpres que o constitui intrinsecamente e que é micro e macrodistinto a cada momento existencial.
Temos de compreender que a verdade essencial, embora uma pérola a ser procurada ansiosamente pela pesquisa científica, pela pesquisa empírica, é inalcançável pela consciência existencial, cuja natureza é antiessencial ou virtual; por isso, os pensamentos dialéticos, apesar de acusar e discursar teoricamente sobre os objetos e fenômenos de estudos, jamais incorporam a realidade essencial intrínseca dos mesmos.
Todos os teóricos, cientistas e pensadores são andejos da virtualidade dialética que percorrem e esquadrinham os territórios essenciais dos fenô­menos extrapsíquicos e intrapsíquicos, porém sem nunca encontrá-los na sua essencialidade. Porém, apesar de nunca incorporarmos pela consciên­cia existencial a realidade essencial do mundo que contemplamos, nossa produção de conhecimentos pode produzir, como comentarei, conseqüên­cias científicas, tais como verificabilidades, aplicabilidades e previsibilidades. Sem essas conseqüências, a ciência não existiria.
Muitos poderiam reclamar do fato de a consciência existencial não in­corporar a realidade essencial dos fenômenos, do fato de que milhões de pensamentos sobre um objeto são apenas um discurso virtual intencional sobre ele, pois nunca atinge em si mesmo a realidade essencial do objeto. Não poucos pensadores tentaram superar a distância entre o pensamento e o objeto, pois não perceberam que essa distância é infinita, que existe um antiespaço entre o pensamento consciente (virtual) e a realidade essencial do objeto. Porém, temos de compreender que a nossa incrível liberdade criativa e plasticidade construtiva dos pensamentos conscientes advêm da própria limitação da natureza antiessencial e virtual dos mesmos.
Se os discursos dos pensamentos conscientes tivessem de incorporar a realidade intrínseca dos objetos sobre os quais se discursa, nós jamais se­ríamos seres pensantes. Os astrônomos jamais poderiam abordar os astros e os químicos jamais poderiam discursar sobre os átomos e as moléculas que nunca tocaram; os psicólogos jamais poderiam discorrer sobre as emo­ções intangíveis sensorialmente e inacessíveis essencialmente. Se a construtividade dos pensamentos não operasse na esfera da virtualidade, não poderíamos antecipar fatos futuros, pois estes ainda não aconteceram; nem poderíamos discorrer sobre experiências passadas, pois estas são irrevogáveis essencialmente; nem poderíamos pensar sobre qualquer coisa ou pessoa sem que elas penetrassem no "tecido" dos nossos pensamentos.
A virtualidade dos pensamentos produz, como comentei, limites intransponíveis na sua práxis ou "materialização", mas, ao mesmo tempo, produz uma liberdade criativa e uma plasticidade dialética indescritíveis.
Só é possível a existência da revolução criativa e evolutiva das idéias porque as idéias são produzidas na esfera da virtualidade, pois nessa esfera elas conquistam uma plasticidade e liberdade que superam a necessidade de incorporação da realidade essencial do mundo que somos e em que estamos.

O FLUXO CONTÍNUO DOS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DA MENTE GERANDO A REVOLUÇÃO INEVITÁVEL E CLANDESTINA DAS IDÉIAS

Penso que os cursos de Psicologia, Sociologia, Filosofia, Educação, Di­reito, Psiquiatria etc, precisam compreender e incorporar o conhecimento básico sobre o funcionamento da mente. Com respeito aos cursos de Psicologia, há grandes lacunas na formação dos psicólogos clínicos, que saem motivados a abraçar uma teoria da personalidade.
A postura de se abraçar uma teoria como suporte da interpretação e como validação dos procedimentos psicoterapêuticos, sem um processo de filtragem crítica das idéias nela contida, se deve à imaturidade científica da Psicologia na compreensão dos processos de construção dos pensamentos.
Seria importante que as sociedades de Psicoterapia (Psicanálise, Psicoterapia analítica, Psicodrama, Logoterapia, cognitiva, comportamental etc.) promovessem cursos sobre os sistemas de encadeamentos distorcidos ocorridos na construtividade de pensamentos; sobre os sistemas de co-in­terferências das variáveis da interpretação que conduzem à ocorrência de micro e macrotraições da interpretação do Homo interpus, passíveis de ocor­rer no processo psicoterapêutíco; sobre a necessidade de promover a revo­lução construtiva das idéias dos pacientes e torná-los agentes ativos e críti­cos no "ambiente da psicoterapia", e não espectadores passivos das inter­pretações e dos procedimentos psicoterapêuticos.
Pode não ser confortável para um psicoterapeuta promover a capacida­de crítica de pensar dos pacientes e incentivá-los a criticar suas próprias interpretações e procedimentos psicoterapêuticos, mas tal atitude, além de se afinar com a democracia das idéias, contribui muito para promover a revolução das idéias, expandir a capacidade de superar seus fracassos, refi­nar o processo de superação dos estímulos estressantes e tornar os próprios pacientes agentes modificadores da sua história psicossocial.
Os psicoterapeutas, independentemente se não incorporarem um co­nhecimento básico sobre o funcionamento da mente e o processo de inter­pretação, poderão exercer o processo psicoterapêutíco fora do campo da democracia das idéias, produzindo interpretações e procedimentos sem dar aos pacientes o direito de discuti-los e criticá-los. Assim, podem criar uma relação psicoterapeuta-paciente desigual, em que eles, os psicotera­peutas, exercem uma poderosa influência sobre os pacientes, gerando um microclima de autoritarismo das idéias, submetendo o mundo dos pacien­tes às restritas dimensões da teoria que abraçam e das interpretações e pro­cedimentos que produzem. Tal postura psicoterapêutica contrai e, às vezes, pode até abortar o desenvolvimento da capacidade crítica de pensar dos pacientes ("iatrogenia psicoterapêutíca"), fazendo com que estes gravitem em torno da "órbita intelectual" dos seus psicoterapeutas. A dependência do terapeuta encarcera a inteligência.
Princípios semelhantes podem ocorrer no processo educacional. Pro­fessores que desconhecem os processos de construção da inteligência po­dem ter uma postura tão rígida e unidirecional no processo educacional que contraem ou abortam a capacidade crítica de pensar dos seus alunos, tornando-os espectadores passivos do conhecimento, com grande dificulda­de para expressar suas dúvidas e criticar seus professores e as idéias por eles expressas, o que revela uma "iatrogenia socioeducacional". O processo edu­cacional unidirecional, "a-histórico-crítico-existencial" e exteriorizante pou­co alavanca e redireciona a espetacular revolução da construção das idéias que ocorre clandestinamente na mente dos alunos e, conseqüentemente, pouco contribui para expandir neles o humanismo e a cidadania.
Os professores e os psicoterapeutas precisam compreender que, de fato, eles não fazem muito no processo socioeducacional e psicoterapêutico; no máximo, contribuem para estimular a produção das idéias que ocorre es­pontaneamente em seus alunos e pacientes. Sem a operação espontânea e inevitável dos fenômenos que constroem os pensamentos, o homem nem mesmo desenvolveria sua personalidade e nem teria condições de conquis­tar a consciência de si mesmo e do mundo que o circunda.
Ilustres pensadores abordaram o princípio fundamental que rege o pro­cesso de formação da personalidade. Sigmund Freud" abordou o princípio do prazer; Carl Gustav Jung 12, o self (eu) criador; Alfred Adler 13, a busca de superioridade; Erich Fromm 14 abordou, entre outros fatores, a busca de proteção e segurança; Viktor Frankl 15 abordou a busca do sentido existen­cial etc. Porém, há um princípio globalizante, um princípio dos princípios, que é a fonte que incorpora todos os princípios postulados pelos demais autores e que está na base de todos os processos de construção inconscien­tes e conscientes da mente, que é o fluxo vital da energia psíquica. Vejamos.
A energia psíquica, como disse, está num fluxo vital contínuo e inevitá­vel. Cada idéia, pensamento, análise, reação fóbica, humor deprimido, desejo, reação instintiva etc, produzida inconscientemente e manifestada nos palcos conscientes da mesma se descaracteriza e é registrada na história intrapsíquica.
A leitura da história intrapsíquica, sob a influência dos sistemas de va­riáveis intrapsíquicas, produzirá um universo de novas idéias que promove­rá a expansão dos alicerces da personalidade. A medida que novas idéias, pensamentos, análises, reações emocionais e motivacionais são produzidos na mente, eles novamente se desorganizam caoticamente e, ao mesmo tem­po, são registrados no arquivo existencial da memória pelo fenômeno RAM.
Registrar ou arquivar as experiências psíquicas na memória não é, como vimos, um processo opcional do homem, mas um processo involuntário e inevitável. Mesmo que possamos rejeitar contundentemente as ofensas, as discriminações e as experiências mais angustiantes que vivenciamos, elas serão inevitavelmente, à medida que caminham para o caos psicodinâmico, registradas no arquivo da memória pelo fenômeno RAM. Se a ausência dessa "opção" traz alguns transtornos, traz também, como comentei, imprescindíveis benefícios à psique, tal como a preservação da história intrapsíquica, pois sem ela viveríamos um contínuo, indescritível e dramá­tico estado inconsciente. Embora não seja possível optar por ter ou não a história intrapsíquica, é possível, no entanto, reciclá-la e reorganizá-la.
O campo de energia psíquica é tão complexo que, simultaneamente ao processo de desorganização das idéias, das emoções e das motivações, ocorre o desenvolvimento da história intrapsíquica. Com a expansão da história intrapsíquica estimula-se a produção de novas cadeias de pensamentos, reações emocionais e experiências existenciais, que alavancarão o desen­volvimento da personalidade. Através desse desenvolvimento, ocorrerá a "busca do prazer", o "self criador", a "busca de proteção e segurança", a "busca de superioridade", a "busca do sentido existencial", que são os prin­cípios que gravitam em torno da órbita globalizante do princípio do fluxo vital da energia psíquica. Portanto, os princípios estabelecidos por outros teóricos são "sintomas" do fluxo vital que ocorre no cerne da psique humana.
Existe, por incrível que pareça, um paralelo entre o desenvolvimento da personalidade humana e das teorias científicas. Embora ambas possam ser evolutivamente recicladas e promovidas pelo "eu", pelo determinismo do pensamento dialético (lógico), na realidade esse determinismo apenas "pega carona psicodinâmica" no fluxo vital espontâneo e inevitável dos fenômenos que reorganizam a energia psíquica.
O "eu" só pode pensar "o que quer", "quando quer" e na "freqüência e velocidade que quer" porque, na base inconsciente da mente, há um grupo de fenômenos que realizam tarefas psicodinâmicas extremamente refina­das, tais como a leitura dos endereços da memória e a organização de dados.
As matrizes dos pensamentos essenciais são inconscientes; porém, na medida em que são geradas, sofrem, como vimos, um intrincado processo de leitura virtual que produz o espetáculo da construção dos pensamentos conscientes (dialéticos e antidialéticos).
O Homo sapiens é tão sofisticado que podemos dizer que o controle das idéias, das argumentações, das análises, das sínteses, das previsibilidades tempo-espaciais é operacionalizado em cima de um processo inevitável, multifocal e multidirecional gerado pelo Homo interpres. O Homo sapiens não é sapiens porque quer, ou seja, não é um ser pensante porque determi­na sê-lo, mas porque é inevitável sê-lo. O fluxo vital dos fenômenos que organizam e reorganizam o caos da energia psíquica torna o homem um ser inevitavelmente pensante, um ser inevitavelmente consciente.
Muitos filósofos e teóricos da Psicologia procuraram ansiosamente com­preender como se forma a consciência do homem, que chamo de cons­ciência existencial ou "eu". Alguns até mesmo dizem que essa compreensão é o maior desafio da ciência. Realmente, essa compreensão não apenas revela os segredos inconscientes do homem, pois o espetáculo da constru­ção da consciência é produzido por fenômenos inconscientes, mas também os segredos intrínsecos da própria ciência, pois a ciência é uma manifesta­ção da consciência.
Devido a alguns limites dos pensamentos conscientes usadas na investi­gação da própria consciência, a ciência jamais irá alcançar algumas respos­tas, pois a natureza dos pensamentos conscientes é "antiessencial", virtual e, como vimos, o que é virtual nunca incorpora a realidade intrínseca da­quilo que é essencial; apenas a discursa, a conceitua, a define. Porém, em detrimento das limitações da consciência em compreender a si mesma, é possível compreender diversas peças intelectuais dos processos de constru­ção da psique que nos constituem intrinsecamente como seres que pen­sam, se emocionam e têm consciência existencial do mundo que somos e em que estamos.

TODO AUTOR DEIXA DE SER PROPRIETÁRIO DE SUAS IDÉIAS QUANDO AS PUBLICA. O JULGAMENTO DA INTERPRETAÇÃO DAS IDÉIAS PERTENCE AO LEITOR

Os fenômenos responsáveis pela construção dos pensamentos são ina­cessíveis essencialmente e intangíveis (imperceptíveis) sensorialmente, o que dificulta intensamente o processo de observação, interpretação e produção de conhecimento sobre eles. Essa dificuldade gerou grandes confusões teó­ricas na Psicologia, na Filosofia, na Educação e em outras ciências.
Não poucos cientistas, ao conquistar reconhecimento social, diminuem significativamente sua produção intelectual. Ao contrário do mundo profis­sional, no universo científico os aplausos, se inadequadamente trabalhados, podem fechar as janelas da inteligência e conspirar contra o livre pensa­mento. Isso se deve à atuação do fenômeno da psicoadaptação na terceira etapa inconsciente do processo de interpretação. A fase mais produtiva de um cientista muitas vezes ocorre quando ele não tem estética socioacadêmica; quando a ciência é sua única paixão; quando ele se considera um aprendiz diante da sua inesgotabilidade e considera que a grandeza das idéias é muito mais importante do que a hierarquia acadêmica e do que a conquis­ta de títulos.
O sistema acadêmico pode libertar o pensamento ou encerrá-lo num cárcere. Freqüentemente ele o aprisiona. Todos somos inconscientemente micro ou macroinfiéis ao nosso processo de interpretação, o que expande, como disse, a evolutividade das próprias idéias. Porém, falo de uma outra fidelidade: a fidelidade à consciência crítica, aos princípios que norteiam a honestidade intelectual. Devemos procurar ansiosamente ser fiéis aos prin­cípios que norteiam a honestidade intelectual, independentemente dos cons­trangimentos sociais que possamos vivenciar pelas nossas idéias e pela prá­tica dessa honestidade. O homem que não ê fiel às suas idéias, fiel à sua consciência, tem uma dívida impagável consigo mesmo.
Diante da exposição sobre o processo de interpretação, estou convenci­do de que a democracia das idéias deva ser exercida em todos os níveis das relações humanas, em destaque na ciência. As idéias de um cientista ou pensador, incluindo os produtores de arte, à medida que ele as expressa em livros ou em qualquer outro meio de comunicação, deixa de ser do próprio autor e passa a pertencer invariavelmente ao observador. Interpre­tar, ou seja, ser um Homo interpres, não ê uma opção do Homo intelligens, mas seu destino inevitável.
A Mona Lisa deixa de ser de Da Vinci e passa a pertencer ao observa­dor, que, ao interpretá-la, acrescenta "cores" e "formas" próprias em sua mente, ou seja, acrescenta cadeias de pensamentos e experiências emocio­nais próprias no processo de observação e interpretação.
Do mesmo modo, a teoria de um teórico deixa de pertencer a ele mes­mo e passa a pertencer ao observador (leitor ou utilizador da teoria) que, ao interpretá-la, ainda que com critérios, acrescentará a ela suas particulari­dades sobre as quais o autor jamais terá controle. Por isso, cumpre ao observador a responsabilidade de interpretar uma obra, não apenas com liberdade, mas também com consciência crítica, procurando descontaminar-se no processo de interpretação, tanto quanto possível, de cientificismos e psicologismos.
O autor só pode julgar sua obra para si mesmo. Ele jamais poderá transferir ou abortar o direito do julgamento do observador; caso contrário, ele pratica o autoritarismo das idéias e a ditadura dos discursos teóricos.
O direito à interpretação do observador é inalienável e intransferível. Mesmo os ditadores políticos não podem sufocar completamente o direito do julgamento da interpretação dos consócios de uma sociedade; não po­dem abortar a revolução clandestina das idéias que ocorrem nos bastidores de sua mente; por isso, como disse, todos os sistemas político-econômicos opressivos reciclam-se inevitavelmente ao longo da história.
Penso que todo teórico, cientista, pensador ou produtor de arte, não apenas deveria aceitar, mas até mesmo estimular, os que entram em conta­to com sua obra a julgá-la com liberdade e consciência crítica, até porque, nos labirintos da sua mente, todo observador realiza inconsciente e inevita­velmente esse julgamento com micro ou macrotraições.
Nas sociedades modernas, a estética sobrepuja o conteúdo. Essa doença intelectual contaminou também a ciência, pois a procedência universitária, a fama do centro de pesquisa, os títulos acadêmicos, o país de origem de um cientista se tornam um marketing socioacadêmico e sociopolítico inconscien­te, que pesa sutilmente na interpretação, julgamento e credibilidade do observador.
Tais sutilezas, que influenciam o processo de interpretação, ocorrem em todas as esferas das relações sociais. Creio que a maioria dos cientistas e dos demais produtores de conhecimento não tem como evitar totalmente a estética socioacadêmica e outras influências passíveis de contaminar a interpretação; por isso eles deveriam estimular o julgamento das suas idéias pelo observador onde elas são expressas, seja nos livros, nas salas de aula, nos congressos, na imprensa. Esta atitude está dentro do contexto da demo­cracia das idéias.

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