A CRISE DA FORMAÇÃO DE PENSADORES
A crise da formação de
pensadores tem atingido frontalmente as univerdades, por culpa, como tenho
dito, não dos professores e dos pesquisadores, mas de um processo educacional
engessado, unifocal, que pouco estimula o debate das idéias, o desenvolvimento
das artes mais nobres da inteligência, a consciência crítica sofiopolítica. O
sistema acadêmico assistiu passivamente ao surgimento da globalização da
informação pelos meios de comunicação a partir da segunda metade do século XX.
A globalização da informação, apesar dos seus benefícios, trouxe duas das
maiores "drogas" da inteligência humana: a massificação da cultura e
do pensamento. Quando estudamos o conceito de democracia das idéias, vimos que
o Homo intelligens (o homem consciente) vive uma diversidade de
pensamentos dialético e antidialético inevitável devido ao sistema de variáveis
intra-psíquicas ocorrido no Homo interpres (o homem inconsciente). A
massificação da cultura e do pensamento não consegue jamais conter a
diversidade de pensamentos, mas engessa a liberdade, a plasticidade, a
criatividade da construção de pensamentos, encerrando a inteligência humana num
cárcere.
A Educação não tem
introduzido os universitários no centro da história humana. Provavelmente,
muitos universitários, pelo fato de estarem acometidos com o mal do logos estéril,
estejam na periferia da história ou até alijados dela. O fenômeno da
psicoadaptação, que deveria romper o conformismo e animar a criatividade, os
tem conduzido a se adaptarem às misérias sociais. Devido à crise de
interiorização, este importantíssimo fenômeno da inteligência tem embotado os
seus sentimentos e reduzido seus ideais, gerando uma vida vazia, que não tem
por que lutar.
Diversos desses
universitários jamais ouviram falar ou se importaram com o dramático e
indescritível genocídio dos Tutsis em Ruanda, que não foi menos dramático do
que o holocausto judeu. Embora alijados da história, muitos deles estão
inseridos vorazmente no mercado de consumo, no último lançamento da moda, nos
modelos de carros mais incrementados, nos programas de computadores mais
modernos. Ruanda não pertence ao mapa dos seus interesses, os miseráveis da
África não lhes dizem respeito, os conflitos na ex-Iugoslávia não os angustiam,
a fome no nordeste brasileiro não os incomoda, a discriminação dos negros não
os perturba. O desmatamento da Floresta Amazônica, bem como os demais problemas
ambientais, incluindo o efeito estufa, são problemas da próxima geração. O
mundo tem de gravitar em torno dos seus interesses e das suas necessidades,
pois, apesar de incorporarem a cultura acadêmica, eles não têm fome e sede de
cidadania e humanismo.
Felizmente, a psique humana é
complexa e, mesmo na miséria material e social, é possível extrair se riqueza
emocional e dignidade humana, que podem não ser conquistadas quando se une
fartura material e superficialidade intelectual. Como citei, distinguir os
princípios da matemática financeira da matemática emocional é uma das
características multifocais de um pensador. Por exemplo, no interior de
Moçambique, a miséria é tanta que só há milho para se alimentar, mas, mesmo
assim, muitos moçambicanos cantam e dançam ao preparar seus alimentos. Eles são
considerados estatisticamente miseráveis pela ONU (Organização das Nações
Unidas), mas são ricos na arte da contemplação do belo, mais ricos do que
muitos daqueles que são listados pela revista Forbes como os homens
mais ricos do mundo.
Como estimularemos a formação
de pensadores, se na educação clássica não se estimula a arte da pergunta, da
dúvida e da crítica? Como produziremos homens lúcidos, aptos a julgar o mundo
que os circunda, se eles não conhecem o sistema de distorção que ocorre no
processo de interpretação? Como poderemos gerar homens que pensam, se eles não
sabem quais são os tipos e a natureza dos pensamentos que são produzidos no
palco da mente humana e como eles são produzidos? Como produziremos pessoas que
pensam antes de reagir, se nada conhecem sobre o fenômeno do gatilho da
memória? Como produziremos homens saudáveis no território da emoção, se eles
nunca souberam que existe um universo de pensamentos produzidos pelo fenômeno
do autofluxo, sem qualquer autorização do eu, que pode se tornar tanto uma grande
fonte de prazer como de terror? Como produziremos homens sábios, se eles não
aprenderem a intervir no seu mundo psíquico e a gerenciar seus pensamentos e
emoções?
Deveria haver em todas as
escolas cursos que abordassem o processo de construção de pensamentos e de
formação de pensadores humanistas, que promovessem um debate de idéias sobre o
funcionamento da mente e sobre os grandes problemas biopsicossociais da nossa
espécie. Esses cursos deveriam fornecer subsídios aos estudantes para
desenvolverem a arte de pensar e a consciência sociopolítica.
Somos a espécie mais
fantástica da bioesfera terrestre, estamos no topo da inteligência de milhões
de espécies, mas, muitas vezes, a mercadoria que usamos na resolução dos
conflitos humanos é a força, a agressividade ou a omissão, e não a arte de
pensar, de analisar as variáveis, de ouvir despreconceituosamente, de aprender
a ceder quando necessário, de exercitar a tolerância, de reconhecer as
necessidades do outro.
A atitude sociopolítica
coerente e lúcida é mais exigida quanto mais conturbadas e conflitantes forem
as circunstâncias psicossociais; porém, infelizmente, é nessas circunstâncias
que a omissão é cultivada. Na Segunda Guerra Mundial, muitos políticos e
lideranças sociais se calaram diante do holocausto judeu. Optaram pelo
silêncio, um silêncio inaceitável, diante da miséria desse povo. O silêncio
sociopolítico ainda é amplamente praticado diante de muitas misérias humanas.
Muitas vezes esse silêncio só é rompido quando a imprensa mais séria faz eloqüentes
denúncias. A imprensa, às vezes, erra, exagera, conspira contra a privacidade,
mas é ela ainda uma das áreas mais saudáveis e inteligentes da sociedade. Sem
uma imprensa livre e crítica, seríamos uma espécie mais doente, pois a omissão,
a impunidade, a discriminação e muitas outras formas de violação dos direitos
humanos seriam amplamente cultivadas.
Creio que a mais grave doença
da nossa espécie não é a AIDS, o câncer, a depressão, mas a perda generalizada
do sentido psicossocial de espécie, que se torna uma grande fonte de violação
dos direitos humanos.
Somos americanos, alemães,
japoneses, ingleses, franceses, italianos, brasileiros, brancos, negros,
palestinos, judeus, etc, mas não somos psicossocialmente a mesma espécie. Somos
uma espécie dividida, segmentada, dilacerada psicossocialmente. Somos uma
única espécie, mas não honramos a condição de possuirmos o espetáculo
indescritível da construção da inteligência. Conservamos apenas os laços
genéticos, mas perdemos ou, talvez, nunca tenhamos conquistado as
características mais nobres da inteligência capazes de financiar uma macrovisão
da espécie humana, de alicerçar a práxis da teoria da igualdade, de construir
coletivamente os sentimentos globais mais altruístas da psique. Globalizamos a
cultura e a economia, mas não globalizamos a cidadania, o humanismo e a democracia
das idéias; não globalizamos o sentido psicossocial de espécie.
Se compreendêssemos melhor a
natureza dos pensamentos, os papéis da memória, as dificuldades do
"eu" em gerenciar a energia psíquica, o fenômeno da psicoadaptação e
a atuação rapidíssima dos fenômenos inconscientes que constroem as complexas
cadeias de pensamentos, seríamos mais tolerantes e menos havidos a nos
discriminar.
Leis, policiamento, apelo
emocional, não resolverão nossos conflitos sociais fundamentais; servirá apenas
para amenizá-los, pois as raízes dos nossos problemas estão nas origens da
inteligência, nos fundamentos do processo de formação da personalidade, no
funcionamento da mente.
Espero que este livro possa
não apenas contribuir para expandir o mundo das idéias sobre o funcionamento da
mente e a construção de pensamentos e se tornar fonte de pesquisa na
Psicologia, na Filosofia, na Psiquiatria, na Sociologia, na Educação, mas
também contribuir para a formação de pensadores humanistas, de engenheiros de
idéias, de poetas intelectuais, de homens que aprendem a se interiorizar e
procurar na sinuosa e curta trajetória da existência humana as funções mais
nobres da inteligência.
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