quarta-feira, 17 de abril de 2013
Crepúsculo dos ídolos
O CREPÚSCULO DOS ÍDOLOS
OU
A FILOSOFIA A GOLPES DE MARTELO
2
FRIEDRICH WILHELM NIETZSCHE
O CREPÚSCULO DOS ÍDOLOS
OU
A FILOSOFIA A GOLPES DE MARTELO
Tradução:
Edson Bini
Márcio Pugliesi
Da Universidade de São Paulo
3
Do Original Alemão:
GÖTZEN-DÄMMERUNG
© Copyright 2.001 by Hemus S.A.
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e reservada a propriedade literária desta publicação pela
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4
PREFÁCIO
Conservar a serenidade em meio a uma causa sombria e
justificável além de toda medida não constitui certamente uma
arte que se possa desconsiderar: e todavia o que haveria de mais
necessário que a serenidade? Nada triunfa a menos que a
petulância tenha sua participação. Um excedente de força prova
a força. — Uma transmutação de todos os valores, este ponto
de interrogação tão negro, tão enorme, que lança sombras sobre
aquele que o coloca — um tal destino numa tarefa nos força a
cada instante a correr rumo ao sol como se para sacudir uma
seriedade tornada demasiado opressiva. Para isso todo meio é
bom, todo "acontecimento" é o benvindo. Sobretudo a guerra.
A guerra foi sempre a grande prudência de todos os espíritos
que não são por demais concentra. dos, de todos os espíritos
tornados demasiado profundos; existe o poder de curar mesmo
no ferimento. Desde muito uma sentença da qual oculto a
origem à curiosidade sábia tem sido minha divisa:
Increscunt animi, virescit volnere virtus.
Um outro meio de cura em certos casos para mim preferível,
consistiria em surpreender os ídolos... Há mais ídolos do que
realidades no mundo: é o meu "olho maligno" para esse mundo,
é também meu "ouvido maligno" ... Colocar aqui questões com
o martelo e ouvir talvez como resposta esse famoso som oco
que fala de entranhas insufladas — que arrebatamento para
alguém que, atrás dos ouvidos, possui outros ouvidos ainda —
para mim, velho psicólogo e apanhador de ratos chega a fazer
falar o que justamente desejaria permanecer mudo...
Este escrito, ele também — o título o revela — é acima de
tudo um relaxamento, uma mancha luminosa, um salto à
ociosidade dum psicólogo. Quem sabe seja igualmente uma
guerra nova? ... Este pequeno livro é uma grande declaração de
5
guerra; e quanto a surpreender os segredos dos ídolos, desta
vez não são mais os deuses em voga, mas ídolos eternos que
são aqui tocados pelo martelo como se faria com um diapasão
— não há, em última análise, ídolos mais antigos, mais
persuasivos, mais inflados... não há mais ocos também. O que
não impede que sejam aqueles em que se crê mais; e não são,
mesmo nos casos mais nobres chamados de ídolos ...
Turim, 30 de setembro de 1888,
dia em que foi terminado o primeiro livro de
A Transmutação de todos os valores
FRIEDRICH W. NIETZSCHE
6
MÁXIMAS E SÁTIRAS
1
A ociosidade é mãe de toda psicologia. Como? Seria a
psicologia um... vício?
2
O mais corajoso dentre nós dispõe apenas raramente da
coragem de afirmar aquilo que sabe verdadeiramente...
3
Para viver só é necessário ser um animal ou então um deus —
afirma Aristóteles. Falta o terceiro caso: é necessário ser um e
outro, é necessário ser — filósofo...
4
"Toda verdade é simples." — Não existe ai uma dupla
mentira?
5
De uma vez por todas, há muitas coisas que não quero
absolutamente saber. — A sabedoria traça limites, mesmo ao
conhecimento.
6
É naquilo que tua natureza tem de selvagem que restabeleces
o melhor de tua perversidade, quero dizer de tua
espiritualidade...
7
7
Como? O homem seria tão-somente um equívoco de Deus?
Ou então seria Deus apenas um equivoco do homem?
8
Na Escola Bélica da Vida — O que não me faz morrer me
torna mais forte.
9
Ajuda a ti mesmo: e então todos te ajudarão. Princípio do
amor ao próximo.
10
Não te acovardes diante de tuas ações! Não as repudies depois
de consumadas! O remorso da consciência é indecente.
11
Um asno pode ser trágico? — Perecer sob um fardo que não
se pode nem carregar nem rejeitar?... O caso do filósofo.
12
Se se possui o por quê da vida, põe-se de lado quase todos os
como? — O homem não aspira a felicidade; apenas os ingleses
o fazem.
8
13
O homem criou a mulher — com o que, afinal? Com uma
costela de seu deus — de seu "Ideal".
14
Como? Procuras? Desejarias multiplicar-te por dez?
Por cem? Procuras adeptos? — Procura zeros!
15
Os homens póstumos — eu, por exemplo — são menos
compreendidos que aqueles que são conformes sua época, mas
escutamo-los melhor. Que eu me exprima mais precisamente
ainda: jamais somos compreendidos — e é disso que advém
nossa autoridade...
16
Entre mulheres. — "A verdade? Oh, não conheces a verdade!
Não é ela um atentado contra nosso pudor?"
17
Eis um artista como os aprecio. É modesto em suas
necessidades: requer, em suma, somente duas coisas. seu pão e
sua arte — panem et Circen...
18
Aquele que não sabe dispor sua vontade nas coisas quer ao
menos atribuir-lhes um sentido: o que o faz acreditar que já
existe uma vontade nelas (Principio ad "fé").
9
19
Como? Escolheste a virtude e a elevação do coração e ao
mesmo tempo lanças um olhar de inveja às vantagens dos
indiscretos? — Mas com a virtude se renuncia às "vantagens"...
(a ser escrito na porta num anti-semita).
20
A mulher perfeita perpetra literatura do mesmo modo que
perpetra um pequeno pecado: experimentando, de passagem, e
volvendo a cabeça para ver se alguém se apercebeu disso, e a
fim que alguém se aperceba disso...
21
É mister colocar-se apenas nas situações onde não é
permitido ter falsas virtudes, porém onde, como o dançarino
sobre a corda, caímos ou nos mantemos, — ou ainda nos
safamos...
22
"Os homens maus não possuem canções." E como os russos
possuem canções?
23
"O espírito alemão": por dezoito anos uma contra-dictio in
adjecto.
10
24
A força de querer buscar as origens nos tornamos
caranguejo. O historiador olha para trás e acaba crendo para
trás.
25
A satisfação nos protege até mesmo de resfriados. Uma
mulher que se sabe bem vestida se resfria alguma vez?
Presumo até que possa dar-se o caso de que esteja pouco
vestida.
26
Desconfio de todas as pessoas com sistemas e as evito. A
vontade de sistema constitui uma falta de lealdade.
27
Diz-se que a mulher é profunda — por quê? se nela jamais
chegamos ao fundo. A mulher não é nem sequer plana.
28
Quando a mulher possui virtudes masculinas, não há quem
resista a ela; quando não possui virtudes masculinas, é ela que
não resiste.
29
"Quanto a consciência teve que morder outrora! Que bons
dentes ela tinha! E agora? O que lhe falta?" — Questão dum
dentista.
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30
Comete-se raramente uma única imprudência. Com a primeira
imprudência se faz sempre demais e é por isso que se faz
geralmente uma segunda — e então se faz pouco demais...
31
O verme se retrai quando é pisado. Isso indica sabedoria.
Dessa forma ele reduz a chance de ser pisado de novo. Na
linguagem da moral: a humildade.
32
Há um ódio contra a mentira e a dissimulação que procede
duma sensível noção de honra; há um outro ódio semelhante
por covardia, já que a mentira é interdita pela lei divina. Ser
covarde demais para mentir...
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Quão pouca coisa é necessária para a felicidade! O som duma
gaita. — Sem música a vida seria um erro. O alemão até
concebe o próprio Deus prestes a cantar canções.
34
Só se pode pensar e escrever sentado (G. Flaubert). Eis que te
apanho, niilista! Permanecer sentado é precisamente o pecado
contra o Espírito Santo. Somente os pensamentos que nos
ocorrem ao caminharmos têm valor.
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35
Existem casos em que somos como os cavalos, nós os
psicólogos. A inquietude apodera-se de nós porque vemos
nossa própria sombra oscilar diante de nós. O psicólogo deve se
desviar de si para ser capaz de ver.
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Nós imoralistas prejudicamos a virtude? — Tanto quanto os
anarquistas prejudicam os príncipes. Só depois de terem sido
atingidos de novo se sentam firmemente nos seus tronos.
Moral: é preciso disparar contra a moral.
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Corres à frente dos outros? — Fazes tal como pastor ou como
exceção? Um terceiro caso seria o desertor... Primeiro caso de
consciência.
38
És verdadeiro? Ou és somente um comediante? És um
representante? Ou então és tudo mesmo a coisa que se
representa? Afinal de contas és apenas talvez a imitação dum
comediante... Segundo caso de consciência.
39
O Desiludido fala. — Procurei grandes homens e sempre
encontrei somente os macacos do ideal deles.
13
40
És daqueles que olham ou daqueles que aplicam as mãos à
coisa? — ou ainda daqueles que desviam os olhos e se mantêm
à distancia? ... Terceiro caso de consciência.
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Queres acompanhar? Ou preceder? Ou ainda trilhar o seu
caminho? ... É mister saber o que se deseja e se se deseja. —
Quarto caso de consciência.
42
Eram degraus para mim. Servi-me deles para subir — é por
isso que me foi necessário passar sobre eles. Porém se
figuravam que eu ia me servir deles para repousar...
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Que importa que eu tenha a razão! Disponho de excesso de
razão. — E ri melhor hoje quem ri por último.
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Fórmula de minha ventura: um sim, um não, uma linha reta,
um objetivo ...
14
O PROBLEMA DE SÓCRATES
1
Em todos os tempos os sábios fizeram o mesmo juízo da vida:
ela não vale nada... Sempre em toda parte ouvimos sair de suas
bocas a mesma palavra — uma palavra repleta de dúvida,
repleta de melancolia, repleta de cansaço da vida, repleta de
resistência contra a vida. Mesmo Sócrates disse ao morrer.
"Viver — é estar há muito tempo enfermo: devo um galo a
Esculápio libertador". Mesmo Sócrates tivera o bastante disso.
— O que isso demonstra? O que isso mostra? Outrora se teria
dito ( — oh, e se disse, e muito alto, e nossos pessimistas em
primeiro lugar!) : "É necessário que haja aqui algo de
verdadeiro! O consensus sapientium demonstra a verdade". —
Falamos assim ainda hoje? Podemos? "É preciso em todos os
casos que haja aqui alguma coisa de enfermo" — eis nossa
resposta: esses sábios entre os sábios de todos os tempos, seria
mister primeiramente vê-los de perto! Talvez não estivessem
firmes sobre suas pernas, talvez fossem retardatários,
vacilantes, decadentes? A sabedoria quem sabe aparecesse
sobre a Terra como um corvo, ao qual um ligeiro odor de
carniça entusiasma? ...
2
Essa irreverência de considerar os grandes sábios como tipos
de decadência nasce em mim precisamente num caso em que o
preconceito letrado e iletrado se opõe com maior força:
reconheci em Sócrates e em Platão sintomas de decadência,
instrumentos da decomposição grega, pseudo-gregos, antigregos
(A Origem da Tragédia, 1872). Esse consensus
sapientium — sempre o compreendi claramente — não prova,
de maneira alguma, que os sábios tivessem razão naquilo em
que concordavam. Prova isto sim que eles, esses sábios entre os
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sábios, mantinham entre si algum acordo fisiológico, para
assumirem diante da vida essa mesma atitude negativa — para
serem tidos por tomá-la. julgamentos, avaliações da vida, a
favor ou contra, não podem, em última instância, jamais ser
verdadeiros: o único valor que apresentam é o de serem
sintomas e só como sintomas merecem ser levados em
consideração; em si tais julgamentos não passam de idiotices. É
necessário portanto estender a mão para se poder apreender
essa finesse extraordinária de que o valor da vida não pode ser
apreciado. Não pode ser apreciado por um vivo, porque é parte
e até objeto de litígio, e não juiz; nem pode ser apreciado por
um morto, por outras razões. Tratando-se dum filósofo, ver um
problema no valor da vida constitui uma objeção contra ele
mesmo, constitui uma falta de discernimento e faz com que se
ponha em dúvida sua sabedoria. — Como? Todos esses grandes
sábios não só teriam sido decadentes, mas, além disso, pode ser
que nem fossem sequer sábios? De minha parte, volto ao
problema de Sócrates.
3
Sócrates pertencia, por sua origem, ao populacho. Sabe-se,
percebe-se que era feio. A feiúra, objeção em si era quase uma
refutação entre os gregos. E, em suma, era grego Sócrates? A
feiúra é, muitas vezes, sinal duma evolução entravada, pelo
cruzamento, ou então o sinal duma evolução descendente. Os
antropólogos que se dedicam à criminologia nos dizem que o
tipo criminoso é feio; monstrum in fronte, monstrum in animo.
E o criminoso é um decadente. Sócrates era um tipo criminoso?
Pelo menos não parece contradizê-lo aquele famoso juízo
fisionômico que chocou todos os amigos de Sócrates. De
passagem por Atenas, um estrangeiro fisionomista disse
frontalmente a Sócrates que ele era um monstro que ocultava
todos os vícios e maus desejos. Sócrates respondeu
simplesmente: "Conheces-me, meu senhor".
16
4
As licenciosidades que confessa e a anarquia dos instintos não
são os únicos indícios de decadência em Sócrates; também
constitui um indício a superfetação do lógico e essa malícia
raquítica que o distingue. Não olvidemos tampouco as
alucinações auditivas que sob o nome de demônio de Sócrates
receberam uma interpretação religiosa. Tudo era nele
exagerado, bufão, caricaturesco tudo, ademais, pleno de
segundas intenções, de subterrâneos. Quisera adivinhar de que
idiossincrasia pode nascer a equação socrática: razão = virtude
= felicidade, a mais extravagante das equações e contrária, em
particular, a todos os instintos dos antigos helenos.
5
Com Sócrates o gosto grego se altera em favor da dialética; na
realidade, que se passou? Acima de tudo, trata-se dum gosto
refinado que foi derrotado; com a dialética a ralé chega ao alto.
Antes de Sócrates, as maneiras dialéticas eram repudiadas na
boa sociedade: eram tidas como maneiras inconvenientes, eram
comprometendoras. Os jovens eram advertidos em relação a
elas e se desconfiava de que todos que apresentavam suas
razões por meio da dialética. As coisas honestas tanto quanto as
pessoas honestas não tratam seus princípios com as mãos.
Aliás, é indecente servir-se dos cinco dedos. O que precisa ser
demonstrado para ser crido, não vale grande coisa. Em todo
lugar que a autoridade ainda. é parte dos costumes aceitos, em
todo lugar em que não se "raciocina", mas em que se comanda,
o dialético é uma espécie de polichinelo: ri-se dele, não é
levado a sério. — Sócrates foi o polichinelo que foi levado a
sério: o que estava realmente acontecendo quando isso
aconteceu?
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Só se escolhe a dialética quando não se dispõe de outro meio.
Sabe-se que com ela desperta-se a desconfiança, que ela
persuade pouco. Nada é mais fácil de se apagar que o efeito
dum dialético: a prática dessas reuniões onde se fala o
demonstra. Somente como meio de defesa empregam a dialética
os que não têm outra arma. É mister que se trate de arrancar
seu direito; do contrário não se apela para isso. Eis porque os
judeus eram dialéticos. Antes de Sócrates estavam proscritos da
boa sociedade os dialéticos. A raposa da fábula o era: como?
Sócrates também o foi?
7
Era a ironia de Sócrates uma fórmula de rebelião ou de
ressentimento popular? Saboreia a sua própria ferocidade de
aprimido na punhalada do silogismo? Vinga-se dos grandes aos
quais fascina? O dialético tem na mão um instrumento
implacável; com ele pode-se interpretar o tirano; compromete o
adversário ao obter o triunfo. O dialético coloca seu antagonista
na condição de provar que não é idiota; enfurece e ao mesmo
tempo impede todo socorro. O dialético degrada a inteligência
de seu adversário. A dialética de Sócrates era tão-somente uma
forma de vingança?
8
Dei a entender como Sócrates pôde ser repulsivo às pessoas;
resta explicar, com maior razão ainda, como pode fasciná-las. O
primeiro motivo é o seguinte: descobriu uma espécie nova de
combate; foi o primeiro mestre de armas nas esferas de Atenas.
Fascinava tocando no instinto de combate dos gregos. Ademais.
Sócrates era um grande erótico.
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Contudo Sócrates adivinhou também outra coisa. Soube
penetrar os sentimentos os nobres atenienses. Compreendia que
seu caso, que a idiossincrasia de seu caso, não era já
excepcional. O mesmo tipo de degeneração ia se estendendo
por toda parte secretamente. Os atenienses de velho feitio
desapareciam ... E Sócrates se convenceu que todos tinham
necessidade dele, de seu remédio, de sua cura, de seu método
pessoal de conservação de si mesmo. Em todos os lugares os
instintos haviam se declarado em anarquia, estava-se a dois
passos do excesso em toda parte; o monstrum in animo
constitua o perigo universal. "Os instintos querem se erigir
tiranos; cumpre inventar um contra tirano que o vença."
Quando o fisionomista descobriu o que era Sócrates, um antro
de todos os maus desejos, o grande irônico proferiu uma frase
que fornece a chave de sua maneira de ser. "É verdade — disse
— mas dominei todos." Como se tornou Sócrates senhor de si
mesmo? Na realidade, era apenas um caso típico que saltava
aos olhos em meio ao que começava a ser angústia geral: que
ninguém era mais senhor de si mesmo, os instintos se revolviam
uns contra os outros. Sua feiúra atraia todos os olhares. Está
claro que fascinava, mas todavia como resposta, como solução,
como aparência do tratamento que visava a cura indicado em
tais casos.
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Quando não há mais remédio senão elevar a razão à condição
de tirano, como fez Sócrates, o perigo de que outra coisa nos
tiranize não deve ser pequeno.
Ante esse outro perigo a razão aparece como liberadora. Nem
Sócrates nem seus doentes gozavam da liberdade de ser ou não
racionais; isto lhes foi forçoso, era seu último remédio. O
fanatismo com a reflexão grega na sua totalidade se arroja aos
braços da razão, denuncia uma grande angústia; existia um
19
perigo e restava somente esta alternativa: ou sucumbir ou ser
absurdamente racional. O moralismo dos filósofos gregos desde
Platão, está determinado patologicamente, o mesmo
acontecendo com sua avaliação da dialética.
Razão = virtude = felicidade: isto quer dizer: é preciso
imitar Sócrates e opor aos apetites sombrios uma luz do dia
permanente, uma claridade que é a luz da razão. É preciso ser
a todo custo prudente, preciso, claro; qualquer concessão aos
instintos e ao inconsciente nos rebaixa.
11
Dei a entender de que modo Sócrates fascina; parece um
médico, um salvador. Será preciso mostrar o erro que sua
crença na "razão a todo custo" continha? Enganam-se a si
mesmos os moralistas e os filósofos ao imaginarem vão sair
da decadência fazendo-lhe guerra. Escapar dela é impossível,
e o remédio que escolhem, o que consideram meio de
salvação, é apenas outra manifestação de decadência tãosomente
mudam sua forma de expressão, contudo não a
suprimem. O caso de Sócrates representa um erro; toda a
moral de aperfeiçoamento, inclusive a moral cristã foi um
erro. Buscar a luz mais viva, a razão a todo preço, a Vida
clara, fria, prudente, consciente, despojada de instintos e em
conflito com eles, foi somente uma enfermidade, uma nova
enfermidade, e de maneira alguma um retorno à virtude, à
saúde, à felicidade. Ver-se obrigado a combater os instintos é
a fórmula da decadência, enquanto que na vida ascendente,
felicidade e instinto são idênticos.
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Teve essa compreensão o mesmo Sócrates, que era o mais
cauto dos que enganaram a si mesmos? Disse finalmente isso a
si mesmo na sabedoria de sua coragem diante da morte?
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Sócrates queria morrer; não foi Atenas mas ele mesmo que se
deu a cicuta. "Sócrates não é o médico — a morte é o único
médico Sócrates apenas esteve doente muito tempo."
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A "RAZÃO" NA FILOSOFIA
1
Quereis que vos diga tudo que é peculiar aos filósofos?... Por
exemplo, sua falta de sentido histórico, seu ódio à idéia do
devir, seu egipcismo. Crêem honrar uma coisa despojando-a de
seu aspecto histórico, sub specie aeterni... quando fazem dela
uma múmia. Tudo com que os filósofos se ocupam há milhares
de anos são idéias — múmias; nada real saiu vivo de suas
mãos. Esses senhores idólatras das idéias quando adoram,
matam e empalham: tudo é posto em perigo de morte quando
eles adoram. A morte, a evolução, a idade, tanto quanto o
nascimento e o crescimento, são para eles não só objeções,
como até refutações. O que é não se torna, não se faz, e o que
se torna ou se faz não é. Todos acreditam desesperadamente no
ser. Porém como não podem apoderar-se dele, buscam as razões
segundo as quais ele lhes escapa: "É forçoso que haja aí uma
aparência, um engano por efeito do qual não podemos perceber
o ser — onde está o impostor?" já o apanhamos gritam
alegremente — são os sentidos! Os sentidos, que por outro lado
são tão imorais... Os sentidos são quem nos enganam acerca do
mundo verdadeiro.
Resultado: mister se faz desprender-se da ilusão dos sentidos,
do devir, da história, da mentira. Conseqüência: negar tudo o
que supõe fé nos sentidos, negar todo o resto da humanidade;
isso pertence ao povo; é necessário ser filósofo, é necessário ser
múmia, é necessário representar o monoteísmo com uma
mímica de coveiro. E acima de tudo que pereça o corpo, essa
lamentável idéia lixa dos sentidos, o corpo contaminado por
todos os defeitos que a lógica pode descobrir, refutado, até
impossível, se se quer, ainda que tão impertinente que se porta
como fosse real!...
22
2
Separo, com profundo respeito, o nome de Heráclito. Se os
demais filósofos rejeitaram o testemunho dos sentidos, porque
os sentidos são múltiplos e variáveis, Heráclito rejeitava tal
testemunho porque apresenta as coisas como dotadas de
duração e unidade. Também Heráclito foi injusto com os
sentidos, que não mentem, nem à maneira que os eleatas se
figuravam, nem como ele acreditava; em geral, não mentem. O
que fazemos com seu testemunho é que introduz nele a mentira;
por exemplo, a mentira da unidade, a mentira da realidade, da
substância, da duração. A razão é a causa de falsearmos o
testemunho dos sentidos. Estes não mentem quando nos
mostram o vir a ser das coisas, o desaparecimento, a mudança.
Mas em sua afirmação segundo a qual o ser é uma ficção,
Heráclito terá eternamente razão. O mundo das aparências é o
único real, o mundo, verdade foi acrescentado pela mentira.
3
E que sutis instrumentos de observações são os nossos
sentidos para nós! Por exemplo, o nariz do qual nenhum
filósofo discorreu com a veneração e a gratidão devidas. O
nariz é o instrumento mais delicado de que dispomos, capaz de
registrar diferenças mínimas no movimento, o que nem sequer
o espectroscópio marca. Atualmente só possuímos ciência
enquanto aceitamos o testemunho dos nossos sentidos,
enquanto armamos e aguçamos nossos sentidos ensinando-os a
se dirigirem ao fim que nos propomos. O resto é somente um
aborto que não é ciência, isto é, que é metafísica, teologia,
psicologia, ou epistemologia, ou então é ciência da forma,
teoria dos signos, como a lógica, ou lógica aplicada, como as
matemáticas. Aqui a realidade não aparece nem sequer como
problema, como tampouco se coloca a questão do valor que
23
possui em geral um sistema convencional de signos, como a
lógica.
4
A outra coisa peculiar aos filósofos não é menos perigosa:
consiste em confundir as coisas últimas com as primeiras. Põem
no princípio o que vem no final, desafortunadamente, pois não
deveria vir nunca; os conceitos mais elevados, isto é, os
conceitos mais gerais e mais vazios, a última embriaguez da
realidade que se evapora, isto é o que colocam no princípio e o
que convertem em princípio. Vemos aí novamente a expressão
de sua maneira de venerar; o mais elevado não pode proceder
do mais baixo, nem pode vir pelo geral. A conclusão que se
retira é que tudo que é de primeira ordem deve ser causa sui.
Qualquer outra origem é considerada uma objeção, algo que faz
duvidar do valor da coisa. Todos os valores superiores são de
primeira ordem, todos os conceitos superiores, o ser, o
absoluto, o bem, a verdade, a perfeição, tudo isso não pode vir
a ser, é necessário que seja causa sui. Tampouco isso pode ser
desigual entre si nem achar-se em contradição. Assim é a forma
como chegam ao seu conceito de Deus. A coisa última, a mais
tênue, a mais vazia, ocupa o primeiro lugar como causa em si,
como ens realissimum. Que tenha tido a humanidade que tomar
a sério as dores de cabeça desses enfermos urdidores de teias de
aranha! E que tenha pago tão caro!
5
Expliquemos agora de maneira quão diferente nós (digo nós por
cortesia) concebemos o problema do erro e da aparência.
Outrora a mudança, a variação, em geral o vir a ser eram
considerados como provas da aparência, como sinais de que
devia haver aí algo que nos extraviara. Hoje, ao contrário,
vemos com exatidão até que ponto a preocupação da razão nos
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obriga a fixar a unidade, a identidade, a duração, a substância, a
causa, a realidade, o ser, de sorte que nos enreda no erro e torna
necessário e erro, ainda que mediante uma comprovação
rigorosa adquiramos a certeza de que ali existe o erro. Sucede
como no movimento dos astros, só que neste caso nossos olhos
são o advogado perpétuo do erro, e naquele quem advoga em
favor do erro é nossa linguagem.
Por sua origem, a linguagem pertence à época das formas mais
rudimentares da psicologia; penetramos no campo do grosseiro
fetichismo quando tomamos consciência das condições
primeiras da metafísica da linguagem, isto é, da razão. Vemos
então em toda parte ações e coisas ativas, cremos na vontade
como causa geral, cremos no eu, no eu como ser, no eu como
substância, e projetamos a substância do eu e a crença nele
sobre todas as coisas... só assim críamos o conceito de coisa. O
ser imaginado em toda a parte como causa, posto no lugar da
causa, e do conceito do eu emana como uma derivação
simplesmente a noção do ser. Originariamente existia aquele
grande e funesto erro que consiste em considerar a vontade
como uma coisa que opera. Queria-se que a vontade fosse uma
faculdade. Hoje sabemos que isso não é senão uma palavra oca.
Muito depois, num mundo mil vezes mais iluminado, a
segurança, a certeza subjetiva na manipulação das categorias
da razão, irrompeu na consciência dos filósofos,
surpreendendo-os. Deduzirão eles que essas categorias não
podiam ter uma origem empírica, posto que todo o empirismo
está em contradição com elas. De onde se originavam então?
Na índia, como na Grécia, se incorreu no mesmo erro: "É
necessário que tenhamos habitado anteriormente um mundo
superior (em lugar de dizer um mundo muito inferior, como é a
verdade). É forçoso que tenhamos sido divinos, já que detemos
a razão." E, com efeito, não se soube até agora de nada que
tivesse uma força de persuasão tão direta como o erro do ser,
como foi formulado pelos eleatas, por exemplo, pois lhes são
favoráveis nossas palavras. Até os próprios adversários dos
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eleatas se renderão à sedução do conceito do ser que aqueles
sustentavam. A razão na linguagem, que velha embusteira!
Temo que jamais nos livremos de Deus, posto que cremos
ainda na gramática.
6
Suponho que me agradecerão os leitores se condensar em
quatro teses uma idéia tão importante e nova como a que estou
tratando; assim facilito a compreensão e também provoco a
contradição.
Primeira proposição. — As razões pelas quais se chamou este
mundo dum mundo de aparências provam, pelo contrário, sua
realidade. Uma outra realidade é absolutamente
indemonstrável.
Segunda proposição. — Os distintos signos que foram
atribuídos à verdadeira essência das coisas, são os signos
característicos do não-ser, do nada; por virtude dessa
contradição constituiu-se o mundo-verdade como mundo real e
verdadeiro, quando é o mundo das aparências enquanto ilusão
de óptica moral.
Terceira proposição. — Falar de outro mundo distinto deste
carece de sentido, supondo que não nos domine um instinto de
calúnia, amesquinhamento e de suspeita contra a vida. Neste
último caso nos vingamos da vida com a fantasmagoria duma
vida distinta, duma vida melhor.
Quarta proposição. — Dividir o mundo num mundo real e
um mundo de aparências, seja à maneira do cristianismo, seja à
maneira de Kant (um cristão pérfido, afinal de contas) é
somente uma sugestão da decadência, um sintoma da vida
descendente. O fato do artista ter em maior apreço a aparência
do que a realidade não se coloca contra essa proposição, pois
em tal caso a aparência significa a realidade reproduzida uma
vez mais, em forma de seleção, de acréscimo, de correção. O
artista trágico não é um pessimista, ele diz sim a tudo que é
problemático e terrível, é dionisíaco.
26
COMO O "MUNDO-VERDADE" TORNOU-SE
ENFIM UMA FÁBULA
(História de um erro)
1
O Mundo-verdade acessível ao sábio, ao religioso, ao
virtuoso, vive nele, ele mesmo é esse mundo.
(Esta é a forma mais antiga da idéia, relativamente
racional, simples, convincente. Perífrase da proposição:
"Eu, Platão, sou a verdade".)
2
O Mundo-verdade inacessível no momento, porém, prometido
ao sábio, ao religioso, ao virtuoso, ao pecador, que faz
penitência.
(Progresso da idéia; torna-se mais sutil, mais insidiosa,
mais incompreensível, torna-se mulher, faz-se cristã... )
3
O Mundo-verdade inacessível, indemonstrável, que não se
pode prometer, porém que mesmo supondo-se seja imaginário,
é um consolo e um imperativo.
(O sol mais antigo ilumina no fundo, mas obscurecido
pela névoa e a dúvida, a idéia se tornou pálida,
setentrional, koenigsber guiana.)
4
O Mundo-verdade... inacessível? Pelo menos não alcançado
em caso algum. Logo desconhecido. Por isso nem consola, nem
27
salva, nem obriga a nada; como pode obrigar a algo uma coisa
desconhecida?
(Aurora cinzenta, primeiro vagido da razão, canto do
galo do positivismo.)
5
O Mundo-verdade; uma idéia que não serve mais para nada,
não obriga a nada; uma idéia que se tornou inútil e supérflua;
por conseguinte, uma idéia refutada: suprimamo-la!
(Dia claro, desjejum, retorno do senso comum e da
alegria. Platão se cobre de vergonha e todos os espíritos
livres fazem um tumulto dos diabos.)
6
O Mundo-verdade acabou abolido, que mundo nos ficou? O
mundo das aparências? Mas não; com o Mundo-verdade
abolimos o mundo das aparências!
(Meio-dia, momento da sombra mais breve, termo do
erro mais demorado, ponto culminante da humanidade:
INCIPIT ZARATUSTRA.)
28
A MORAL COMO MANIFESTAÇÃO
CONTRA A NATUREZA
1
Todas as paixões têm uma época em que são funestas, em que
envilecem suas vítimas com o peso da brutalidade, e uma época
posterior, muito mais tardia, em que se casam com a
inteligência e se espiritualizam. Outrora, a brutalidade da
paixão era causa para que se fizesse guerra contra a própria
paixão, para que se conjurassem os homens para aniquilá-la.
Todos os antigos juízos morais estão de acordo neste ponto: é
preciso destruir as paixões. A forma mais célebre dessa idéia
encontrasse no Novo Testamento, no Sermão da Montanha,
onde, que se diga de passagem, não se tomam todas as coisas a
partir duma certa altura. Ali se diz, por exemplo, referindo-se à
sexualidade: "Se teu olho direito é para ti uma ocasião de pecar,
arranca-o".
Felizmente, nenhum cristão cumpriu ao pé da letra esse
preceito. Destruir as paixões e os desejos unicamente por sua
brutalidade e para evitar as conseqüências nocivas que esta
produz, nos parece hoje uma fórmula particular da estupidez.
Não nos admiramos dos dentistas que arrancam os dentes
prevendo, que possam doer. Cumpre confessar, por outro lado,
que no terreno em que se desenvolveu o cristianismo primitivo,
a idéia da espiritualização das paixões não podia ser bem
compreendida. A Igreja primitiva lutava, como é sabido, contra
os intelectuais em benefício dos pobres de espírito; como
esperar dela uma guerra inteligente contra as paixões? A Igreja
combate as paixões através do método da extirpação radical;
seu sistema, seu tratamento, é a castração. Não se pergunta
jamais: como, se espiritualiza, embeleza e diviniza um desejo?
Em todas as épocas o peso da disciplina foi posto a serviço de
extermínio (da sensualidade, do orgulho, do desejo de dominar,
29
de possuir e de vingar-se). Mas atacar a paixão na sua raiz é
atacar a raiz da vida; o processo da Igreja é nocivo à vida.
2
Esse mesmo remédio, a castração, a extirpação, costuma ser
empregado instintivamente no combate contra os desejos por
aqueles que são demasiado débeis de vontade, demasiado
degenerados para poderem por um limite nos desejos, por essas
naturezas que têm necessidade de La Trappe, falando
metaforicamente (e mesmo sem metáfora); que necessitam uma
declaração de guerra definitiva, um abismo entre eles e a
paixão. As condições radicais indispensável só se dão nos
degenerados. A fraqueza da vontade ou, exprimindo-se mais
claramente, a incapacidade para reagir contra uma sedução, é
tão-somente uma outra forma de degeneração. A hostilidade
radical, o ódio votado à morte da sensualidade é um sintoma
grave que dá margem para se fazer suposições sobre o estado
geral dum ser que atinge esse excesso. Essa inimizade, esse
ódio, culminam quando semelhantes naturezas não possuem
suficiente firmeza nem para as curas radicais nem para
renunciar ao demônio. Recorra-se a toda a história dos
sacerdotes e dos filósofos, incluindo a dos artistas; não são os
impotentes, não são os ascetas os que lançam suas setas
envenenadas contra os sentidos: são os ascetas impossíveis, os
que necessitam ser ascetas.
3
A espiritualização da sensualidade se chama amor: é uma
grande vitória sobre o cristianismo. A inimizade é outro triunfo
de nossa espiritualização. Consiste em compreender
profundamente o que se ganha tendo inimigos; em suma, em
agir e discutir de modo contrário ao que se agia e discutia antes.
A Igreja quis sempre o aniquilamento de seus inimigos; nós,
30
imoralistas e anticristãos, cremos que nos é vantajoso que a
Igreja subsista. Também nos negócios políticos a inimizade se
tornou mais intelectual, mais prudente, mais moderna. Cada
partido compreende que interessa a sua própria conservação
não permitir que se esgote o partido contrário; o mesmo sucede
com a alta política. Uma nova criação, como o império alemão,
por exemplo, tem mais necessidade de inimigos do que de
amigos, pois em virtude do contraste começa a se sentir
necessário, fazer-se necessário. Não é de maneira diversa que
nos conduzimos com o inimigo interior; onde quer que seja que
tenhamos espiritualizado a inimizade compreendemos seu valor
por esse mesmo fato. Convém ser rico em oposições, pois só
assim se é fecundo; para conservar-se jovem é preciso que a
alma não descanse, que a alma não solicite a paz. Não há nada
que tenha chegado a ser tão estranho a nós que o que era
outrora objeto dos desejos, a paz da alma que os cristãos
desejavam. Hoje não desejamos o gado moral nem a ventura
gorda da consciência tranqüila. Quando se renuncia à guerra se
renuncia à grande vida. É verdade que em muitos casos a paz da
alma não é senão um equívoco, e apenas significa algo que não
pode expressar-se honestamente. Sem preocupações ou
preconceitos vou citar alguns casos. A paz da alma pode ser por
exemplo o cintilante reflexo duma animalidade exuberante no
domínio da moral (ou religioso). Ou então o princípio da
fadiga, a primeira sombra que a noite lança, que lança toda
espécie de noite. Ou então um signo de que o ar é úmido, que o
vento do sul vai soprar. Ou o reconhecimento involuntário por
uma boa digestão (denomina-se também amor à humanidade).
Ou o repouso do convalescente que começa a tomar gosto outra
vez pelas coisas... ou o estado de ânimo que se seque a uma
intensa satisfação de nossa paixão dominante, o bem-estar
duma sociedade rara, ou a caducidade de nossa vontade, de
nossos desejos, de nossos vícios, ou quiçá a preguiça que por
instigação da vaidade se veste de moralidade, ou o advento de
alguma certeza, ainda que seja uma certeza terrível, ou a
31
expressão da madureza e o domínio em meio à atividade, ao
trabalho, à produção, ao querer, a respiração tranqüila quando
se atingiu a liberdade da vontade. Crepúsculo dos ídolos, quem
sabe? talvez isso também se a uma espécie da paz da alma...
4
Tenho como fórmula um princípio. Todo naturalismo na
moral, isto é, toda sã moral, está dominada pelo instinto da
vida; um mandamento qualquer da vida se cumpre mediante um
cânone determinado por preceitos e por proibições; deste modo
se faz desaparecer da esfera da vida um obstáculo a uma
hostilidade qualquer.
A moral anti-natural, isto é, toda moral ensinada, venerada e
predicada até agora, se dirige, ao contrário , contra os instintos
vitais e é uma condenação já secreta já ruidosa e descarada
desses instintos. Quando se diz: "Deus vê dentro dos corações"
diz-se não às aspirações internas e superiores da vida e se
considera Deus como inimigo da vida. O santo que agrada a
Deus é o castrado ideal. A vida finda ali onde inicia o reino de
Deus.
5
Aquele que compreende quão sacrílega é essa sublevação
contra a vida, que chegou a ser quase sacrossanta na moral
cristã, compreenderá concomitantemente outra coisa: o inútil
fictício, absurdo e mentiroso que é semelhante sublevação. A
condenação da vida que parte dum vivo, não é senão, em última
instância, o sintoma duma espécie de vida determinada: sem
que se pergunte se tem ou não razão. Necessitar-se-ia tomar
posições fora da vida e ao mesmo tempo conhecê-la tanto
quanto todos que tenham passado por ela, tão bem como
muitos, ou se se quer, como todos os que dela participaram para
tão-somente tocar o problema da vida; bastam tais razões para
32
se compreender que semelhante problema não está ao nosso
alcance. Ao falar do valor da vida falamos sob a inspiração e
através da óptica da vida. A própria vida nos obriga a
determinar valores, a própria vida evolui por meio de nossa
mediação quando determinamos esses valores. Infere-se daí que
toda moral contra a Natureza, que considera Deus como idéia
contrária, como a condenação da vida. é apenas, na realidade,
uma apreciação da vida; de que vida? De que espécie de vida?
já apresentei a contestação: da vida descendente, debilitada,
fatigada. condenada. A moral, tal como foi ' entendida até
agora, tal como foi formulada em último lugar por
Schopenhauer; como negação da vontade de viver, essa moral é
o mesmo instinto de decadência que se transforma em
imperativo; nos diz: caminha para tua perdição; é a sentença
dos que estão sentenciados.
6
Consideremos, por último, quanta candura há em dizer: o
homem deveria ser desta maneira. A realidade nos mostra uma
maravilhosa riqueza de tipos, uma verdadeira exuberância na
variedade' e na profusão das formas. Todavia, surge qualquer
moralista de praça e afirma: "Não, o homem deveria ser de
outra maneira". Sabe sequer como deveria ser ele mesmo, esse
santarrão que faz seu retrato na parede e diz: Ecce homo? Até
quando um moralista se dirige só a um indivíduo para dizer-lhe:
"Deve ser assim!" põe-se no ridículo. De qualquer modo que o
consideremos, o indivíduo faz parte da fatalidade, constitui uma
lei a mais, uma necessidade a mais para tudo o que está por vir.
Dizer-lhe: "Muda tua natureza" é desejar a transformação do
todo, ainda que seja uma transformação no passado. E
efetivamente houve moralistas conseqüentes que queria que os
homens fossem distintos, isto é, virtuosos. Queriam homens a
sua imagem; para isso negaram o mundo. Basta de delírios!
Basta de formas modestas da imodéstia! A moral, por pouco
33
que condene, é em si mesma, e não em relação à vida, um erro
específico com o qual não se deve ter compaixão, uma
idiossincrasia de degenerados que causou muito dano. Em
contrapartida, nós, os imoralistas, abrimos de par a par nossos
corações a toda classe de compreensão, de inteligibilidade, e de
aprovação. Não negamos facilmente, nos honramos de ser
afirmativos. Nossos olhos estão bem descerrados para essa
economia que necessita e sabe aproveitar-se de tudo que a santa
sem-razão despreza. a razão enferma do sacerdote, para essa
economia da lei vital que aproveita até as mais repugnantes
demonstrações de beatos, curas e corifeus da virtude. Que
vantagens obtém? Nós mesmos, nós, os imoralistas, somos uma
resposta vivente.
34
OS QUATRO GRANDES ERROS
1
O Erro da Confusão entre a Causa e o Eleito
Não há erro mais perigoso que o de confundir o efeito com a
causa. Considero esta a verdadeira perversão da razão. E sem
embargo, este erro figura os antigos e modernos hábitos da
humanidade; foi santificado por nós, e se enfeita com os nomes
de religião e de moral. Toda proposição formulada pela religião
ou pela moral encerra esse erro; sacerdotes e legisladores da
moral são os promotores dessa perversão da razão. Citarei um
exemplo. Todos conhecem o livro do célebre Cornaro, no qual
o autor recomenda a dieta rigorosa que ele observava para
conseguir uma vida longa e feliz ao mesmo tempo que virtuosa.
Pouquíssimos livros foram tão lidos: todavia, continuasse
imprimindo na Inglaterra muitos milhares de exemplares. Estou
convencido de que nenhum outro livro (com exceção da Bíblia,
bem entendido) produziu tanto dano nem abreviou tantas
existências como essa singular obra, escrita com boa intenção,
sem dúvida. O motivo disso é uma confusão entre 'o efeito e a
causa. Aquele bom italiano acreditava que sua dieta era a causa
de sua longevidade, quando o que acontecia era que a condição
primeira para viver muito, a lentidão extraordinária na
assimilação e desassimilação e o escasso consumo de
substâncias nutritivas eram, na realidade, a causa de sua dieta.
A frugalidade não dependia de seu livre arbítrio; não podia
comer muito ou comer pouco, segundo quisesse; quando comia
um pouco mais que o devido, adoecia. Aquele que não é uma
carpa não só faz bem comer o suficiente, como constitui uma
necessidade absoluta. Se um sábio de nossos dias, com seu
rápido consumo de força nervosa, fosse submetido ao regime de
Cornaro, perderia a saúde completamente. Credo experto.
35
2
A fórmula geral que serve de base a toda religião e a toda
moral pode ser expressada assim: "Faça isto ,e mais isto, não
faça aquilo e mais aquilo — e então serás feliz, do contrário...
Toda moral e toda religião são somente esse imperativo, que
chamo de o grande pecado hereditário da razão, a imortal
razão. Em meu pensamento essa fórmula se transforma na
contrária — primeiro exemplo de minha Transmutação de
todos os valores: um homem bem constituído, um homem
ditoso realizará necessariamente certos atos e temerá
instintivamente cometer outros, pois assim exige o sentimento
da ordem que ele representa fisiologicamente em suas relações
com os homens e as coisas. Reduzindo isto a uma fórmula: sua
virtude é a conseqüência de sua felicidade. Uma vida longa,
uma prole numerosa não são a recompensa da virtude; pelo
contrário, a própria ; virtude é essa lentidão na assimilação e
desassimilação que produz entre outras conseqüências a
longevidade e a prole numerosa, numa palavra, o que se chama
de cornarismo.
A Igreja e a moral afirmam: "O vício e o luxo são a causa do
perecimento de povos e raças"; contudo ,o que minha razão
afirma é o seguinte: "Quando um povo perece teve que
degenerar fisiologicamente"; .conseqüência disto são os vícios
e o luxo (isto é, essa necessidade de estimulantes cada vez mais
fortes e mais freqüentes que todos os temperamentos esgotados
sentem). Um jovem empalidece e envelhece prematuramente;,
seus amigos dizem: esta ou aquela doença é a conseqüência de
uma vida precária, de um esgotamento hereditário. Os leitores
de jornais dizem: este partido foi destruído devido a esta ou
aquela falta que cometeu. Minha política superior contesta: um
partido que comete esta ou aquela falta agoniza, não possui a
segurança do instinto. Numa ou outra forma toda falta é
conseqüência da degeneração do instinto, de uma desagregação
da vontade; chega-se por esse caminho quase a definir o mal.
36
Todo o bem procede do instinto e é por conseguinte leve,
necessário, espontâneo. O esforço é uma objeção; o deus se
diferencia do herói por seu tipo (em minha linguagem, os pés
leves são o primeiro atributo da divindade).
3
O Erro da Causalidade Falsa
Em todas as épocas acreditou-se saber o que é uma causa,
porém de onde tiramos nosso saber, ou melhor, a fé no nosso
saber? Do domínio desses famosos dados interiores, dos quais
nem sequer um resultou eficaz até agora. Cremos intervir nós
mesmos como causa nos atos da vontade e pensamos que ali, ao
menos, vamos surpreender a causalidade em flagrante. Da
mesma maneira concebemos que é necessário buscar na
consciência todos os antecedentes de um ato e que os buscando,
os acharemos como motivos, pois se não fosse assim não
seríamos livres nem responsáveis por aquele ato. Por último,
quem punha antes em dúvida o fato de que no pensamento
existe uma relação causal, que sou eu a causa de meus
pensamentos? Desses três dados interiores com que a
causalidade parecia afiançada, o primeiro e mais concludente é
a vontade considerada como causa, a noção de uma
consciência (espírito) como causa e depois a do eu (sujeito)
como causa, são posteriores; apareceram quando, mediante a
vontade já estava estabelecida como um dado, como empirismo,
a causalidade. Porém depois mudamos o pensar, e agora não
cremos em uma só palavra de tudo aquilo. O mundo interior
está repleto de fantasmas e de reflexos enganosos; a vontade é
um desses fantasmas. A vontade já não põe em movimento
nada, nem portanto explica nada. Apenas acompanha os
acontecimentos, e pode também faltar. O que chamamos um
motivo é outro erro. O motivo é somente um fenômeno
superficial da consciência, uma coisa que está ao lado do ato e
que mais oculta os antecedentes deste que os representa. E que
37
diremos do eu! O eu chegou a ser uma lenda, uma ficção, um
jogo de palavras: este já deixou de pensar, sentir e querer. Que
se deduz daí? Que não há tais causas intelectuais. Todo o
suposto empirismo, baseado nelas, o levou ao diabo.
E é preciso confessar que havíamos abusado bastante desse
empirismo? partindo dele criamos o mundo como mundo das
coisas, como mundo da vontade, como mundo dos espíritos. A
antiga psicologia, a que durou mais tempo, consagrou-se a esse
labor e não fez outra coisa; todo acontecimento era para ela um
ato, todo ato a conseqüência duma vontade. O mundo passou a
ser para ela uma multiplicidade de princípios ativos, em cada
acontecimento jazia um princípio ativo (um sujeito). O homem
projetou em torno de si seus três dados interiores, nos quais cria
firmemente: a vontade, o espírito e o eu. Primeiramente deduzo
a noção do ser da noção do eu, representando-se as coisas como
existentes a sua imagem e semelhança, de acordo com sua
noção do eu enquanto causa. Que tem de estranho que depois
tenha encontrado nas coisas apenas aquilo que eu mesmo tinha
colocado nelas? A própria coisa, repitamo-lo, a noção de coisa
é apenas um reflexo da crença no eu, como causa. E no próprio
átomo de vocês, senhores mecânicos e físicos, quanta
psicologia rudimentar existe entretanto? Não quero falar da
coisa em si do horrendum prudendum dos metafísicos. O erro
do espírito como causa confundido com a realidade,
considerado como medida da realidade e denominado Deus!
4
O Erro das Causas Imaginárias
Tomemos como ponto de partida o sonho: uma sensação
determinada, por exemplo, a que produz o tiro de um canhão,
produz a evocação imediata de uma causa (que muitas vezes
chega a formar uma novela cujo protagonista é, naturalmente, a
pessoa que sonha). A sensação se prolonga durante esse tempo
como num eco e aguarda num certo sentido até que o instinto
38
da causalidade lhe permite colocar-se na primeira fila, não já
como um acaso, mas sim como a razão dum fato. A detonação
do canhão se apresenta então em forma causal, numa aparente
inversão do tempo. O que vem depois, a motivação, parece ter
chegado primeiro, adornando-se freqüentemente com cem
detalhes que se sucedem com a rapidez do relâmpago; a
detonação segue. Que sucedeu? As representações que produz
um estado particular dos fatos têm sido mal interpretadas, como
se fossem a causa desse estado.
Na realidade, fazemos o mesmo despertos. A maioria de
nossos sentimentos vagos e gerais — toda espécie de obstáculo,
de opressão, de tensão de explosão no funcionamento dos
órgãos, e em particular o estado do nervo simpático —
provocam nosso instinto de causalidade. Queremos que haja
uma razão para que nos encontremos neste ou naquele estado,
para que nos sintamos bem ou mal. Não nos basta experimentar
simplesmente o fato de sentirmos desta ou daquela maneira;
não aceitamos esse fato, não adquirimos consciência dele até
que lhe outorguemos alguma motivação.
A memória, em casos semelhantes, entra em funcionamento
sem que tenhamos consciência disso, reproduz os estados
anteriores de mesma ordem e as interpretações causais anexas a
eles, não sua causalidade verdadeira. Verdade é que, por outro
lado, a memória reproduz também a crença de que as
representações, os fenômenos de consciência que acompanham
o fato foram suas causas. Assim se obtém o hábito duma
determinada interpretação das coisas, que na realidade estorva e
até impede sua investigação.
5
Explicação psicológica desse lato.
Reduzir uma coisa desconhecida a outra conhecida alivia,
tranqüiliza e satisfaz o espírito, dando-nos ademais, um
sentimento de poder. O desconhecido leva consigo o perigo, a
39
inquietude, o cuidado; o primeiro tiosas, ai não se olha bem de
perto os meios que conduzem a consecução. A primeira
representação, em virtude da qual o desconhecido se declara
conhecido, dos nossos instintos tende a suprimir essa situação
penosa. Primeiro princípio: uma explicação qualquer é
preferível à falta de explicação. Como, na realidade, trata-se
apenas de se livrar de representações angusnos faz tão bem que
se tem por verdadeira. Prova do prazer (da força) como critério
de verdade. O instinto de causa depende, pois, do sentimento do
medo, ao que deve sua origem. O por que não solicita a
indicação da uma causa por amor a ela, mas sim busca certa
espécie de causa, uma causa que tranqüilize, que livre do
perigo, que alivie. A primeira conseqüência dessa necessidade é
que toma como causa algo conhecido já e vivido, algo que está
inscrito na memória. O novo, o imprevisto, o estranho está
excluído das causas possíveis. Não se busca somente descobrir
uma explicação da causa, mas sim se elege e se prefere uma
classe particular de explicações, aquela que dissipa mais
rapidamente e em maior número de casos a impressão do
estranho, do novo, do imprevisto, isto é, são preferidas as
explicações mais comuns. Que se deduz disso? Que uma
avaliação de causas é o que domina, se condensa num sistema e
acaba por predominar até o ponto de desterrar as outras causas
e as outras explicações. O banqueiro pensa imediatamente no
negócio, o cristão no pecado. a cortesã no amor.
6
Todo o domínio da moral e da religião deve ser explicado
através dessa idéia das causas imaginárias.
Explicação dos sentimentos gerais desagradáveis. Esses
sentimentos dependem de seres que são inimigos nossos
(espíritos maus, este é o caso mais célebre; as histéricas, a que
se toma por bruxas). Dependem de atos que não devem ser
aprovados (o sentimento do pecado, o estado de pecado
40
substitui o mal estar fisiológico pois sempre acha razões para
estar descontente de si mesmo). Dependem da idéia de castigo,
da redenção de algo que não devemos fazer ou não devemos ser
(idéia generalizada por Schopenhauer numa proposição que a
moral se nos afigura como é, como uma verdadeira
envenenadora da vida: "Toda grande dor, seja física ou moral,
indica o que merecemos, pois não teria podido se apoderar de
nós se não a merecêssemos. "O mundo como vontade e
representação. Dependem, finalmente, de atos irreflexivos, os
quais têm conseqüências danosas (as paixões, os sentidos,
considerados como causas, as calamidades fisiológicas
convertidas em castigos merecidos, com a ajuda de outras
calamidades).
Explicação dos sentimentos gerais agradáveis. Dependem da
confiança em Deus. Dependem dos sentimentos produzidos
pelas boas ações (o que se chama tranqüilidade de consciência,
um estado fisiológica que se parece tanto com o que produz
uma boa digestão, que às vezes se confundem). Dependem do
desenlace feliz de determinadas empresas (conclusão tão falsa
quanto cândida pois o fim feliz duma empresa não proporciona
de modo algum sentimentos gerais agradáveis a um
hipocondríaco ou a um Pascal). Dependem da fé, da esperança
e da caridade, virtudes cristãs. Na realidade, todas essas
explicações imaginárias são as conseqüências dos estados de
prazer ou de desprazer, traduzidas numa linguagem errônea. Se
tem esperança, é porque o sentimento fisiológico dominante é
outra vez vigoroso e expansivo; se tem confiança em Deus, é
porque o sentimento da plenitude e da força nos proporciona
repouso. A moral e a religião pertencem inteiramente à
psicologia do erro; em cada caso particular confundem a causa
com o efeito, ou a verdade com o efeito do que se considera
como verdade, ou uma condição da consciência com a
causalidade dessa condição.
41
7
O Erro do Livre-arbítrio
Não somos indulgentes com a idéia do livre-arbítrio: sabemos
de sobejo do que se trata; a habilidade teológica de pior
reputação que já houve para tornar a humanidade responsável à
maneira dos teólogos, o que eqüivale a colocar a humanidade
sob a dependência dos teólogos. Vou me limitar a explicar a
psicologia dessa tendência a exigir responsabilidades. Onde
quer que exijam responsabilidades, o instinto de julgar e de
castigar anda, geralmente, mesclado na tarefa. Retira-se a
inocência do devir quando lhe atribui um estado de fato,
qualquer que seja, à vontade, a intenções, a atos de
responsabilidade. A doutrina da vontade foi inventada,
principalmente, colimando castigar, isto é, com a intenção de
achar um culpado. Toda a antiga psicologia, psicologia da
vontade, deve sua existência ao fato de que seus inventores, os
sacerdotes, chefes das cominidades primitivas, quiseram
atribuir-se o direito de castigar, ou quiseram conceder tal
direito a Deus. Os homens foram considerados livres para se
poder julgá-los e castigá-los, para se poder declará-los
culpados. Conseqüentemente, toda ação tinha que reputar-se
voluntária, e a origem de todo ato devia supor-se na consciência
(pelo que a falsificação das moedas in psychologicis, por
princípio, se erigia da própria psicologia). Hoje, que entramos
na corrente contrária e nós, os imoralistas, trabalhamos com
todas nossas forças para conseguir que desapareça mais uma
vez do mundo a idéia da culpabilidade e do castigo, tanto
quanto para eliminar delas a psicologia, a história, a Natureza,
as instituições e as sanções sociais, não há, a nossos olhos,
oposição mais radical que a dos teólogos, que por meio da idéia
do mundo moral prosseguem contaminando a inocência do
devir com o pecado e o castigo. O cristianismo é uma
metafísica de verdugos.
42
8
O que pode nossa doutrina admitir neste ponto?
Que nada dá ao homem suas qualidades, nem Deus, nem a
sociedade, nem seus pais e antepassados, nem ele mesmo (o
contra-senso desta última idéia foi ensinado sob o nome de
liberdade inteligível por Kant e talvez já por Platão). Nada é
responsável pelo fato do homem existir, seja desta ou da outra
maneira, encontrasse em tais condições em tal meio. A
fatalidade de seu ser não pode separar-se da fatalidade de tudo
o que foi e será. O homem não é a conseqüência duma intenção
própria, duma vontade, dum fim; com ele não se fazem ensaios
para obter-se um ideal de humanidade; um ideal de felicidade
ou um ideal de moralidade; é absurdo desviar seu ser para um
fim qualquer. Nós inventamos a idéia do fim; na realidade não
existe o fim ... Somos necessários, somos um fragmento do
destino, formamos parte do todo, estamos no todo; não há nada
que possa julgar, medir, comparar e condenar nossa existência,
pois isto eqüivaleria a julgar, medir, comparar e condenar o
todo. E não há nada fora do todo! Nada pode ser
responsabilizado: as categorias do ser não podem ser referidas a
uma causa primeira, o mundo não é uma unidade, nem como
mundo sensível, nem como inteligência; apenas esta é a grande
redenção, deste modo a inocência do devir fica restaurada. A
idéia de Deus foi até agora a maior das objeções contra a
existência. Nós negamos Deus, negamos a responsabilidade em
Deus, e ao fazê-lo salvamos o mundo.
43
AQUELES QUE QUEREM TORNAR A
HUMANIDADE “MELHOR”
1
O que exijo do filósofo é que se coloque além do bem e do
mal, que ponha sob si a ilusão do juízo moral. Essa exigência é
o resultado de um exame feito por mim pela primeira vez e no
qual chegou-se à conclusão que não há fatos morais. O juízo
moral tem em comum com o juízo religioso o crer em
realidades que não existem. A moral é tão-somente uma
interpretação de certos fenômenos, porém uma falsa
interpretação. O juízo moral pertence, como o juízo religioso, a
um grau de ignorância em que a noção da realidade. a distinção
entre o real e o imaginarão não existem, de modo que em tal
grau a palavra verdade serve para expressar coisas que hoje
chamamos imaginação. Por isso não se deve nunca tomar ao pé
da letra o juízo moral, pois entendido assim seria um contrasenso.
Entretanto, como semiótica possui um valor
inapreciável, pois revela ao que sabe entender, ao menos,
realidades preciosas acerca das civilizações e dos gênios que
não souberam bastante para compreenderem a si mesmos. A
moral é apenas uma linguagem de signos, uma sintomatologia,
é preciso saber de antemão do que se trata para se poder tirar
partido dela.
2
Apresentarei um exemplo. Em todos os tempos quis-se
melhorar o homem; a rigor, isto é o que chamamos de moral.
Porém sob a palavra moral se ocultam tendências muito
diferentes. A domesticação do animal humano e a criação
duma espécie determinada de homens, são um melhoramento e
essas noções zoológicas as únicas que expressam realidades,
porém realidades que o melhorador típico, a sacerdote, ignora e
44
não quer saber nada a respeito. Chamar melhoramento à
domesticação dum animal soa aos nossos ouvidos quase como
uma brincadeira. Quem sabe o que sucede em zoologia?
Contudo, duvido muito que o animal acabe melhorando. É
debilitado, é feito menos perigoso; com o sentimento
deprimente do medo, com a dor e as feridas faz-se dele um
animal enfermo. O mesmo sucede ao homem domesticado, a
quem o sacerdote tornou melhor. Nos primeiros tempos da
Idade Média, quando a Igreja era acima de tudo uma casa de
feras, combinavam-se com freqüência os belos exemplos do
animal louro, melhorava-se, por exemplo, os nobres germanos.
E a que ficava reduzido depois disso um daqueles germanos a
quem se teria feito melhor introduzindo-se num convento? A
uma caricatura de homem, a um aborto; dele era feito um
pecador, estava enjaulado, fora encerrado no meio de idéias
espantosas. Doente e miserável aborrecia-se a si mesmo, estava
repleto de ódio contra os instintos da vida, repleto de
desconfiança em relação a tudo que permanecia sendo forte e
feliz. Em uma palavra: era cristão. Em termos fisiológicos, na
luta contra o animal torná-lo doente é talvez o único meio de
enfraquecê-lo. A igreja compreendeu isso perfeitamente:
corrompeu o homem, tornou-se débil e reivindica o mérito de
tê-lo tornado melhor.
3
Fixemo-nos em outro caso do que se chama moral: o caso da
criação duma determinada espécie. O mais grandioso exemplo
nos é dado pela moral hindu, a lei de Manu, sancionada por
uma religião. Ali se coloca o problema de criar nada menos que
quatro raças simultaneamente: uma raça sacerdotal, uma raça
guerreira, uma raça de mercadores e lavradores e por último
uma raça de servidores, os sudras. É evidente que aqui não
estamos entre domadores de animais; a condição primordial
para se chegar a conceber o plano de semelhante criação de
45
raças é uma espécie de homem cem vezes mais suave e mais
racional que a dos domadores. Respira-se com mais liberdade
quando se passa da atmosfera cristã, atmosfera de hospital e de
cárcere, a esse mundo mais são, mais elevado, mais amplo.
Como o Novo Testamento se apresenta pobre e cheira mal ao
lado da lei de Manu! Porém também esta organização
necessitava ser temível, não na luta contra o animal, mas sim na
luta contra a idéia contrária do animal, contra o homem que não
se deixa criar, contra o homem de mistura incoerente, contra a
chandala. E para desarmá-lo e debilitá-lo teve que torná-lo
doente; era uma luta contra a maioria. Quiçá não haja nada tão
contrário a nossos sentimentos quanto essas medidas de
segurança da moral hindu.
O terceiro edito, por exemplo (Avadana Sastra I), o dos
legumes impuros, dispõe que a única alimentação permitida ao
chandala seja o alho e a cebola, posto que a Santa Escritura
proíbe dar-lhe trigo ou frutas que tenham grãos e priva o
chandala da água e do fogo. O mesmo edito declara que a água
de que tenham necessidade não deve ser tomada dos rios, das
fontes nem dos tanques, mas tão-somente dos pântanos e dos
buracos deixados no solo pelas pegadas das patas dos animais.
Também lhes é proibido lavar a roupa e a si próprios, porque a
água, que lhes é concedida por misericórdia, só há de lhes
servir para aplacar a sede. Por último se proibia as mulheres
sudras de assistir as chandalas no parto, e estas assistirem-se
entre si. O resultado de semelhante policiamento sanitário não
deixava lugar a dúvidas: epidemias mortais, doenças espantosas
dos órgãos sexuais e, como resultado, a lei da faca ordenando a
circuncisão dos bebês do sexo masculino e a ablação dos
pequenos lábios nos bebês do sexo feminino. O próprio Manu
dizia: "Os chandalas são o fruto do adultério, do incesto e do
crime (eis aí a conseqüência necessária da idéia da criação).
Como vestimentas devem ter apenas os farrapos roubados dos
cadáveres, como vasilha jarros, por adorno ferro velho e por
objeto de culto os maus espíritos; devem errar de um lugar a
46
outro sem repouso. É lhes interdito escrever da esquerda para a
direita e se servir da mão direita para escrever, o uso da mão
direita e da escrita da esquerda para a direita estando reservado
às pessoas de virtude, às pessoas da raça".
4
Estas prescrições são bastante instrutivas: constata-se nelas a
humanidade ariana absolutamente pura, absolutamente
primitiva — vemos que a idéia de .. puro-sangue" constitui o
contrário duma idéia inofensiva. Por outro lado percebe-se
claramente em que povo ela se torna religião, ela se torna gênio
... Considerados deste ponto de vista, os Evangelhos são um
documento de primeira ordem, e mais ainda o livro de Enoque.
— O cristianismo, nascido de raízes judaicas, inteligível
somente como uma planta desse solo, representa o movimento
de oposição contra toda moral de criação, da raça e do
privilégio é a religião anti-ariana por excelência: o
cristianismo, a transmutação de todo s os valores arianos, a
vitória dos valores dos chandalas, o evangelho dos pobres e dos
humildes proclamado, a insurreição geral de todos os
oprimidos, dos miseráveis, dos arruinados, dos deserdados, sua
insurreição contra a "raça , — a vingança imortal dos chandala
tornada religião do amor...
5
A moral da criação e a moral da domesticação são
absolutamente dignas uma da outra pelos meios de que se
servem para atingir seus fins: podemos estabelecer como
primeira regra que para fazer moral é necessário absolutamente
dispor da vontade do contrário. Aí se acha o grande e
inquietante problema que persigo a tanto tempo: a psicologia
daqueles que querem tornar a humanidade "melhor". Um
pequeno fato bastante modesto ao fundo, o da pia fraus,
47
franqueia-me o primeiro acesso a esse problema: a pia traus foi
a herança de todos os filósofos, de todos os sacerdotes que
desejaram tornar humanidade "melhor". Nem Manu, nem
Platão, nem Confúcio, nem os mestres judeus e cristãos jamais
duvidaram do seu direito à mentira. Não duvidaram dum bom
número de outros direitos também ... Se se quer exprimir-se
numa fórmula, se poderia dizer: todos os meios pelos quais até
o presente a humanidade deveria ter se tornado mais moral
eram fundamentalmente imorais.
48
O QUE OS ALEMÃES
ESTÃO NA IMINÊNCIA DE PERDER
1
Entre os alemães, não é suficiente hoje em dia ter espírito: é
necessário ainda tomá-lo, presumir-se com o espírito...
Conheço talvez os alemães e talvez tenha o direito de lhes dizer
algumas verdades. A nova Alemanha representa uma forte dose
de capacidades herdadas e adquiridas, de sorte que durante um
certo tempo, pode despender sem onerar seu tesouro de forças
acumuladas. Não se trata do domínio duma alta cultura junto de
si, ainda menos dum gosto delicado, uma nobre "beleza" dos
instintos; mas não as virtudes mais viris que aquelas que
poderiam ser apresentadas por um outro país da Europa. Muito
mais coragem e respeito de si, muito mais segurança nas
relações e na reciprocidade dos deveres, muito mais atividade e
capacidade de suportar — e uma sobriedade hereditária que tem
mais necessidade de aguilhão do que de obstáculo. Acrescento
que aqui se obedece ainda sem que a obediência humilhe... e
ninguém menospreza o adversário...
Percebe-se que não peço mais que justiça seja feita aos
alemães: nisso não desejaria faltar a mim mesmo — é
necessário portanto, igualmente, que lhes faça minhas objeções.
Custa muito chegar ao poder: o poder embrutece. Os alemães
— eram chamados outrora um povo de pensadores: eu me
pergunto de uma maneira geral se pensam ainda hoje em dia?
Os alemães se entediam agora com o espírito, os alemães
desconfiam agora do espírito. A política devora toda a
seriedade que se poderia introduzir nas coisas verdadeiramente
espirituais. — "A Alemanha acima de tudo"1, temo que isto
tenha sido o fim da filosofia alemã... "Existem filósofos
alemães? Existem poetas alemães? Existem bons livros
1 Primeiro verso duma canção nacional alemã (nota dos tradutores).
49
alemães?" Tais são as questões que me colocam no exterior.
Não posso senão rugir, mas com a bravura que me é própria,
mesmo nos casos desesperados, respondo: "Sim, Bismarck!”
Tinha eu portanto o direito de confessar que livros são lidos
hoje?.. Maldito instinto da mediocridade!
2
Quem já não ponderou tristemente sobre o que o espírito
alemão poderia ser? Porém esse povo vem se embrutecendo
desde há mil anos; em nenhuma parte se abusou tanto dos dois
grandes narcóticos europeus: o álcool e o cristianismo.
Recentemente se acrescentou um terceiro, que por si só bastaria
para consumar a ruína mais sutil e ousada leveza do espírito;
refiro-me à música, a nossa música alemã, constipante e
constipada. Quanto pesadume mal-humorado, quanta paralisia,
quanta umidade, quanta roupa caseira, quanta cerveja há na
inteligência alemã! Como é possível que jovens que dedicam
sua existência aos fins mais espirituais não sintam o primeiro
instinto da espiritualidade, o instinto de conservação do
espírito, e bebam cerveja? O alcoolismo da juventude culta não
é talvez um enigma em relação a seu saber sem necessidade de
espírito pode-se ser um grande sábio porém é um problema de
qualquer outro ponto de vista. Onde não achar essa doce
degeneração que produz a cerveja no espírito? Num caso
célebre, pus o dedo nessa chaga — a degeneração do nosso
primeiro livre-pensador alemão, o prudente David Strauss que
chegou a ser o autor dum evangelho de cervejaria e de uma
nova fé1 (I). Não foi em vão que escreveu sua dedicatória em
versos à cerveja, à amável morena... fiel até a morte.
1 Refere-se a A antiga e a nova fé, de David Strauss (nota dos tradutores).
50
3
Falou-se do espírito alemão e foi afirmado que está se tornando
mais grosseiro e mais plano. E no fundo. há uma outra coisa
que espanta: como a seriedade alemã, a profundidade alemão, a
paixão alemã pelas coisas intelectuais, vão diminuindo dia a
dia. Transformou-se não só a inteligência, mas também o patos,
De vez em quando me aproximo das universidades alemãs: que
atmosfera respiram esses sábios, que espiritualidade vazia,
satisfeita, entibiada! Aquele que objetasse com a ciência alemã,
incorreria num profundo equivoco e demonstraria, ademais, não
ter lido uma só linha minha. Há dezoito anos não me canso de
proclamar a influência deprimente de nosso cientilicismo atual
sobre o espírito. A dura escravidão a que a extensão imensa da
ciência condena hoje em dia cada indivíduo é uma das
principais razões em virtude das quais as inteligências mais
bem dotadas, mais ricas, mais profundas, não encontram já
educadores nem educação que lhe convenham. Nadi faz
padecer tanto nossa cultura quanto a abundância de
carregadores pretensiosos e fragmentos de humanidade. Nossas
universidades são, para pesar próprio, verdadeiras estufas que
pioram o espírito nos seus instintos. Toda Europa já principia a
percebê-lo; a alta política não engana ninguém. A Alemanha
vai sendo considerada o povo mais vulgar da Europa. Todavia
estou buscando um alemão com quem possa ser sério a minha
maneira... e melhor ainda seria se encontrasse um com quem
me atrevesse a ser alegre! Crepúsculo dos ídolos, quem
compreenderá hoje com que seriedade um filósofo repousa
aqui? Para nós a serenidade é o mais incompreensível.
4
Vejamos a questão por outro lado. Não só é evidente que a
cultura alemã está em decadência, como não faltam razões
suficientes para isso. E em última instância, ninguém pode
51
gastar mais do que tem, tanto os indivíduos quanto os povos. Se
se gasta em poderio, na alta política, na economia, no comércio
internacional, no parlamentarismo, nos interesses militares; se
se dissipa nesse aspecto da vida a dose de razão, de seriedade,
de vontade de domínio de si mesmo que se possui, o outro
aspecto tem que ressentir-se. A cultura e o Estado são termos
antagônicos — não há desvios disto. — Estado civilizado é
apenas uma idéia moderna. Um vive do outro; um prospera às
custas do outro. Todas as grandes épocas da cultura são épocas
de decadência política, o que foi grande no sentido da cultura
não foi político, até mesmo foi antipolítico. O coração de
Goethe se abriu ante o fenômeno Napoleão e se fechou diante
das guerras de independência. No instante em que a Alemanha
se eleva como grande potência, a França adquire nova
importância como potência da cultura. Hoje já emigraram para
Paris muitas coisas sérias e novas, muitas novas paixões do
espírito; a questão do pessimismo, por exemplo, a questão
Wagner, quase todas as questões psicológicas e artísticas são
examinadas Já com maior delicadeza e maior profundidade que
na Alemanha, os alemães são até incapazes desse tipo de
seriedade.
Na história da cultura européia, a criação do império
significa, acima de tudo, uma coisa: uma deslocação do centro
de gravidade. Em todos os lugares já se vai compreendendo
que, no assunto principal — que é sempre a cultura — ninguém
leva em conta os alemães. Podeis apresentar uma única
inteligência
que mereça chamar a atenção da Europa, uma inteligência
como Goethe, como Hegel, como Heinrich Heine, como
Schopenhauer, digna, em suma, de alternar com eles? O fato de
não haver nem sequer um filósofo alemão provoca assombro.
52
5
O essencial no ensino superior da Alemanha está perdido,
tanto quanto ao fim como quanto aos meios que põem em
prática para obtê-lo. Que a educação e a própria cultura sejam o
fim — e não o império; para este fim são necessários
educadores e não catedrãticos do Instituto e sábios da
Universidade, é coisa esquecida. São precisos educadores
educados, espíritos nobres e superiores que saibam afirmar-se a
cada momento por meio da palavra e por meio do silêncio,
seres duma cultura madura e dulcificada, não esses sábios
brutamontes que o Instituto e a Universidade oferecem hoje
como enfermeiros superiores. Faltam educadores, e abstração
feita das exceções, falta a condição primeira da educação, e dai
o rebaixamento da cultura alemã.
Meu venerável amigo Jacob Burkhardt, de Basiléia, é uma
dessas exceções, a mais rara, e a ele deve, em primeiro lugar,
Basiléia seu predomínio nas humanidades. O que as escolas
superiores sabem fazer efetivamente é um adestramento brutal a
fim de tornar útil e explorável ao serviço do Estado uma legião
de jovens no tempo mais curto possível. Educação supe. rior e
legião são coisas que encerram uma contradição primordial.
A educação superior não corresponde senão ás exceções: é
preciso ser privilegiado para ter direito a privilégio tão
precioso. As coisas grandes e belas não podem ser bens
comuns; pulchrum est paucorum hominum. O que ocasionou o
rebaixamento da cultura alemã? O fato da educação superior ser
um privilégio — a transformação democrática da cultura,
convertida em algo obrigatório e comum. Não é necessário
esquecer que as vantagens concedidas em relação ao serviço
militar aos estudantes induzem à freqüência exagerada dessas
escolas. Ninguém dispõe já na Alemanha da liberdade de dar a
seus filhos uma educação nobre. Nossas escolas superiores
estão organizadas segundo uma mediocridade ambígua, com
professores, programas e um resultado previsto. Em todos os
53
lugares reina uma pressa indecente, como se se tivesse perdido
algo com o fato dum jovem não ter acabado seus estudos aos
vinte e três anos, quando não sabe todavia responder a uma
pergunta essencial: que carreira vai escolher? Existe uma
espécie superior de homens, que seja permitido dizer, que não
gosta de carreiras, precisamente porque se sentem convocados.
Essa espécie de homens tem tempo, dá-se tempo, não pensa em
terminar; aos trinta anos se é precisamente menino,
principiante; nossos professres do Instituto carregados de
trabalho e embrutecidos, são um escândalo. Para se expressar
no sentido da alta cultura. Nossos Institutos sob a proteção
desse estado de coisas, como o fizeram recentemente os
professores de Heidelberg, podem ter talvez motivos, porém
seguramente não existem razões.
6
Seguindo meu costume de afirmar e cuidar de objeções e
críticas apenas duma maneira indireta e involuntária,
apresentarei desde já as três tarefas para as quais necessitamos
educadores. É preciso aprender a pensar, é preciso aprender a
falar e a escrever; o fim dessas três coisas é uma cultura
aristocrática. Aprender a ver, acostumar os olhos ao repouso, à
paciência habituá-los a deixar ver as coisas, a localizar o juízo.
aprender a cercar e envolver o caso concreto. Esta é a primeira
preparação para educar o espírito. Não ceder imediatamente a
uma sedução, mas saber utilizar os instintos que estorvam e
isolam. Aprender a ver, tal como entendo, é, de certo modo, o
que na linguagem corrente e não-filosófica chama-se vontade
firme; o essencial é, precisamente, não querer; poder suspender
a determinação. Todo ato anti-espiritual e toda vulgaridade
repousam sobre a incapacidade de resistir a uma sedução; o que
opera assim se crê obrigado a reagir e seque todos os impulsos.
Em muitos casos, semelhante obrigação é conseqüência de um
estado mórbido, dum estado de depressão, é um sintoma de
54
esgotamento, posto que tudo que a brutalidade antifilosófica
chama vício, é apenas essa incapacidade fisiológica de resistir.
Uma aplicação desse ensino da vista: o que é dos que aprendem
se torna, em geral, mais lento, mais desconfiado, mais
resistente. Ter todas as portas abertas; prestar-se submisso ante
qualquer fato cheio de pequenez; estar sempre disposto a se
introduzir, a se precipitar no estranho; numa palavra, essa
famosa objetividade moderna é simplesmente de mal gosto.
7
Aprender a pensar: em nossas escolas se perdeu completamente
a noção disso. Até nas universidades, até entre os sábios da
filosofia, a lógica, enquanto teoria, prática e ofício, começa a
desaparecer. Leiam os livros alemães; nem sequer se recorda
neles, em nenhum deles, que para pensar necessita-se uma
técnica, um plano de estudos, um magistério; que a arte de
pensar tem que ser aprendida como qualquer espécie de dança.
Quem conhece todavia por experiência entre os alemães esse
ligeiro estremecimento que passa por todos os músculos ao
roçar do pé leve das coisas espirituais? Uma falta de jeito nos
assuntos intelectuais, a mão pesada no tato, é o alemão, até o
ponto que no exterior isso se confunde com o espírito alemão
em geral. O alemão não tem tato para os matizes. O fato dos
alemães terem podido suportar seus filósofos, e sobretudo esse
aleijado dos conceitos, o grande Kant, dá uma triste idéia da
distinção alemã. E é porque não é possível prescindir da
educação nobre, da dança sob todas suas formas. Saber bailar
com os pés, com as idéias, com as palavras; necessitarei dizer
que não é menos necessário saber fazê-lo com a pena, que é
preciso aprender escrever? Porém neste ponto eu me
converteria num enigma para leitores alemães.
55
PASSATEMPOS INTELECTUAIS
1
Minhas impossibilidades.
Sêneca, ou o tesoureiro da virtude; Rousseau, ou o retorno da
natureza in impuris naturalibus; Schiller, ou o trombeteiro de
Sackingen da moral; Dante, ou a hiena que versifica nos
sepulcros; Kant, ou o cant como caráter inteligível; Victor
Hugo, ou o farol no oceano da falta de sentido; Liszt, o estilo
corrente... para as mulheres; George Sand, lactea ubertas, a
vaca leiteira do grande estilo; Michelet, ou o entusiasmo em
mangas de camisa; Carlyle, ou o pessimismo da má digestão;
John Stuart Mill, ou a caridade ofensiva; os irmãos Goncourt,
ou os dois Ajax pelejando contra Homero (música de
Offenbach); Zola, ou a "alegria malcheirosa".
2
Renan. — A teologia é a perversão da razão através do
pecado original (o cristianismo). A prova disso é Renan, que
enquanto se aventura a soltar um sim ou um não de índole
geral, falha com uma regularidade matemática. Queria, por
exemplo, unir estreitamente a ciência à nobreza; porém a
ciência faz parte da democracia, como é bem palpável. Deseja
representar, não sem certa ambição, uma aristocracia do
espírito, porém ao mesmo tempo ele se põe de joelhos diante da
doutrina contrária: o evangelho dos humildes ... De que lhe
serve todo o livre pensamento, todo o modernismo, todo o
gracejo, toda a flexibilidade, se suas entranhas continuam sendo
de cristão, de católico e até de clérigo? Renan possui a
faculdade inventiva da sedução do mesmo modo que um jesuíta
ou um confessor; seu espírito não carece desse sorriso
bonachão e paroquial; como todos os sacerdotes, não é perigoso
56
até que ama. Ninguém o iguala na maneira de adorar, uma
maneira de adorar que põe em perigo a vida. Esse espírito de
Renan, espírito que enerva, é uma calamidade mais para a
pobre França enferma, enferma da vontade.
3
Sainte-Beuve. — Não tem nada de homem; é repleto de ódio
pequeno contra todos os espíritos viris. Perambula daqui para lá
refinado, curioso, entediado, escutando... É um homem de
fundo feminino, com vinganças de mulher e sensualidades de
mulher. Como psicólogo um gênio da maledicência, inesgotável
nos meios de insinuar essa maledicência. Ninguém soube como
ele mesclar o veneno com o elogio. Seus instintos inferiores são
plebeus e têm parentescos com o ressentimento de Rousseau;
ademais é romântico, pois atrás de todo o romantismo gesticula
e acena o instinto de vingança de Rousseau. Revolucionário,
porém suficientemente contido pelo medo. Sem independência
frente a tudo aquilo que possui força (a opinião pública, a
academia, a corte, sem excetuar Port Royal). Irritado contra
tudo que acredita em si mesmo. Bastante poeta e meio mulher
para sentir a potência do grande; continuamente retraído como
O célebre verme, porque teme que o pisem. Sem medida na
critica, sem ponto de apoio e sem espinha dorsal, muitas vezes
com a linguagem do libertino cosmopolita, contudo sem valor
para confessar sua libertinagem. Sem filosofia como
historiador, sem a potência do olhar filosófico — por isso
rechaça a missão de julgar em todas as questões essenciais,
fazendo um esgar para a objetividade. Muito distinta é sua
atitude diante das coisas para as quais é juiz supremo: um gosto
refinado e flexível. AI é onde sabe ser um mestre. De certos
pontos de vista, é precursor de Baudelaire.
57
4
A Imitação de Cristo é um dos livros que não posso tomar nas
mãos sem experimentar algo como uma repugnância
fisiológica: exala um perfume de eterno feminino, para o qual
se necessita ser francês, ou pelo menos wagneriano. Esse santo
tem uma maneira de falar do amor que excita a curiosidade das
parisienses. Disseram-me que o mais avisado dos jesuítas,
Auguste Comte, que desejava conduzir os franceses à Roma
pelos desvios da ciência, se inspirou nesse livro. Acredito-o: "a
religião do amor".
5
G. Eliot. — Desprenderam-se do Deus cristão e agora com
maior razão crêem dever conservar a moral. É uma dedução
inglesa, e não desejo censurar com ela as feminidades morais à
moda de Eliot.
Na Inglaterra, pela menor emancipação da teologia é preciso
recobrar a boa fama perdida, reconquistando-a como fanático
da moral, até provocar espanto. É a maneira de fazer penitência
usada lá. Nós entendemos isso de outro modo. Se se renuncia à
fé cristã, despojasse alguém ao mesmo tempo do direito à moral
cristã. Porém isso não é coisa que se entenda por si só e deve
ser explicada continuamente aos espíritos superficiais. por mais
que isso pese aos ingleses. O cristianismo é um sistema, um
conjunto de idéias e de opiniões acerca das coisas. Se se extrai
dele uma parte essencial, a crença em Deus, destrói-se tudo, e
não nos fica nada necessário entre os dedos. O cristianismo
supõe que o homem não sabe nem pode saber por si o que é
bom e o que é mau: crê que só Deus o sabe. A moral cristã é um
mandamento, sua origem é transcendente, está fora de toda
crítica, de todo direito à critica; contém apenas verdade,
supondo-se que Deus seja a verdade; vive com a fé em Deus e
desaparece com ela.
58
Se os ingleses crêem que sabem por si mesmos
"intuitivamente" o que é o bem e o que é o mal; se se
apresentam, por conseguinte, sem a necessidade do cristianismo
como garantia do moral, isto é, somente uma conseqüência, na
realidade, da soberania de evolução cristã e uma expressão da
força e do arraigamento dessa soberania. É a origem da moral
inglesa foi esquecida, é que não se compreendeu a extrema
dependência de seu direito à existência. Para o inglês, a moral
não é todavia um problema.
6
George Sand. — Li as primeiras Cartas dum viajante. Como
tudo que procede de Rousseau, é falso, fictício, inchado e
exagerado. Não posso agüentar esse estilo de papel de parede,
nem a ambição vulgar que aspira aos sentimentos generosos. E
o que é o pior é a coqueteria feminina, com toques varonis, com
maneiras de garotos mal-educados. Quão fria devia ser essa
artista insuportável! Dava-se corda como um relógio e escrevia.
Fria como Victor Hugo, como Balzac, como todos os
românticos quando se sentavam em sua mesa. de trabalho. E
com quanta suficiência devia deitar sobre a mesa essa temível
vaca escritora que tinha algo de alemão, como o próprio
Rousseau, seu mestre, o qual só era possível suceder quando o
gosto francês tinha perdido o rumo! E Renan a venerava!
7
Moral para psicólogos. — Não fazer psicologia de vendedor
ambulante. Não observar por observar. Isto proporciona uma
falsa óptica, uma contração, um não sei que forçado que
propende ao exagero. Viver algo por querer vivê-lo, não
resolve. Não é lícito durante o acontecimento olhar para si;
todo olhar se converte então em um olhar mau. Um psicólogo
de nascimento evitará por instinto olhar para ver, e o mesmo
59
fará um pintor de nascimento. Não trabalhará jamais copiando
do natural, mas sim remeter-se-á ao seu instinto, à sua câmara
escura para peneirar, para expressar o caso, a natureza, a coisa
vivida. Só tem cons. ciência da generalidade, da conclusão, do
resultado; ignora as deduções arbitrárias do caso particular.
Que resultado se obtém quando se procede de outra maneira,
por exemplo, quando ao estilo dos novelistas franceses se faz
psicologia grande e pequena de mascate? Espia-se, de certo
modo, a realidade e se traz todas as noites um punhado de
curiosidades. Porém olhem o que resulta: no máximo um
mosaico e em todos os casos algo sobreacrescido e que grita.
Os Goncourt chegaram ao ápice do mal nesse gênero. Não
podem escrever três frases seguidas sem que prejudiquem o
psicólogo.
A natureza avaliada do ponto de vista artístico não é um
modelo; exagera, deforma, deixa vazios. O estudo do natural
revela submissão, debilidade, fatalismo — essa prosternação
ante os fatos pequenos é indigna dum artista completo -. Ver o
que é corresponde a outra categoria de espíritos, aos espíritos
anti-artísticos concretos. É preciso saber que se é...
8
Para a psicologia do artista. — Para que haja arte, para que
haja uma ação ou uma contemplação estética qualquer, é
indispensável uma condição fisiológica prévia: a embriaguez. É
mister que a embriaguez tenha aumentado a irritabilidade de
toda a máquina; sem isso a arte é impossível. Todos os tipos de
embriaguez, ainda que estejam condicionados o mais
diretamente possível, têm potência artística e acima de todos, a
embriaguez da excitação sexual, que é a forma de embriaguez
mais antiga e primitiva. O mesmo efeito produz a embriaguez
que acompanha todos os grandes desejos, todas as grandes
emoções: a embriaguez da festa, da luta, do ato arrojado, da
vitória, de todos os movimentos extremos; a embriaguez da
60
crueldade, a embriaguez da destruição, a embriaguez que
produz influências meteorológicas, como, por exemplo, a
embriaguez da primavera, ou então a influência dos narcóticos,
e por último a embriaguez da vontade, de uma vontade
acumulada e dilatada.
O essencial na embriaguez é o sentimento de força e de
plenitude. Sob a influência desse sentimento nos abandonamos
às coisas, obrigamo-las a tomar algo de nós, as forçamos; esse
processus chama-se idealizar. Desprendemo-nos duma
preocupação relativa a esse ponto; idealizar não consiste, como
geralmente se crê, numa dedução e uma subtração do que é
pequeno e acessório. O que há de decisivo nisso é um
formidável relevo dos traços principais, que fazem com que
todos os demais fiquem eclipsados.
9
Nesse estado nós o enriquecemos com nossa própria
plenitude. O que se vê, se vê inflado, vigoroso, tenso,
sobrecarregado de força. O homem, condicionado dessa
maneira, transforma as coisas até que reflitam sua potência, até
que se tornem reflexos de sua perfeição. Essa transformação
forçada, essa transformação no perfeito é arte. Tudo, até o que
não existe, se converte para o homem em gozo de si. Na arte, o
homem goza de sua pessoa enquanto perfeição. É possível
figurar-se o estado contrário, um estado especifico dos instintos
anti-artísticos, uma maneira de conduzir-se que empobrece e
tornaria todas as coisas anêmicas. E com efeito, a história está
repleta de anti-artistas de todas as classes, de esfaimados de
vida para os quais é uma necessidade apoderar-se das coisas,
consumi-las, enfraquecê-las. No caso do verdadeiro cristão, de
Pascal, por exemplo: um cristão que possa ser ao mesmo tempo
um artista, não pode existir. Que não incorra à ninharia de
objetar-se com Rafael ou com qualquer cristão do século XIX.
Rafael acreditava na afirmação, logo não era cristão.
61
10
Que significa a oposição de idéias entre apolíneo e dionisíaco
que introduziu na estética, consideradas ambas categorias da
embriaguez? A embriaguez, apolínea produz, acima de tudo, a
irritação que fornece ao olho a faculdade da visão. O pintor, o
escultor, o poeta épico são visionários por excelência. Ao
contrário, no estado dionisíaco, todo o sistema emotivo está
irritado e amplificado, de modo que descarrega de um golpe
todos seus meios de expressão lançando sua força de imitação,
de reprodução, de transfiguração, de metamorfose, toda espécie
de mímica e de arte de imitação. A facilidade da metamorfose é
o essencial, a incapacidade de deixar de reagir (como sucede
com certos histéricos que, obedecendo a todos os gestos, se
prestam a todos os papéis). O homem dionisíaco é incapaz de
deixar de compreender uma sugestão qualquer, não deixa
escapar vestígio algum de emoção, possui no mais alto grau o
instinto da compreensão e da adivinhação, como possui no mais
alto grau a arte de comunicar-se com os demais. Sabe revestir
todas as formas e todas as emoções; transforma-se
continuamente.
A música, tal como a entendemos hoje, é apenas uma
irritação e uma descarga completa de emoções; porém, não é
mais que o resíduo dum mundo de expressões emocionais
muito mais amplo, um resíduo do histrionismo dionisíaco. Para
tornar a música possível, como arte especial, imobilizou-se
certo número de sentidos, em primeiro lugar o sentido muscular
(ao menos em alguma medida, pois relativamente todo ritmo
fala a nossos músculos), de maneira que o homem não possa
imitar e representar corporalmente tudo o que sente. Contudo,
este último é o verdadeiro estado normal dionisíaco e desde
logo o estado primitivo. A música não é senão uma
especificação de tal estado, lentamente adquirida, em
detrimento das faculdades imediatas.
62
11
O ator, o dançarino, o poeta lírico, têm estreito parentesco
em seus instintos e formam um todo cujas partes se
especializaram e se separaram pouco a pouco até atingir a
contradição. O poeta lírico foi o que permaneceu mais tempo
unido ao músico, ao ator, ao dançarino. O arquiteto não
representa nem um estado apolíneo nem um estado dionisíaco;
nele o que ressalta é o grande ato da vontade: a vontade que
move as montanhas. Os homens mais poderosos inspiraram
sempre os arquitetos. A arquitetura tem estado constantemente
sob a sugestão do poder. No edifício, o atrevimento; o triunfo
sobre a gravidade, a vontade de potência, têm que se fazer
visíveis. A arquitetura é uma espécie de eloqüência de poder,
expressado por meio das formas, umas vezes persuasiva e até
acariciante, outras limitada a das ordens. O sentimento mais
elevado de potência e de segurança encontra sua expressão no
grande estilo. A potência, que não necessita demonstração, que
desdenha o agradar, que dificilmente contesta, que não vê
testemunhas em torno de si, que sem ter consciência delas vive
das objeções que lhe são opostas, que descansa sobre si mesma,
fatalmente, como uma lei entre as leis, isto é o que fala de si
mesmo no grande estilo.
12
Li a vida de Thomas Carlyle, essa farsa involuntária, essa
interpretação heróico-moral duma dispepsia. Carlyle foi um
homem de palavras enérgicas e vigorosas atitudes, um retórico
por necessidade, excitado continuamente pelo desejo duma
sólida fé e por sua incapacidade para chegar a consegui-la
(nisto era um romântico típico). O desejo duma vigorosa fé não
é prova de possuí-la, mas muito pelo contrário. Quando se
possui essa fé pode algum permitir o luxo do ceticismo, está
bastante seguro, bastante firme, bastante ligado para poder
63
fazê-lo. Carlyle aturde algo que faz parte de si mesmo com o
fortíssimo de sua veneração pelos homens de uma sólida fé e
por sua ira em relação aos menos estúpidos; sente necessidade
de ruído. O característico nele é uma deslealdade constante e
apaixonada para consigo mesmo, isto é, o que o faz
interessante. É verdade que na Inglaterra é admirado
precisamente por essa deslealdade. Pois bem; isto é muito
inglês e se considera que os ingleses são o povo do cant mais
acabado, é, no são compreensível, como até legítimo. No fundo,
Carlyle é um ateu inglês que se empenha em não sê-lo.
13
Emerson. — É muito mais ilustrado, muito mais vagabundo,
mais múltiplo, mais refinado que Carlyle, e sobretudo é mais
feliz. É daqueles que instintivamente se alimentam apenas de
ambrósia e se afastam de todas as coisas que contêm algo de
indigesto. Ao contrário de Carlyle, é um homem de bom gosto.
Carlyle, que lhe tinha muita afeição, dizia dele sem embargo:
"Não nos dá com que entreter os dentes". E nisto pode ser que
tivesse razão, porém isso não diminui Emerson.
Emerson possui essa seriedade espiritual que desconcerta
todo o sério; não sabe quão velho é e ao mesmo tempo quão
jovem continua sendo. Podia dizer de si mesmo a frase de Lope
de Vega: "Yo me sucedo a mí mismo"1(1). Sua inteligência
encontra sempre razões para sentir-se ditosa e grata, e às vezes
chega a roçar com a serena transcendência daquele homem
excelente que voltava dum encontro amoroso tarquam rebene
gesta. Ut de sint vires, dizia com gratidão, tamer est laudanda
uoluptas.
1 Em castelhano no original (nota dos tradutores).
64
14
Anti-Darwin. — No que se refere à famosa luta pela vida,
parece-me que está mais afirmada do que demonstrada.
Apresenta-se, porém, como exceção; o aspecto geral da vida
não é a indigência e a fome, mas ao contrário, a riqueza, a
opulência, até, se se quer, uma absurda prodigalidade; onde há
luta é pela dominação . Não se deve confundir Malthus com a
natureza. Todavia, concedendo-se que essa luta exista, e ocorre
alguma vez, com efeito, desgraçadamente, finda duma maneira
contrária a que deseja a escola de Darwin ao desenlace que não
ousaríamos desejar com ela; quero dizer que finda em
detrimento dos fortes, dos privilegiados, das exceções felizes.
As espécies não caminham para a perfeição, os débeis acabam
por se converterem em senhores dos fortes por que têm em seu
favor o número e também são os mais astutos. Darwin esqueceu
o espírito (o esquecimento é bem inglês) e os débeis têm mais
espírito. É preciso ter necessidade do espírito para chegar a
possuí-lo e se perde quando não é mister. O que detém força se
desfaz do espírito. "Deixemo-lo ir era, frente — pensa-se hoje
na Alemanha — fica-nos o império." Como se compreenderá,
entendo aqui por espírito a circunspecção, a paciência, a
astúcia, a dissimulação, o grande domínio de si mesmo e tudo
que é mimicry. Grande parte do, que chamamos de virtude
pertence a essa última ordem.
15
Casuística de psicólogo. — Este conhece os homens; por que
os estuda, se não quer obter deles grandes nem pequenos
proveitos? É um homem político. Aquele conhece também os
homens e diz que não quer obter nada para si mesmo; é um
grande impessoal, diz. Olhem-no mais de perto. Quiçá busca
um proveito todavia pior: sentir-se superior aos homens, ter o
direito de olhá-los de alto a baixo, não confundir-se com eles.
65
Esse impessoal despreza os homens e o primeiro é de espécie
mais humana, apesar das aparências. Conduz-se, ao menos,
como igual aos homens, coloca-se no meio deles ...
16
O tato psicológico dos alemães me parece muito duvidoso por
uma série de fatos cuja enumeração minha modéstia me impede
de fazer. Haverá casos em que me serão oferecidas grandes
ocasiões de demonstrar minha tese. Guardo rancor dos alemães
por se terem enganado sobre Kant e sua "filosofia com portas
para fuga", como a chamo, e que não foi certamente um modelo
de honestidade intelectual.
Não posso entender tampouco este e infame: os alemães
dizem: Goethe e Schiller, e por pouco não dizem Schiller e
Goethe. Não conhecem Schiller ainda? Há outros e piores,
todavia. Já ouvi se dizer, é verdade que unicamente entre
professores da Universidade: Schopenhauer e Hartmann.
17
Só às almas mais espirituais, dando por assentado que sejam
as mais valorosas, é dado viver as maiores tragédias; por isso
estimam a vida, porque lhes opõem seu maior antagonismo.
18
Para a "consciência intelectual". — Não há coisa que me
pareça mais rara hoje em dia que a verdadeira hipocrisia. Tenho
grandes suspeitas de que essa planta não suporta o ar doce de
nossa civilização. A hipocrisia faz parte da época das sólidas
crenças, em que mesmo quando se era forçado a exibir uma
crença diferente não se abandonava a crença que já se tinha.
Hoje abandona-se ou não se adquire uma segunda fé, que é o
mais freqüente e se continua sendo honrado. É indubitável que
66
nos nossos dias é possível ter um número maior de convicções
que em outros tempos, e ao dizer possível quero dizer lícito,
que eqüivale a inofensivo. Isto dá origem à tolerância.
Essa tolerância permite muitas convicções que vi. vem em boa
harmonia uma com as outras e se livram muito bem (como
fazem todos) de comprometer-se. Que é o que hoje
compromete? O espírito de conseqüência, o seguir a linha reta,
o não apresentar-se a um duplo sentido ou a um quintuplo
sentido, o ser verídico. Receio que o homem moderno seja
demasiado acomodado para certos vícios, o que faz com que se
extingam literalmente esses vícios. Todo o mal que depende da
fortaleza da vontade — e talvez não haja mal sem força de
vontade — degenera em virtude em nossa atmosfera tépida. Os
raros hipócritas que cheguei a conhecer imitavam a hipocrisia:
eram cômicos, como o é hoje um homem em cada dez.
19
Belo e feio. — Não há nada tão condicional e limitado como
nosso sentido da beleza. O que quer representar o belo
abstraído do prazer que o homem produz no homem, perderá o
equilíbrio em seguida, O belo em si é apenas uma frase, nem
sequer uma idéia. O homem se toma a si mesmo como medida
de perfeição no belo e em certos casos escolhidos, adora-se.
Uma espécie não pode fazer outra coisa a não ser afirmar-se
dessa maneira. Seu mais profundo instinto, o de conservação e
crescimento, reflete-se todavia nessas sublimidades. O homem
se figura que o mundo está por si só pleno de belezas, e se
esquece que é ele mesmo a causa dessas belezas.
Ele e ninguém mais foi que tornou o mundo pleno de beleza
humana, demasiado humana, e nada mais. Em resumo, o
homem se reflete nas coisas e toda aquela que lhe oferece sua
imagem lhe parece bela; seu juízo do belo é a vaidade da
espécie.
67
Sem embargo, essa interrogação pode insinuar um pouco de
desconfiança no ouvido do cético: embelezou-se
verdadeiramente o mundo por ser o homem quem o julga do
ponto de vista da beleza? É representado sob formas humanas,
porém nada, absolutamente nada nos garante que seja o homem
o modelo da beleza. Quem sabe o efeito que produziria aos
olhos de um juiz superior do gosto? Parecer-lhe-ia divertido?
Parecer-lhe-ia um tanto caprichoso? "Oh, divino Dionísio! Por
que me puxas as orelhas?", perguntou um dia Ariadne ao seu
filosófico amante em um dos célebres diálogos da ilha de
Naxos. "Encontro algo agradável em tuas orelhas, Ariadne, por
que não são mais longas ainda?
20
Nada é belo, somente o homem é belo; toda a estética repousa
nesta simplicidade; tal é sua primeira verdade. Acrescentamos
em seguida a segunda: nada é feio a não ser o homem que
degenera, com o qual fica circunscrito o domínio dos juízos
estéticos.
Do ponto de vista fisiológico todo o feio entristece e deprime
o homem. Ele o faz pensar na decomposição, no perigo, na
impotência. No feio perde indubitavelmente força; o efeito da
feiúra pode ser medido com o dinamômetro. Em geral, quando
o homem se sente de qualquer modo deprimido, percebe a
proximidade de algo feio. Seu sentimento da potência, sua
vontade de potência, sua altivez, sua coragem, tudo isso
diminui com a feiúra e cresce com a beleza. Em ambos as casos
tiramos uma conclusão; as premissas estão acumuladas
abundantemente no instinto. Vemos no feio um sinal e um
sintoma de degeneração: o que lembra de perto ou de longe a
degeneração provoca em nós o juízo "feio". Todo índice de
esgotamento, de peso, de velhice, de cansaço; toda espécie de
constrangimento como a convulsão ou a paralisia, 'e sobretudo
o odor, a cor e a forma da decomposição, ainda que não seja em
68
suas últimas atenuações, em forma de símbolo, provoca em nós
a mesma reação: o juízo do feio. Nisso emerge um ódio; o que
o homem odeia aí? Não há dúvida, o rebaixamento do seu tipo.
Odeia no âmago do seu mais profundo instinto da espécie. E
nesse ódio há um horror, há prudência, profundidade,
clarividência. É o ódio mais profundo que e existe. É por ele
que a arte é profunda.
21
Schopenhauer. — Schopenhauer, o último alemão digno de ser
levado em conta, o último acontecimento europeu (como
Goethe, como Hegel, como Heine). e não só um acontecimento
local "nacional", Schopenhauer é para o psicólogo um caso de
primeira ordem, como tentativa maliciosamente genial de fazer
trabalhar em favor duma depreciação completamente niilista da
vida aos instintos contrários: a grande afirmação de si, a
afirmação da vontade de viver, as formas exuberantes da vida.
Interpretou um após outro a arte, o heroismo, o gênio, a beleza,
a compaixão, o conhecimento, o desejo da verdade, a tragédia
como conseqüência da negação ou da necessidade de negação
da vontade, e foi o maior caso de falsificação de moeda
psicológica que a história registra, exceção feita ao
cristianismo. Olhando de perto, é nisso o herdeiro da
interpretação cristã, com a diferença de que ele supôs aprovar
também em sentido cristão, isto é, niilista, o que o cristianismo
havia desprezado, os grandes feitos da civilização humana
(aprova-os como caminhos para a redenção, como formas
primeiras da redenção, como estimulantes para a redenção).
22
Vou fixar-me num caso concreto. Schopenhauer fala da
beleza com um ardor melancólico. Por quê? Porque vê nela
uma ponte pela qual se pode ir mais longe, ou na qual se
69
adquire a ânsia de ir mais longe. A beleza é para ele a
emancipação da vontade por alguns momentos, e atrai para a
emancipação eterna. Elogia-se sobretudo como redentora do
foco da vontade, da sexualidade; no belo vê a negação do gênio
da reprodução. Santo extravagante! — houve quem te
contradissesse: a natureza. Por que há beleza nos sons, nas
cores, nos perfumes e nos movimentos rítmicos da natureza? O
que é que impulsiona a beleza a manifestar-se ao exterior?
Felizmente também o contradiz um filósofo, e não dos piores.
O divino Platão (como o chama o próprio Schopenhauer)
sustenta com sua autoridade outra tese: que toda beleza impele
à reprodução e que este é precisamente seu efeito natural, a
grosseira sensualidade ao mais elevado espiritualismo.
23
Platão via mais longe. Diz, com uma inocência para a qual se
necessita ser grego, que não haveria filosofia platônica não
tivessem existido formosos mancebos em Atenas, posto que sua
contemplação é o que transporta a alma dos filósofos num
delírio erótico e não lhe deixa ponto de repouso até que não
tenham espalhado a semente de todas as coisas elevadas por um
mundo tão belo. Aqui temos outro santo não menos
extravagante: não crê alguém em seus olhos supondo que se
creia em Platão. Adivinha-se, ao menos, que em Atenas se
filosofava de outro modo; desde logo, tudo se fazia em público.
Nada menos grego que consagrar-se a tecer teias de aranha
solitariamente com as idéias, amor intellectualis dei, à maneira
de Spinoza. Melhor seria definir a filosofia tal como a pratica
Platão, como uma espécie de palestra erótica, que continha e
aprofundava a antiga ginástica agonal com todas suas condições
pré, vias. O que é que resulta em última instância desse
erotismo filosófico de Platão? Uma nova forma da arte do Agon
grego: a dialética. Recordarei contra Schopenhauer e a favor de
Platão, que toda a elevada cultura literária da França clássica
70
gira em torno de motivos sexuais. Nela podem ser buscados em
todas as partes a galanteria, os sentidos, a luta sexual, a mulher;
e não há por que recear que sejam buscados em vão.
24
A arte pela arte. — A luta contra a finalidade na arte é
sempre uma luta contra as tendências moralizadoras, contra a
subordinação da arte à moral. A arte pela arte quer dizer: "o
diabo com a moral". Essa mesma inimizade denuncia o poder
preponderante ainda daquela preocupação. Porém ainda que se
exclua da arte o fim de edificar e melhorar os homens, não se
conclui daí que a arte deva carecer em absoluto dum fim, duma
aspiração e dum sentido, que seja, numa palavra, a arte pela
arte — a serpente que morde a própria cauda. — "Antes não ter
um fim que ter um fim moral!" Assim fala a paixão. Porém um
psicólogo pergunta, ao contrário: O que em toda espécie de arte
faz? Não louva? Não glorifica? Não isola? Com tudo isso a arte
fortalece ou enfraquece certas avaliações; é isso um acessório,
uma coisa acidental? É algo em que o instinto artístico não tem
participação completa? É que a faculdade de poder do artista
não é a condição primeira da arte? Está o seu instinto básico
dirigido à arte, ou preferivelmente ao sentido da arte, à vida, a
um desejo de vida. A arte é o grande estimulante da vida; como
receber a arte pela arte?
Resta uma outra questão: não mostra a arte muitas coisas que
toma da vida, feias, duras, duvidosas?
Emancipar-se da vontade era a intenção que Schopenhauer
atribula à arte; dispor alguém à resignação era para ele a grande
utilidade da tragédia, que venerava. Porém isso, como dei a
entender, é a óptica do pessimista, é o mal da visão e cumpre
solicitar tal opinião dos próprios artistas. "Que sentimento seu
nos comunica o artista trágico?" O que afirma, não é
precisamente a falta de temor diante do terrível e do incerto.
Esse estado é um desejo superior e aquele que conhece a honra
71
com as maiores homenagens e a comunica, necessita comunicála,
supondo que seja artista, gênio da confidência. O valor e a
liberdade do sentimento ante um inimigo poderoso, ante um
revés sublime, ante um problema que espanta, é o estado
triunfante que elege e glorifica o artista trágico. Diante do
trágico, o conselho de guerra de nossa alma celebra suas
saturnais; aquele que está habituado à dor e à sua busca, o
homem heróico, celebra sua existência na tragédia, e o artista
trágico oferece esta taça de crueldade, a mais doce de todas.
25
Moldar-se aos homens, ter casa aberta no coração, é liberal,
porém não é mais que liberal. Distinguem-se os corações que só
são capazes duma hospitalidade nobre, caracterizada por
numerosas janelas que têm persianas fechadas. Os melhores
aposentos estão vazios. Por quê? Porque esperam hóspedes aos
quais não se pode tratar de qualquer maneira...
26
Não nos estimamos o bastante quando falamos com os
demais. O que verdadeiramente nos acontece, não é eloqüente.
Ainda que os acontecimentos quisessem, não poderiam
comunicar-se por si mesmos. Carecem de palavras. Estamos
acima das coisas que podemos comunicar por meio de palavras.
Em todos os discursos há algum desprezo. Ao que parece, a
linguagem não foi inventada a não ser para as coisas medíocres,
vulgares, comunicáveis. Com a linguagem, o que fala começa a
vulgarizar-se. Extraído duma moral para surdo-mudos e demais
filósofos.
72
27
"Este quadro é encantador!... " A mulher literata, descontente,
excitada, com as entranhas vazias, escutando sempre com
curiosidade dolorida o imperativo que desde os subterrâneos de
seu organismo murmura: Aut liberi aut libri, a mulher literata,
bastante ilustrada para escutar a voz da natureza até quando fala
em latim, e por outro lado, bastante vaidosa para dizer-se a si
mesma em segredo e em seu próprio idioma: "Ver-me-ei, lerme-
ei, me extasiarei e direi: é possível que eu tenha tanto
talento?"
28
Os impessoais falam. — "Nada tão fácil para nós como o ser
prudentes, sofridos, superiores". Destilamos o óleo da
indulgência e da simpatia, levamos a justiça até o absurdo,
perdoamos tudo. Por isso deveríamos nos criar de vez em
quando uma paixãozinha, um vício pessoal. Isso pode
amargurar-nos e entre nós talvez ríssemos. E de que nos servirá
isso? Não nos resta outra maneira de vencer a nós mesmos; é
nosso ascetismo, nossa maneira de fazer penitência. Tornar-se
pessoal é a virtude dos impessoais.
29
De um exame de doutorado. — Qual é o objeto de toda
instrução superior? — Converter o homem numa máquina. Que
meios devem ser empregados para isso? Ensinar o homem a
aborrecer-se. Como se consegue isso? Com a noção do dever.
Que modelo se deve propor? O filólogo, que ensina a trabalhar
sem descanso. Qual é o homem perfeito! O funcionário do
Estado. Qual é a filosofia que fornece a fórmula superior ao
funcionário do Estado? A de Kant; o funcionário como coisa
em si, colocado sobre o funcionário como aparência.
73
30
O direito à estupidez. — O trabalhador fatigado que respira
lentamente, que tem o olhar terno, que deixa que as coisas
fluam, essa figura típica que se encontra agora no século do
trabalho (e do império!) em todas as classes da sociedade, lança
mão da arte, inclusive do livro, embora mais ainda do jornal —
e muito mais ainda das formosas paisagens, da Itália, por
exemplo. O homem da tarde, "com os instintos selvagens
adormecidos" de que fala Fausto, tem necessidade de veraneio,
de banhos de mar, de gelo, de Bayreuth. Em épocas como a
nossa a arte tem direito à imbecilidade, como uma espécie de
férias do gênio, da verbosidade e do sentimento. Wagner o
compreendeu. A rainha Torheit, a imbecilidade, contribui na
reposição das forças.
31
Outro problema de regime. — Os meios de que se servia Júlio
César para preservar-se de enxaquecas e dores de cabeça eram:
grandes caminhadas, um gênero de vida o mais simples
possível, permanecia constantemente ao ar livre e fazia
exercício contínuo. Tais são, em geral, as medidas de
preservação que exige a extrema vulnerabilidade desta delicada
máquina que trabalha à mais alta pressão, esta máquina que
chamamos gênio.
32
Fala o imoralista. — Não há nada mais contrário aos gostos
do filósofo que o homem que deseja. Quão admirável lhe
parece o homem quando o vê em seus atos e observa nele o
mais bravo, o mais astuto e o mais sofrido dos animais, até
quando se vê enredado nos transes mais intricados! Porém o
filósofo despreza o homem que deseja e também o que pode
74
parecer apetecível e, em geral, todo gênero de desejo, todos os
ideais do homem. Se um filósofo pudesse ser niilista, o seria,
porque encontra o nada atrás de todos os ideais. E nem sequer o
nada, mas sim algo pior: o fútil, o absurdo, o mórbido, o
cansado, o covarde, todo o tipo de tragos que é preciso tomar
do cálice da existência. Por que o homem, tão venerável
enquanto realidade, não merece avaliação quando deseja? É
necessário que compense seus atos, a tensão da inteligência e a
vontade que requer todo ato, com uma parada no imaginário e
no absurdo? A história dos desejos tem sido até agora a parte
vergonhosa do homem. Não é preciso ler essa história muito
tempo. O que justifica o homem é sua realidade e o justificará
eternamente. E quanto mais vale o homem real se o
comparamos com um homem ideal qualquer, com um homem
que não é mais que uma trama de desejos, de sonhos e de
mentiras? O homem ideal é contrário aos gostos do filósofo.
33
Valor natural do egoísmo. — O amor a si mesmo vale em
relação ao valor fisiológico daquele que o pratica; pode valer
muito e pode ser indigno e desprezível. Cada indivíduo deve ser
apreciado segundo representa a linha ascendente ou a linha
descendente. Julgando dessa maneira o homem, obtém-se
também a regra que determina o valor do seu egoísmo.
Representa-se a linha ascendente, seu valor é efetivamente
extraordinário, e no interesse da vida total, que com ele dá um
passo para diante, o cuidado de sua conservação e de criar seu
optimum de condições vitais deve ser extremo. O homem
isolado, o indivíduo, tal como foi entendido até agora pelo povo
e pelos filósofos, constitui um erro; em si não é nada; não é um
átomo, um elo da cadeia, uma herança do passado, mas sim é
toda a linha do homem até chegar a si mesmo. Se representa a
evolução descendente, a ruína, a degeneração crônica, a doença
(em geral, as doenças são já sintomas de degeneração e não
75
causas desta), seu valor é bem escasso e a mera eqüidade exige
que se usurpe o menos possível dos homens de constituições
perfeitas, posto que não é mais que um parasita.
34
Cristão e anarquista. Quando o anarquista, como porta-voz
das camadas sociais em decadência, reclama com "bela
indignação" o direito, a justiça, a igualdade, fala sob a pressão
de sua incultura, que não sabe compreender que sua pobreza
consiste... na pobreza de vida. Há nele um instinto de
causalidade que o impele a discorrer assim: "Alguém deve ter
culpa do meu mal-estar". Essa "bela indignação" lhe faz já um
bem por si só, é um verdadeiro prazer para um pobre diabo
poder injuriar, em que encontra uma certa embriaguez de poder.
A queixa, o mero fato de queixar-se pode proporcionar à vida
um atrativo que a torna suportável; em toda queixa há uma dose
refinada de vingança, lança-se no rosto o próprio mal-estar e
em alguns casos, até a baixeza como uma injustiça ou como um
privilégio iníquo aos que se encontram em condições. "já que
sou um canalha, deves sê-lo também"; com esta lógica se fazem
as revoluções.
As lamentações jamais valem algo, procedem sempre da
debilidade. Não há diferença essencial entre atribuir nosso
próprio mal-estar aos demais, como faz o socialista, ou atribuílo
a nós mesmos, como faz o cristão. Em ambos os casos,
alguém deve ser culpável e o mais indigno é que o que padece
prescreve a sua dor o mel da vingança. Os objetos dessa
necessidade de vingança nascem, como os objetos das
necessidades de prazer, de causas ocasionais; o que padece,
encontra em todas as partes razões para refrescar seu ódio
mesquinho; se é cristão, repito-o, as encontra em si mesmo. O
cristão e o anarquista são decadentes. Quando o cristão
condena, difama e enegrece o mundo, o faz levado pelo mesmo
instinto que impele o operário a condenar, difamar e enegrecer
76
a sociedade. O Juízo Final constitui o consolo da vingança; é a
revolução, tal como o concebem os trabalhadores, só que para
tempos mais remotos.
35
Crítica da moral de decadência. — Uma moral altruísta, uma
moral em que se debilita o amor de si mesmo, é, de qualquer
maneira que se considere, uma coisa má. Isto, sendo verdade
em relação aos indivíduos, aplica-se acima de tudo aos povos.
Falta o melhor quando começa a faltar o egoísmo. Eleger
instintivamente o prejudicial, deixar-se seduzir por motivos
desinteressados, é quase a fórmula da decadência. Não olhar
por seu interesse é simplesmente a folha de parreira moral com
que se encobre uma realidade muito diferente; fisiologicamente
quer dizer isto: "Não sei onde achar meu interesse."
Decomposição dos instintos. O homem que se torna altruísta é
o homem acabado.
Em lugar de dizer ingenuamente: "eu não valho nada", a
mentira moral diz pela boca do decadente: "Não há nada que
tenha valor; a vida não vale nada." Semelhante juízo acaba por
converter-se num grande perigo, pois é contagioso. Sobre o solo
mórbido da sociedade cresce uma vegetação tropical de idéias,
seja sob a forma de religião (cristianismo), seja sob a forma de
filosofia (schopenhauerismo). E ocorre que semelhante
vegetação de plantas venenosas, nascidas da corrupção,
envenena a vida com suas emanações durante séculos.
36
Moral para médicos. — O doente é um parasita da sociedade.
Quando se chega a certo estado, não é conveniente viver mais
tempo. A obstinação em vegetar covardemente escravo de
médicos e práticas médicas quando já se perdeu o sentido da
vida e o direito da vida deveria inspirar à sociedade um
77
desprezo profundo. Os médicos poderiam ser intermediários
desse desgosto: nada de receitas, que com cada novo dia caía
sobre os enfermos uma nova dose de tédio. É necessário criar
uma nova responsabilidade, a do médico, para todos os casos
em que o interesse mais elevado da vida, da vida ascendente,
exige que se atropele e corte sem compaixão a vida degenerada,
em nome do direito de viver. Morrer altivamente quando já não
é possível viver altivamente. A morte livremente escolhida, no
dia assinalado, com lucidez e coração alegre, em meio a
meninos e testemunhas, quando ainda é possível um adeus real,
quando aquele que nos abandona existe ainda e é
verdadeiramente capaz de avaliar o que quis e o que conseguiu,
e recapitular sua vida. Tudo isso está em oposição com a
lamentável comédia que o cristianismo representa à hora da
morte. jamais se perdoará ao cristianismo o abusar da
debilidade do moribundo para violentar sua consciência e
assumir a atitude do moribundo como um pretexto para um
juízo acerca do homem e de seu passado. Trata-se aqui, apesar
de todas as covardias da preocupação, de restabelecer a
apreciação exata, isto é, fisiológica, do que se chama a morte
natural, esta morte que, em definitivo, não é mais que um
suicídio. Morre-se sempre por querê-lo. Contudo, a morte em
condições mais desprezíveis é aquela que não vem num
momento escolhido de antemão, morte de covarde. Por amor à
vida se deveria desejar uma morte livre e consciente, sem acaso
e sem surpresa. Enfim, ai vai um conselho para os senhores
pessimistas e demais decadentes. Não dispomos dum meio que
nos impedisse de nascer. porém podemos reparar essa falta pois
às vezes é uma falta. O fato de suprimir-se é o mais estimável
dos atos: quase dá direito a viver. A sociedade, que digo? — a
própria vida extrai disso maior utilidade que a vida passada na
renúncia entre cores pálidas e virtudes. Quem o faz livra a vida
duma objeção. O pessimismo puro, o pessimismo radical não é
demonstrado senão pela refutação que os senhores pessimistas
fazem de si mesmos: têm que dar um passo a mais no' caminho
78
da lógica; não basta negar a vida com "a vontade e
representação", como fez Schopenhauer; acima de tudo é
preciso negar Schopenhauer. O pessimismo, digamo-lo de
passagem, por contagioso que seja. não aumenta o estado
mórbido duma época ou duma raça; em conjunto, é a expressão
desse estado. Sucumbe-se como se sucumbe à cólera: é preciso
ter predisposições. O pessimismo em si não engendra um
decadente a mais. A estatística mostra que os anos em que a
cólera faz estragos não podem ser distinguidos dos outros no
que se refere a cifra total da mortalidade.
37
Nós nos tornamos mais morais? — Como era de se esperar,
toda a ferocidade do embrutecimento moral, que na Alemanha
passa por ser a própria moral, se lançou contra meu conceito de
"além do bem e do mal". Poderia contar coisas graciosas acerca
disso. Primeiramente se quis que eu refletisse sobre a inegável
superioridade de nosso tempo quanto à moral, nosso verdadeiro
progresso nessa esfera; impossível admitir que um César Borgia
comparado a nós possa ser apresentado como um homem
superior, como uma espécie de super-homem, segundo eu tinha
feito. Um redator suíço do Bundt, não sem manifestar-me o
apreço que lhe inspirava o valor de semelhante empresa,
chegou até a "compreender" que com minha obra me propunha
à abolição de todos os sentimentos honrados.
Muito obrigado! Tomo a liberdade de contestar colocando a
seguinte questão: nós nos tornamos mais morais? O fato de
todos o acreditarem já é uma prova do contrário. Nós, os
homens modernos, muito delicados, muito suscetíveis,
obedecendo a mil considerações diversas, nos figuramos, com
efeito, que esses ternos sentimentos de humanidade que
representamos, que essa unanimidade na indulgência, na
tendência a so. correr ao próximo e na confiança recíproca, são
um progresso real e verdadeiro, e que em tudo isso estamos
79
muito acima dos homens do Renascimento. Porém todas as
épocas pensam da mesma maneira. É certo que não nos
atreveríamos a nos colocar nas condições do Renascimento, e
que não ousamos sequer conceber-nos nele. Nossos nervos não
suportariam semelhante realidade, e não podemos dizer que
nossos músculos a suportariam. Entretanto, essa impotência não
prova o progresso, mas sim uma constituição diferente, e mais
tardia, mais débil, mais delicada, mais suscetível, donde emana
necessariamente uma moral plena de consideração, de olhares.
Eliminemos com o pensamento nossa delicadeza, nosso
retardamento, nossa senilidade fisiológica, e nossa moral de
humanização perde em seguida seu valor — em si, nenhuma
moral tem valor — de tal sorte que a nós mesmos inspiraria
desprezo. Por outro lado, podemos estar seguros de que nós, os
modernos, com nosso humanitarismo cuidado. samente
acolchoado, que teme tropeçar até numa pedra, teríamos
oferecido aos contemporâneos de César Borgia ou os faria
morrer de rir. Com efeito, uma comedia com nossas virtudes
modernas, somos ridículos em relação a qualquer ponderação.
A diminuição dos instintos hostis e que mantêm a desconfiança
alerta — e este seria em todo caso nosso progresso — não
representa senão uma das conseqüências da diminuição geral da
vitalidade. Custa cem vezes mais trabalho e requer cem vezes
mais precauções o conseguir que se logre uma existência tão
dependente e tão tardia; em vista disso, os homens se auxiliam
mutuamente e se pode dizer que cada um deles é, em maior ou
menor grau, doente e enfermeiro. A isso chamamos virtude;
porém os homens que conheceram uma vida diferente, uma
vida mais abundante, mais pródiga, mais exuberante, teriam
qualificado tal coisa de covardia, talvez de baixeza, de moral
de velhas. A dulcificação de nossos costumes — tal é minha
idéia e se se quer minha descoberta — é uma conseqüência de
nosso enfraquecimento. A dureza e a atrocidade dos costumes
podem ser, em contrapartida, efeito duma superabundância de
vida, pois então pode-se arriscar muito, afrontar muito e
80
também dissipar muito. O que antes era o sal da vida, seria para
nós veneno. Para sermos indiferentes — o que também é uma
forma de força somos demasiado velhos e chegamos demasiado
tarde. Nossa moral da compaixão, contra a qual fui o primeiro a
soar um alarma, esse estado de espírito que se poderia chamar
de impressionismo moral, é, acima de tudo, uma manifestação
da superexcitabilidade fisiológica própria de todo decadente.
Esse movimento, que na moral da piedade schopenhaueriana
tratou-se de apresentar com certo aspecto científico — tentativa
pouco feliz — é o movimento próprio da decadência na moral e
como tal tem parentesco próximo com moral cristã. As épocas
vigorosas, as civilizações aristocráticas viram na compaixão, no
amor ao próximo, na falta de egoísmo e de independência, algo
que lhes parecia desprezível. É necessário medir as épocas
segundo suas forças positivas e desse ponto de vista, o
Renascimento, tão pródigo e tão rico em fatalidade, se nos
apresenta como a última das grandes épocas, e nós, os homens
modernos, com nossa ansiosa previsão pessoal e nosso amor ao
próximo, com nossas virtudes de trabalho, de simplicidade, de
eqüidade e de exatidão, nosso espírito colecionador, econômico
e maquinal, vivemos numa época de debilidade. Esta debilidade
é o que produz e o que exige nossas virtudes. A igualdade,
certa assimilação efetiva que se manifesta na teoria da
igualdade de direitos, pertence essencialmente a uma
civilização decadente; os abismos entre homem e homem, entre
uma classe e outra, a multiplicidade de tipos, a vontade de ser
cada um algo, de distinguir-se, o que denomino o patos das
distancias, é o que é próprio das épocas fortes. A força de
expansão, a tensão entre os dois extremos, é cada dia menor...
os próprios extremos se apagam e se confundem na analogia.
Todas nossas teorias políticas e as constituições de nossos
Estados, sem excetuar o império alemão, são conseqüências,
necessidades lógicas da degeneração. A ação inconsciente da
decadência chegou a dominar até no ideal de certas ciências
particulares. Contra toda a sociologia inglesa e francesa
81
formulo a mesma objeção: tal sociologia conhece por
experiência apenas os produtos da decomposição das
sociedades e inocentemente toma seus próprios instintos de
decomposição por norma dos juízos sociológicos. A vida que
declina, a diminuição de todas as forças organizadoras, isto é,
de todas as forças que separam, que abrem abismos, que
subordinam e ordenam, isto é hoje o que se formula como ideal
na sociologia. Nossos socialistas são decadentes, porém
Spencer também é um decadente: o triunfo do altruísmo lhe
parece coisa apetecível.
38
Meu concerto da liberdade. — O valor duma coisa consiste
muitas vezes não no que se ganha ao adquiri-la, mas sim no que
se faz para obtê-la, no que custa. Citarei um exemplo: as
instituições liberais deixam de ser liberais tão logo são
adquiridas, não há, depois, nada tão radicalmente nocivo para a
liberdade como as instituições liberais. já se sabe aonde
conduzem: minam surdamente a vontade de potência, são a
nivelação da montanha e do vale erigida em moral, tornam o
homem pequeno, covarde e ávido de prazeres; o triunfo das
cabeças de gado do rebanho as acompanha. Liberalismo
eqüivale a embrutecimento de rebanho. Essas mesmas
instituições, enquanto se tem que lutar por elas, produzem
conseqüências diferentes, pois favorecem de uma maneira
poderosa o desenvolvimento da liberdade. Olhando-se de mais
perto percebe-se que é a guerra o que produz esses efeitos, a
guerra pelos instintos liberais, que enquanto guerra deixa
subsistir os instintos antiliberais. A guerra educa para a
liberdade; porque o que é a liberdade? F, ter vontade de
responder sim; é manter as distâncias que nos separam; é ser
indiferente às penas, às asperezas, às privações, à própria vida;
é achar-se disposto a sacrificar os homens por uma causa.
Liberdade significa que os, instintos viris, os alegres instintos
82
de guerra e de vitória predominam sobre os demais instintos,
por exemplo, sobre o da felicidade. O homem livre, e muito
mais o espírito livre, pisoteia essa espécie de bem-estar
desprezível com que sonham os merceeiros, os cristãos, as
vacas, as mulheres, os ingleses e demais democratas. O homem
livre é guerreiro. Como se mede a liberdade nos indivíduos e
nos povos? Pela existência que cumpre vencer, pelo trabalho
que se tem que pagar para chegar ao alto. O tipo mais elevado
do homem livre deve ser buscado ali onde é preciso vencer uma
resistência mais sólida, a cinco passos da tirania, no próprio
umbral do perigo da servidão. Isto é fisiologicamente
verdadeiro se se entende por tirania instintos terríveis e
implacáveis que provocam para contê-los o máximo da
autoridade e de disciplina — o arquétipo dessa classe é Júlio
César — e também é verdadeiro politicamente; basta lançar um
olhar à História para comprová-lo. Os povos que tiveram algum
valor, que conquistaram algum valor, não o conquistaram com
instituições liberais: o grande perigo os fez dignos de respeito;
esse perigo que é o único que nos ensina a conhecer nossos
recursos, nossas virtudes, nossos meios de defesa, nosso
espírito e que nos compele a ser fortes. Primeiro princípio: é
preciso ter necessidade de ser forte; do contrário, não se chega
jamais a sê-lo. As sociedades aristocráticas, como Roma e
Veneza, essas grandes escolas, verdadeiras incubadoras de
homens fortes, da espécie mais enérgica de homens que já
existiu, entenderam a liberdade exatamente no mesmo sentido
que eu a entendo: como algo que se tem e não se tem ao mesmo
tempo, que se quer, que se conquista.
39
Crítica do modernismo. — Nossas instituições não valem
nada: nisto todos concordam. Porém a culpa não é delas, mas
nossa. Como todos os instintos de que provieram essas
instituições se extraviaram, elas, por sua vez, nos escapam
83
porque não nos adaptamos a elas. Em todas as épocas, a
democracia constituiu a forma de decomposição da força
organizadora. No meu livro Humano, demasiado humano (I,
318) já qualifiquei a democracia moderna e seus paliativos, tais
como o império alemão, como uma de tantas formas de
decadência da força organizadora. Para que haja instituições é
necessário que haja um gênero de vontade, de instinto, de
imperativo antiliberal até a maldade; uma vontade de tradição,
de autoridade, de responsabilidade, cimentada sobre séculos, de
solidariedade encadeada através dos séculos, desde o passado
até o futuro, in infinitum. Quando essa vontade existe, funda-se
algo, como o império romano ou como a Rússia, a única
potência que tem hoje esperanças de alguma duração, que pode
esperar, que pode prometer algo; essa Rússia, que representa a
idéia contrária à miserável mania dos pequenos Estados
europeus, da nervosidade européia que entrou em seu período
critico com a fundação do império alemão. Todo o Ocidente
carece desses instintos, donde nascem as Instituições, donde
nasce o porvir. Vive-se o momento, vive-se muito depressa,
vive-se sem responsabilidade alguma, e isso precisamente é o
que se chama liberdade. Tudo que faz com, que as instituições
sejam instituições é desprezado, odiado, rejeitado; crêem-se os
homens novamente em perigo de escravidão enquanto se ouve a
palavra autoridade. A decadência do instinto de avaliação de
nossos políticos, de nossos partidos políticos, chega até a
preferir instintivamente o que precipita o fim.
Testemunha disso é o matrimônio moderno. Aparentemente
perdeu toda sua razão de ser, ainda que isso não seja uma
objeção ao matrimônio, mas sim contra o modernismo. A razão
do matrimônio residia na responsabilidade exclusiva do
homem. Dessa maneira havia um elemento preponderante no
matrimônio. enquanto que agora ele coxeia com ambos os pés.
A razão do matrimônio consistia no principio de sua
indissolubilidade, a qual não significava pouco frente ao
fortuito dos sentimentos, das paixões, dos impulsos do
84
momento. Consistia também na responsabilidade das famílias
quanto à escolha dos esposos. Com a indulgência crescente até
o matrimônio por amor foram destruídas as próprias bases do
matrimônio, tudo o que o erigia em constituição. jamais se
fundou uma instituição numa idiossincrasia; por isso, eu o
repito, não se pode fundar o matrimônio no amor. Funda-se-o
no instinto da espécie, no instinto da propriedade ( a mulher e
os filhos eram uma propriedade), no instinto de dominação que
se organiza na família criando uma pequena sociedade que
necessita de filhos e herdeiros para conservar-se
fisiologicamente também e na medida do poder adquirido, da
influência, da riqueza, para preparar missões amplas, uma
solidariedade do instinto nos séculos. O matrimônio, como
instituição, contém já a afirmação da forma de organização
maior e mais duradoura. Se a sociedade. considerada como um
todo, não pode fiar-se em si mesma até as gerações mais
remotas, o matrimônio carece de sentido. O casamento
moderno perdeu sua significação; conseqüentemente está sendo
abolido.
40
O problema operário. — A estupidez, ou melhor, a
degeneração do instinto, que é a causa de toda estupidez
presentemente, é o que faz com que haja n problema operário.
Há certas coisas em relação às quais não se colocam problemas:
primeiro imperativo do instinto. Não compreendo o que se quer
fazer do operário europeu. Não se fez dele uma "questão".
Encontra-se muito bem situado para "não questionar", e tal
posição melhora dia a dia. Em última instância, tem a seu favor
o número. Cumpre renunciar complenamente à esperança de
que se desenvolva uma espécie de homens modestos e frugais,
uma classe que corresponda ao tipo do chinês. Isto teria sido o
racional e teria respondido a uma necessidade. E o que se fez?
Para aniquilar em seu germe a própria condição dum tal estado
85
de coisas — com um imperdoável estouvamento se destruiu em
seus germes os instintos que tornam os trabalhadores possíveis
como classe, que lhes fariam admitir a si mesmos essa
possibilidade. Declarou-se o operário apto para o serviço
militar, concedeu-se-lhe o direito de associação e de voto; o que
há de estranho no fato de sua existência lhe parecer uma
calamidade? (ou falando na linguagem da moral, uma
injustiça). Se aspira ao fim. é preciso aspirar aos meios. Se se
desejam escravos, é loucura outorgar-lhes o que os converte em
amos.
41
Liberdade, liberdade... "não" amada! — Estar entregue aos
instintos em tempos como os atuais, é uma fatalidade a mais.
Esses instintos se contradizem, estorvam-se e se destroem entre
si. A definição do moderno me parece estar em contradição
fisiológica consigo mesmo. A educação exigiria que mediante
um freio de ferro ficasse paralisada ao menos uma dessas
ordens de instintos para permitir ao outro manifestar sua força,
fazer-se vigoroso, erigir-se amo. Hoje não se pode tornar o
indivíduo possível a não ser circunscrevendo-o. Ao dizer
possível quero dizer completo. E se faz contrário. A aspiração à
independência, ao livre desenvolvimento, ao laisser aller, é
mais ardente precisamente naqueles para os quais seria pouco
qualquer freio, por mais severo que fosse. Isto é verdade na
arte. E o que sucede é um sintoma de decadência. Nosso
conceito moderno da liberdade é uma prova a mais da
degeneração dos instintos.
42
Onde a fé é necessária. — Entre os moralistas e os santos não
há qualidade tão rara como a sinceridade, ainda que digam e
talvez creiam no contrário. Quando uma fé é mais útil, mais
86
convincente e produz maior efeito que a hipocrisia consciente,
por instinto a hipocrisia torna-se inocente. Primeiro princípio
para se compreender os grandes santos. Tratando-se de
filósofos, que são outra espécie de santos, é uma conseqüência
de seu oficio autorizar apenas certas verdades: aquelas pelas
quais obtém a sanção pública, ou falando na linguagem de
Kant, as verdades da razão prática. Sabem o que devem
demonstrar, no que são práticos e reconhecem entre si que estão
de acordo acerca das "verdades" em questão: "Não devemos
mentir"; em outros termos: "Senhor filósofo, você se guardará
muito bem de dizer a verdade...
43
A dizer no ouvido dos conservadores. — O que não se sabia
antes, porém se sabe agora e poderá saber no futuro, é que uma
transformação para trás, uma regressão em qualquer sentido e
em qualquer grau que se opere, não é cabível no possível. Os
fisiólogos, ao menos, o sabem. Porém todos os sacerdotes e
todos os moralistas acreditaram no contrário e quiseram fazer
com que a humanidade retrogradasse. A moral foi sempre um
leito de Procusto. Até os políticos imitaram nisso os pregadores
da virtude, e ainda existem partidos que sonham em fazer com
que as coisas caminhem para trás como os caranguejos.
Entretanto, não é dado ao homem ser caranguejo. Não é
possível, é mister ir avante, isto é, 'avançar passo a passo,
adiantado à decadência (esta é minha definição do progresso
moderno). Pode-se pôr obstáculos a esse desenvolvimento e se
criar uma ressurreição da degeneração, concentrá-la, torná-la
mais veemente e mais repentina; é tudo o que se pode fazer.
44
Meu conceito de gênio. — Os grandes homens são como as
grandes épocas, matérias explosivas, imensas acumulações de
87
forças. Histórica e fisiologicamente, sua condição primeira é
sempre a longa espera de sua vinda, uma preparação, uma
reconcentração em si mesmo, isto é, que não se tenha produzido
explosão alguma durante um longo período. Quando a tensão
chegou a ser muito grande na massa, a mais casual irritação
basta para se chamar à cena do mundo o gênio, para chamá-lo à
ação e aos grandes destinos. Que importam então o medo,
época, o espírito do século, a opinião pública! Fixemo-nos no
caso de Napoleão. A França da Revolução, e mais ainda a
França que preparou a Revolução, devia produzir, por sua
própria índole, o tipo mais oposto ao de Napoleão, e no fim o
gerou. E como Napoleão era diferente. era o herdeiro duma
civilização mais forte, mais constante, mais antiga que a que na
França ia se evaporando e desagregando, foi o senhor, o único
que podia ser o senhor. Os grandes homens são necessário, a
época em que aparecem é fortuita. Se quase sempre conseguem
tornar-se os senhores, é pelo fato de que são mais forte, mais
antigos, é porque representam uma acumulação mais longa de
elementos.
Entre um gênio e seu tempo existe a relação que existe entre o
forte e o fraco, entre o velho e o jovem. O tempo é, sempre
relativamente mais jovem, mais ligeiro, menos emancipado,
mais flutuante, mais infantil. Que hoje se pense duma maneira
inteiramente distinta na França (e na Alemanha também, porém
isso não tem importância), e que a teoria do meio, verdadeira
teoria de neurastênicos tenha chegado a ser considerada
sacrossanta e encontre apoio entre os fisiólogos, é coisa que me
cheira mal e me inspira tristes pensamentos.
Na Inglaterra discorresse do mesmo modo, porém tal coisa
não preocupará ninguém. O inglês tem dois caminhos abertos
para acomodar-se ao gênio: a senda democrática no estilo de
Buckle e a senda religiosa ao modo de Carlyle.
O perigo que há nos grandes homens e nas grandes épocas é
imenso; o esgotamento sob todas as formas, a esterilidade os
seque passo a passo. O grande homem é um final; a — grande
88
época, o Renascimento, por exemplo, é um final. O gênio em
ação é necessariamente pródigo, sua grandeza exige que
dissipe. O instinto de conservação fica, até certo ponto, em
suspenso; a pressão suprema das forças radiantes veda qualquer
tipo de precaução e de prudência. Chama-se a isso sacrifício,
louva-se o heroísmo do grande homem, sua indiferença em
relação ao seu próprio bem, sua abnegação por uma idéia, por
uma grande causa, por uma pátria, tudo isso mal-entendidos. O
que há é que o grande homem se transborda, se difunde,
prodigaliza, prescinde de si fatalmente, irremediavelmente,
involuntariamente, do mesmo modo que é involuntário um rio
ultrapassar suas margens inundando as terras ribeirinhas. Mas
como devemos muito a esses explosivos, foram gratificados
com uma porção de coisas, tais como uma moral superior. Este
é o agradecimento da humanidade; entende seus benfeitores ao
contrário.
45
O criminoso e seus congêneres. — O tipo do criminoso é o
tipo, do homem forte colocado em condições desfavoráveis, do
homem forte enfermo. Necessitava viver numa comarca
selvagem, numa natureza e numa forma de vida mais livre e
mais perigosa, onde subsiste de direito tudo aquilo que ante o
instinto do homem forte constitui sua arma e defesa. Suas
virtudes são proscritas pela sociedade e os instintos vivazes que
traz ao mundo ao nascer se confundem em seguida com os atos
depressivos, com a suspeita, o medo, a desonra. Vejam ai a
fórmula da degeneração fisiológica. O que se vê obrigado a
fazer ocultamente o que faria melhor, o que prefere, e tem de
fazê-lo com precauções e com astúcia, torna-se anêmico e como
seus instintos lhes proporcionam somente perigos, perseguições
e catástrofes, sua sensibilidade volta-se contra seus instintos e
ele se julga presa da fatalidade.
89
Em nossa sociedade dócil, medíocre, castrada, um homem que
está próximo à natureza, que vem da montanha ou do mar,
degenera facilmente num criminoso. Ou quase fatalmente, pois
há casos em que um homem desse gênero resulta mais forte que
a sociedade. O corso Napoleão é o exemplo mais famoso. Para
o problema que aqui se apresenta tem importância o
testemunho de Dostoiewsky — o único psicólogo, que seja dito
de passagem, de quem se tem algo a aprender e que se faz parte
dos acasos mais felizes de minha vida, mais ainda que a
descoberta de Sthendal. Esse homem profundo, que tinha razão
de sobra para fazer pouco dum povo tão superficial como os
alemães, viveu muito tempo entre os presidiários da Sibéria e
esses criminosos, para os quais não há redenção, possível na
sociedade, lhe produziram uma impressão muito diferente da
que esperava. Pareceram-lhe da melhor madeira que existe na
terra russa, da madeira mais dura e mais preciosa.
Generalizemos o caso do criminoso; imaginemos caracteres
que por uma razão qualquer não obtém a sanção pública, que
sabem que não são considerados nem doadores de benefícios
nem elementos úteis — o sentimento da chandala, do intocável,
que compreende que não é olhado como um igual, mas sim
como réprobo, indigno, contaminado. Nesses caracteres, os
pensamentos e os atos são iluminados por uma luz subterrânea;
para eles, todas as coisas assumem uma coloração mais pálida
que para os que vivem à luz do dia.
Porém quase todas as formas de existência que hoje
honramos, viveram em outro, tempo nessa atmosfera meio
sepulcral: o homem de ciência, o artista, o gênio, o espírito
livre, o cômico, o comerciante, o grande explorador. Enquanto
prevaleceu o sacerdote como tipo superior, os homens de valor
de todas as classes foram desprezados. Épocas se aproximam
— posso assegurar — em que o sacerdote será considerado o
ser mais baixo, mais embusteiro e mais indecente, como nosso
chandala. 'Observem como ainda agora, em meio aos costumes
mais suaves que existiram no mundo (os atuais da Europa) tudo
90
o que vive separado, tudo que está há muito tempo, demasiado
tempo por baixo, toda forma de existência impenetrável e que
sai do ordinário, aproximasse desse tipo que culmina no
criminoso. Todos os inovadores do espirito levam a frente de si
por algum tempo o sinal paralido e fatal do chandala; não
porque sejam considerados assim, mas sim porque eles mesmos
sentem o terrível abismo que os separa de todo o tradicional e
venerado. Quase todos os gênios conhecem como uma fase de
seu desenvolvimento a existência catilinária, sentimento do
ódio, de vingança e de rebelião contra tudo que já existe, contra
tudo que esta se fazendo. Catilina... e forma preexistente do
todo César.
46
Aqui a vista é livre. — Talvez por elevação da alma o filósofo
cala, talvez por amor se contradiz; o que persegue o
conhecimento é capaz duma cortesia que pode obrigá-lo mentir.
Com grande sagacidade se disse: é indigno dos grandes
corações expandir a preocupação que experimentam. Porém é
preciso acrescentar que não ter medo do mais indigno pode ser
igualmente grandeza de alma. Uma mulher enamorada sacrifica
sua honra, um filósofo que ama sacrifica talvez sua
humanidade, um Deus que amou se fez judeu...
47
A beleza não é um acidente. — A beleza duma raça ou uma
família, sua graça, sua perfeição em todos seus gestos são
adquiridos com trabalho. É, como no gênio, o resultado final do
trabalho acumulado das gerações. É mister ter feito grandes
sacrifícios ao bom gosto, ter feito e ter sacrificado muitas
coisas a favor dele. O século XVII na França é digno de
admiração por esse. conceito; havia então um princípio de
seleção da sociedade, do meio, do vestir, das satisfações
91
sexuais e se chegou a preferir a beleza à utilidade, ao hábito, à
opinião, à indolência. Regra superior: ninguém deve
abandonar-se nem sequer diante de si mesmo. As coisas boas
custam muito caro e prevalece sempre a lei de que quem as têm
é diferente de quem as adquire. Tudo que é bom é herança o
não herdado é imperfeito, não é mais que um princípio. Em
Atenas, no tempo de Cícero, que se assombrava com isso, os
homens, e em particular os mancebos, eram muito superiores
em beleza às mulheres; porém quantos trabalhos e esforços não
tinha se imposto a si mesmo o sexo masculino a favor da beleza
durante séculos! Sem embargo, não se deve ter ilusões em
relação ao método empregado: uma simples disciplina de
sentimentos e pensamentos produz resultados quase nulos (este
é o grande erro da educação alemã, completamente ilusória). O
primeiro a ser persuadido é q corpo. A observância rigorosa das
atitudes elegantes e seletas, a obrigação de viver apenas com
homens que "não se deixam ir" é o suficiente para se tornar
distinto e eminente. Em duas ou três gerações a obra lançou
raízes profundas. Isso decide a sorte dos povos e da
humanidade se a cultura começa pelo ponto exato por onde
deve começar; não pela alma (esta foi a superstição funesta dos
sacerdotes e semi-sacerdotes) mas pelo corpo, pelos gestos,
pelo regime físico, a fisiologia; o resto virá a seu tempo. Os
gregos foram a esse respeito o primeiro acontecimento da
civilização na história. Sabiam disso e fizeram o necessário. O
cristianismo, que desdenhava o corpo, tem sido até agora a
maior calamidade do gênero humano.
48
O progresso tal como o entendo. — Também eu falo dum
"retorno à natureza", ainda que não se trate propriamente de
uma volta para trás, mas sim uma marcha para a frente e para o
alto, para a natureza sublime, livre e terrível, que joga e tem o
direito de jogar com os grandes destinos. Valendo-me dum
92
símbolo, Napoleão foi um exemplo desse retorno à natureza
como o entendo (in rebus tacticis também, e mais ainda, como
sabem os militares, em estratégia). Porém aonde queria voltar
Rousseau, Rousseau, esse primeiro homem moderno, idealista e
canaille numa só pessoa, que tinha necessidade de dignidade
moral para suportar seu próprio aspecto, doente de um orgulho
desenfreado e de um desprezo desenfreado em relação a si
mesmo? Esse aborto que se colocou no umbral dos novos
tempos, desejava também o retomo à natureza; porém, devemos
repeti-lo, aonde queria chegar? Odeio ainda Rousseau na
revolução, que foi a expressão histórica desse ser de duas caras,
idealista e canaille. A sangrenta farsa que se representou então,
a imoralidade da revolução, me é indiferente. O que abomino e
sua moralidade a Rousseau, as supostas verdades da revolução,
mediante as quais ainda exerce influência e sedução em tudo
que é vulgar e medíocre. A doutrina da igualdade!... Não há
veneno mais venenoso, pois parece pregado pela própria
justiça, quando é a ruína de toda justiça.
"Para os iguais, igualdade; para os desiguais, desigualdade",
tal deveria ser a linguagem de toda justiça, de onde se deduziria
necessariamente o não igualar jamais o desigual. Em torno
dessa doutrina da igualdade se desenvolveram tantas cenas
horríveis e sangrentas, que lhe ficou, a essa idéia moderna por
excelência, uma espécie de glória e de auréola, até o ponto em
que o espetáculo da revolução extraviou até os espíritos mais
distintos. ' Porém isso não é razão para conceder-lhe maior
estima. Só conheço uma que provou isso da maneira que deve
ser provado — com asco: Goethe...
49
Goethe. — Acontecimento, não alemão, mas europeu,
tentativa grandiosa de vencer o século XVIII por meio de um
retorno ao estado de natureza, por meio dum esforço para
elevar-se ao Renascimento, por virtude duma espécie de
93
constrangimento exercido sobre si mesmo por nosso século,
Goethe portava em si os mais enérgicos instintos: o
sentimentalismo, a idolatria pela natureza. o anti-historicismo,
o idealismo, o quimérico e a tendência revolucionária (este
aspecto revolucionário é apenas uma forma de anti-realismo).
Recorreu à História, às ciências naturais e a Spinoza, entretanto
em primeiro lugar à atividade prática, cercou-se de horizontes
bem definidos: longe de afastar-se da vida, submergiu-se nela.
não foi pusilânime e aceitou todas as responsabilidades
possíveis. O que desejava era a totalidade, combateu a
separação entre a razão e a sensualidade, entre o sentimento e a
vontade (predicada, na mais repulsiva das escolásticas, por
Kant, o antípoda de Goethe); disciplinou-se para chegar a ser
integral; fez-se a si mesmo.
Goethe, numa época de sentimentos fantásticos, irreais, era
um realista convicto: inclinava-se para tudo aquilo que nesse
ponto tinha algum parentesco com ele, e o maior acontecimento
de sua vida foi aquele ens realissimum chamado Napoleão.
Goethe concebia um homem forte, muito culto, hábil em todos
os exercícios da vida física, muito senhor de si, dotado do
respeito de sua própria individualidade e capaz de aventurar-se
a gozar plenamente o natural em toda sua riqueza e toda sua
extensão; bastante forte para a liberdade; homem tolerante, não
por debilidade, mas por sua própria força, porque soubera obter
vantagens do que seria a ruína dos homens medianos; homem
para o qual nada era proibido, salvo a fraqueza, chame-se isso
vício ou virtude... Um espírito emancipado semelhante aparece
no centro do Universo, com um fatalismo feliz e confiante, com
a convicção de que não há nada condenável além daquilo que
existe isoladamente e que, no conjunto, tudo se resolve e se
afirma. Não nega. Essa fé é a mais elevada de todas as fés
possíveis. Eu a batizei com o nome de Dionísio.
94
50
Pode-se dizer que, em certo sentido, o século XIX se esforçou
para caminhar em direção de tudo aquilo que Goethe tentou
alcançar pessoalmente: uma universalidade que compreende e
admite tudo, uma tendência a dar acesso a todos, um ousado
realismo, um respeito ao fato. Como explicar que o resultado
total não tenha sido um Goethe. mas um caos, um suspiro
níilista, uma confusão que faz com que se perca a cabeça, um
instinto de esgotamento que impele continuamente na prática
ao retorno do século XVIII? (por exemplo, sob a forma de
sentimento romântico, de altruísmo, de hipersentimentalismo,
de feminismo no gosto. de socialismo na política).
O século XIX não será, ao terminar, senão um século XVIII
aumentado e retificado, isto é, um século de decadência; de
modo que Goethe, não só para a Alemanha, mas para toda a
Europa, terá sido tão-somente um incidente, uma bela
inutilidade? Porém seria desconhecer os grandes homens
considerá-los segundo a perspectiva miserável da utilidade
pública. Não poder extrair disso proveito algum é talvez
propriedade da grandeza.
51
Goethe é o último alemão que me inspira respeito; teria
sentido três coisas como eu as sinto: entendemo-nos no que se
refere à Cruz. Perguntam-me muitas vezes por que escrevo em
alemão quando em nenhum outro lugar sou tão mal lido como
na minha pátria. Entretanto quem sabe se desejo ser lido
hodiernamente? Criar coisas sobre as quais o tempo lança seus
dentes em vão; tender pela forma e pela substância a uma
pequena imortalidade... jamais fui bastante modesto para exigir
menos de mim mesmo. O aforismo, a sentença na qual tenho
sido o mestre entre os alemães, consiste em aspirar às formas
95
da eternidade. Orgulho-me pelo fato de dizer em dez frases o
que qualquer outro não diz nem em um volume.
Ofereci à humanidade o livro mais profundo que ela possui,
Zaratustra, e dentro em pouco lhe oferecerei o livro mais
independente.
96
O QUE DEVO AOS ANTIGOS
1
Para findar, mais uma palavra acerca desse mundo antigo,
para o qual busquei caminhos e para o qual talvez tenha
encontrado um novo caminho. Meu gosto, que é quiçá contrário
ao gosto tolerante, está assim mesmo muito longe de aprovar
em bloco. Em geral não gosto de aprovar; prefiro contradizer e
até negar. Isto com respeito a civilizações inteiras, com respeito
a certos livros e não menos verdade em relação a cidades e
paisagens. Realmente não influíram na minha vida em
reduzidíssimo número de livros antigos, não precisamente os
mais célebres. Meu gosto pelo estilo despertou quase
espontaneamente quando me pus em contato com Salustio. Não
me esquecerei do assombro de meu venerado professor, o
senhor Corssen, ao ver-se obrigado a dar a melhor nota ao pior
aluno de latim de sua classe; aprendi tudo dum só fôlego.
Cerrado, severo, com muita substância no fundo, com uma fria
malevolência para com a frase bela e os belos sentimentos,
Salustio fez com que nessas qualidades suas eu adivinhasse a
mim mesmo. Até em meu Zaratustra pode-se perceber a
ambição de se atingir o estilo romano, o acre perennius no
estilo.
Algo semelhante me aconteceu relativamente a Horácio. Até
agora nenhum poeta me proporcionou um encanto artístico
comparável ao que experimentei ao ler suas obras. Em certos
idiomas, nem sequer é possível aspirar ao que vemos realizado
ali. Esse mosaico de palavras em cada vocábulo, tanto por seu
timbre especial como por seu lugar na frase e pela idéia que
expressa, tem um valor substantivo; esse minimum na soma e o
número dos signos e esse maximum na energia dos signos, tudo
isso é romano e aristocrático por excelência. Qualquer outra
poesia torna-se coisa popular ao lado disso, mera charlatanice
de sentimentos.
97
2
Aos gregos não devo absolutamente nada. Dos gregos não se
aprende; seu gênero é estranho demais e demasiado móvel para
produzir um efeito imperativo, "clássico". Quem teria
aprendido a escrever com um grego? Quem teria podido
aprender sem os romanos? Que não se pretenda contestar-me
com Platão. Em relação a Platão sou profundamente cético e
nunca partilhei da admiração pelo artista Platão, tradicional
entre os sábios. Os juizes mais refinados do gosto entre os
antigos estão do meu lado. Platão mistura todas as formas do
estilo, pelo que é o primeiro decadente do estilo; apresenta
faltas semelhantes às dos cínicos que inventaram a Sátira
Menipéia. Para encontrar encanto num diálogo de Platão, forma
dialética horrivelmente satisfeita de si e infantil, é preciso não
ter lido nunca os bons escritores franceses, um Fontenelle, por
exemplo. Platão é tedioso.
Minha desconfiança em relação a Platão robustece-se cada
vez mais. Parece-me que ele se desviou de todos os instintos
fundamentais dos gregos; encontro-o tão impregnado de moral,
tão cristão antes do cristianismo já apresentou a idéia do bem
como idéia superior que me sinto tentado a empregar, antes de
qualquer outro qualificativo que abranja todo o fenômeno o
seguinte epíteto: Platão, ou a mais elevada farsa, ou melhor
ainda: Platão, ou o idealismo. Custou-nos caro o fato desse
ateniense ter ido à escola do Egito (talvez entre os judeus do
Egito). Na grande fatalidade do cristianismo, Platão representa
essa fascinação do duplo sentido chamada ideal, que enganou
os tipos elevados da antigüidade e os fez atravessar a ponte que
conduz à cruz. Quantos vestígios de Platão existem na
formação, no sistema e nas práticas da Igreja! Meu descanso,
minha preferência, foi sempre Tucídides. Tucídides e talvez O
Príncipe de Maquiavel estão estreitamente ligados a mim por
sua vontade incondicional de não enganarem a si mesmos, e ver
a razão na realidade e não na razão, e muito menos na moral.
98
Não há nada que cure tão radicalmente como Tucídides o
deplorável embelezamento que com cor de ideal que o jovem
de "educação clássica" carrega na vida como recompensa de
sua aplicação no instituto. É necessário lê-lo linha por linha e
também as entrelinhas. A cultura dos solistas, isto é, a cultura
dos realistas, alcança nele a expressão mais acabada e
representa um movimento inapreciável em meio à charlatanice
moral e ideal da escola socrática, que se desencadeou então por
todas as partes. A filosofia grega é a decadência do instinto
grego. Tucídides é a grande soma, a última revelação desse
espírito das realidades, forte, severo e duro que os antigos
helenos possuíam em seu instinto. A coragem diante da
realidade é o que distingue Tucídides de Platão. Platão é
covarde diante da realidade e por isso se refugia no ideal;
Tucídides é senhor de si e portanto senhor das coisas.
3
Vislumbrar nos gregos almas belas; admirar, por exemplo, sua
serenidade na grandeza, seu sentimento ideal, constitui uma
grande tolice alemã, da qual fui preservado pelo psicólogo que
há dentro de mim. Percebi seu instinto mais violento, a vontade
de potência, eu os vi tremer diante da força desenfreada desse
impulso, vi nascerem todas suas instituições de medidas de
precaução para se assegurar reciprocamente contra as matérias
explosivas que levavam em si. Sua enorme tensão interior
descarregava em ódios terríveis e implacáveis para fora. Suas
cidades se destroçavam umas às outras para que os cidadãos
conseguissem individualmente o descanso entre si. Era
necessário ser, forte; o perigo estava sempre próximo e
espreitava continuamente. Os corpos soberbos e ágeis, o
realismo e o imoralismo intrépidos que caracterizavam os
gregos eram fruto da necessidade, não de sua natureza. Eram
uma conseqüência e não qualidades originárias. As artes
serviam apenas para provocar um sentimento de superioridade;
99
eram meios de glorificação de si mesmo e até meios de
intimidação. julgar os gregos à moda alemã, segundo seus
filósofos, valer-se da tosca honradez da escola socrática para
chegar à explicação do caráter dos gregos! ... Como se os
filósofos não tivessem sido os decadentes do helenismo, o
movimento de oposição contra os antigos gostos aristocráticos!
(contra o instinto agonal, contra a polis, contra o valor da raça,
contra a autoridade da tradição). As virtudes sócráticas foram
pregadas porque os gregos as haviam perdido: iracundos,
medrosos, inconstantes, cômicos, tinham razões de sobra para
se deixarem pregar a moral. Não por. que esta servisse para
algo, mas porque as grandes frases e as atitudes finas ficam
muito bem nos decadentes.
4
Fui o primeiro que pela compreensão desse antigo instinto
grego, rico e até exuberante, tomei a sério aquele maravilhoso
fenômeno que leva o nome de Dionísio, e que só é explicável
por um excedente de força. Todo aquele que tenha estudado os
gregos, como Jacob Burckhardt, de Basiléia, que é quem mais
profundamente conhece essa civilização, percebe logo a
importância que isso tinha. Burckhardt intercalou em sua
Civilização dos gregos um capitulo especial acerca do tal
fenômeno. Para darmos conta do contrário, observemos a
pobreza de instinto dum filólogo alemão quando se aproxima
da idéia dionisíaca. O famoso Lobeck, sobretudo, com a
segurança dum bicho que se remexe entre os livros, se arrastou
na direção d esse mundo de estados misteriosos para se
convencer que era científico, quando na realidade era
superficial e infantil até o ponto em que se causa aversão.
Lobeck deu a entender, com grande esforço de erudição, que
todas essas curiosidades tinham pouca importância. É possível,
com efeito, que os sacerdotes comunicassem aos que
participavam dessas orgias alguns pensamentos que não
100
carecem de valor; por exemplo, que o vinho incita à alegria,
que o homem pode sustentar-se com frutos por algum tempo,
que as plantas florescem na primavera e perdem suas folhas no
outono. Diante daquela estranha abundância de ritos, de
símbolos, de mitos de origem orgíaca que pululam no mundo
antigo, Lobeck encontrou um pretexto para mostrar-se ainda
mais engenhoso. "Os gregos — diz (Aglaophamus, I, 672) —
quando não tinham outra coisa que fazer punham-se a saltar, rir
o correr, ou então se lançavam ao chão a chorar e lamentar-se,
coisa de que também o homem pode gostar. Outros se
aproximavam então deles em busca da explicação daquelas
ações surpreendentes e assim se formaram, para explicar tais
costumes, inúmeras lendas, festas e mitos. Por outro lado,
acreditava-se que essas ações burlescas fossem necessárias nas
festas e foram conservadas como uma parte indispensável do
culto. "Eis um palavrório desprezível que nos autoriza a não
levar a sério Lobeck. Ao examinar a "idéia grega" que
Winckelmann e Goethe formaram, temos que reconhecer sua
incompatibilidade com aquele elemento donde nasce a arte
dionisíaca — com a orgia. Tenho certeza que Goethe,
realmente, teria excluído, em razão de princípios, uma idéia
semelhante das possibilidades da alma grega. Por conseguinte,
Goethe não compreendia os gregos, pois é ai onde se expressa
a realidade fundamental do instinto helênico, sua vontade de
viver. Que era que o grego buscava por meio desses mistérios?
A vida eterna, o eterno retorno à vida, o porvir prometido e
santificado no passado, a afirmação triunfante da vida
vencedora da morte; a v ' ida verdadeira como prolongamento
coletivo, por meio da procriação, mediante os mistérios da
sexualidade. Por isso o símbolo sexual era para os gregos o
signo venerável por excelência, o verdadeiro sentido profundo
de todo o orgulho antigo. As particularidades do ato da geração,
da gravidez, do nascimento, despertam neles pensamentos
elevados e solenes. Na ciência dos mistérios a dor é santificada;
o esforço de partejar tornava a dor sagrada. tudo o que é devir e
101
crescimento, tudo o que assegura o porvir, requer dor. Para que
exista a alegria eterna da criação, para que a vontade de viver se
afirme eternamente por si mesma, é necessário também que
existam as dores do parto. A palavra Dionísio significa tudo
isso. Não conheço simbolismo mais elevado que esse
simbolismo grego das festas dionisíacas. O mais profundo
instinto da vida, o da vida futura, se traduz ali duma maneira
religiosa; a procriação é o caminho sagrado da vida. O
cristianismo, ao investir contra a vida, foi o que fez da
sexualidade algo impuro, lançando lama à sua origem e sua
condição primeira.
5
A psicologia da orgia como sentimento de vida e força
trasbordante, dentro dos limites do que até a dor opera como
estimulante, deu-se a chave da idéia do sentimento trágico, que
nem Aristóteles nem nossos pessimistas lograram compreender.
Tão longe está a tragédia de demonstrar algo a favor dos
pessimistas gregos, no sentido de Schopenhauer, que poderia
ser considerada como sua refutação definitiva. A afirmação da
vida até em seus problemas mais árduos e duros; a vontade de
viver, regozijando-se no sacrifício de nossos tipos mais
elevados, é o que eu chamei de dionisíaco, e nisso acreditei
encontrar o fio condutor que nos conduz à psicologia do poeta
trágico. O fim da tragédia não é desembaraçar-se do medo e da
piedade, nem purificar-se duma paixão perigosa, mediante sua
descarga impetuosa — como o entendeu Aristóteles — mas
realizar-se em si mesmo, acima do medo e da piedade, é a
eterna alegria que leva em si o júbilo do aniquilamento... E
neste ponto volto ao meu ponto de partida. A origem da
tragédia foi minha primeira transmutação de todos os valores;
para aquela senda retorno eu, o último discípulo do filósofo
Dionísio; eu, o mestre do eterno retorno, me coloco no terreno
onde cresceu meu querer e cresceu meu saber.
102
O MARTELO FALA
— Por que és tão duro? — perguntou um dia ao diamante o
carvão caseiro -; não somos parentes próximos?
— Por que sois tão moles? Ó meus irmãos, assim vos
pergunto eu: pois não sois vós... meus irmãos?
— Por que tão moles, tão fáceis de abrandar? Por que em
vossos corações tanta renúncia, tanta abnegação? ... e tão pouco
destino em vossos olhares?
— E se não quereis ser destinos, se não sereis inexoráveis,
como poderão sobrepujar comigo?
E se vossa dureza não brilhar e cortar e produzir incisões:
como poderão um dia criar comigo?
— Pois todos os criadores são duros. E devia vos parecer
ventura colocar vossas mãos sobre milênios como sobre cera
branda.
Ventura escrever sobre a vontade de milênios como sobre
metal — mais duro que metal, mais nobre que metal. Somente o
mais nobre é perfeitamente duro.
Ó, meus irmãos! Apresento a vós esta nova tábua: Tornai-vos
duros!1
1 De Assim Falava Zaratustra, Parte III, “Das Antigas e das Novas Tábuas”,
29, com ligeiras variantes. Tal obra foi publicada pela HEMUS (nota dos
tradutores).
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