quarta-feira, 20 de março de 2013

Ecce home


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ECCE HOMO
Friedrich Nietzsche
Tradutor:
Artur Morão

FICHA TÉCNICA
Título: ECCE HOMO. Como se chega a ser o que se é
Autor: Friedrich Nietzsche
Tradutor: Artur Morão
Colecção: Textos Clássicos de Filosofia
Direcção da Colecção: José Rosa & Artur Morão
Design da Capa: António Rodrigues Tomé
Composição & Paginação: José M. S. Rosa
Universidade da Beira Interior
Covilhã, 2008

Apresentação
Não deixa de ser curiosa e surpreendente a imagem que Nietzsche nos
oferece de si mesmo neste escrito agreste e, por vezes, de tom alucinatório;
ou a maneira como interpreta alguns rasgos do seu pensamento e
da tarefa que aqui empreendeu.
Fala-nos, por exemplo, do seu ódio ao idealismo, do seu ateísmo
instintivo, quase visceral, portanto não apenas teoricamente postulatório,
da sua indiferença total à experiência religiosa1 (será essa uma das
razões por que foi de todo insensível à mística cristã, na sua avaliação
exclusivamente «moral» do cristianismo?). Vê-se sobretudo como
psicólogo, com um faro infalível e umas antenas psicológicas para a
múltipla imundície oculta no fundo das almas. Tenta, por isso, delinear
a psicologia do cristianismo – negação da vontade viver – cujo nascimento
deriva, aos seus olhos, do ressentimento e que investe sobretudo
no antagonismo mortal à vida; e também a psicologia do “sacerdote”,
do qual denuncia o instinto de negação e de perversão sob os seus
mais santos conceitos de valor. De facto, Nietzsche exalta repetidamente,
sem temer a monotonia, a sua mestria em descobrir instintos de
decadência, em inverter perspectivas, a sua psicologia da «visão dos
recantos» e, citando Ovídio, a sua “apetência pelo negativo” (“nitimur
in vetitum”).
Segundo ele próprio afirma, não pretende (como os sacerdotes)
«melhorar» a humanidade, mas tão-só desmascarar os esconderijos e
o subterrâneo do ideal, subverter o ideal ascético e os seus danos, derrubar
ídolos, lutar contra o mundo fictício, narrar a história oculta dos
filósofos (dos quais muitos são “sacerdotes disfarçados”!), investigar as
1 Seria, no entanto, interessante comparar esta auto-apreciação do Nietzsche
adulto com os testemunhos «religiosos» da sua infância e juventude, como se podem
ver no excelente estudo biográfico de Curt Paul Ianz, Friedrich Nietzsche. Biographie,
I Band: 1 Kindheit und Jugend, Munique, Carl Hanser Verlag 1978. Há
tradução espanhola, na Alianza Editorial de Madrid, 1981 ss.
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causas por mor das quais, até agora, se moralizou e idealizou e o facto
de a humanidade viver mais de imaginações, de mentiras próprias de
naturezas doentes, do que de realidades.
Por conseguinte, a pars destruens da sua obra não poupa ninguém:
antes de mais, a moral cristã («a Circe de todos os pensadores»), que
aos seus olhos representa a expressão suprema da decadência, da vontade
de mentira, e o sintoma de fraqueza, incompatível com uma vida
ascendente e afirmativa; em seguida, a cultura alemã, intrinsecamente
«idealista» nas suas manifestações e nos seus pressupostos (daí, nos
termos cruéis do filósofo, a «indigestão» do espírito alemão!); e, por
fim, a modernidade, com o que ela implica de instinto da negação e da
perversão, quer ao nível da política, da moral, da religião, quer até no
campo da ciência.
Nietzsche considera-se ainda como o primeiro filósofo trágico (o
contrário de um filósofo pessimista) – que descobriu o elemento dionisíaco,
cuja realização consiste em dizer sim à vida, mesmo nos seus
mais estranhos e mais duros problemas, no eterno prazer do devir, na
afirmação do desvanecimento e da aniquilação, na renúncia ao conceito
de ser. Se “o erro é cobardia”, e não cegueira ou ignorância (ainda aqui,
o anti-socrático!), só o homem que capta a realidade como ela é (com o
que nela há de temível e de problemático) pode ter verdadeira grandeza.
Não admira, pois, que Nietzsche, analista do “ressentimento”, essencialmente
«genealogista» na sua crítica dos valores, por ele indagados
na sua origem, estruturalmente pedagogo no seu propósito (e, aqui,
há alguma afinidade com Sócrates, como ele algures reconhece), aconselhe
então a evitar as simples atitudes reactivas, a posição defensiva
incessante, o não predominante e excessivo, porque tal atitude exige
um dispêndio inútil de energia; se luta contra as meras imaginações
(«Deus», «alma», etc.), é porque elas levaram ao desprezo das coisas
«pequenas», isto é, das preocupações fundamentais da vida. Este cuidado
inspira-lhe assim alguns conselhos dietéticos (água e não álcool;
chá em vez de café), torna-o atento à relação profunda entre metabolismo
e «espírito», à influência do clima, e assim por diante. E também
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não se coíbe de, uma ou outra vez, emitir expressões de misoginia, de
desprezo pela democracia, ou de enunciar um certo determinismo geográfico
ou, ainda, de abrir o caminho a uma espécie de religião da
arte.
Mas, claro, por detrás destas intenções sérias e, de vez em quando,
algo estranhas, desenha-se com um empenhamento impressionante o
fito central de Nietzsche: a transmutação de todos os valores, o horizonte
do ultra- ou super-homem, como superação de toda a negatividade
que tem marcado a história dos homens e, em particular, a do
Ocidente.
* * *
A tradução fez-se a partir do texto da Kritische Gesamtausgabe,
preparada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, e publicada pela
Walter de Gruyter, Berlim 1967.
Artur Morão
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ECCE HOMO
Ou como se chega a ser o que se é
Friedrich Nietzsche
Índice
Prefácio 7
Porque sou tão sábio 12
Porque sou tão sagaz 25
Porque escrevo tão bons livros 43
O Nascimento da Tragégia 52
As Considerações Intempestivas 58
Humano, Demasiado Humano 63
Aurora 69
A Gaia CiÊncia 72
Assim Falou Zaratustra 74
Para Além do Bem e do Mal 88
Genealogia da Moral 90
Crepúsculo dos Ídolos 92
O Caso Wagner 95
Porque sou um destino 102
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Ecce Homo 7
PREFÁCIO
1
Na previsão de que em breve terei de surgir perante a humanidade com
a mais difícil exigência que se lhe fez, parece-me indispensável dizer
quem eu sou. No fundo, todos o deviam saber: não deixei, com efeito,
de dar testemunho de mim. Mas a incongruência entre a grandeza
da minha tarefa e a pequenez dos meus contemporâneos expressouse
no facto de que não me ouviram, nem também me viram. Vivo do
meu próprio crédito, ou será talvez apenas um preconceito supor que
vivo?... Basta-me dirigir a palavra a qualquer pessoa «culta» que venha
no Verão à Alta Engadine para me convencer de que não vivo... Nestas
circunstâncias, há um dever contra o qual, no fundo, se revoltam
os meus hábitos, e mais ainda o orgulho dos meus instintos, isto é, o
dever de clamar: Escutai-me! Pois, sou esteassim.Sobretudo, não me
confundam com outro!
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Não sou, por exemplo, um espantalho, um monstro moral – sou
antes uma natureza contrária à espécie de homens que, até agora, se
veneraram como virtuosos. Aqui só para nós, parece-me que isto se
ajusta precisamente ao meu orgulho. Sou um discípulo do filósofo Dioniso,
prefiro ser um sátiro a ser um santo. Leia-se, porém, apenas
este escrito. Coube-me talvez, e porventura este escrito não terá outro
sentido, expressar este contraste de um modo sereno e humanitário. A
última coisa que eu prometeria seria «melhorar» a humanidade. Não
serão por mim erigidos novos ídolos; os antigos podem elucidar-nos
sobre o que assenta em pés de barro! Derrubar ídolos (a minha palavra
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8 Friedrich Nietzsche
para «ideais») – eis o que já constitui o meu ofício. Subtraiu-se à realidade
o seu valor, o seu sentido, a sua veracidade, na medida em que se
inventou um mundo ideal... O «mundo verdadeiro» e o «mundo aparente
» – em vernáculo: o mundo fictício e a realidade... A mentira do
ideal foi, até agora, o anátema sobre a realidade, a própria humanidade
foi por ela falsificada e viciada até aos seus mais profundos instintos
– até à adoração dos valores contrários àqueles com que lhe estaria
garantida a prosperidade, o futuro, o sublime direito ao futuro.
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– Quem sabe respirar o ar dos meus escritos sabe que é um ar das
alturas, uma atmosfera forte. É preciso estar preparado para as alturas,
de outro modo o perigo de aí enregelar não é pequeno. Próximo está o
gelo, atroz é a solidão – mas como todas as coisas repousam tranquilas
na luz! Como livremente se respira! Quantas coisas se sentem abaixo
de si! – A filosofia, como até aqui a entendi e vivi, é a vida voluntária no
meio do gelo e nas altas montanhas – a procura de tudo o que é estranho
e problemático na existência, de tudo o que até agora foi banido pela
moral. Graças à longa experiência que uma tal peregrinação no reino
do interdito me proporcionou, aprendi a examinar as causas, a partir das
quais até agora se moralizou e idealizou, de um modo muito diverso do
que era de desejar: a história oculta dos filósofos, a psicologia dos seus
grandes nomes, veio para mim à luz do dia. – Quanta é a verdade que
um espírito suporta, quanta é a verdade a que ele se aventura? – Eis o
que sempre foi para mim o genuíno critério dos valores. O erro (– a fé
no ideal –) não é cegueira, o erro é cobardia... Toda a realização, todo o
passo em frente no conhecimento resulta da coragem, da dureza contra
si mesmo, da integridade para consigo... Não refuto os ideais, calço
simplesmente luvas diante deles... Nitimur in vetitum [‘aspiramos ao
proibido’]: neste sinal há-de, um dia, a minha filosofia vencer, pois a
verdade foi, até agora, sempre fundamentalmente apenas proibida.
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Ecce Homo 9
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– Entre os meus escritos, o meu Zaratustra aguenta-se por si. Com
ele, fiz à humanidade a maior dádiva que até agora lhe foi feita. Este
livro, com uma voz que se eleva por cima dos milénios, não é apenas
o maior livro que existe, o genuíno livro da atmosfera das alturas – a
realidade integral do homem encontra-se abaixo dele a uma distância
imensa – é também o mais profundo, nascido da mais íntima riqueza
da verdade, o poço inesgotável a que nenhum alcatruz desce sem vir à
superfície cheio de ouro e de bondade. Aqui, não fala um «profeta»,
um daqueles híbridos horríveis de enfermidade e vontade de poder, que
se chamam fundadores de religiões. É preciso, antes de mais nada,
ouvir correctamente o som que sai desta boca, som alciónico, para não
ofender desditosamente o sentido da sua sabedoria. «As palavras mais
secretas é que suscitam a tempestade; os pensamentos que chegam com
passo de pomba dirigem o mundo».
Os figos caem das árvores, são bons e doces: e, ao caírem,
rasga-se-lhes a pele rosada. Sou o vento norte para os figos
maduros.
Assim, semelhantes a figos, caem entre vós, amigos meus,
estas doutrinas: bebei o seu sumo e tomai a sua doce polpa!
É outono em redor, puro é o céu e límpida a tarde.
Aqui, não fala um fanático, aqui não se «prega», aqui nenhuma
fé se exige: de uma infinita plenitude de luz e de uma profundidade
ditosa cai gota a gota, palavra a palavra – uma suave lentidão é o ritmo
destes discursos. Coisas assim acontecem apenas aos eleitos; é um
privilégio sem igual ser aqui ouvinte; ninguém dispõe, sem mais, de
ouvidos para Zaratustra. . . Não será, apesar de tudo, Zaratustra um
sedutor?... Que diz ele, todavia, quando pela primeira vez retorna à
sua solidão? Justamente o contrário do que num caso semelhante diria
qualquer «sábio», «santo», «salvador do mundo» e outro décadent...
Não só fala de outro modo, é também diferente...
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10 Friedrich Nietzsche
Agora vou sozinho, discípulos meus! Também agora vos
ides e sozinhos! Assim o quero.
Afastai-vos de mim e resisti a Zaratustra! Melhor ainda:
tende dele vergonha! Talvez vos tenha ludibriado.
O homem de conhecimento não deve apenas amar os seus
inimigos, deve também poder odiar os seus amigos.
Retribui mal a um mestre quem sempre permanece apenas
discípulo. E porque não ousais desfazer a minha grinalda?
Venerais-me: mas que acontecerá, se um dia a vossa veneração
esmorecer? Tende cuidado, não vos mate uma
estátua!
Dizeis que acreditais em Zaratustra? Mas que interessa
Zaratustra?! Sois meus crentes, mas que interessam todos
os crentes!?
Não vos tínheis ainda procurado: e eis que me encontrastes.
Assim fazem todos os crentes; por isso vale tão pouco
toda a fé.
Agora, intimo-vos a perder-me e a encontrar-vos; e só quando
todos me tiverdes renegado, é que retornarei para o
meio de vós...
Friedrich Nietzsche
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Ecce Homo 11
Indice
Neste dia perfeito, em que tudo amadurece e não apenas as uvas
se tornam douradas, um raio de sol cai justamente sobre a minha vida:
olhei para trás, olhei para a frente, e nunca vi ao mesmo tempo tantas
e tão boas coisas. Não foi em vão que, hoje, sepultei o meu quadragésimo
quarto ano, era-me permitido sepultá-lo – o que nele era vida está
salvo, é imortal. A Transmutação de todos os valores, os Ditirambos
de Dioniso e, para recriação, o Crepúsculo dos Ídolos – tudo prendas
deste ano, e até do seu último trimestre! Como não deveria estar reconhecido
por toda a minha vida? Eis porque a mim próprio narro a
minha vida.
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12 Friedrich Nietzsche
PORQUE SOU TÃO SÁBIO
1
A ventura da minha existência, porventura a sua singularidade, consiste
na sua fatalidade: estou, para me exprimir em forma de enigma, já
morto quanto a meu pai, mas, no tocante à minha mãe, vivo ainda e vou
ficando velho. Esta dupla herança, por assim dizer a partir do mais alto
e do mais baixo degrau na escada da vida, décadent e ao mesmo tempo
começo – isto, sim, se é que alguma coisa, explica a neutralidade, a
independência de partidismos em relação a todos os problemas da vida,
que quiçá me caracteriza. Para os indícios de ascensão e decadência
tenho um faro mais apurado do que alguma vez o teve outro homem,
sou a este respeito o mestre par excellence – sei ambas as coisas, sou
essas duas coisas.
Meu pai morreu aos trinta e seis anos; era terno, afável e mórbido,
como um ser predestinado à transiência – foi mais uma benéfica recordação
da vida do que a própria vida. No mesmo ano em que a sua força
vital declinou, também a minha começou a baixar: no meu trigésimo
sexto ano de vida, desci ao mais ínfimo ponto da minha vitalidade –
vivia ainda, sem dúvida, mas sem ver três passos à minha frente. Então
– era o ano de 1879 – renunciei ao cargo de professor em Basileia,
vivi durante o Verão como uma sombra em Saint-Moritz e, no Inverno
seguinte, o mais pobre de sol da minha vida, como uma sombra em
Naumburg. Foi o meu ponto mais baixo: apareceu então «O viandante
e a sua sombra». Eu era na altura entendido em sombras... No Inverno
seguinte, o meu primeiro Inverno em Génova, aquela doçura e
espiritualização, condicionada porventura por uma extrema pobreza de
sangue e de músculos, suscitou a «Aurora». A plena claridade e serenidade,
e até a exuberância do espírito, que a obra mencionada espelha,
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Ecce Homo 13
compaginam-se em mim não só com a mais profunda fraqueza fisiológica,
mas até com um excesso do sentimento de dor. No meio dos
martírios que consigo trouxe uma ininterrupta dor de cabeça, durante
três dias, com penosos vómitos, possuía uma clareza de dialéctico par
excellence e pensava friamente em coisas para as quais, em melhores
condições de saúde, não sou um alpinista suficientemente subtil e frio.
Sabem porventura os meus leitores até que ponto tenho a dialéctica por
sintoma de décadence: no caso de Sócrates. – Todas as perturbações
doentias do intelecto e até aquele semi-torpor que se segue à febre, são
coisas que até hoje me permaneceram totalmente estranhas, acerca de
cuja natureza e frequência só me informei através do estudo. O meu
sangue corre devagar. Jamais alguém em mim conseguiu constatar a
febre. Um médico, que durante muito tempo me tratou como doente
dos nervos, acabou por dizer: «Não! Não há nada nos seus nervos, eu
é que começo a ficar nervoso». Há, sem lugar para dúvidas, uma qualquer
degeneração local, mas indetectável; não é nenhuma doença de
estômago organicamente condicionada embora, como consequência do
esgotamento geral, se depare com a mais profunda fraqueza do sistema
gástrico. A própria doença dos olhos, que de vez em quando se aproxima
perigosamente da cegueira, é só efeito, e não causa: de modo que
quando aumenta a força vital também se intensifica de novo o poder
visual.
– Uma longa, demasiado longa série de anos significa em mim a
cura – mas, infelizmente, significa também ao mesmo tempo recaída,
ruína, periodicidade de uma espécie de décadence. Depois disto tudo,
precisarei talvez de dizer que sou perito em questões de décadence?
Soletrei-as para a frente e para trás. Até mesmo aquela arte de filigrana
da apreensão e da compreensão em geral, aquele tacto para as nuances,
aquela psicologia de «visão dos recantos» e tudo o que aliás me é
peculiar foi então aprendido, é esta a prenda verdadeira daquele tempo
em que tudo em mim se apurou, a observação e ainda todos os órgãos
da observação. Lançar um olhar desde a óptica do enfermo aos conceitos
e valores mais sãos e, de novo, inversamente desde a plenitude
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14 Friedrich Nietzsche
e da autocerteza da vida abundante ao trabalho secreto dos instintos de
décadence – eis o que foi o meu mais longo exercício, a minha genuína
experiência, e nisso tornei-me um mestre. Está agora em meu poder,
tenho mão para inverter perspectivas: primeira razão por que só a mim
será talvez possível em geral uma «transmutação dos valores».
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Deixando de lado o facto de ser um décadent, sou igualmente o seu
contrário. A minha prova disso é que, entre outras coisas, escolhi sempre
instintivamente os meios correctos nas piores condições; ao passo
que o décadent em si escolhe sempre os meios que lhe são nocivos.
Como summa summarum, eu era saudável; como mero ângulo, como
especialidade, era décadent. A energia para o absoluto isolamento e
a libertação das condições habituais, a coerção feita a mim mesmo de
não me deixar curar, tratar, medicar – tudo isso trai a incondicional certeza
instintiva sobre aquilo de que então eu mais necessitava. Peguei
em mim mesmo, restituí a mim próprio a saúde: a condição para tal –
todo o fisiologista o admitirá – é estar fundamentalmente são. Um ser
tipicamente doente não se pode tornar são, e menos ainda curar-se a
si mesmo; para quem é tipicamente saudável, estar doente pode, pelo
contrário, ser até um enérgico estímulo de vida, de mais vida. Assim
me surge agora efectivamente aquele longo período de enfermidade:
descobri, por assim dizer, de novo a vida, avaliei-me a mim próprio,
saboreei todas as coisas boas e até mesmo as coisas pequenas, como
não é fácil que os outros as possam saborear – da minha vontade de
saúde, de vida, fiz a minha filosofia... Atenda-se, pois, ao seguinte: os
anos da minha mais baixa vitalidade foram aqueles em que deixei de
ser pessimista; o instinto do auto-restabelecimento proibiu-me uma filosofia
da pobreza e do desânimo... E onde se reconhece, no fundo, a
boa constituição? No facto de um homem bem constituído ser agradável
aos nossos sentidos; em ser talhado de uma madeira que é, ao
mesmo tempo, dura, suave e olorosa.
Apetece-lhe apenas o que lhe é benéfico; o seu agrado, o seu prazer
cessa quando é ultrapassada a medida do suportável. Adivinha reméwww.
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Ecce Homo 15
dios contra o que causa danos, utiliza casos nocivos em sua própria vantagem;
o que não o mata torna-o mais forte. Compila instintivamente a
sua suma a partir de tudo o que vê, ouve, vive: é um princípio selectivo,
e deixa de lado muitas coisas. Está sempre na sua sociedade, lide ele
com livros, com homens ou com paisagens; honra ao escolher, ao admitir,
ao confiar. Reage lentamente a todo o estímulo, com aquela lentidão
que lhe ensinaram uma longa circunspecção e um orgulho deliberado
– perscruta o fascínio que dele se aproxima, mas está longe de lhe sair
ao encontro. Não crê nem na «infelicidade», nem na «culpa»: sente-se
realizado, consigo, com os outros, sabe esquecer – é suficientemente
forte para que tudo redunde em seu maior proveito. Muito bem, sou o
contrário de um décadent: pois descrevi-me justamente a mim mesmo.
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Considero um grande privilégio ter tido semelhante pai: os camponeses,
perante os quais ele pregava – de facto, depois de ter vivido alguns
anos em Altenburger Hofe, foi pregador nos últimos anos – diziam
que parecia um anjo. – E com isto afloro a questão da raça. Sou um
fidalgo polaco pur sang, e nele não se encontra também misturada uma
gota de mau sangue, pelo menos, alemão. Se buscar a mais profunda
oposição a mim, a vulgaridade incontável dos instintos, deparo sempre
com a minha mãe e com a minha irmã – crer-me aparentado com
semelhante canaille seria uma blasfémia contra a minha divindade. O
tratamento que, até este instante, recebo por parte da minha mãe e da
minha irmã infunde em mim um horror indizível: está aqui em acção
uma perfeita máquina infernal, com segurança infalível sobre o instante
em que com crueldade me podem ferir nos meus instantes mais altos,...
pois falta então toda a força para se defender entra o verme venenoso...
A contiguidade fisiológica possibilita uma tal disharmonia praestabilita...
Mas confesso que a mais profunda objecção contra o «eterno
retorno», o meu pensamento genuinamente mais abissal, são sempre
a mãe e a irmã. – Mas, enquanto polaco, sou também um atavismo
monstruoso. Haveria que recuar séculos para encontrar, na pureza dos
instintos, a mais nobre raça que existiu sobre a terra, na medida como
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16 Friedrich Nietzsche
eu a represento. Tenho frente a tudo o que hoje se chama noblesse um
soberano sentimento de distinção – não concederia ao jovem imperador
alemão a honra de ser meu cocheiro. Não há um único caso em que eu
reconheça alguém como igual a mim – confesso-o com profunda gratidão.
A senhora Cosima Wagner é, de longe, a mais nobre natureza;
e, para não proferir palavras a menos, digo que Richard Wagner, que
era, de longe, o homem com maior afinidade comigo... O resto é silêncio...
Todos os conceitos dominantes sobre graus de afinidade são um
contra-senso fisiológico, que não pode ser ultrapassado. O Papa ainda
hoje comercializa com semelhante contra-senso. É mínima a afinidade
com os seus pais: o mais extremo sinal de mesquinhez seria aparentarse
com os seus pais. As naturezas mais elevadas têm a sua origem
infinitamente lá para trás, para elas foi necessário, durante muitíssimo
tempo, coligir, poupar, acumular. Os grandes indivíduos são os mais
antigos: não compreendo, mas Júlio César poderia ser meu pai – ou
Alexandre, esse Dioniso personificado... No instante em que escrevo
isto, o correio traz-me uma cabeça de Dioniso...
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Nunca captei a arte de precatar alguém contra mim – eis o que igualmente
devo ao meu incomparável pai – mesmo quando isso me parecia
de grande valor. Nem sequer me preveni contra mim, por mais que isso
possa parecer pouco cristão. Pode em todos os sentidos revolver-se a
minha vida que não se descobrirá nela, a não ser muito raramente, nenhum
vestígio de que alguém tenha tido contra mim má vontade – mas
talvez se descortinem demasiados vestígios de boa vontade... As minhas
próprias experiências com aqueles a cujo lado todos têm experiências
más falam, sem excepção, a seu favor; domestico todos os ursos,
torno até modestos os arlequins. Durante os sete anos em que ensinei
grego na classe superior do Instituto de Basileia, nunca tive ocasião alguma
de infligir um castigo; os mais preguiçosos eram comigo diligentes.
Estive sempre à altura do acaso; devo estar muito mal preparado
para ser o meu próprio mestre. Seja qual for o instrumento, por mais
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Ecce Homo 17
desafinado que esteja, tal como só o instrumento «homem» pode estar
desafinado – conseguirei sempre, a não ser que esteja doente, extrair
dele algo que se pode ouvir. E quantas vezes ouvi os próprios «instrumentos
» dizer que nunca assim se tinham ouvido a si mesmos... Foi o
que se passou, do modo mais divertido, talvez com Heinrich von Stein,
irremediavelmente morto na juventude, o qual, após ter diligentemente
obtido licença, esteve três dias em Sils-Maria, declarando a toda a gente
que não viera por causa de Engadine. Este homem excelente, que com
toda a inocência impetuosa de um Junker prussiano, vadeava no pântano
wagneriano (e, além disso, também no de Dühring) foi, nestes três
dias, como que transformado por um furacão da liberdade, como alguém
que subitamente é elevado à sua altura e a quem nascem asas.
Dizia-lhe eu sempre que isso era ali fruto do bom ar, que o mesmo
acontecia a cada um, que não era em vão que se estava seis mil pés
acima de Bayreuth – mas ele não queria acreditar em mim... Se, apesar
de tudo, me fez algumas pequenas e grandes maldades, a causa não
era a «vontade», pelo menos a má vontade: eu teria antes – acabei justamente
de tal referir – de me queixar da boa vontade, que durante a
minha vida não me causou nenhum pequeno dano. As minhas experiências
conferem-me em geral o direito à desconfiança relativamente aos
chamados impulsos «desinteressados», ao «amor ao próximo» sempre
disposto ao conselho e à acção. Tal amor surge-me em si como fraqueza,
como caso particular da incapacidade de resistência aos estímulos
– a compaixão só entre os décadents se chama virtude. Reprovo
os compassivos porque facilmente perdem o pudor, o respeito, o tacto
perante as distâncias; porque a compaixão cheira, num abrir e fechar
de olhos, a populaça e parece confundir-se com as más maneiras – porque
as mãos misericordiosas podem, em determinadas circunstâncias,
ter uma acção destruidora num grande destino, numa solidão ferida,
num privilégio de pesada responsabilidade. A superação da piedade é
por mim incluída entre as virtudes nobres: imaginei, sob o nome de
«A tentação de Zaratustra», aquele caso em que um grande grito de
angústia lhe chega aos ouvidos, em que a compaixão o assalta como
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18 Friedrich Nietzsche
um último pecado, e o quer alienar de si mesmo. Tornar-se aqui senhor,
conservar aqui a sublimidade da sua tarefa pura de todos os impulsos
inferiores e mesquinhos, que actuam nas chamadas acções desinteressadas
– eis a prova, talvez a prova derradeira, que um Zaratustra deve
prestar – a verdadeira prova da sua força...
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Também ainda noutro ponto sou simplesmente o que o meu pai
foi e, por assim dizer, a sua sobrevivência, após uma morte prematura.
Como todo aquele que jamais viveu entre iguais e para o qual é
tão inadequado o conceito de «retaliação» como, por exemplo, o conceito
de direitos iguais», abstenho-me, nos casos em que contra mim se
cometeu uma loucura pequena ou muito grande, de toda a medida preventiva,
de toda a precaução – por conseguinte, também de toda a defesa
e de toda a «justificação». A minha espécie de retaliação consiste
em retribuir tão depressa quanto possível a uma palavra estúpida um
dito inteligente: talvez assim ela ainda se recupere. Para me expressar
com uma comparação: ofereço um boião de compota para me libertar
de uma ocorrência ácida: se alguém me faz uma maldade, «desforrome
», pode disso ficar certo: encontro sem demora uma oportunidade
para expressar o meu agradecimento ao «malfeitor» (por vezes, até pela
ofensa) – ou para lhe pedir algo, o que pode ser mais compulsivo do
que dar algo... Afigura-se-me também que a palavra mais grosseira, a
carta mais inconveniente são ainda mais benignas, ainda mais honradas
do que o silêncio. Aos que se calam falta quase sempre a delicadeza e
a cortesia do coração; o silêncio é uma objecção, a ingurgitação produz
necessariamente um mau carácter – arruína o estômago. Todos os que
se calam são dispépticos. – Não gosto, como se está a ver, que se minimize
a rudeza, ela é de longe a mais humana forma da contradição e, no
meio da pusilanimidade moderna, uma das nossas primeiras virtudes.
– Se alguém for para tal suficientemente rico, é até uma felicidade ser
injusto. Um deus que viesse à terra nada mais faria do que cometer
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injustiças – tomar sobre sí não o castigo, mas a falta, eis o que seria
verdadeiramente divino.
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A ausência de ressentimento, a clarividência sobre o ressentimento
– quem sabe se, em última análise, por elas devo também ser grato à
minha longa enfermidade? O problema não é simples: há que ter feito a
experiência a partir da força e também da fraqueza. Se algo em geral se
deve objectar contra a doença, contra a fraqueza, é que nela o genuíno
instinto da cura, isto é, o instinto de defesa e de combate, se enfraquece
no homem. Não sabemos desembaraçar-nos de nada, não sabemos acabar
seja com o que for, nada sabemos repelir – tudo nos fere. O homem
e a coisa aproximam-se de modo obstrutivo, as vivências afectam-nos
com demasiada profundidade, a recordação é uma ferida purulenta. Estar
doente é também uma espécie de ressentimento. – Contra isto o
doente tem apenas um grande remédio – dou-lhe o nome de fatalismo
russo, aquele fatalismo sem revolta, com que um soldado russo, para o
qual é demasiado dura a campanha, se deita por fim na neve. Nada mais
tomar em geral, não absorver em si seja o que for – não mais reagir...
A grande razão deste fatalismo, que nem sempre é apenas a coragem
para a morte, conservador da vida nas circunstâncias para ela mais perigosas,
é a redução do metabolismo, o seu retardamento, uma espécie
de vontade de hibernação. Alguns passos mais nesta lógica e tem-se o
faquir, que dorme durante semanas num esquife... Porque o homem se
esgotaria demasiado depressa, se em geral reagisse, então não reage:
eis a lógica. E com nada mais ele se consome a não ser com os afectos
do ressentimento. O despeito, a susceptibilidade mórbida, a impotência
para a retaliação, a inveja, a sede de vingança, o que há de venenoso em
cada sentido – eis decerto, para o esgotado, o modo mais desvantajoso
de reagir: condiciona-se assim um rápido desgaste de energia nervosa,
uma intensificação doentia de secreções nocivas, por exemplo, a bílis
no estômago. O ressentimento é em si o que está proibido aos doentes
– o seu mal: infelizmente, é também a sua tendência mais natural. –
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Isso foi o que entendeu muito bem aquele profundo fisiólogo, Buda.
A sua «religião», que antes se deveria denominar higiene, para não a
confundir com coisas tão lastimosas como o cristianismo, fez depender
a sua eficácia da vitória sobre o ressentimento: libertar dele a alma –
eis o primeiro passo para a cura. «Não é pela inimizade que se chega
ao fim da inimizade, é pela amizade que se põe fim à inimizade...: eis o
começo da doutrina de Buda – aqui não fala a moral, mas a fisiologia. –
O ressentimento, nascido da fraqueza, a ninguém é mais nocivo do que
ao próprio fraco – noutros casos, onde o pressuposto é uma natureza
rica, um sentimento excessivo, um sentimento de que assenhorear-se é
quase a prova da riqueza. Quem conhece a seriedade com que a minha
filosofia empreendeu a luta contra os sentimentos de vingança e de
simpatia até à doutrina da «vontade livre» – a luta com o cristianismo
constituí apenas um seu caso particular – compreenderá porque é que
aqui trago à plena luz a minha conduta pessoal, a minha segurança do
instinto na prática. Nos momentos da décadence, interditava-os a mim
como nocivos; logo que a vida se tornava de novo rica e assaz altiva,
opunha-me a eles como abaixo de mim. Aquele «fatalismo russo», de
que falei, emergiu em mim porque me ative tenazmente, ao longo dos
anos, a situações, lugares, habitações, companhias quase insuportáveis,
após me terem sido dadas por acaso – era melhor do que modificá-las,
do que sentir que se poderiam modificar – do que contra elas se rebelar.
Considerava então como mortalmente mau o que em semelhante fatalismo
me perturbava e dele à força me despertava: - na verdade, isso
era de cada vez mortalmente perigoso. – Considerar-se a si mesmo
como um não querer ser «outro» – tal é em semelhantes circunstâncias
a própria grande razão.
7
Outra coisa é a guerra. Por índole, sou guerreiro. Atacar faz parte
dos meus instintos. Poder ser inimigo, ser inimigo pressupõe talvez
uma natureza forte; de qualquer modo, é condicionado em toda a natureza
forte. Esta precisa de resistências, portanto busca a resistência:
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o pathos agressivo pertence tão necessariamente à força como o sentimento
de vingança e a simpatia à fraqueza. A mulher, por exemplo, é
vingativa: isso está implícito na sua fraqueza, tal como a sua sensibilidade
perante a miséria alheia. – A força do agressor tem na oposição,
de que ele precisa, uma espécie de medida; toda a expansão se revela
na busca de um adversário – ou problema – poderoso: de facto, um
filósofo belicoso provoca também problemas para o duelo. A tarefa
não consiste em dominar as resistências, mas em superar aquelas a que
se deve aplicar toda a sua força, versatilidade e mestria nas armas –
consiste em dominar adversários iguais... Igualdade perante o inimigo
– eis o primeiro pressuposto para um duelo leal. Onde há desprezo,
não pode travar-se uma guerra; onde se decreta, onde algo se divisa
abaixo de si, não deve travar-se uma guerra. – A minha prática da
guerra enuncia-se em quatro proposições. Primeiro: Só ataco causas
que são vitoriosas - em determinadas circunstâncias, espero até que
elas sejam vitoriosas. Segundo: Só ataco causas em que não encontrarei
qualquer aliado, onde me encontro sozinho – onde apenas a mim
me comprometo... Nunca dei publicamente um passo que não me comprometesse:
eis o meu critério da acção justa. Terceiro: Nunca ataco
pessoas – sirvo-me da pessoa só como de um forte vidro de aumento,
com o qual se pode tornar visível uma calamidade geral, mas furtiva e
pouco apreensível. Por isso, ataquei David Strauss, mais exactamente,
o sucesso de um livro velho e decrépito na «cultura alemã» – apanhei
esta cultura em flagrante delito de... Também por isso ataquei Wagner,
mais exactamente, a falsidade, a frouxidão do instinto própria da nossa
«cultura», que confunde a subtileza com a riqueza, os epígonos com
os grandes. Quarto: Só ataco coisas em que está excluída toda a diferença
de pessoas, onde falta todo o fundo de más experiências. Pelo
contrário, atacar é em mim uma prova de benevolência e, em certas
circunstâncias, de gratidão. Honro, distingo uma coisa, uma pessoa,
em virtude de a ela associar o meu nome: pró ou contra tem, para
mim, o mesmo valor. Se movo a guerra ao cristianismo, tenho direito
a isso, porque nunca experimentei, por parte dele, quaisquer fatalidawww.
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22 Friedrich Nietzsche
des e impedimentos – os cristãos mais sérios foram sempre, para mim,
amistosos. Eu próprio, um adversário do cristianismo de rigueur, estou
longe de associar a um indivíduo o que é uma catástrofe de milénios.
8
Ousarei ainda indicar um último traço da minha natureza que me
suscita, no trato com os homens, não pequenas dificuldades? É-me de
tal modo peculiar uma sensibilidade perfeitamente estranha do instinto
de limpeza que percepciono fisiologicamente – farejo – a proximidade
ou – que digo eu? – o mais íntimo, as “vísceras” de cada alma. . . Tenho
nesta sensibilidade antenas psicológicas, com que tacteio e agarro
todo o mistério: a múltipla imundície escondida no fundo de muitas
naturezas, condicionada talvez pelo mau sangue, mas envernizada pela
educação, torna-se-me já consciente quase ao primeiro contacto. Se
bem observei, tais naturezas, insuportáveis à minha limpeza, pressentem
também, por seu lado, a minha náusea: mas nem por isso se tornam
mais perfumadas... Tal como sempre me habituei – uma extrema
pureza para comigo é um pressuposto da existência, morro em condições
impuras –, nado, banho-me e chapinho, por assim dizer, constantemente
na água, num elemento de todo transparente e brilhante.
Isto faz do meu comércio com os homens uma não pequena prova de
paciência; a minha humanidade não consiste em simpatizar com o homem,
mas em suportar com ele simpatizar... A minha humanidade é
uma permanente auto-superação. – Preciso, porém, da solidão, quero
dizer, da cura, do retorno a mim, do sopro de uma brisa solta e que
suavemente se agita... Todo o meu Zaratustra é um ditirambo à solidão
ou, se alguém me compreendeu, à pureza... Felizmente, não há
loucura casta. – Quem tem olhos para as cores, chamar-lhe-á uma pureza
diamantina. – A náusea do homem, da «ralé», foi sempre o meu
maior perigo... Querem ouvir as palavras com que Zaratustra expressa
a libertação da náusea?
Que me aconteceu? Como libertar-me da náusea? Quem
rejuvenesce o meu olhar? Como voar para os píncaros,
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Ecce Homo 23
onde já nenhuma turba se senta ao pé da fonte?
Deu-me asas e forças para pressentir as fontes a minha própria
náusea? Na verdade, eu devia voar para as alturas e
reencontrar aí a fonte da alegria!
Oh! Irmãos meus, encontrei-a! Aqui, no ponto mais alto,
jorra para mim a fonte da alegria! E há uma vida, em que
nenhuma ralé bebe!
Para mim manas, quase com excessiva violência, ó fonte
da alegria! E muitas vezes esvazias a taça, porque a queres
encher.
E devo ainda aprender a aproximar-me de ti com maior discrição:
com demasiado ímpeto pulsa ainda o meu coração,
ao ir ao teu encontro:
– Meu coração, em que se consome o meu Verão, o meu
breve, quente, melancólico e superditoso Verão: como anseia
pela tua frescura o meu coração estival!
Foi-se a aflição hesitante da minha Primavera! Acabaramse
os flocos de neve da minha maldade no mês de Junho!
Todo eu me tornei Verão e meio-dia estival!
– Verão nas alturas com frescas fontes e silêncio bemaventurado:
oh!, amigos meus, vinde, para que este silêncio
se torne ainda mais bem-aventurado!
Pois esta é a nossa altura e a nossa pátria: habitamos aqui
num lugar demasiado alto e íngreme para toda a impureza
e a sua sede.
Mergulhai, amigos meus, o vosso olhar puro na fonte da
minha alegria! Como haveria ela de com isso se turvar?
Sorrir-vos-á também com a sua pureza.
Na árvore do futuro, construímos o nosso ninho; nos seus
bicos, as águias trazem-nos, a nós solitários, o alimento!
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24 Friedrich Nietzsche
Na verdade, não é alimento que possamos partilhar com os
impuros! Estes imaginariam estar a comer fogo e queimariam
a boca.
Não temos aqui, na verdade, morada para os impuros! Para
os seus corpos e os seus espíritos, a nossa felicidade seria
uma gruta de gelo!
E acima deles, como ventos impetuosos, vizinhos das águias,
perto da neve e junto ao sol, queremos viver: assim vivem
os ventos impetuosos.
E, tal como o vento, quero ainda soprar no meio deles
e com o meu espírito tirar ao seu espírito todo o alento:
assim o quer o meu futuro.
Na verdade, Zaratustra é um vento forte para todas as terras
baixas: e a todos os seus inimigos e a tudo o que cospe e
vomita dá este conselho: guardai-vos de cuspir contra o
vento!...
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Ecce Homo 25
PORQUE SOU TÃO SAGAZ
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Porque é que sei mais alguma coisa? Porque sou em geral tão sagaz?
Nunca reflecti sobre questões que verdadeiramente o não sejam – não
me entreguei ao desperdício. – Genuínas dificuldades religiosas, por
exemplo, não as conheço por experiência. Escapa-me totalmente até
que ponto poderia eu ser «pecador». Falta-me analogamente um critério
fidedigno para o que é um remorso: segundo o que ouvi dizer a
tal respeito, um remorso não me parece digno de qualquer atenção...
Nunca poderia deixar para trás uma acção, preferiría eliminar fundamentalmente
da questão dos valores o êxito negativo, as consequências.
Na consideração do êxito negativo, perde-se com demasiada facilidade
a visão correcta do que se fez: um remorso parece-me uma espécie de
«mau olhado». Ter em maior conta o que se malogrou, porque se malogrou
– eis o que já pertence à minha moral. – «Deus», «imortalidade
da alma», («redenção», «além», simples conceitos a que não dediquei
nenhuma atenção, também nenhum tempo, nem sequer em criança –
talvez eu nunca tenha sido bastante infantil para tal? – Não considero
o ateísmo como resultado, menos ainda como acontecimento: em mim
decorre do instinto. Sou demasiado curioso, demasiado problemático,
demasiado insolente, para me contentar com uma resposta grosseira.
Deus é uma resposta grosseira, uma indelicadeza para connosco, pensadores
– no fundo, é mesmo apenas uma grosseira proibição: não deveis
pensar!... De modo inteiramente diverso me interessa uma questão
da qual, mais do que qualquer outra curiosidade dos teólogos, depende
a «salvação da humanidade»: a questão da alimentação. Para uso corrente,
pode assim formular-se: «Como hás-de alimentar-te para chewww.
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26 Friedrich Nietzsche
gares ao teu máximo de força, de virtù no estilo da Renascença, da
virtude isenta de todo o elemento moral?» – As minhas experiências
são aqui tão más quanto possível; estou espantado de tão tarde ter dado
ouvidos a esta questão, de tão tarde ter aprendido a «razão» a partir de
tais experiências. Só a vilania completa da nossa formação alemã – o
seu «idealismo» me explica até certo ponto porque é que justamente
aqui permaneci antiquado até à santidade. Semelhante «formação»,
que de antemão ensina a perder de vista as realidades, para ir à caça
de objectivos ditos «ideais», inteiramente problemáticos, por exemplo
da «cultura clássica»: – como se não fosse algo de previamente condenado
unir num conceito «clássico» e «alemão»! Mais ainda, é divertido
– pense-se num habitante de Leipzig com «formação clássica»! – De
facto, até aos meus anos de maturidade, comi sempre mal - em termos
morais, comi de um modo «impessoal», «desinteressado», «altruísta»,
para salvação dos cozinheiros e de outros correligionários cristãos. Neguei
muito a sério, por exemplo, graças à cozinha de Leipzig, na mesma
época em que iniciei o estudo de Schopenhauer (1865), a minha «vontade
de viver». Ter em vista uma alimentação insuficiente e ainda por
cima arruinar o estômago – eis um problema que a mencionada cozinha
me pareceu resolver às mil maravilhas. (Diz-se que o ano de 1866
trouxe consigo uma mudança.) Mas a cozinha alemã – quantas coisas
não tem ela na consciência! A sopa antes da refeição (ainda em
livros venezianos de culinária do século XVI se lhe dá o nome de alla
tedesca); a carne muito cozida, a hortaliça grossa e suculenta; a degenerescência
dos farináceos em pisa-papéis! Se ainda se tiver em conta
a necessidade que os velhos alemães, e não só os velhos, têm de geleia
animal, compreender-se-á também a origem do espírito alemão – que
provém de entranhas revoltas... O espírito alemão é uma indigestão,
nada consegue. – Mas também a dieta inglesa que, em comparação
com a alemã, e até com a francesa, é uma espécie de «retorno à natureza
», a saber, ao canibalismo, se revela profundamente contrária ao
meu instinto; parece-me que dá ao espírito pés pesados – pés de senhoras
inglesas... A melhor cozinha é a do Piemonte. – As bebidas
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Ecce Homo 27
alcoólicas são-me prejudiciais; um copo de vinho ou de cerveja num
só dia chega perfeitamente para fazer da minha vida um «vale de lágrimas
» – em Munique vivem os meus antípodas. Supondo que tenha
compreendido isto já um pouco tarde, experimentei-o, porém, desde
a infância. Pensava, como garoto, que beber vinho e fumar eram, de
início, apenas uma vanitas de rapazes, e mais tarde, um mau hábito.
Talvez a culpa deste juízo severo caiba também ao vinho de Naumburg.
Para crer que o vinho dá alegria, seria preciso ser cristão, isto é,
crer o que para mim constituí uma absurdidade. Coisa curiosa; se entro
em extrema irritabilidade por acção de pequenas doses de álcool, muito
diluídas, torno-me quase um marinheiro, quando se trata de doses fortes.
Já como garoto mostrava aqui a minha bravura. Redigir numa só
vigília uma grande dissertação latina e passá-la também a limpo, com
a ambição de imitar na pena a severidade e a concisão de Salústio, meu
modelo, bebendo sobre o meu latim um copo do maior calibre, já não
estava de modo algum (quando eu era aluno da venerável Escola de
Pforta) em contradição com a minha fisiologia, nem talvez ainda com
a de Salústio – embora, isso sim, com a venerável Escola de Pforta...
Mais tarde, lá para o meio da vida, decidi libertar-me com energia de
qualquer espécie de bebida «espirituosa»: eu, adversário por excelência
do vegetarianismo, tal como Richard Wagner, que me converteu,
não sei com suficiente seriedade aconselhar a todas as naturezas intelectuais
a incondicional abstenção do álcool. A água basta... Prefiro os
lugares onde, acima de tudo, se tem a oportunidade de tirar água dos
mananciais (Nice, Turim, Sils); tenho sempre à mão um pequeno copo.
In vino veritas: parece que também aqui estou em desacordo com o
mundo inteiro quanto ao conceito de «verdade»: para mim, o espírito
paira sobre a água... Ainda algumas indicações extraídas da minha
moral. Uma refeição forte é mais fácil de digerir do que uma refeição
leve. O primeiro pressuposto para uma boa digestão é que o estômago
entre em actividade como totalidade. É preciso conhecer a grandeza
do seu estômago. Pela mesma razão, devem desaconselhar-se as refeições
aborrecidas, que eu chamo as festas sacrificiais interrompidas,
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28 Friedrich Nietzsche
as refeições na table d’hôte. – Nada de refeições intermediárias, nada
de café: o café ensombra o ânimo. O chá só é vantajoso pela manhã.
Pouco, mas forte; se é demasiado fraco, o chá é muito prejudicial e
causa má disposição durante o dia inteiro. Cada um tem aqui a sua medida,
muitas vezes entre limites multo estritos e delicados. Num clima
muito excitante, é desaconselhável começar pelo chá: deve, uma hora
antes, começar-se com uma chávena de cacau bem espesso. – Estar o
menos possível sentado; não ter fé em qualquer pensamento que não
tenha surgido ao ar livre e em plena liberdade de movimento – em que
também os músculos não celebrem uma festa. Todos os preconceitos
provêm dos intestinos. – A sedentariedade – já uma vez o disse – é o
verdadeiro pecado contra o espírito santo.
2
À questão da alimentação está intimamente ligada a questão acerca
do lugar e do clima. Ninguém é livre de viver em qualquer parte; e
quem tem de resolver grandes tarefas, que exigem toda a sua força, tem
mesmo aqui uma escolha muito limitada. A influência climática sobre
o metabolismo, a sua inibição, a sua aceleração, vai tão longe que um
erro em relação ao lugar e ao clima pode não só alienar alguém da sua
tarefa, mas até recusar-lha: nem sequer a chega a ver. O vigor animal
nunca nele foi assaz grande de modo a atingir-se aquela liberdade
que transborda para o espiritual, em que alguém confessa: só eu posso
isto... – Uma inactividade intestinal, por pequena que seja, e transformada
em mau hábito, chega perfeitamente para fazer de um génio algo
de medíocre, algo de «alemão»; o clima alemão basta por si só para
enfraquecer vísceras fortes e até predispostas ao heroísmo. O ritmo do
metabolismo está numa relação exacta com a mobilidade ou a paralisia
dos pés do espírito; o próprio «espírito» é apenas uma espécie desse
metabolismo. Comparem-se os lugares onde há e houve homens de espírito,
onde a ironia, a subtileza e a malícia se inseriam na felicidade,
onde o génio quase por força se sentia em casa: todos eles apresentam
uma atmosfera notavelmente seca. Paris, a Provença, Florença, Jerusawww.
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Ecce Homo 29
lém, Atenas – tais nomes mostram uma coisa: o génio é condicionado
pelo ar seco, pelo céu puro – isto é, por um metabolismo rápido, pela
possibilidade de estar sempre de novo a fornecer a si grandes e até ingentes
quantidades de energia. Tenho diante dos olhos um caso em
que um espírito eminente e de disposição livre, simplesmente por falta
de agudeza de instinto em matéria de clima, se tornou um especialista
e um mal-humorado mesquinho e esquivo. E eu próprio poderia, no
fim de contas, ter vindo a ser um caso idêntico, na suposição de que
a doença não me tivesse forçado à razão, a reflectir sobre a razão na
realidade. Agora, quando já em virtude do longo exercício leio em
mim como num instrumento muito delicado e fidedigno os efeitos de
origem climática e meteorológica, e quando numa viagem breve, por
exemplo, de Turim a Milão, calculo por meio da minha própria fisiologia
os graus da humidade do ar, penso com pavor no facto terrífico
de que a minha vida, até aos últimos dez anos, anos perigosos, decorreu
sempre apenas em sítios errados e que me deveriam ser justamente
vedados. Naumburg, Schulpforta, a Turíngía em geral, Leipzig, Basileia
– outros tantos lugares calamitosos para a minha fisiologia. Se, em
geral, não tenho nenhuma recordação agradável de toda a minha infância
e juventude, seria uma loucura atribuir aqui um relevo às chamadas
causas «morais» – por exemplo, à carência incontestável de suficiente
convívio: com efeito, semelhante carência existe hoje como sempre,
sem que ela me impeça de ser sereno e corajoso. Mas a incerteza in
physiologicis – o maldito «idealismo» – eis a autêntica fatalidade na
minha vida, o que nela há de supérfluo e estúpido, algo de que nada
de bom procede, para o qual não há nenhuma compensação, nenhum
suprimento. A partir das consequências deste «idealismo», explico todos
os erros, todos os grandes desvios do instinto e «discrições», para
fora e longe da tarefa da minha vida, por exemplo, que me tornasse filólogo
– porque não, pelo menos, médico ou então qualquer outra coisa
que me abrisse os olhos? No meu tempo de Basileia, toda a minha
dieta intelectual, incluindo a distribuição do día, era um desperdício inteiramente
absurdo de energias extraordinárias, sem um fornecimento
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de energías que, de qualquer modo, compensasse tal consumpção, e
mesmo sem reflexão da minha parte acerca de tal desperdício e sua
compensação. Faltava toda a refinada ipseidade, toda a protecção de
um instinto imperativo; era um equiparar-se a qualquer outro, um «desinteresse
», um esquecimento da sua distância – algo que jamais me
perdoarei. Quando já quase estava no fim, precisamente por estar quase
no fim, pus-me a reflectir sobre esta irrazão fundamental da minha vida
– o «idealismo». Só a enfermidade é que me trouxe à razão.
3
A escolha na alimentação; a escolha do clima e do lugar; – a terceira,
em que a nenhum preço se deve cometer um erro, é a escolha
do seu tipo de recreação. Também aqui, e segundo o grau em que um
espírito é sui generis, os limites do que lhe é permitido, isto é, útil, são
cada vez mais estreitos. No meu caso, toda a leitura faz parte dos meus
lazeres: faz parte, por conseguinte, do que me liberta de mim mesmo,
do que me permite passear pelas ciências e pelas almas alheias – do
que já não tomo a sério. A leitura reabilita-me justamente da minha seriedade.
Em épocas de profundo trabalho, não se vêem livros ao pé de
mim: não permito então a ninguém falar ou pensar junto de mim. Eis o
que eu chamo ler... Já porventura se notou que, naquela profunda tensão
a que a gestação condena o espírito e, no fundo, todo o organismo,
o acaso, qualquer espécie de estímulo vindo do exterior actua com excessiva
veemência, «fere» demasiado profundamente? Deve evitar-se
tanto quanto possível o acaso, o estímulo que vem de fora; uma espécie
de auto-emparedamento constitui uma das primeiras astúcias instintivas
da gestação espiritual. Permitirei eu que um pensamento estranho
suba secretamente pelas paredes? – E isso é que é ler... Aos tempos
de trabalho e de fecundidade segue-se o tempo da recreação: vinde a
mim, livros agradáveis, espirituosos, reverenciados! – Haverá livros
alemães assim?... Tenho de voltar seis meses atrás para me ver com um
livro desses na mão. Que livro era esse? Um excelente estudo de Victor
Brochard, l.es sceptiques grecs, em que também se utilizam bem
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Ecce Homo 31
as minhas Laertiana. Os cépticos, o único tipo respeitável no meio
da caterva ambígua e multívoca dos filósofos!... Refugio-me, aliás,
quase sempre nos mesmos livros, no fundo, um número pequeno, o
dos livros para mim já comprovados. Talvez não faça parte da minha
maneira de ser ler muitas coisas e muito diversas: uma sala de leitura
põe-me doente. O meu estilo também não é amar muitas coisas ou
muito diferentes. A circunspecção, e até mesmo a hostilidade contra
os livros novos, é mais própria do meu instinto do que a «tolerância»,
a «largeur du coeur» e outros «amores ao próximo»... No fundo, é a
um pequeno número de velhos franceses que estou sempre a regressar:
creio só na cultura francesa e tenho por equívoco tudo o que na Europa
se chama «cultura» (Bildung), para não falar da cultura alemã... Os
poucos casos de alta cultura, com que deparei na Alemanha, eram todos
de origem francesa, sobretudo a senhora Cosima Wagner, de longe
a primeira voz em questões de gosto, que já ouvi... Se não leio, mas
amo Pascal, como a vítima mais instrutiva do cristianismo, lentamente
assassinada, primeiro no corpo, em seguida na psicologia, como a lógica
integral dessa forma terrífica de crueldade humana; se tenho no
espírito e, quem sabe? – talvez ainda no corpo algo da jocosidade de
Montaigne; se o meu gosto de artista toma sob a sua protecção, não
sem raiva, perante um génio selvagem como Shakespeare, os nomes de
Molière, Corneille e Racine: tudo isso não exclui, por último, que os
franceses mais recentes não sejam para mim também uma sociedade
charmante. Não vejo de modo algum em que século da história se
poderiam pescar conjuntamente psicólogos tão curiosos e, ao mesmo
tempo, tão subtis como hoje em Paris: no meio, a título experimental
– pois o seu número não é pequeno – os senhores Paul Bourget, Pierre
I.oti, Gyp, Meilhac, Anatole France, Jules Lemaître, ou, para realçar
um dos de estirpe mais forte, um autêntico latino, a que sou particularmente
afeiçoado, Guy de Maupassant. Prefiro esta geração, aqui para
nós, mesma à dos seus grandes mestres, que foram todos contaminados
pela filosofia alemã: por exemplo, o Sr. Taine por Hegel, a quem
deve a incompreensão dos grandes homens e das épocas. Onde chega a
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Alemanha, corrompe-se a cultura. Só a guerra «salvou» o espírito em
França... Stendhal, um dos mais belos acasos da minha vida – pois tudo
o que na minha vida faz época foi-me trazido pelo acaso, e jamais por
uma recomendação – é de todo inestimável com o seu antecipador olho
de psicólogo, com a sua garra para os factos, que lembra a proximidade
do maior entre os realistas (ex ungue Napoleonem); por fim, não menos
digno de apreço como ateu sincero, uma species rara em França e já
quase dificilmente localizável – é Prosper Mérímée... Estarei porventura
com ciúmes de Stendhal? Ele tirou-me o melhor mote ateu, que
eu poderia ter inventado: «a única desculpa de Deus é não existir»...
Eu próprio disse algures: qual foi, até agora, a maior objecção contra a
existência? Deus...
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O mais alto conceito de lirismo foi-me dado por Heinrich Heine.
Em vão procurei em todo o curso dos milénios uma música assim tão
doce e apaixonada. Ele possuía aquela ironia divina, sem a qual não
consigo imaginar a perfeição – aprecio o valor dos homens e das raças
pelo modo como sabem compreender necessariamente Deus, sem o separar
do sátiro. – E como maneja ele o alemão! Dir-se-á um dia que
Heine e eu fomos, de longe, os primeiros artistas da língua alemã – a
uma distância incalculável de tudo o que com ela fizeram os simples
alemães. – Devo ter uma profunda afinidade com o Manfredo de Byron:
encontro em mim todos esses abismos – com treze anos de idade,
eu já estava maduro para esta obra. Não tenho palavras, tenho apenas
um olhar para os que, na presença de Manfredo, se atrevem a proferir
a palavra «Fausto». Os Alemães são incapazes de qualquer conceito
de grandeza: a prova é Schumann. Certa vez, levado pela fúria contra
estas coisas melífluas, compus uma anti-abertura de Manfredo, a propósito
da qual Hans von Bülow disse que jamais vira coisa semelhante
em papel de música: era um estupro de Euterpe. – Quando busco a minha
fórmula mais elevada para Shakespeare, encontro sempre apenas
esta: concebeu o tipo de César. Tais coisas não se adivinham – ou se é
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César ou não. O grande poeta cria apenas a partir da sua realidade – até
ao ponto de, subsequentemente, já não suportar a sua obra... Quando
lanço um olhar ao meu Zaratustra, ando no meu quarto daqui para ali,
durante meia hora, incapaz de dominar um acesso incontível de soluços.
– Nenhuma leitura conheço que tanto despedace o coração como
a de Shakespeare: como deve ter sofrido um homem para assim ter necessidade
de ser bobo! Compreender-se-á o Hamlet? Não é a dúvida,
mas a certeza que enlouquece... Mas para assim sentir importa ser profundo,
abismo, filósofo... Todos temos medo na presença da verdade...
E confesso: estou instintivamente seguro e certo de que lorde Bacon é
o autor, o autoverdugo desta sinistra espécie de literatura: que me interessa
o palavrório desses cabeças-no-ar e broncos americanos? Mas
a força para a mais poderosa realidade da visão não é apenas compatível
com a mais poderosa força para a acção, para a monstruosidade da
acção, para o crime – também a pressupõe... Não sabemos o suficiente
acerca de lorde Bacon, o primeiro realista no sentido pleno da palavra,
para saber tudo quanto fez, o que quis, o que experimentou a sós consigo...
E, vão para o diabo, senhores críticos! Supondo que eu tivesse
atribuído o meu Zaratustra a um nome estranho, por exemplo, ao de
Richard Wagner, a perspicácia de dois milénios não teria bastado para
adivinhar que o autor de Humano, demasiado humano é o visionário
do Zaratustra. . .
5
Ao falar aqui das distracções da minha vida, preciso ainda de uma
palavra para expressar a minha gratidão por aquilo que em mim, de
longe, me descontraiu no mais íntimo do coração. Tal foi, sem dúvida,
o trato muito cordial comWagner. Desisto sem custo de todas as outras
minhas relações com os homens; por nenhum preço gostaria de riscar
da minha vida os dias de Tribschen, dias de confiança, de serenidade,
de acasos sublimes de instantes profundos... Não sei o que outros sentiram
com Wagner: no nosso céu, nunca passou nuvem alguma. – E
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com isto volto mais uma vez à França – não tenho nenhumas razões,
tenho apenas um ricto de desprezo nos lábios contra os wagnerianos
e hoc genus omne, que crêem honrar Wagner, lá porque o descobrem
semelhante a eles mesmos... Assim como, nos meus mais profundos
instintos, sou estranho a tudo o que é alemão, de modo que já a proximidade
de um alemão atrasa a minha digestão, assim também o primeiro
contacto com Wagner foi, na minha vida, a primeira respiração
profunda: sentia-o, honrava-o como o estrangeiro, como o contraste,
como o protesto personificado contra todas as «virtudes alemãs». –
Nós, que fomos crianças na atmosfera pantanosa dos anos cinquenta,
somos necessariamente pessimistas quanto ao conceito de «alemão»;
nada mais podemos ser do que revolucionários – nunca admitiremos
um estado de coisas em que o hipócrita predomine. É-me completamente
indiferente se este muda hoje de cores, se veste de vermelho e
traz um uniforme de hussardo... Muito bem! Wagner era um revolucionário
– fugia diante dos Alemães... Como artista, não se tem nenhuma
pátria na Europa excepto em Paris; a délicatesse em todos os cinco gostos
artísticos, que a arte deWagner pressupõe, o faro para as nuances, a
morbidez psicológica, encontra-se apenas em Paris. Em nenhum outro
lado se depara com esta paixão nas questões de forma, esta seriedade
na mise en scène – eis a seriedade parisiense par excellence. Na Alemanha,
não se tem noção alguma da ambição enorme que vive na alma
de um artista parisiense. O alemão é bonacheirão –Wagner de nenhum
modo era bonacheirão... Mas já me expressei suficientemente (em Para
além do bem e do mal sobre o lugar em queWagner tem os seus parentes
próximos: é o romantismo tardio francês, aquela espécie sublime e
arrebatadora de artistas como Delacroix, como Berlioz, com um fond
de doença, de incurabilidade no seu ser, simples fanáticos da expressão,
virtuosos de ponta a ponta... Quem foi em geral o primeiro adepto inteligente
de Wagner? Charles Baudelaire, o mesmo que primeiramente
compreendeu Delacroix, aquele típico décadent, no qual se reconheceu
uma geração inteira de artistas – e, porventura, foi ele também o
último... O que é que eu nunca perdoei a Wagner? Que ele condescenwww.
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desse com os Alemães – que se tornasse um alemão imperial... Onde
quer que a Alemanha chegue, corrompe a cultura.
6
Bem vistas as coisas, não teria suportado a minha juventude sem
a música wagneriana. Estava, pois, condenado aos Alemães. Quando
alguém pretende libertar-se de uma opressão intolerável, precisa de haxixe.
Muito bem, eu precisava de Wagner. Wagner é par excellence
o antídoto de tudo o que é alemão – é um veneno, não o nego... A
partir do instante em que apareceu uma partitura de Tristão para piano
– os meus cumprimentos, Sr. von Bülow! –, tornei-me wagneriano.
Pareciam-me abaixo de mim as anteriores obras de Wagner – eram
ainda demasiado vulgares, demasiado «alemãs»... Mas hoje procuro
ainda uma obra de fascínio tão perigoso, de uma infinidade tão horrenda
e doce como é o Tristão – em vão a procuro entre todas as artes.
Todas as estranhas criações de Leonardo da Vinci perdem o seu encantamento
às primeiras notas do Tristão. Esta obra é absolutamente o non
plus ultra de Wagner; afrouxou em relação a ela com os Mestres cantores
e o Anel. Tornar-se mais sadio – eis um retrocesso numa natureza
como Wagner... Considero como uma felicidade de primeira ordem ter
vivido na época justa e precisamente entre os Alemães, para estar à altura
de semelhante obra: a tal ponto existe em mim a curiosidade do
psicólogo. O mundo é pobre para quem nunca esteve assaz doente para
esta «volúpia infernal»: é lícito, é quase imperativo, utilizar aqui uma
fórmula mística. – Julgo saber melhor do que ninguém a imensidade
de que Wagner é capaz, os cinquenta mundos de estranhos arroubos
para os quais ninguém, excepto ele, teve asas; e, tal como sou, bastante
forte para ainda tirar vantagem do que há de mais problemático e de
mais perigoso e assim me tornar mais forte, chamo a Wagner o maior
benfeitor da minha vida. A nossa afinidade em virtude de termos sofrido
também um pelo outro mais profundamente do que os homens
deste século podem suportar unirá eternamente os nossos nomes; e se
Wagner é, decerto, entre os Alemães apenas um mal-entendido, tamwww.
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bém eu certamente o sou e sempre serei. – Antes de mais, dois séculos
de disciplina psicológica e artística, senhores alemães!... Mas isso não
se recupera.
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– Vou ainda dizer umas palavras para os ouvidos mais selectos: o
que propriamente exijo da música. Que ela seja serena e profunda,
como uma tarde de Outubro. Que seja peculiar, exuberante, terna, uma
pequena e doce mulher com insídia e encanto... Nunca admitirei que
um alemão possa saber o que é a música. Os chamados músicos alemães,
sobretudo os maiores, são estrangeiros, eslavos, croatas, italianos,
holandeses – ou judeus; noutros casos, alemães de forte estirpe,
alemães extintos, como Heinrich Schütz, Bach e Haendel. Eu próprio
sou ainda bastante polaco para contrapor a Chopin o resto da música:
exceptuo, por três razões, o Idílio de Sigfredo de Wagner, talvez também
Liszt, que com os seus nobres acentos orquestrais excede todos os
músicos; por fim, ainda tudo o que nasceu além dos Alpes – aquém...
Não poderia dispensar Rossini, e menos ainda o meu Sul na música, a
música do meu maestro veneziano Pietro Gasti. E quando falo do outro
lado dos Alpes, refiro-me apenas a Veneza. Quando busco uma outra
palavra para a música, encontro sempre apenas a palavra Veneza. Não
sei estabelecer diferença alguma entre as lágrimas e a música, não sei
pensar a felicidade, o Sul, sem um frémito de temor.
Muito jovem, estava eu na ponte,
em plena noite sombría.
Veio de longe o canto:
na trémula superfície
gotas de ouro deslizavam.
Gôndolas, luzes, música –
ebriamente para o crepúsculo vogavam...
Qual lira, a minha alma
canta para si, por mão invisível tangida,
uma secreta canção de gondoleiro,
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e vibra de garrida de ventura.
Alguém a ouviria?...
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Em tudo isto – na escolha do alimento, do lugar, do clima, da recreação
– impera um instinto de autoconservação, que se expressa sem
qualquer ambiguidade como instinto de autodefesa. Não ver e não ouvir
muitas coisas, não deixar que de nós se aproximem – eis a primeira
astúcia, a primeira prova de que não se é um acaso, mas uma necessidade.
A palavra corrente para este instinto de autodefesa é gosto. O seu
imperativo manda-nos não só dizer não, onde o sim seria um «desinteresse
», mas também dizer não tão pouco quanto possível. Separar-se,
afastar-se daquilo em que sempre e repetidamente o não se tornaria necessário.
A razão consiste em que os dispêndios na defensiva, mesmo
mínimos, ao tornarem-se regra e hábito, condicionam um empobrecimento
extraordinário e inteiramente supérfluo. Os nossos grandes
dispêndios são os «nãos pequenos» mais frequentes. A defesa, o não
deixar aproximar, é um dispêndio – ninguém a este respeito se iluda
–, uma força desperdiçada em fins negativos. Ao persistir apenas na
necessidade de defesa, pode alguém enfraquecer-se o suficiente para já
não ser capaz de se defender. – Se, por suposição, saio da minha casa
e, em vez da serena e aristocrática Turim, encontro a pequena cidade
alemã, o meu instinto teria de se fechar para repelir tudo o que nele penetrasse
desse mundo insípido e covarde. Ou se encontrasse a grande
cidade alemã, esse vício construído, onde nada cresce, onde todas as
coisas, boas e más, se arrastam. Não deveria eu tornar-me um ouriço?
– Mas ter espinhos é um desperdício, e até um duplo luxo, quando nos
é dado não ter espinhos alguns, mas mãos abertas...
Uma outra astúcia e autodefesa consiste em reagir o menos possível
e em subtrair-se a situações e condições em que alguém seria condenado
a suspender de algum modo a sua «liberdade», a sua iniciativa,
e a tornar-se um simples órgão de reacção. Tomo como comparação
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o trato com os livros. O erudito, que no fundo «folheia» apenas ainda
livros – o filólogo com uma taxa média por dia de cerca de duzentos –
acaba por perder inteiramente a capacidade de pensar por si. Se não folheia,
também não pensa. Responde a um estímulo (– um pensamento
lido), quando pensa em última análise, ainda simplesmente reage. O
erudito despende toda a sua força em dizer sim e não, na crítica do que
já foi pensado – pessoalmente, já não pensa... O instinto de autodefesa
extenuou-se nele; caso contrário, pôr-se-ia em guarda contra os livros.
O erudito – um décadent. Eis o que vi com os meus olhos: naturezas
dotadas, de ricas e livres tendências, já aos trinta anos se tinham
tornado uma «desgraça» pela leitura, simples fósforos que, para produzirem
faísca – «ideias» –, carecem de fricção. – Ler um livro pela
madrugada, ao romper do dia, em todo o vigor, na aurora da sua força
– eis aquilo a que chamo vício!
9
Neste lugar, já não devo esquivar-me a fornecer a resposta verdadeira
à pergunta: como se chega a ser o que se é. E afloro assim a
obra-prima na arte da autoconservação – do egoísmo... Se se admitir
que a tarefa está bastante acima de uma medida média, nenhum perigo
seria maior do que defrontar-se com semelhante tarefa. Chegar a ser
o que se é pressupõe que se tem uma suspeita mínima do que se é.
Sob este ponto de vista, têm sentido e valor próprios até os erros da
vida, os atalhos e os desvios temporários, os atrasos, as «discrições»,
a seriedade, que se despenderam em tarefas, que estão para além da
tarefa. Pode aí expressar-se uma grande sagacidade, e até mesmo a
suprema astúcia: onde o nosce te ipsum seria a receita para a ruína, o
esquecimento de si, a auto-incompreensão, a diminuição e a contracção
de si, a mediocridade, transforma-se em razão de si. Em termos
morais: o amor ao próximo, a vida ao serviço de outrem e de outra
causa, pode ser a medida de prevenção para conservar a mais inflexível
ipseidade. Eis o caso excepcional em que, contra a minha regra e convicção,
tomo o partido dos impulsos «desinteressados»: eles trabalham
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Ecce Homo 39
aqui ao serviço do egoísmo, da autodisciplina. – É preciso conservar
toda a superfície da consciência – a consciência é uma superfície – pura
de qualquer dos grandes imperativos. Cautela com as grandes palavras,
com as grandes atitudes! É nítido o risco de o instinto «se compreender
» a sí demasiado depressa. – Entretanto, cresce progressivamente na
profundidade a «ideia» organizadora, a ideia convocada à dominação
– começa por imperar, faz-nos lentamente regressar dos atalhos e dos
desvíos, prepara qualidades e habilidades singulares, que um dia se revelarão
como meios indispensáveis em vista do todo – desenvolve em
série todas as potências úteis, antes de sugerir qualquer coisa acerca da
tarefa dominante, da «meta», do «fim», do «sentido». –
Olhada sob esta perspectiva, a minha vida é simplesmente admirável.
Para a tarefa de uma transmutação dos valores exigiam-se talvez
mais faculdades do que as que alguma vez habitaram, lado a lado, num
só indivíduo, sobretudo também oposições de faculdades, sem que estas
houvessem de se destruir e perturbar. Hierarquia das faculdades;
distância; a arte de separar, sem hostilizar; nada mesclar, nada «reconciliar
»; uma multiplicidade ingente que, apesar de tudo, é o contrário
do caos – tal foi a condição preliminar, o longo e secreto trabalho e
o dom artístico do meu instinto. A sua superior protecção revelou-se
forte, na medida em que eu jamais pressenti sequer o que em mim crescia
– que todas as minhas capacidades irromperam um dia de súbito, já
maduras, na sua última perfeição. Não tenho nenhuma recordação de
que alguma vez me tivesse esforçado – não se detecta na minha vida
traço algum de luta, sou o contrário de uma natureza heróica. «Querer
algo», «esforçar-se por algo», ter diante dos olhos um «fim», um «desejo
» - eis o que não conheço por experiência. Neste instante ainda,
olho para o meu futuro – um amplo futuro! –como quem contempla
um mar calmo: nenhuma ânsia nele se encrespa. Não quero de modo
algum que algo se torne diferente do que é; eu próprio não quero tornarme
diferente. E sempre assim vivi. Nunca tive qualquer desejo. Sou
alguém que, aos quarenta e quatro anos de idade, pode dizer que nunca
andou atrás de honras, mulheres, dinheiro! – Não é que tais coisas me
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tivessem faltado... Fui um dia, por exemplo, professor de universidade
– nunca, nem sequer de longe, pensara em tal, pois tinha apenas vinte
e quatro anos de idade. Assim também, dois anos antes, fui um dia
filólogo: no sentido de que o meu primeiro trabalho filológico, a minha
iniciação em todo o sentido, foi solicitado pelo meu mestre Rítschl
para ser publicado no seu «Museu renano» (Ritschl – digo-o com veneração
– o único erudito genial com que, até hoje, deparei. Possuía
aquela agradável depravação que nos caracteriza, aos que nascemos na
Turíngia, e com a qual até mesmo um alemão se torna simpático: –
para chegar à verdade, preferimos mesmo os caminhos secretos. Não
gostaria de modo algum, com estas palavras, de minimizar o meu mais
próximo compatriota, o astuto Leopold von Ranke...).
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Importa aqui fazer uma grande reflexão. Perguntar-me-ão porque é
que contei todas estas coisas pequenas e, segundo o juízo tradicional,
indiferentes; causarei assim dano a mim próprio, e tanto mais quando
estou destinado a representar grandes missões. Resposta: estas pequenas
coisas – alimentação, lugar, clima, recreação, toda a casuística
do egoísmo – são muito mais importantes do que tudo quanto se concebeu
e, até agora, se considerou importante. É aqui justamente que
importa começar, aprender de novo. O que a humanidade até agora
teve em séria consideração não são sequer realidades, são simples imaginações;
em termos mais estritos, mentiras provenientes dos instintos
maus de naturezas doentes, perniciosas no sentido mais profundo –
todos os conceitos de «Deus», «alma», «virtude», «pecado», «além»,
«verdade», «vida eterna»... Mas foi neles que se procurou a grandeza
da natureza humana, a sua «divindade»... Todas as questões da política,
da organização social, da educação, foram de cima ao fundo totalmente
falsificadas, porque se tomaram como grandes homens os homens mais
perniciosos – porque se ensinou a desprezar as coisas «pequenas», ou
seja, as preocupações fundamentais da vida... A nossa cultura hodierna
é ambígua em sumo grau... O imperador alemão pactua com o
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papa, como se o papa não fosse o representante do antagonismo mortal
contra a vida!... O que hoje se constrói já não se mantém em pé por
três anos. – Se, pois, avalio o que posso, para não falar do que após
mim vem, uma subversão, uma construção sem igual, é porque tenho
mais do que qualquer mortal a pretensão à palavra grandeza. Pois bem,
se me comparo com os homens que, até agora, se honraram como os
primeiros, a diferença salta aos olhos. Nem sequer incluo entre os homens
em geral esses pretensamente «primeiros» - eles são para mim
o refugo da humanidade, monstruosidades da doença e dos instintos
de vingança: são simples infra-humanos nocivos, no fundo incuráveis,
que se vingam da vida... Quero ser o seu contrário: o meu privilégio
é ter a máxima sagacidade para todos os sinais dos instintos sadios.
Não tenho em mim qualquer traço doentio; nem sequer nos tempos de
grave enfermidade me tornei doentio; em vão se busca no meu ser um
rasgo de fanatismo. Em nenhum instante da minha vida se me poderá
apontar qualquer atitude arrogante ou patética. O pathos da atitude
não pertence à grandeza; quem em geral precisa de atitudes é falso...
Circunspecção perante todos os homens pitorescos! – A vida tornouse
para mim suave, e mais suave ainda quando de mim exigia o mais
difícil. Quem me viu nos setenta dias deste Outono em que, sem interrupção,
fiz coisas de primeira ordem que ninguém pode imitar – ou
ostentar, com uma responsabilidade para todos os milénios após mim,
não percepcionou em mim traço algum de tensão, mas antes uma frescura
e uma serenidade transbordantes. Nunca comi com sentimentos
mais agradáveis, jamais dormi melhor. – Não conheço nenhuma outra
maneira de lidar com grandes tarefas além do jogo: eis, como sinal
da grandeza, um pressuposto essencial. A mínima coacção, o rosto
sombrio, um modo qualquer de rigidez no pescoço, são tudo objecções
contra um homem, e mais ainda contra a sua obra!... Não se deve ter
nervos... Sofrer também com a solidão é uma objecção – eu sofri sempre
apenas na «multidão»... Numa idade absurdamente prematura, com
sete anos, sabia já que jamais alguma palavra humana me feriria: alguém
me viu alguma vez magoado a tal respeito? – Hoje ainda, tenho
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para com toda a gente a mesma afabilidade, mostro-me cheio de apreço
pelos mais humildes: em tudo isso não há um grão de orgulho, de secreto
desprezo. Quem é objecto do meu desprezo adivinha que é por
mim desprezado: graças à minha simples existência, escandalizo tudo
o que no corpo tem mau sangue... A minha fórmula para a grandeza
do homem é amor fati: nada pretender ter de diferente, nada para a
frente, nada para trás, nada por toda a eternidade. O necessário não é
apenas para se suportar, menos ainda para se ocultar – todo o idealismo
é mentira perante o necessário – mas para o amar...
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Ecce Homo 43
PORQUE ESCREVO TÃO BONS LIVROS
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Uma coisa sou eu, outra os meus livros. – Antes de a eles me referir,
aflorarei aqui a questão da compreensão ou incompreensão destes
escritos. Fá-lo-ei com a negligência que de qualquer modo convém:
semelhante questão é, de facto, ainda extemporânea. Eu próprio não
sou ainda actual, alguns nascem póstumos. – Tempo virá em que será
necessário ter instituições em que se viva e ensine, como eu acedi a
viver e a ensinar; talvez se criem até cátedras especiais para a interpretação
do Zaratustra. Mas, para mim, seria uma contradição total,
se eu esperasse, já hoje, ouvidos e mãos para as minhas verdades: que
hoje não se escute, que hoje não se queira aprender de mim, é não
só compreensível, mas até me parece justo. Não pretendo ser objecto
de confusão – eis também porque a mim mesmo não me confundo.
– Digo-o mais uma vez, na minha vida, é pouco o que se encontra de
«má vontade»; a propósito da «má vontade» literária só com muita dificuldade
poderia contar um caso. Em contrapartida, há muito de pura
loucura... Parece-me que alguém, ao pegar num livro meu, proporciona
a si uma das mais raras honras – admito até que tire as suas luvas –
para não falar dos sapatos... Quando, uma vez, o Doutor Heinrich von
Stein lamentou francamente não compreender uma só palavra do meu
Zaratustra, eu disse-lhe que tudo estava bem: compreender seis frases
de tal livro significa tê-las vívido, eleva os mortais a um nível mais alto
do que aquele que os homens «modernos» poderiam alcançar. Como
poderia eu, com este sentimento da distância, desejar sequer ser lido
pelos «modernos» que conheço! – O meu triunfo é justamente o contrário
do de Schopenhauer – digo «non legor, non legar» [‘não sou lido,
não serei lido’]. – Não é que goste de subestimar o prazer que, mais de
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uma vez, me deu a inocência em dizer não aos meus escritos. Ainda
neste verão, numa altura em que com a minha grave, demasiado grave
literatura, consegui talvez subverter todo o resto da literatura, um professor
da Universidade de Berlim fez-me benevolamente compreender
que eu devia servir-me de uma outra forma: assim ninguém lia nada. –
Finalmente, não foi a Alemanha, mas a Suíça, que apresentou os dois
casos extremos. Um ensaio do Dr. V.Widemann no Bund, sobre o Para
além do bem e do mal, com o título «O livro mais perigoso de Níetszche
», e uma recensão global sobre os meus livros em geral, por parte
do Sr. Karl Spitteler, igualmente no Bund, constituem um máximo na
minha vida – abstenh -me de dizer um máximo de quê... O último,
por exemplo, tratava o meu Zaratustra de «superior exercício de estilo
», com o desejo de que eu, mais tarde, conseguisse também cuidar
do conteúdo; o Dr. Widemann expressava-me o seu respeito pela coragem
com que eu me bati pela eliminação de todos os sentimentos de
decência. – Graças a uma pequena perfídia do acaso, cada frase era
aqui, com uma consistência que admirei, uma verdade ao contrário: no
fundo, nada mais havia a fazer do que «transmutar os valores» na sua
totalidade para, de um modo notável, se acertar a meu respeito na cabeça
do prego, em vez de com um prego se atingir a minha cabeça...
Eis porque tanto mais procuro uma explicação.
– Por fim, ninguém das coisas que os livros incluem pode ouvir
mais do que já sabe. Para aquilo a que, por vivência, não se tem acesso
algum, também não se têm ouvidos. Imaginemos agora um caso extremo:
que um livro fale de simples vivências, que se encontram totalmente
fora da possibilidade de uma experiência frequente, ou até
apenas rara; que ele constitua a primeira linguagem para uma nova
série de experiências. Neste caso, ainda nada se ouve, com a ilusão
acústica de que onde nada se ouve também nada aí existe... Esta é, em
última análise, a minha experiência comum e, se se quiser, a originalidade
da minha experiência. Quem julga ter entendido algo acerca de
mim fez de mim algo à sua imagem – não raro, o contrário de mim,
por exemplo um «idealista»; quem de mim nada entendeu nega que
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eu deva em geral ser objecto de consideração. – A palavra «superhomem
» para a designação de um tipo de suprema perfeição, em contraste
com homens «modernos», com homens «bons», com cristãos e
outros niilistas – uma palavra que, na boca de um Zaratustra, do aniquilador
da moral, se torna uma palavra muito ponderada, foi entendida
quase em toda a parte com plena ingenuidade, no sentido dos valores
cujo contrário se manifestou na figura de Zaratustra, isto é, como tipo
«idealista» de uma espécie superior de homem, meio «santo», meio
«génio»... Um outro cornífero erudito imputou-me, por causa dela, o
darwinismo; e reconheceu-se mesmo aí o «culto dos heróis», por mim
tão maliciosamente rejeitado – desse grande moedeiro falso em saber
e vontade, Carlyle. A quem eu ciciei ao ouvido que deveria atender
mais a César Bórgia do que a Parsifal, e não confiou nos seus ouvidos.
– Que eu não seja curioso das recensões dos meus livros, em especial
através de jornais, deve ser-me perdoado. Os meus amigos, os meus
editores sabem-no e nunca me falam de semelhantes coisas. Houve um
caso particular em que deparei com tudo o que de errado se cometeu a
propósito de um único livro – era o Para além do bem e do mal; deveria
a propósito retribuir-lhe com um comentário cortês. Acreditar-se-á
que a National Zeitung – um jornal prussiano, advirto os meus leitores
estrangeiros de que, com a devida vénia, só leio o Journal des Débats –
soube entender toda a seriedade do livro como um «sinal dos tempos»,
como a autêntica e correcta filosofia dos Junker, à qual apenas faltava a
proeza para o jornal de cruzada?...
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Foi para os Alemães que isto se disse: pois, sob outros aspectos, tenho
leitores em toda a parte – simples inteligências selectas, caracteres
genuínos, educados em elevadas posições e deveres; conto até entre os
meus leitores génios reais. Em Viena, em São Petersburgo, em Estocolmo,
em Copenhaga, em París e Nova Iorque – em toda a parte me
descobriram: no raso território da Europa, na Alemanha, é que não fui
descoberto... E, confesso-o, fico ainda mais satisfeito com aqueles que
não são meus leitores, que não ouviram nem o meu nome, nem a pawww.
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lavra filosofia; mas onde quer que eu vá, aqui em Turim, por exemplo,
todas as caras se mostram prazenteiras e benévolas, só de me ver. O que
até agora mais me adulou foi que algumas velhas vendedoras ambulantes
não descansaram até escolherem para mim as suas uvas mais doces.
Importa ser filósofo assim... Não é em vão que os Polacos se consideram
os franceses entre os eslavos. Uma encantadora russa nem por um
instante se enganará acerca da minha origem. Não consigo tornar-me
solene, quando muito, fico apenas embaraçado... Pensar como alemão,
sentir como alemão – tudo consigo, mas isso está para além das minhas
forças... O meu velho Ritschl afirmava até que eu concebia os
meus ensaios filológicos como um romancista parisiense – com uma
absurda tensão. Até em Paris se espantaram com «toutes mes audaces
et finesses» – a expressão é de Monsieur Taine; receio que, nas mais
elevadas formas do ditirambo, se encontre em mim mesclado algo daquele
sal, que jamais se torna insípido – «alemão» –, esprit... Não
consigo agir de outro modo, valha-me Deus! Ámen. – Todos sabemos,
alguns sabem até por experiência, o que é um animal orelhudo. Muito
bem, atrevo-me a afirmar que tenho as mais pequenas orelhas. Isto é de
não pouco interesse para as mulherzínhas – parece-me que se sentem
mais bem compreendidas por mim?... Sou o anti-asno par excellence
e, deste modo, um monstro da história universal = sou, em grego, e não
apenas em grego, o anticristo...
3
Conheço em certa medida os meus privilégios como escritor; em
casos singulares, foi-me também testemunhado em que medida significativa
o trato habitual com os meus escritos «corrompe» o gosto. Já
não se suportam simplesmente os outros livros, e muito menos ainda
os filosóficos. É uma distinção sem igual ingressar neste mundo nobre
e delicado – importa para tal não ser alemão; é, em última análise, uma
distinção que é preciso merecer. Quem pela intensidade do querer tem
comigo afinidade experimenta os verdadeiros êxtases do aprender: com
efeito, venho de píncaros que jamais alguma ave sobrevoou, conheço
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abismos em que nenhum pé ainda se transviou. Disseram-me que não
é possível pôr de lado um livro meu – que perturbo até o descanso
nocturno... Não há espécie alguma mais altaneira e, ao mesmo tempo,
mais subtil de livros: – atingem aqui e além o que de mais elevado se
pode alcançar na terra, o cinismo; há que conquistá-los quer com os
mais delicados dedos, quer com os mais poderosos punhos. Toda a enfermidade
da alma, mesmo a dispepsia, impede, de uma vez por todas,
neles entrar: é preciso não ter nervos, é necessário ter entranhas joviais.
Neles impede entrar não só a pobreza, a atmosfera dos recantos de
uma alma, mas muito mais ainda a cobardia, a impureza, o secreto rancor
ínsito nas vísceras: uma palavra minha arrasta para a luz todos os
maus instintos. Entre os meus conhecidos, tenho vários animais para
investigação, nos quais verifico a diversidade, uma diversidade muito
instrutiva, das reacções aos meus escritos. Quem pretende nada ter a
ver com o seu conteúdo, por exemplo os chamados meus amigos, tornase
«impessoal»: felicitam-me por novamente ir «tão longe» – e ainda
por ter havido um progresso na maior serenidade do tom... Os «espíritos
» inteiramente viciados, as «belas almas», que são falsidade de
cima a baixo, não sabem absolutamente o que irão pôr-se a fazer com
tais livros – por conseguinte, olham-nos à socapa, eis a bela e lógica
consequência de todas as «belas almas». Os corníferos que se encontram
entre os meus conhecidos, simples alemães, com a devida vénia,
dão a entender que nem sempre são da minha opinião, mas de vez em
quando, por exemplo... Ouvi até isto a propósito do Zaratustra... De
igual modo, todo o «feminino» no ser humano, e também nos varões,
é para mim um portão fechado: jamais se entrará neste labirinto de conhecimentos
temerários. É preciso nunca ter sido complacente consigo
mesmo, importa ter entre os seus hábitos a dureza, para no meio de duras
e puras verdades se permanecer jovial e sereno. Quando me ponho
a imaginar a imagem de um leitor perfeito, surge sempre um monstro
de coragem e de curiosidade e, além disso, ainda algo de maleável,
astuto, circunspecto, um aventureiro e descobridor nato. Finalmente:
àquele a quem só, no fundo, me dirijo eu não saberia dizer melhor do
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48 Friedrich Nietzsche
que o disse Zaratustra: a quem deseja ele exclusivamente contar o seu
enigma?
A vós, intrépidos esquadrinhadores, tentadores, e a quem
quer que com velas astutas embarcou em mares temerosos;
A vós, ébrios de enigmas, jubilosos com o crepúsculo, e
cuja alma se deixa seduzir pelas flautas a todos os esconsos
abismos:
– Não quereis decerto, com mão cobarde, agarrar-vos a um
fio; e onde podeis adivinhar, abominais inferir...
4
Vou ainda dizer, ao mesmo tempo, uma palavra muito geral sobre
a minha arte do estilo. Comunicar um estado, uma tensão interna do
pathos mediante signos, e inclusive o ritmo de tais signos – eis o sentido
de todo o estilo; e considerando que a multiplicidade dos estados
interiores é em mim extraordinária, há em mim muitas possibilidades
de estilo – a mais multifária arte do estilo em geral, de que alguma vez
um homem dispôs. É bom todo o estilo que comunica realmente um
estado interno, que não se engana acerca dos signos, a propósito do
ritmo dos signos, acerca dos gestos – todas as leis do período são arte
dos gestos.
O meu instinto é aqui infalível – O estilo bom em si – é uma pura
loucura, simples «idealismo», algo como o «belo em si», como o «bom
em si», como a «coisa em si»... Pressupõe-se já sempre que há ouvidos
– que há homens capazes e dignos de um pathos assim; que não faltam
aqueles a quem tudo isto se pode comunicar. – O meu Zaratustra, por
exemplo, anda ainda hoje à procura de homens assim – ah! terá ainda
de buscá-los por muito tempo! – é preciso ter muito valor para o ouvir...
E, até agora, ainda não existe ninguém que aprenda a arte que aí
se prodigalizou: nunca alguém despendeu mais recursos artísticos novos,
inéditos, e realmente para tal criados. Faltava demonstrar que uma
coisa semelhante era possível justamente na língua alemã: eu próprio o
teria antes negado de um modo inflexível. Antes de mim, não se sabe
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do que é capaz a língua alemã – do que em geral é capaz a linguagem.
– A arte do grande ritmo, o grande estilo do discurso para exprimir os
altos e baixos temíveis da paixão sublime, sobre-humana, só por mim
foi descoberta; com um ditirambo, como o do terceiro Zaratustra, com
o título de «Os sete selos», voei milhares de milhas acima do que até
hoje se chamou poesia.
5
Que nos meus escritos fala um psicólogo, que não tem igual, eis
porventura a primeira discriminação a que chega um bom leitor, tal
como eu o mereço, que me lê como os bons velhos filólogos liam o seu
Horácio. As proposições a respeito das quais, no fundo, todo o mundo
é unânime, para não falar dos filósofos de toda a gente, dos moralistas
e outras cabeças ocas, cabeças-de-couve – aparecem em mim como
ingenuidades do erro: por exemplo a crença de que «não egoísta» e
«egoísta» são opostos, ao passo que o próprio ego é simplesmente uma
«mais alta vertigem», um «ideal»... Não há nem acções egoístas, nem
acções não egoístas: ambos os conceitos são um contra-senso psicológico.
Ou a proposição – «o homem aspira à felicidade»... ou a proposição
– «a felicidade é a recompensa da virtude»... ou a proposição
– «prazer e desprazer são opostos»... a Circe da humanidade, a moral,
falsificou –moralizou – inteiramente a psicologia, até ao absurdo
terrífico de que o amor deve ser algo de «não egoísta»... É preciso
centrar-se em si, importa firmar-se corajosamente nas duas pernas, de
outro modo não se pode amar. Eis o que, em última análise, as mulherzinhas
sabem muito bem: é para elas um inferno lidar com homens
desinteressados, com homens simplesmente objectivos... Posso aqui
atrever-me à presunção de que conheço as mulherzinhas? Eis o que faz
parte do meu dote dionisíaco. Quem sabe? Sou porventura o primeiro
psicólogo do eterno feminino. Todas elas gostam de mim – eis uma
história já velha: exceptuando as mulherzinhas infelizes, as «emancipadas
», a quem falta o material para ter filhos. – Felizmente, não tenho
vontade de me deixar dilacerar: a mulher perfeita dilacera, quando
ama... Conheço essas afáveis ménades... Ah!, que pequeno predador
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50 Friedrich Nietzsche
perigoso, sub-reptício, subterrâneo! E, apesar de tudo, que agradável!...
Uma mulherzinha, que prossegue a sua vingança, derrubaria o próprio
destino. – A mulher é infernalmente muito pior do que o homem, e
também mais sagaz; o bem na mulher é já uma forma de degenerescência...
Em todas as chamadas «belas almas» há, no fundo, um mal-estar
fisiológico – não digo tudo, de outro modo tornar-me-ia medi-cínico.
A luta por direitos iguais é já um sintoma de enfermidade: qualquer
médico o sabe. – Quanto mais mulher for verdadeiramente a mulher,
tanto mais se defenderá com mãos e pés dos direitos em geral: o estado
de natureza, a eterna guerra entre os sexos, proporciona-lhe de longe o
primeiro lugar. – Alguém prestou ouvidos à minha definição do amor?
É a única digna de um filósofo. Amor – nos seus meios, é a guerra; no
seu fundamento, o ódio mortal entre os sexos. – Alguém ouviu a minha
resposta à pergunta sobre o modo como se cura – «salva» – um mulher?
Faça-se-lhe um filho. A mulher precisa de filhos, o homem é sempre
apenas meio: assim falou Zaratustra. «Emancipação da mulher» – eis
o ódio instintivo da mulher incapaz, isto é, infecunda, contra a mulher
fecunda – a luta contra o «homem» é sempre apenas meio, subterfúgio,
táctica. Ao elevarem-se como «mulher em si», como «mulher superior
», como «mulher idealista», rebaixam o nível geral da mulher; não
há para isso meio mais seguro do que a educação gimnasial, as calças
e os direitos políticos do rebanho de votantes. No fundo, as emancipadas
são as anarquistas no mundo do «eterno feminino», as estéreis,
cujo instinto mais fundo é a vingança... Uma espécie inteira do mais
malévolo «idealismo» – que, de resto, ocorre também nos homens, por
exemplo em Henrik Ibsen, essa típica e velha solteirona – tem como
objectivo envenenar a boa consciência, a natureza no amor sexual...
E, para não deixar qualquer dúvida acerca da minha disposição, tão
honesta quanto severa nesta consideração, quero ainda notificar uma
proposição extraída do meu código moral contra o vício: sob o nome
de vício, combato toda a espécie de antinatureza ou, se se gostar de
palavras bonitas, o idealismo. Eis a proposição: «A pregação da castidade
é uma incitação pública à antinatureza. Todo o desprezo do amor
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sexual, toda a sua adulteração mediante o conceito de «impuro», é o
próprio crime contra a vida – é o pecado autêntico contra o espírito
santo da vida.»
6
Para acerca de mim, enquanto psicólogo, proporcionar uma ideia,
apresento um curioso fragmento da psicologia, que aparece em Para
além do bem e do mal! – proscrevo, aliás, toda a conjectura sobre
quem descrevo nesta passagem. «O génio do coração, tal como o possui
aquele grande desconhecido, o Deus tentador e o nato caçador de
ratos das consciências, cuja voz sabe descer até ao mundo subterrâneo
de cada alma, que não diz uma palavra, não lança um olhar em que não
resida um intento e um estratagema de sedução, cuja mestria implica
que ele consiga brilhar – e não o que ele é, mas o que para aqueles que
o seguem é uma coacção mais para dele se aproximarem, para sempre
mais íntima e profundamente o seguirem... O génio do coração,
que faz emudecer tudo o que é ruidoso e autocomplacente e ensina a
ouvir, que amacia as almas rudes e lhes faz saborear um novo anelo
– permanecer tranquilas, como um espelho, para que nelas se reflicta
o céu profundo... O génio do coração, que ensina a mão tosca e precipitada
a hesitar e a agarrar com maior graciosidade; que adivinha o
tesouro recôndito e esquecido, a gota de bondade e de espiritualidade
suave sob o gelo turvo e espesso e é uma varinha de vedor para todas
as pepitas de ouro que, durante muito tempo, permaneceram sepultadas
e encerradas sob muita lama e areia... O génio do coração, por
cujo contacto cada qual se torna mais rico, não agraciado e surpreendido,
não deliciado e oprimido pelo bem estranho, mas mais rico em si
mesmo, mais novo do que antes, liberto, insuflado e sondado por um
vento de degelo, talvez mais inseguro, mais enternecedoramente frágil
e abalado, mas cheio de esperanças que ainda não têm nome algum,
cheio de uma nova vontade e de uma nova corrente, cheio de um novo
não-querer e de novas contra-correntes...»
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52 Friedrich Nietzsche
O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA
1
Para ser justo em relação ao «Nascimento da tragédia» (1872), é necessário
esquecer algumas coisas. Semelhante obra exerceu influência
e até fascínio com o que nela foi um equívoco – com a sua aplicação ao
wagnerismo, como se este fosse um sintoma de ascensão. Este escrito
foi, por isso, um acontecimento na vida de Wagner: só a partir de então
surgiram grandes esperanças no nome de Wagner. Ainda hoje me
recordam ao considerarem-se as circunstâncias de que brotou o Parsifal:
como eu tive a culpa de haver surgido uma tão elevada opinião a
propósito do valor cultural desse movimento. – Vi várias vezes citado
o meu escrito como «o renascimento da tragédia a partir do espírito da
música»: apenas se atendeu a uma nova fórmula da arte, da intenção
e da missão de Wagner – ignorou-se, no fundo, aquilo que o escrito
continha de mais valioso. «Helenismo e pessimismo» – teria sido um
título sem qualquer equívoco: a saber, como primeira elucidação sobre
o modo como os Gregos acabaram com o pessimismo – como o superaram...
A tragédia é justamente a prova de que os Gregos não eram pessimistas;
Schopenhauer enganou-se aqui, como se enganou em tudo.
– Olhado com alguma neutralidade, o «Nascimento da tragédia» parece
muito extemporâneo: ninguém poderia sequer sonhar que ele foi
começado sob o estrépito da batalha de Wörth. Reflecti sobre estes problemas
diante das muralhas de Metz, nas frias noites de Setembro, em
pleno serviço de enfermagem; poderia antes supor-se que semelhante
escrito tem já uns cinquenta anos. É politicamente indiferente – «não
alemão», dir-se-á hoje – tresanda escandalosamente a hegelianismo, só
em algumas fórmulas é que está assolado pelo perfume cadavérico de
Schopenhauer. Uma «ideia» – o contraste entre dionisíaco e apolíneo
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Ecce Homo 53
– encontra-se traduzida para elementos metafísicos; a própria história
concebe-se como o desenvolvimento desta «ideia»; na tragédia, o contraste
ab-roga-se em unidade; sob tal óptica, coisas que ainda nunca se
tinham visto face a face surgem de súbito contrapostas, iluminadas e
concebidas umas a partir das outras... A ópera, por exemplo, e a revolução...
As duas inovações decisivas do livro são, em primeiro lugar,
a compreensão do fenómeno dionisíaco entre os Gregos – dos quais o
livro proporciona a primeira psicología, vendo nele a única raíz de toda
a arte grega – e a compreensão do socratismo: Sócrates é considerado,
pela primeira vez, como instrumento da decomposição grega, como típico
décadent. A «racionalidade» contra o instinto. A «racionalidade»
a todo o custo como força perigosa, como força que mina a vida! –
E, em todo o livro, um silêncio profundo e hostil sobre o cristianismo.
Este não é nem apolíneo nem dionisíaco; nega todos os valores estéticos
– os únicos valores que o «Nascimento da tragédia» reconhece:
é niilista no sentido mais profundo, ao passo que no símbolo dionisíaco
se atinge o limite extremo da afirmação. Alude-se uma vez aos
sacerdotes cristãos como a uma «espécie maligna de anões», de «seres
subterrâneos»...
2
Este começo é notável além de todo o límite. Eu descobrira, ademais
da minha íntima experiência, o único símbolo e contrapartida que
a história tem – fora o primeiro a descobrir o admirável fenómeno do
dionisíaco. Em virtude de ter reconhecido Sócrates como décadent,
proporcionei ainda uma prova inteiramente inequívoca de como era
pequeno o perigo que a segurança do meu tacto psicológico corria por
parte de qualquer idiossincrasia moral: – a própria moral, enquanto sintoma
de décadence, é uma inovação, uma singularidade de primeira ordem
na história do conhecimento. Como me elevei com estas duas coisas
acima da lamentável e superficial verborreia acerca do optimismo
contra o pessimismo! – Fui o primeiro a ver a genuína oposição: – o
instinto de degenerescência que, com subterrânea sede de vingança, se
vira contra a vida (– o cristianismo, a filosofia de Schopenhauer, em
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54 Friedrich Nietzsche
certo sentido já a filosofia de Platão, todo o idealismo, como formas
típicas) e uma fórmula da máxima afirmação, nascida da plenitude, da
super-abundância, um dizer sim sem reserva, até mesmo ao sofrimento,
à própria culpa, a tudo o que é problemático e estranho na existência...
Este sim derradeiro, entusiasta, exuberante e folgazão à vida não é só o
mais excelso discernimento, é também o discernimento mais profundo,
o mais rigorosamente confirmado e sustentado pela verdade e pela ciência.
Nada do que existe se deve pôr de lado, nada é supérfluo – os
aspectos da existência recusados pelos cristãos e por outros niilistas são
até de uma ordem infinitamente mais elevada na hierarquia dos valores
do que aquilo que o instinto de décadence tem de aprovar e chamar
bom. Compreender isto cabe à coragem e, como sua condição, a um excesso
de força: com efeito, só enquanto a coragem ousa atirar-se para a
frente é que, segundo o grau de força, alguém se aproxima da verdade.
Para o forte, o conhecimento, o dizer sim à realidade é uma necessidade
tal como, para o fraco, sob a inspiração da fraqueza, também é uma necessidade
a cobardia e a fuga perante a realidade – o «ideal»... A estes
não está patente o conhecer: os décadents precisam da mentira, esta é
uma das condições da sua conservação. Quem não só compreende a
palavra «dionisíaco», mas se compreende a si na palavra «dionisíaco»,
não necessita de qualquer refutação de Platão, ou do cristianismo, ou
de Schopenhauer – fareja a putrefacção...
3
Até que ponto encontrei assim o conceito de «trágico», o conhecimento
definitivo sobre o que é a psicologia da tragédia, foi por mim
expresso ultimamente ainda no Crepúsculo dos ídolos (última página).
«O dizer sim à própria vida, mesmo nos seus mais estranhos e mais
duros problemas; a vontade de viver, que se alegra com o sacrifício
dos seus tipos mais elevados à própria inesgotabilidade – eis o que eu
chamo dionisíaco, eis o que adivinhei como ponte para a psicologia do
poeta trágico. Não para se livrar do terror e da compaixão, não para se
purificar de uma emoção perigosa mediante a sua descarga veemente
(assim o entendera Aristóteles), mas para, além do terror e da compaiwww.
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Ecce Homo 55
xão, ser ele mesmo o eterno prazer do devir – prazer que encerra em
si também a alegria do aniquilamento...» Tenho, neste sentido, o direito
de me considerar a mim mesmo como o primeiro filósofo trágico
– isto é, o extremo contraste e o antípoda de um filósofo pessimista.
Antes de mim, não existia a transposição do dionisíaco em pathos filosófico:
faltava a sabedoria trágica – em vão procurei os seus indícios
nos grandes gregos da filosofia, nos que existiram dois séculos antes de
Sócrates. Permaneceu em mim uma dúvida quanto a Heraclito, em cuja
proximidade em geral me sinto com um ânimo mais caloroso, mais bem
disposto do que em qualquer outro ponto. A afirmação do desvanecimento
e da aniquilação, o elemento decisivo numa filosofia dionisíaca,
o dizer sim à oposição e à guerra, o devir, com a radical renúncia ao
próprio conceito de «ser» – eis onde devo, em todas as circunstâncias,
reconhecer a minha maior afinidade com o que até agora foi pensado.
A doutrina do «eterno retorno», isto é, de um ciclo incondicionado e
infinito de todas as coisas – esta doutrina de Zaratustra poderia, em última
análise, ter sido já também ensinada por Heraclito. Pelo menos, a
Stoa, que herdou de Heraclito quase todas as suas ideias fundamentais,
apresenta dela alguns vestígios.
4
Deste escrito emana uma imensa esperança. Ao fim e ao resto, não
tenho qualquer fundamento para não retomar a esperança num futuro
dionisíaco da música. Lancemos o olhar para um século depois de
nós, suponhamos que é bem sucedido o meu ataque a dois milénios
de antinatureza e de ofensa à humanidade. O novo partido da vida,
que tome nas mãos a maior de todas as tarefas, a educação superior
da humanidade, inclusive a aniquilação implacável de tudo o que é degenerado
e parasita, tornará de novo possível sobre a terra o excesso
de vida de que novamente deve provir o estado dionisíaco. Prometo
uma idade trágica: a arte mais elevada no dizer sim à vida, a tragédia,
renascerá quando a humanidade tiver por detrás de si, sem sofrer,
a consciência das mais duras, porém, mais necessárias, guerras... Um
psicólogo poderia ainda acrescentar que aquilo que ouvi nos meus anos
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56 Friedrich Nietzsche
juvenis na música wagneriana nada em geral tem a ver com Wagner;
que quando eu descrevia a música dionisíaca, descrevia o que ouvira
– que tive de traduzir e transfigurar instintivamente tudo para o novo
espírito que em mim transportava. A prova disto, tão forte quanto o
pode ser uma prova, é o meu escrito Wagner em Bayreuth: em todas
as passagens psicologicamente decisivas, fala-se apenas de mim – pode
pôr-se sem reservas o meu nome ou a palavra «Zaratustra» onde o texto
apresenta a palavraWagner. A imagem completa do artista ditirâmbico
é a imagem do poeta preexistente, Zaratustra, esboçado com profundidade
abissal e sem aflorar sequer um instante a realidade wagneriana.
O próprioWagner teve disso uma ideia; já não se reconheceu em tal escrito.
– Igualmente a «ideia de Bayreuth» se transformou em algo que,
para quem conhece o meu Zaratustra, não será um conceito enigmático:
naquele grande meio-dia, em que os eleitos se dedicam à maior
de todas as tarefas – a visão, quem sabe?, de uma festa, que eu ainda
viverei... O pathos das primeiras páginas é histórico-universal; o olhar,
de que se fala na sétima página, é o autêntico olhar de Zaratustra;Wagner,
Bayreuth, toda a pequena baixeza alemã, é uma nuvem em que se
reflecte uma infinita fata morgana do futuro. Até em sentido psicológico,
todos os traços decisivos da minha própria natureza se encontram
inseridos na de Wagner – a coexistência das forças mais luminosas e
fatais, a vontade de poder, tal como jamais um homem a possuiu, a implacável
audácia na esfera espiritual, a força ilimitada de aprender sem
que, por isso, a vontade de acção sofra dano. Tudo neste escrito é precognição:
a proximidade do regresso do espírito grego, a necessidade
de anti-alexandres, que voltem a atar o nó górdío da cultura grega, depois
de ele ter sido desfeito... Oiça-se o acento histórico-mundial com
que, na página 30, se introduz o conceito de «disposição trágica»: há
apenas acentos histórico-mundiais em semelhante escrito. Eis a mais
estranha «objectividade» que existir pode: a absoluta certeza sobre o
que eu sou projectava-se numa qualquer realidade casual – a verdade
acerca de mim expressava-se a partir de uma terrífica profundidade.
Na página 71, descreve-se e antecipa-se com decisiva segurança o eswww.
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Ecce Homo 57
tilo de Zaratustra; e jamais se encontrará uma expressão mais grandiosa
do acontecimento Zaratustra, do acto de uma enorme purificação
e consagração da humanidade, do que a que se encontra nas páginas
43-46.
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58 Friedrich Nietzsche
AS CONSIDERAÇÕES INTEMPESTIVAS
1
As quatro Intempestivas são belicosas de princípio ao fim. Mostram
que eu não era nenhum «João sonhador», que me dá prazer desembainhar
a espada – e talvez ainda que a sabia perigosamente empunhar. O
primeiro ataque (1873) incidiu na cultura alemã, que nessa altura eu já
desdenhosamente olhava com um desprezo implacável. Sem sentido,
sem substância, sem meta: uma simples «opinião pública». Não há pior
mal-entendido do que julgar que o grande êxito das armas alemãs demonstra
alguma coisa a favor desta cultura – ou até a sua vitória sobre
a França... A segunda Intempestiva (1874) traz à luz o que há de perigoso,
de torturante e envenenador da vida na nossa forma de cultivar a
ciência – : a vida que se torna enferma nesta engrenagem e neste mecanismo
desumanos, na «impessoalidade» do trabalhador, na falsa economia
da «divisão do trabalho». O fim, a cultura, perde-se: - o meio, o
moderno sistema da ciência, barbariza... Neste ensaio, o «sentido histórico
», de que o presente século se orgulha, é pela primeira vez reconhecido
como doença, como típico sinal da decadência. – Na terceira e
quarta Intempestivas, enquanto indícios de um conceito mais elevado
de cultura, do restabelecimento do conceito de «cultura», opõem-se
duas figuras do mais duro egoísmo, autodisciphna, tipos extemporâneos
par excellence, cheios de soberano desprezo perante tudo o que à
sua volta se chama «império», «cultura», «cristianismo», «Bismarck»,
«êxito» – Schopenhauer e Wagner ou, numa palavra, Nietzsche...
2
Destes quatro atentados, o primeiro teve um êxito extraordinário. O
rumor que suscitou foi, em todos os sentidos, magnífico. Eu tocara na
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ferida de uma nação vitoriosa – porquanto a sua vitória não seria um
acontecimento da civilização, mas talvez, talvez algo de inteiramente
diferente... A resposta veio de todos os lados, e não apenas dos velhos
amigos de David Strauss, a quem eu pus a ridículo como o tipo de filisteu
cultural alemão e satisfait, em suma, como autor do seu evangelho
de cervejaria acerca da «velha e nova fé» (– a expressão filisteu cultural
passou do meu escrito para a linguagem). Esses velhos amigos,
aos quais enquanto wurtemburgueses e suábios eu desferira um golpe
profundo ao achar o seu prodígio, o seu Strauss, cómico, responderam
de modo tão honesto e grosseiro quanto eu poderia desejar; as réplicas
prusianas foram mais sagazes – tinham em si mais «azul de Berlim».
O mais inconveniente expressou-o um periódico de Leipzig, o mal afamado
«Grenzboten»; tive dificuldade em conter os passos dos que em
Basileia se encheram de indignação. A meu favor decidiram-se incondicionalmente
apenas alguns velhos senhores, por razões complexas e,
em parte, inexplicáveis. Entre eles, Ewald em Gotinga, que deu a entender
que o meu atentado fora mortal para Strauss. Também o velho
hegeliano Bruno Bauer, em quem tive a partir de então um dos meus
leitores mais atentos. Nos seus últimos anos, gostava, para se referir a
mim, de dar uma sugestão, por exemplo ao Sr. von Treitschke, o historiador
prussiano, no qual se poderia informar acerca do conceito, para ele
perdido, de «civilização». As coisas mais dignas de reflexão, e também
as mais longas sobre o escrito e o seu autor, foram ditas por um antigo
discípulo do filósofo von Baader, um professor Hoffmann em Würzburg.
Previu para mim, a partir desse escrito, um grande futuro – suscitar
uma espécie de crise e a suprema decisão no problema do ateísmo,
adivinhou em mim como que o seu tipo mais instintivo e mais inconsiderado.
O ateísmo fora o que me levara a Schopenhauer. – De longe
muito mais ouvida e mais amargamente sentida foi uma apologia extraordinariamente
enérgica e ousada do, aliás, tão brando Karl Hillebrand,
o último alemão humano que sabia usar a pena. Leia-se o seu ensaio na
Augsburger Zeitung; pode hoje ler-se numa forma um tanto atenuada,
nas suas obras completas. Expôs-se aí o escrito como um aconteciwww.
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60 Friedrich Nietzsche
mento, como ponto de viragem, como primeira auto-avaliação, como
excelente prelúdio, como um verdadeiro retorno da seriedade alemã e
da paixão alemã pelas coisas do espírito. Hillebrand mostrou uma altíssima
consideração pela forma do escrito, pelo seu gosto apurado, pelo
seu perfeito tacto na discriminação de pessoas e coisas: assinalou-o
como o melhor escrito polémico que se escrevera em alemão – na arte
da polémica justamente tão perigosa e tão desaconselhável aos Alemães.
Com um sim incondicional, excedendo-me até no que eu ousara
dizer sobre a dilaceração da língua na Alemanha (– hoje, brincam aos
puristas e já não sabem construir uma frase –), com um desdém semelhante
relativamente aos (primeiros escritores) desta nação, ele acabava
por exprimir a sua admiração pela minha coragem – aquela «enorme
coragem que leva ao banco dos réus justamente os favoritos de um
povo»... O efeito ulterior deste escrito é, de facto, inestimável na minha
vida. Ninguém, até agora, procurou argumentar comigo. Faz-se
silêncio, lida-se comigo na Alemanha com uma circunspecção sorumbática:
usei assim, desde há anos, de uma incondicional liberdade de
palavra para a qual ninguém, hoje, pelo menos no «império alemão»,
tem espaço suficiente. O meu paraíso é «a sombra da minha espada»...
No fundo, pus em prática uma máxima de Stendhal – aconselha ele que
com um duelo se entre na sociedade. E como soube escolher o meu adversário!
O primeiro livre-pensador alemão!... Na realidade, encontrou
aqui a sua primeira expressão uma nova espécie de liberdade de pensamento:
até hoje, nada me foi mais estranho e menos afim do que toda
a espécie europeia e americana de «libre penseurs». Com eles, como
com incorrigíveis cabeças ocas e arlequins das «ideias modernas», me
encontro numa mais profunda discordância do que com qualquer dos
seus adversários. Também eles, à sua maneira, pretendem «melhorar»
a humanidade, à sua imagem; fariam uma guerra implacável contra o
que eu sou, o que eu quero, supondo que o compreendessem – todos
eles acreditam ainda no «ideal»... Eu sou o primeiro imoralista.
3
Que as Intempestivas designadas com os nomes de Schopenhauer e
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Ecce Homo 61
Wagner possam servir peculiarmente para a compreensão ou também
apenas para a abordagem psicológica de ambos os casos, não o posso
afirmar, excepto, como é óbvio, num pormenor. Já ali se delineia com
profunda segurança de instinto o que há de elementar na natureza de
Wagner enquanto dotação histriónica que, nos seus meios e nas suas
intenções, tem apenas as suas consequências. No fundo, com estes
dois escritos, quis fazer algo de inteiramente diferente da psicologia:
– um problema da educação sem igual, um novo conceito de autodisciplina,
autodefesa, até à dureza, um caminho para a grandeza e para
tarefas histórico-universais aguardava a sua primeira expressão. Em
termos globais, agarrei pelos cabelos dois tipos famosos e ainda não
de todo fixados, como se agarra pelos cabelos uma oportunidade de
expressar algo, para assim ter na mão mais um par de fórmulas, de signos,
de meios linguísticos. Ao fim e ao cabo, isto já está indicado com
uma sagacidade perfeitamente iinquietante na página 93 da terceira Intempestiva.
De igual modo Platão se serviu de Sócrates como de uma
semiótica para Platão. – Agora, ao olhar a partir de alguma distância
para aqueles estados de que são testemunho os referidos escritos, não
pretendo negar que, no fundo, apenas acerca de mim falam. O escrito
Wagner em Bayreuth é uma visão do meu futuro; em contrapartida, em
Schopenhauer como educador, descreve-se a minha história interior, o
meu devir. Acima de tudo, a minha caução!... O que hoje sou, o lugar
em que hoje me encontro – numa altura em que já não falo com
palavras, mas com relâmpagos – oh!, quão longe deles estava ainda
então! – mas via a terra – não me enganei sequer um instante quanto
ao caminho, ao mar, ao perigo – e o êxito! Que grande tranquilidade
em prometer, que olhar feliz para um futuro que não há-de permanecer
apenas uma promessa! – aqui, cada palavra é viva, profunda, íntima;
não falta o que é mais doloroso, há palavras que manam justamente
sangue. Mas sopra sobre tudo um vento de grande liberdade; a própria
ferida já não aparece como objecção. O modo como compreendo o filósofo,
matéria explosiva temível, perante a qual tudo está em perigo,
como separo em milhas de distância o meu conceito de «filósofo» de
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62 Friedrich Nietzsche
um conceito que até em si encerra ainda um Kant, para já não falar dos
«ruminantes académicos» e de outros professores de filosofía: a seu
respeito aquele escrito proporciona uma instrução inestimável, admitindo
ainda que aqui, no fundo, quem fala não é «Schopenhauer como
educador», mas o seu contrário, Nietzsche como educador». – Tendo
em consideração que o meu ofício era então o de um erudito e talvez
ainda que eu entendia do meu ofício, não deixa de ter significado um
duro fragmento de psicología do erudito, que de súbito vem ao de cima
nesse escrito: exprime o sentimento da distância, a profunda segurança
sobre o que em mim pode ser tarefa, simplesmente meio, entreacto e
obra sem importância. A minha sagacidade consiste em ter sido muitas
coisas e em ter estado em muitos lugares para poder chegar a ser um –
para conseguir tornar-me um. Tive de ser também, por algum tempo,
erudito.
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Ecce Homo 63
HUMANO, DEMASIADO HUMANO
Com dois apêndices
1
«Humano, demasiado humano» é o monumento de uma crise. Chamase
também um livro para espíritos livres: quase cada frase exprime aí
uma vitória – libertei-me com ele do que era impróprio da minha natureza.
O idealismo não me é peculiar: o título diz «onde vós vedes coisas
ideais, vejo eu –coisas humanas, ah! apenas demasiado humanas!»...
Conheço melhor o homem... Em nenhum outro sentido se deve entender
a palavra «espírito livre»: um espírito que se tornou livre, que de
novo tomou posse de si mesmo. O tom, o acento vocal, modificou-se
de todo: o livro considerar-se-ia subtil, reservado e, segundo as circunstâncias,
duro e desdenhoso. Uma certa espiritualidade de gosto
nobre parece sobrepujar continuamente uma torrente passional que se
agita na profundidade. Neste contexto, tem sentido desculpar, por assim
dizer, a publicação do livro já em 1878, ano do centenário da morte
de Voltaire. Com efeito, Voltaire, em oposição a todos os que depois
dele escreveram, é acima de tudo um grand seigneur do espírito: exactamente
o que eu também sou. O nome de Voltaire numa obra minha
era realmente um progresso – para mim... Se se olhar atentamente,
descobre-se um espírito implacável, que conhece todos os esconderijos
em que o ideal se refugia – onde tem os seus calabouços e, por assim
dizer, a sua última segurança. Com um archote nas mãos, que de modo
algum proporciona uma luz «vacilante», com uma claridade cortante,
ilumina-se esse subterrâneo do ideal. É a guerra, mas a guerra sem
pólvora e sem fumo, sem atitudes guerreiras, sem pathos e sem luxações
nos membros – tudo isso seria ainda «idealismo». Erro após erro
se deposita no gelo, o ideal não é refutado – congela-se... Aqui, por
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64 Friedrich Nietzsche
exemplo, congela «o génio»; num canto mais além, congela o «santo»;
sob uma espessa camada de gelo, congela «o herói»; por fim, congela
«a fé», a chamada «convicção», também a «compaixão» arrefece de
um modo considerável –quase em toda a parte congela « a coisa em
si»...
2
Os inícios deste livro situam-se nas semanas do primeiro festival
de Bayreuth; uma profunda estranheza perante tudo o que ali me rodeava
foi um dos seus pressupostos. Quem tem noção das visões que
já então me saíam ao caminho pode adivinhar o ânimo com que, um
dia, despertei em Bayreuth. Era tudo como um sonho... Onde estava
eu? Nada reconhecia, foi a custo que reconheciWagner. Em vão folheava
as minhas recordações. Tribschen – uma longínqua ilha dos bemaventurados:
nem sombra de semelhança. Os dias incomparáveis em
que se lançara a primeira pedra, o pequeno círculo de afins, que festejara
o acontecimento e para a qual não era preciso desejar o tacto para
coisas delicadas: nem sombra de semelhança. O que acontecera? –
Traduzira-se Wagner para alemão! O wagneriano tornara-se senhor de
Wagner!... A arte alemã! O maestro alemão! A cerveja alemã!... Nós,
os que sabíamos demasiado bem que artistas refinados, que cosmopolitismo
do gosto exige a arte de Wagner, estávamos fora de nós, ao reencontrarmos
Wagner vestido de «virtudes» alemãs. – Conheço, creio
eu, o wagneriano, «convivi» com três gerações, desde o saudoso Brendel,
que confundiaWagner com Hegel, até aos «idealistas» do jornal de
Bayreuth, que confundiam Wagner com eles próprios – ouvi toda a espécie
de profissões de fé de «belas almas» sobreWagner. Um reino por
uma palavra sensata! Na verdade, gente de pôr os cabelos em pé! Nohl,
Pohl, Kohl, com donaire in infinitum! Nenhum aborto ali falta, nem sequer
o anti-semita. – Pobre Wagner! Onde ele foi parar! – Oxalá,
tivesse ao menos caído numa pocilga! Mas no meio de alemães!... Em
última análise, para ilustração da posteridade, haveria que empalhar o
autêntico bayreuthiano, melhor ainda, metê-lo em álcool, pois carece
de spiritus – com a legenda: eis o «espírito» sobre o qual se fundou
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Ecce Homo 65
o «império»... Enfim, no meio de tudo aquilo, parti, de súbito, para
uma viagem de algumas semanas, apesar de uma encantadora parisiense
ter tentado consolar-me; desculpei-me comWagner simplesmente
por meio de um fatal telegrama. Num lugar muito recôndito de Böhmerwald,
Klingenbrunn, arrastei a minha melancolia e o meu desprezo
pelos Alemães, como quem arrasta uma doença – e de vez em quando
escrevia, sob o título geral de «A relha do arado», algumas frases no
meu livro de apontamentos, claras e rigorosas observações psicológicas,
que ainda se podem reencontrar talvez em Humano, demasiado
humano.
3
O que então em mim se decidiu não foi decerto o corte com Wagner
– senti então a aberração completa do meu instinto, de que o erro
singular, chame-se ele Wagner ou a cátedra de Basileia, era simplesmente
um sinal. Apoderou-se de mim uma impaciência; vi que era
mais do que tempo de voltar a mim mesmo. De repente, vi de um
modo tremendo o muito tempo que já se desperdiçara – quão inútil e
arbitrariamente toda a minha existência de filólogo me afastara da minha
tarefa. Envergonhei-me desta falsa modéstia... Deixara atrás de
mim dez anos, durante os quais se suspendera em mim totalmente a
nutrição do espírito, em que nada aprendera de útil, em que absurdamente
esquecera muitas coisas por uma tralha de erudição poeirenta.
Rastejar entre antigas métricas com acribia e olhos doentes – eis o que
conseguira! Cheio de dó, via-me macilento e faminto: as realidades
estavam justamente ausentes do meu saber, e as «idealidades»... Que
vão para o diabo! – Apossou-se de mim uma sede verdadeiramente
abrasadora: a partir de então, votei-me apenas à fisiologia, à medicina
e às ciências naturais – e só regressei de novo aos genuínos estudos
históricos quando a tarefa a tal imperiosamente me coagiu. Adivinhei
então, pela primeira vez, a conexão existente entre uma actividade escolhida
na oposição ao instinto, a chamada «vocação», a que só em
último lugar se é chamado – e a necessidade de um atordoamento do
sentimento de vazio e de fome mediante uma arte narcótica – por exemwww.
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66 Friedrich Nietzsche
plo mediante a arte wagneriana. Ao olhar com circunspecção à minha
volta, descobri que um grande número de jovens sofre do mesmo mal:
uma antinatureza força formalmente uma segunda. Na Alemanha, no
«império», para falar sem qualquer equívoco, há muitíssimos homens
condenados a decidir-se antes do tempo e, em seguida, sob o fardo que
não podem alijar, a definhar... Anelam por Wagner como se fora um
narcótico – esquecem-se de si, livram-se de si por um instante... Que
digo eu!? Por cinco ou seis horas!
4
O meu instinto decidiu-se então inexoravelmente contra uma cedência
ainda por mais tempo, contra o deixar-se levar, contra o autoengano.
Qualquer género de vida, as condições mais desfavoráveis,
a enfermidade, a pobreza – tudo me parecia preferível àquele indigno
«desinteresse» em que, primeiro, por ignorância, pela mocidade, eu viera
a cair, e na qual mais tarde permanecera pendurado, por indolência,
pelo chamado «sentimento do dever». – Veio então em minha ajuda,
de um modo que não posso assaz admirar e justamente no momento
exacto, aquela grave herança por parte de meu pai – no fundo, uma
predeterminação para uma morte prematura. A doença desprendeu-me
a pouco e pouco: poupou-me toda a ruptura, todo o passo violento e
escandaloso. Não perdi então a benevolência; muita até me foi ainda
dispensada. A doença proporcionou-me igualmente o direito de uma
inversão completa de todos os meus hábitos; permitiu-me, ordenou-me
que esquecesse; deu-me de presente a coacção a estar reclinado, ao
ócio, à espera e à paciência... Mas isto é o que justamente significa
pensar!... Bastaram-me os olhos para pôr fim a toda a bibliomania, em
alemão: filologia; libertei-me do «livro», durante anos nada mais li! –
O maior benefício, de que alguma vez a mim dei provas! – Aquele eu
ínfimo, por assim dizer enterrado, por assim dizer reduzido ao silêncio
em virtude de ter de ouvir permanentemente os outros (– eis o que
significa ler!), despertou lenta, tímida e vacilantemente – mas, por fim,
reencontrou o uso da palavra. Nunca em mim deparei com tanta felicidade
como nos períodos mais enfermos e dolorosos da minha vida:
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Ecce Homo 67
basta apenas consultar a «Aurora» ou, por exemplo, O viandante e a
sua sombra para compreender o que foi este «retorno a mim»: uma
forma superior de cura!... A outra seguiu-se simplesmente desta.
5
Humano, demasiado humano, este monumento de uma rigorosa autodisciplína,
com a qual pus um fim repentino a tudo o que em mim se
insinuara de «vertigem superior», «idealismo», «belo sentimento» e
outras feminilidades, foi no essencial redigido em Sorrento; no fundo,
o livro deve-se ao senhor Peter Gast, que então estudava na Universidade
de Basileia e me era muito afeiçoado. Eu ditava, com a cabeça
ligada e cheia de dores, ele escrevia, e também corrigia – foi ele, no
fundo, o autêntico escritor, ao passo que eu fui simplesmente o autor.
Quando, por fim, o livro já pronto me chegou às mãos – à profunda admiração
de alguém gravemente doente – mandei, entre outros, também
dois exemplares para Bayreuth. Por um milagroso acaso, chegou-me
simultaneamente um belo exemplar do texto de Parsifal, com uma dedicatória
de Wagner: «Ao seu fiel amigo Friedrich Nietzsche, Richard
Wagner, Conselheiro eclesiástico». – O cruzamento dos dois livros –
foi para mim como se ouvisse um som agourento. Não tiniu como se
espadas se tivessem cruzado?... De qualquer modo, ambos sentimos
assim: por isso, ambos nos calámos. – Na altura, apareceram as primeiras
folhas de Bayreuth: compreendi então que chegara o grande
momento. – Incrível! Wagner tornara-se beato...
O livro inteiro, mas sobretudo uma passagem muito explícita, atesta
como eu então (1876) pensava acerca de mim, com que segurança prodigiosa
aderia à minha tarefa e ao que nela há de histórico-mundial: só
que, com aquela astúcia em mim instintiva, evitei aqui de novo a palavrinha
«eu» e, desta vez, para fazer irradiar com uma glória universal,
não Schopenhauer ou Wagner, mas um dos meus amigos, o excelente
Dr. Paul Rée – felizmente, um animal demasiado perspicaz para que...
Outros foram menos sagazes: perdi as esperanças quanto àqueles leitores
meus, por exemplo o típico professor alemão, que pensavam a
partir de tal passagem haver de compreender todo o livro como réeawww.
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68 Friedrich Nietzsche
lismo superior... Na verdade, ele continha um desacordo com cinco ou
seis proposições do meu amigo: pode a este respeito ler-se o prefácio à
Genealogía da moral. – A passagem reza assim: qual é, então, o princípio
a que chegou um dos mais ousados e frios pensadores, o autor
do livro «Sobre a origem dos sentimentos morais» (lisez: Nietzsche, o
primeiro imoralista), graças à sua análise incisiva e cortante de acção
humana? «O homem moral não está mais perto do mundo inteligível do
que o homem físico – com efeito, não há mundo inteligível...» Esta proposição,
dura e cortante sob a forja do conhecimento histórico (lisez:
transmutação de todos os valores), poderá porventura alguma vez, em
qualquer futuro – 1890 – servir de machado, ue se ponha na raíz da «necessidade
metafísica» da humanidade. Para benefício ou para maldição
da humanidade... Quem saberá dizer? Em todo o caso, porém, é uma
proposição de consequências muio consideráveis, ao mesmo tempo fecunda
e temível, a que não falta aquele duplo olhar para o mundo, que
todos os grandes conhecimentos possuem...
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Ecce Homo 69
AURORA
Reflexões sobre a moral
enquanto preconceito
1
Com este livro, inicia-se a minha campanha contra a moral. Não que
tenha em si o menor cheiro a pólvora: – captar-se-ão nele outros odores
inteiramente diversos e muito mais agradáveis, na suposição de que
se tenha alguma finura nas narinas. Nem artilharia pesada, nem também
fogo de espingarda: se o efeito do livro é negativo, não o são os
seus meios, dos quais se segue o efeito como uma conclusão, não como
um tiro de canhão. Que alguém se despeça do livro com uma tímida
desconfiança perante tudo o que até agora se venerava, e inclusive se
adorava, sob o nome de moral não está em contradição com o facto de,
em todo o livro, não ocorrer sequer uma palavra negativa, um ataque,
uma maldade – pelo contrário, está deitado ao sol, rotundo, feliz, semelhante
a um animal marinho que se expõe ao sol entre os rochedos.
Ao fim e ao cabo, eu próprio sou esse animal marinho: quase todas as
frases do livro foram pensadas, pescadas naquela confusão de rochas
perto de Génova, onde vivia sozinho e só com o mar tinha confidências.
Ainda hoje, num casual contacto com o livro, quase todas as frases se
tornam para mim uma ponta com que puxo de novo das profundidades
algo de incomparável: toda a sua pele vibra dos frémitos delicados
da recordação. Não é pequena a arte, que tal livro apresenta, de tornar
um pouco mais fixas coisas que deslizam com leveza e sem ruído,
instantes a que chamo lagartos divinos – não decerto com a crueldade
daquele jovem deus grego, que simplesmente comia a pobre lagartixa,
mas sempre, apesar de tudo, com algo de pontiagudo, com a pena...
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70 Friedrich Nietzsche
«Há tantas auroras, que ainda não despontaram... – esta inscrição indiana
encontra-se na portada do meu livro. Onde busca o seu autor essa
nova alvorada, essa vermelhidão delicada até agora ainda não descoberta,
com que começa um novo dia – ah!, uma série inteira, um mundo
completo de novos dias? Numa transmutação de todos os valores, na
libertação de todos os valores morais, no dizer sim a e na confiança em
tudo o que até agora foi proibido, desprezado e anatematizado. Este
livro afirmativo difunde a sua luz, o seu amor, a sua ternura, por todas
as coisas simplesmente más, restitui-lhes a «alma», a boa consciência,
o elevado direito e a prerrogativa da existência. A moral não é atacada,
deixa apenas de ser tomada em consideração... Este livro termina com
um «ou?» é o único livro que termina com um «ou?»...
2
A minha tarefa de preparar à humanidade um instante da mais elevada
auto-reflexão, um grande meio-dia em que ela possa olhar para
trás e para muito além de si, em que se subtraia à dominação do acaso
e dos sacerdotes, e em que ponha pela primeira vez, como totalidade,
a questão do «porquê?», do «para quê?» – semelhante tarefa segue-se
necessariamente do discernimento de que a humanidade não está no
seu recto caminho, de que não é regida pela divindade, de que, pelo
contrário, sob os seus mais santos conceitos de valor, imperou sedutoramente
o instinto da negação, da perversão, o instinto da décadence.
A questão da origem dos valores morais é, portanto, para mim uma
questão de primeira importância, porque condiciona o futuro da humanidade.
A exigência de que se deve acreditar que tudo, no fundo,
se encontra nas melhores mãos, que um livro, a Bíblia, proporciona um
definitivo apaziguamento sobre o governo divino e a sabedoria no destino
da humanidade, é, reconvertida para a realidade, a vontade de não
deixar surgir a verdade sobre o seu lastimoso contrário, a saber, que a
humanidade esteve até agora nas piores mãos, que ela foi governada por
depravados, por sedentos de astuciosa vingança, pelos chamados «santos
», esses caluniadores do mundo, que desonram a humanidade. O sinal
decisivo em que se torna manifesto que o sacerdote (– incluindo os
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Ecce Homo 71
sacerdotes disfarçados, os filósofos) se tornou senhor não só no interior
de uma determinada comunidade religiosa, mas em geral que a moral
de décadence, a vontade do fim, se impõe como moral em si, é o valor
incondicionado que se torna quinhão do não egoísta, e a inimizade que
por toda a parte se vota ao egoísta. Quem neste ponto diverge de mim,
considero-o infectado... Mas todo o mundo diverge de mim... Para um
fisiólogo, semelhante antagonismo de valores não levanta dúvida alguma.
Quando, no interior do organismo, o mais modesto órgão deixa
de impor com plena segurança a sua autoconservação, a sua reserva de
energia, o seu «egoísmo», o todo degenera. O fisiólogo exige a ablação
da parte degenerada, nega toda a solidariedade com o elemento degenerado,
está bem longe de dele ter compaixão. Mas o sacerdote quer
justamente a degeneração do todo, da humanidade: por isso, conserva
o degenerado – é a este preço que ele a domina... Que sentido têm estas
noções enganadoras, os conceitos auxiliares de moral, «alma», «espírito
», «vontade livre», «Deus», senão o de arruinarem fisiologicamente
a humanidade?... Quando se põe de lado a gravidade da autoconservação,
o aumento da energia corporal, isto é, da vida, quando da anemia
se constrói um ideal, do desprezo do corpo se faz «a salvação da
alma», que outra coisa é senão uma receita de décadence? – A perda
de equilíbrio, a resistência contra os instintos naturais, numa palavra, o
«desinteresse» – eis o que até agora se chamou moral... Com Aurora,
empreendi, pela primeira vez, a luta contra a moral da auto-renúncia.
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72 Friedrich Nietzsche
A GAIA CIÊNCIA
(“La gaya scienza”)
A Aurora é um livro afirmativo, profundo, mas claro e amável. O
mesmo acontece ainda, e em grau mais alto, com A gaia ciência: em
quase todas as frases, a profundidade e a travessura dão-se ternamente
as mãos. Uma estrofe, que exprime a gratidão pelo maravilhoso mês
de Janeiro, que me foi dado viver – todo o livro é uma prenda sua –
deixa ver muito bem a profundidade a partir da qual aqui a «ciência»
se tornou jubilosa:
Com a espada de fogo,
despedaçaste o gelo da minh’alma,
e esta, bramindo, corre agora
para o mar da sua mais alta esperança:
sempre mais claro e mais saudável,
livre no mais aprazível ócio,
eis que te celebram, pois, os teus prodígios,
Janeiro glorioso!
Quem pode estar na dúvida sobre o que aqui significa «a mais alta
esperança», ao ver brilhar como conclusão do quarto livro a beleza
diamantina das primeiras palavras de Zaratustra? – Ou quem lerá as
frases lapidares no fim do terceiro livro com que, pela primeira vez, se
condensou em fórmulas um destino para todos os tempos?
As canções do príncipe Vogelfrei, compostas na sua maior parte na
Sicília, recordam muito expressamente o conceito provençal da gaya
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Ecce Homo 73
scienza, aquela unidade de menestrel, de cavaleiro e de espírito livre,
com que a maravilhosa e precoce cultura da Provença se distingue de
todas as culturas equívocas; e sobretudo o último poema, «Para o mistral
», uma endiabrada canção de dança na qual, com a devida vénia, se
dança muito para além da moral, é um acabado provençalismo.
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74 Friedrich Nietzsche
ASSIM FALOU ZARATUSTRA
Um livro para todos
e para ninguém
1
Vou agora contar a história do Zaratustra. A concepção fundamental
da obra, a ideia do eterno retorno, a mais elevada fórmula da afirmação
que em geral se pode alcançar – situa-se no mês de Agosto do ano de
1881: está anotada numa folha com a inscrição: «6000 pés acima do
homem e do tempo». Naquele día, fui através dos bosques até ao lago
de Silvaplana; detive-me junto a uma rocha imensa, alta como uma pirâmide,
não longe de Surlei. Foi aí que tal pensamento me ocorreu. –
Se, a partir daquele dia, remonto alguns meses atrás, encontro, como
prognóstico, uma alteração súbita e profunda do meu gosto, sobretudo
na música. Poderia talvez considerar-se como música todo o Zaratustra;
– era decerto um renascimento na arte de ouvir, uma condição
prévia para tal. Numa pequena estância termal em plena montanha,
Recoaro, não longe de Vicenza, onde passei a Primavera de 1881, descobri,
juntamente com o meu maestro e amigo Peter Gast, também ele
um «renascente», que a fénix musical voava sobre nós com uma plumagem
mais leve e mais colorida do que alguma vez mostrara. Se,
pelo contrário, a partir desse dia avanço até ao parto súbito e que teve
lugar nas condições mais inverosímeis em Fevereiro de 1883 – a parte
final, de que cito umas quantas frases no Prefácio, foi aprontada justamente
na hora sagrada em que Richard Wagner morria em Veneza
– foram-me então necessários dezoito meses de incubação. Este preciso
número de dezoito meses podia sugerir o pensamento, pelo menos
entre os budistas, de que, no fundo, sou um elefante-fêmea. – No período
intermédio, situa-se a «Gaia ciência», que tem cem indícios da
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Ecce Homo 75
proximidade de algo incomparável; por fim, ela proporciona o começo
do próprio Zaratustra, oferece, na penúltima parte do livro quarto, a
ideia fundamental do Zaratustra. – Situa-se também neste período intermédio
o Hino à vida (para coro misto e orquestra), cuja partitura
apareceu há dois anos na editora E. W. Fritzsch, em Leipzig: sintoma
talvez não insignificante para o meu estado de espírito nesse ano, em
que o pathos afirmativo par excellence, por mim chamado o pathos
trágico, me era inerente em sumo grau. Hão-de mais tarde cantá-lo em
minha memória. – O texto, anote-se expressamente, porque a este respeito
se divulgou um mal-entendido, não é da minha lavra: constitui a
inspiração assombrosa de uma jovem russa, com quem então eu estava
em relações de amizade, a menina Lou Von Salomé. Quem das últimas
palavras do poema souber inferir um sentido adivinhará porque é que
o estimei e admirei: têm grandeza. A dor não aparece como objecção
contra a vida: «se já não tens alegria alguma para me dar, bem!
tens ainda a tua dor...» Talvez a minha música tenha também grandeza
nesta passagem. (Última nota do oboé dó sustenido, não dó. Erro de
impressão.)
Passei o Inverno seguinte na baía agradavelmente calma de Rapallo,
perto de Génova, que se incrusta entre Chiavari e o cabo de Porto
Fino. A minha saúde não era a melhor; o Inverno estava frio e excessivamente
chuvoso; um pequeno «albergo», situado muito perto do mar,
de tal modo que a preia-mar me impossibilitava o sono durante a noite,
proporcionava-me em quase tudo o contrário do que era de desejar. Todavia
e quase como demonstração da minha máxima de que tudo o que
é decisivo acontece «apesar de», foi nesse Inverno e nessa inclemência
das condições que surgiu o meu Zaratustra. – Subia eu pela manhã, em
direcção ao sul, a admirável estrada de Zoagli, pela orla do pinheiral,
e o mar espraiava-se diante de mim até perder de vista; de tarde, só se
a saúde me permitisse, contornava toda a baía desde Santa Margherita
até ao Porto Fino. Este lugar e esta paisagem tocam ainda de mais
perto o meu coração em virtude do grande amor que o inesquecível imperador
alemão Frederico III lhes votara; estava eu de novo e por acaso
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76 Friedrich Nietzsche
nesta costa, no Outono de 1886, quando ele pela última vez visitou este
pequeno e esquecido mundo de felicidade. – Foi nestes dois caminhos
que me ocorreu a ideia de toda a primeira parte do Zaratustra e, sobretudo,
o próprio Zaratustra como tipo: mais correctamente, o próprio
Zaratustra atacou-me de surpresa...
2
Para compreender semelhante tipo, importa primeiro elucidar o seu
pressuposto fisiológico: é o que eu chamo a «boa saúde». Não sei
explicar este conceito melhor nem de um modo mais pessoal do que
já fiz numa das secções finais do quinto livro da Gaia ciência. «Nós,
homens novos, sem nome, difíceis de compreender – ali se lê –, prematuros
de um futuro ainda improvável, carecemos, em vista de um novo
fim, também de um novo meio, a saber, de uma nova saúde, de uma
saúde mais forte, mais sagaz, mais resistente, mais ousada e mais astuta
do que foram até agora todas as saúdes. Aquele cuja alma anela por
viver todo o âmbito dos valores e aspirações até agora existentes e por
percorrer todas as costas deste «mediterrânico ideal», quem pretende
conhecer, graças às aventuras da sua própria experiência, a coragem de
um conquistador e explorador do ideal, bem como de um artista, de
um santo, de um legislador, de um sábio, de um erudito, de um homem
piedoso, de um eremita de Deus de estilo antigo, tem, acima de
tudo, necessidade de uma coisa: boa saúde – uma saúde tal que não
só se possui, mas também permanentemente se adquire e se deve adquirir,
porque ela está sempre de novo a perder-se e se deve perder...
E agora, após estarmos há tanto tempo a caminho, nós, argonautas do
ideal, mais ousados talvez do que é prudente, e que muitas vezes naufragamos
e chegamos à ruína mas, como se disse, mais saudáveis do
que nos poderiam permitir, perigosamente saudáveis, sempre de novo
sãos – quase nos parece ter sempre diante de nós, como recompensa,
uma terra ainda por descobrir, cujas fronteiras ninguém ainda divisou,
um além de todas as terras e de todos os recônditos do ideal até agora
conhecidos, um mundo tão cheio de beleza, de coisas estranhas, perturbantes,
temíveis e divinas, que tanto a nossa curiosidade como a nossa
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Ecce Homo 77
sede de posse transbordaram – ah, já por nada são agora saciadas!...
Após tais perspectivas e com semelhante ânsia no saber e na consciência,
como poderíamos contentar-nos ainda com homens actuais? Grave
é e bastante, mas inevitável, que vejamos, e talvez já nem sequer vejamos,
os seus mais dignos objectivos e esperanças com uma seriedade
mal contida... Um outro ideal se nos oferece, um ideal admirável, aliciante,
cheio de perigos, ao qual não queremos persuadir seja quem for,
porque a ninguém para tal concedemos facilmente o direito: o ideal
de um espírito que, ingenuamente, isto é, de um modo não intencional
e a partir de uma transbordante plenitude e poder, brinca com tudo o
que até agora se chamou sagrado, bom, intangível e divino; para o qual
o mais elevado, em que o povo tem justamente a sua medida de valor,
significaria já tanto como perigo, decadência, degradação ou, pelo
menos, como recuperação, cegueira, auto-esquecimento temporário; o
ideal de um bem-estar ou de uma boa vontade humana, sobre-humana,
que bastantes vezes se afigurará inumana quando, por exemplo, se colocar
ao lado de tudo o que, até agora, foi seriedade terrena, ao lado
de toda a solenidade nos gestos, na palavra, no tom, no olhar, na moral
e no dever, como sua paródia viva, involuntária e com o qual, não
obstante, começa talvez a grande seriedade, se põe o genuíno ponto de
interrogação, se muda o destino da alma, a agulha se desloca, a tragédia
começa...»
3
– Tem alguém, no final do século XIX, um conceito claro do que os
poetas de épocas fortes chamavam inspiração? Caso contrário, quero
aqui descrevê-lo. Com o mínimo resto de superstição em si, dificilmente
alguém saberia, de facto, rejeitar a ideia de ser apenas a encarnação,
simplesmente o porta-voz, o medium de poderes superiores. O
conceito de revelação, no sentido de que subitamente, com uma segurança
e uma delicadeza imensas, algo se torna visível, audível, algo
que nos abala e nos transtorna no mais profundo de nós mesmos, descreve
simplesmente a situação real. Ouve-se, não se busca; aceita-se,
não se pergunta quem aí dá; como um relâmpago, brilha um pensawww.
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78 Friedrich Nietzsche
mento, com necessidade, na forma sem hesitações – jamais fiz uma
escolha. Um arroubo cuja tensão ingente se atenua numa torrente de
lágrimas, em que o passo, involuntariamente, ora se torna tempestuoso,
ora lento; um perfeito estar fora-de-si com a consciência mais distinta
de um sem número de finos tremores e exsudações até às pontas dos
pés; um abismo de felicidade, em que o extremo de sofrimento e de
melancolía não actua como contraste, mas como condicionado, como
exigido, como uma cor necessária no meio de um tal excesso de luz;
um instinto de relações rítmicas, que abrange amplos espaços de formas
– a extensão, a necessidade de um ritmo largo constitui quase a
medida do poder da inspiração, uma espécie de compensação para o
seu constrangimento e a sua tensão... Tudo acontece de um modo involuntário
até ao mais alto grau, como num ciclone do sentimento de
liberdade, do ser-incondicionado, de poder, de divindade... O mais notável
é o carácter compulsivo da imagem, da metáfora; deixa de se
ter um conceito do que é uma imagem ou uma metáfora, tudo se oferece
como a expressão mais imediata, mais correcta, mais simples. De
facto, para lembrar uma palavra de Zaratustra, parece que as coisas surgem
por si mesmas e se proporcionam à metáfora (– «Todas as coisas
aqui acorrem amorosamente ao teu discurso e te adulam: querem, com
efeito, cavalgar sobre as tuas costas. Em cada metáfora, galgas tu aqui
para cada verdade. Para ti se abrem aqui palavras de todo o ser e sacrários
da palavra; todo o ser pretende aqui tornar-se palavra, todo o devir
quer de ti aprender a falar –»). Eis a minha experiência da inspiração;
não duvido de que é necessário recuar milénios para encontrar alguém
que me possa dizer: «É também a minha».
4
Estive, depois, doente em Génova, durante algumas semanas. Seguiuse
então uma Primavera tristonha em Roma, onde simplesmente aceitava
a vida – não era fácil. No fundo, aborreceu-me para além de toda
a medida este lugar da terra, que eu não escolhera livremente, e que era
o mais inadequado possível para o poeta do Zaratustra; procurei dele
libertar-me – quis ir para Aquila, o conceito oposto de Roma, fundada
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Ecce Homo 79
por ódio contra Roma, tal como eu algum dia hei-de fundar um lugar,
a memória de um ateu inimigo da Igreja comme il faut, a alguém que
me seja afim, ao grande imperador Hohenstaufen Frederico II. Mas em
tudo isto havia uma fatalidade: fui obrigado a regressar. Ao fim e ao
cabo, após ter-me fatigado à busca de um lugar anticristão, tive de me
contentar com a Piazza Barberini. Temia que, para me esquivar quanto
possível aos maus cheiros, houvesse alguma vez de indagar se, no Palazzo
del Quirinale, não haveria um quarto calmo para um filósofo. –
Numa loggia, que domina a piazza mencionada, de onde se abarca a
cidade de Roma e se ouve lá muito em baixo a fontana correndo, escrevi
a canção mais solitária que alguma vez foi composta, a Canção da
noite; assediava-me nessa altura uma melodia de indizível melancolia,
cujo refrão reproduzi nas palavras: «Morto por imortalidade...»
No Verão, depois de regressar ao lugar sagrado onde me iluminara
o primeiro lampejo da ideia do Zaratustra, encontrei a sua segunda
parte. Dez dias bastaram; em caso algum, nem para a primeira, nem
para a segunda e para a última, precisei de mais. No Inverno a seguir,
sob o céu alciónico de Nice, que pela primeira vez então resplandeceu
na minha vida, encontrei o terceiro Zaratustra – e a obra ficou pronta.
Feitas todas as contas, mal chegou a um ano. Muitos sítios secretos e
elevações da paisagem de Nice foram, graças a instantes inesquecíveis,
por mim consagrados; aquela parte decisiva, que tem como título «Das
velhas e novas tábuas», foi composta durante a difícil ascensão, desde
a pousada até ao admirável lugarejo mourisco no meio das rochas, Ega
– a agilidade muscular foi sempre em mim máxima quando a força criadora
fluía com maior abundância. O corpo entusiasma-se: deixemos a
«alma» fora de jogo... Podiam muitas vezes ver-me dançar; e eu podia
então, sem qualquer ideia de cansaço, caminhar sete, oito horas pelas
montanhas. Dormia bem, ria-me muito – encontrava-me numa perfeita
robustez e paciência.
5
Abstraindo destes trabalhos de dez dias, os anos da composição de
Zaratustra e, sobretudo, os posteriores constituíram uma calamidade
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80 Friedrich Nietzsche
sem igual. Paga-se muito caro ser imortal: morre-se por isso várias
vezes em vida. – Há algo a que eu dou o nome de rancor da grandeza:
tudo o que é grande, obra ou acção, vira-se, uma vez levado a cabo, sem
demora contra quem a fez. Só pelo facto de a ter realizado, ele é agora
fraco – já não suporta a sua acção, já não a olha de frente. Ter atrás de
si algo que jamais se deveria ter querido, algo em que se prende o nó no
destino da humanidade – e tê-lo doravante sobre si!... Quase esmaga...
O rancor da grandeza!
Outra coisa é o silêncio horripilante, que à volta de si se ouve. A
solidão tem sete peles; nada mais por ela passa. Aproximamo-nos dos
homens, saudamos os amigos: novo deserto, mais nenhum olhar nos
saúda. No melhor dos casos, uma espécie de revolta. Experimentei
uma tal revolta em graus muito variados, mas de quase todos os que
estavam perto de mim; parece que nada ofende mais profundamente
do que, de súbito, fazer notar uma distância – as naturezas nobres, que
não sabem viver sem venerar, são raras. Uma terceira coisa é a absurda
susceptibilidade da pele às pequenas picadas, uma espécie de desamparo
perante tudo o que é pequeno. Este parece-me condicionado pelo
enorme esbanjamento de todas as forças defensivas, pressuposto pela
actividade criadora, por toda a actividade a partir do mais singular, do
mais íntimo e do mais profundo. As pequenas capacidades defensivas
encontram-se assim como que suspensas; já nenhuma energia nelas desemboca.
– Ouso ainda indicar que se digere pior, que os movimentos
se fazem de má vontade, que se está demasiado exposto às sensações de
calafrio, e também à desconfiança – à desconfiança que, em muitos casos,
é simplesmente um erro etiológico. Num estado assim, senti uma
vez a aproximação de uma manada, graças ao regresso de pensamentos
mais afáveis, mais humanos, ainda antes de a ver: isso produz em si
calor...
6
Esta obra aguenta-se absolutamente por si. Deixemos de lado os poetas:
talvez em geral nunca tenham feito algo a partir de semelhante excesso
de força. A minha noção de «dionisíaco» foi, a este respeito, uma
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Ecce Homo 81
acção excelsa; por ela medidas, todas as restantes acções humanas surgem
como que pobres e condicionadas. Que um Goethe, um Shakespeare
não soubessem, nem sequer por um instante, respirar nesta ingente
paixão e altitude, que Dante, comparado a Zaratustra, seja simplesmente
um crente e não alguém que pela primeira vez produz a verdade,
um espírito que governa o mundo, um destino –, que os poetas dos Vedas
sejam sacerdotes e nem sequer dignos de desapertar os atilhos das
sandálias de um Zaratustra – tudo isso é o menos e não proporciona
ideia alguma da distância, da solidão cerúlea em que vive esta obra.
Zaratustra tem um eterno direito a dizer: «Traço à minha volta círculos
e fronteiras sagradas; são cada vez menos os que comigo sobem a
montanhas sempre mais altas – edifico uma montanha de cumes sempre
mais santos.» Se alguma vez se reunissem o espírito e os bens de
todas as grandes almas, nem todos em conjunto estariam em condições
de produzir um único discurso do Zaratustra. É imensa a escadaria que
ele sobe e desce; viu mais longe, quis ir mais longe e conseguiu ir mais
longe do que qualquer outro homem. Com cada palavra sua, contradiz,
ele, o mais afirmativo de todos os espíritos; nele, todas as contradições
se conciliam numa nova unidade. As mais elevadas e as mais baixas
forças da natureza humana, o que há de mais doce, de mais ténue e
de mais terrível, brotam de uma só fonte com imortal segurança. Até
então, não se sabe o que é a grandeza, a profundidade; menos ainda
se sabe o que é a verdade. Não há um instante nesta revelação da verdade
que não tenha já sido antecipado, adivinhado por qualquer um dos
maiores. Não há sabedoria, indagação das almas, arte alguma de falar,
antes de Zaratustra; o mais imediato, o mais quotidiano fala aqui de
coisas inauditas. A frase estremece de paixão; a eloquência tornou-se
música; relâmpagos projectam-se para futuros até agora não pressentidos.
A mais poderosa força para a alegoria, que até então existiu, é pobre
e mera brincadeira em comparação com este retorno da linguagem
à natureza da metáfora. – E eis como Zaratustra desce e diz a cada qual
o que há de mais agradável! Como até aos seus adversários, os sacerdotes,
lhes pega com mãos delicadas e com eles e por eles sofre! – Aqui,
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82 Friedrich Nietzsche
o homem é a todo o instante superado, a noção de «super-homem» tornou-
se aqui a mais elevada realidade – numa lonjura infinita, tudo o
que até agora se chamou grande no homem encontra-se abaixo dele. O
alciónico, os pés ligeiros, a ubiquidade de malícia e insolência e tudo
o que aliás é típico de Zaratustra, jamais se sonhou como essencial à
grandeza. Zaratustra sente-se justamente neste âmbito no espaço, nesta
acessibilidade ao contraditório como a espécie mais elevada de todo
o ente; e se se atender à maneira como ele a define, renunciar-se-á a
buscar o seu equivalente.
«A alma que tem a mais longa escada
e mais ao fundo pode descer,
a alma de maior amplitude, que mais extensamente
em si pode correr, errar e vaguear, a de maior necessidade,
que com prazer se precipita no acaso, a alma que é, que se
entrega ao devir,
a que tem vontade e ânsia
e nestas quer ainda mergulhar,
a que foge de si mesma, que a si mesma se recupera
nos mais amplos círculos, a alma mais sábia,
e que a loucura com toda a doçura convence,
a que mais a si mesma se ama, em que todas as coisas
têm o seu fluxo e refluxo,
a sua baixa-mar e preia-mar.»
Eis a noção do próprio Dioniso. – E aqui conduz também uma
outra consideração. O problema psicológico que reside no tipo de Zaratustra
é como aquele que, num grau inaudito, diz não, actua por negação,
perante tudo aquilo a que, até agora, se disse sim e, apesar de
tudo, pode ser o contrário de um espírito que diz não; do mesmo modo
que o espírito que aguenta o maior peso do destino, uma fatalidade da
missão, pode todavia ser o mais ágil e para além de tudo – Zaratustra
é um dançarino –; como o que tem a mais implacável, a mais temível
visão da realidade, que excogitou o «pensamento mais abissal», não
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Ecce Homo 83
encontra, apesar de tudo, objecção alguma contra a existência, nem sequer
contra o seu eterno retorno – pelo contrário, depara com mais um
fundamento para ele próprio ser o eterno sim a todas as coisas, para ser
o ingente e ilimitado sim e ámen»... «A todos os abismos levo ainda o
meu dizer sim, fonte de bênçãos»... Eis, porém, mais urna vez ainda a
noção de Dioniso.
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Que linguagem falará um tal espírito, quando fala a sós consigo?
A linguagem do ditirambo. Sou o inventor do ditirambo. Atente-se no
modo como Zaratustra fala consigo, antes do nascer do sol (III, 18):
semelhante felicidade de esmeralda, uma tal ternura divina, ainda não
tivera voz alguma, antes de mim. Também a mais profunda tristeza de
semelhante Dioniso se torna ainda ditirambo; tomo como exemplo a
Canção da noite, o lamento imortal de, graças à superabundância de
luz e poder, em virtude da sua natureza solar, ser condenado a não
amar.
«É noite: falam agora mais alto as fontes que jorram.
E também a minha alma é uma fonte a borbotar.
É noite: só agora acordam todos os cantos dos amantes.
E também a minha alma é o canto de um amante.
Algo de insatisfeito, de insaciável, há em mim
que quer expressar-se em voz alta.
Há em mim um desejo de amor,
que fala espontaneamente a linguagem do amor.
Sou luz: ah! fora eu noite!
Mas a minha solidão é estar rodeado de luz.
Ah! fora eu treva e noite!
Como então sugaria nos seios da luz!
E bem quereria dizer-vos ainda,
pequenos astros cintilantes e vermes luminosos!
– E alegrar-me da vossa dádiva de luz.
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84 Friedrich Nietzsche
Vivo, porém, na minha própria luz,
torno a sorver as chamas que de mim emanam.
Não conheço o prazer de quem recebe;
e muitas vezes sonhei que roubar
deveria ser ainda mais ditoso do que receber.
A minha pobreza é que a minha mão
jamais em dar tem descanso;
a minha cobiça é ver os olhos em expectativa
e as noites iluminadas da nostalgia.
Oh infelicidade de todos os que dão!
Oh obscurecimento do meu sol!
Oh desejo de desejar! Oh fome devoradora na saciedade!
É de mim que eles recebem:
mas toco ainda nas suas almas!
Há um abismo entre receber e dar;
e o mais pequeno abismo é o mais difícil de transpor.
Da minha beleza promana uma fome:
pudesse eu magoar aqueles a quem ilumino,
pudesse eu roubar os que presenteio –
tenho, pois, fome de maldade.
Retirar a mão, quando já a mão lhe estendi;
qual cascata, que ainda na queda hesita:
tenho, pois, fome de maldade.
É a minha plenitude que inventa semelhante vingança,
e esta maldade brota da minha solidão.
A minha alegria de dar morreu no acto de dar,
a minha virtude cansou-se de si mesma na sua superabundância!
Quem sempre dá corre o risco de perder o pudor;
a quem sempre reparte nascem-lhe, à força de repartir,
calos na mão e no coração.
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Ecce Homo 85
Os meus olhos já não se incham
perante a humilhação dos que pedem;
a minha mão tornou-se demasiado dura
para o estremecimento das mãos cheias.
Para onde se esvaíram as lágrimas dos meus olhos
e a lanugem do meu coração?
Oh solidão de todos os que dão!
Oh silêncio de todos os que iluminam!
Muitos sóis giram no espaço vazio:
para tudo o que é tenebroso falam eles com a sua luz –
a mim nenhuma palavra dizem.
Oh! Eis a hostilidade da luz perante o que é luminoso:
seguem implacavelmente as suas órbitas.
Cruéis contra o que é luminoso
no mais profundo dos seus corações,
frios perante outros sóis –
assim caminha cada sol.
Como um furacão, seguem os sóis as suas órbitas,
seguem a sua inelutável vontade, eis a sua frieza.
Oh, sois vós, seres tenebrosos e nocturnos,
sois vós quem dá calor por meio de quem é luminoso!
Oh, só vós bebeis o leite e o refrigério
nos seios da luz!
Ah! rodeia-me o gelo,
queima-se a minha mão com a algidez!
Ah! há em mim uma sede que anela pela vossa sede.
É noite: ah, porque devo eu ser luz!
e sede de trevas! e solidão!
É noite: mana agora de mim, como fonte, a minha ânsia –
anseio pela palavra.
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86 Friedrich Nietzsche
É noite: falam agora alto todas as fontes que jorram.
E também a minha alma é uma fonte a borbotar.
É noite: despertam agora todas as canções dos amantes.
E também a minha alma é o canto de um amante.
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Coisas assim nunca foram escritas nem sentidas nem sofridas: assim
sofre um deus, um Dioniso. A resposta a um tal ditirambo da
solidão solar na luz seria Ariadne... Quem, além de mim, sabe o que é
Ariadne!... Ninguém, até hoje, esteve na posse da solução de tais enigmas,
duvido mesmo de que alguém tenha sequer visto aqui um enigma.
– Zaratustra determina, com rigor, a sua tarefa – é também a minha –
para que ninguém se possa enganar sobre o seu sentido: Zaratustra é
afirmativo até à justificação, e até mesmo à redenção de todo o passado.
«Caminho entre os homens
como entre fragmentos de futuro:
daquele futuro que já contemplo.
E todo o meu pensamento e desejo é unir e congregar
o que é fragmento, enigma e acaso horrendo.
E como suportaria eu ser homem,
se o homem não fosse também poeta,
decifrador e redentor do acaso?
Redimir o passado e recriar todo o «foi»
num «assim devia ser!» –
Eis o que para mim significaria redenção.
Numa outra passagem, Zaratustra determina tão rigorosamente quanto
possível o que, para ele, só pode ser «o homem» – nenhum objecto do
amor ou da compaixão. Zaratustra tornou-se também senhor da grande
náusea que sente pelo homem: o homem é para ele uma disformidade,
uma matéria, uma pedra monstruosa que precisa do escultor.
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Ecce Homo 87
«Não mais querer, não mais apreciar e não mais criar:
Oh que este grande cansaço permaneça longe de mim!
Também no conhecimento sinto apenas o prazer do gerar
e do devir da minha vontade;
e se há inocência no meu conhecimento,
isso acontece porque nele existe a vontade de gerar.
Foi esta vontade que me levou para longe
de Deus e dos deuses:
que haveria, pois, para criar, se deuses houvesse?
A minha ardente vontade de criar impele-me
sempre de novo para o homem;
assim como o martelo para a pedra.
Ah, homens, na pedra dorme uma estátua,
a estátua das estátuas!
Ah, porque deve ela dormir na mais dura,
na mais monstruosa pedra!
Retumba agora macabramente o meu martelo
contra a sua prisão.
A pedra faz-se em pedaços: Que me importa!?
Quero acabar a obra, pois uma sombra veio até mim –
de todas as coisas a mais silenciosa
e a mais ténue veio até mim!
A beleza do super-homem veio até mim como sombra:
Que me importam ainda os deuses!?...
Vou relevar um último ponto de vista: o ensejo para tal é o trecho
mencionado. Uma tarefa dionisíaca tem, de modo decisivo, como
condições prévias a dureza do martelo e o próprio prazer da destruição.
O imperativo «tornai-vos duros!», a certeza ínfima de que todos
os criadores são duros, é o sinal genuíno de uma natureza dionisíaca.
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88 Friedrich Nietzsche
PARA ALÉM DO BEM E DO MAL
Prelúdio de uma filosofia do futuro
1
A tarefa para os anos seguintes estava já delineada tão rigorosamente
quanto possível. Cumprida a parte afirmativa do meu trabalho, veio
a seguir a sua metade que diz não e que actua pela negação: a própria
transmutação dos valores até agora existentes, a grande guerra –
a convocação de um dia da decisão. Aqui se inclui o vagaroso olhar
em redor à busca de quem me é afim, daqueles que, graças à sua força,
me proporcionariam ajuda na obra da destruição. – De então para cá,
todos os meus escritos são anzóis: talvez eu perceba de anzóis melhor
do que ninguém?... Se nada apanhei, a culpa não é minha. Faltavam
os peixes...
2
Este livro (1886) é, em todas as suas partes essenciais, uma crítica
da modernidade, sem excluir as ciências modernas, as artes modernas,
e até a política moderna, além de indicar um tipo oposto, que é tão
pouco moderno quanto possível, um tipo nobre, afirmativo. No último
sentido, o livro é uma escola do gentilhomme, tomando-se o conceito
numa acepção mais espiritual e mais radical do que até agora se fez.
Importa ter coragem no corpo para também simplesmente o suportar, é
preciso não ter aprendido o medo... Todas as coisas de que esta época
se orgulha se sentem como a contradição deste tipo, quase como más
maneiras, a famosa «objectividade», por exemplo a «compaixão por
todos os que sofrem», o «sentido histórico» com a sua subserviência
perante o gosto estrangeiro, com o estar de barriga no chão diante de
petits faits, a «cientificidade». – Se se tomar em consideração que o
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Ecce Homo 89
livro vem depois de Zaratustra, talvez se adivinhe também o regime
dietético a que deve a sua origem. O olhar, estragado por uma compulsão
poderosa a ver longe – Zaratustra vê ainda mais longe do que o
czar – é aqui forçado a abranger com nitidez o mais próximo, o tempo,
o em-torno-de-nós. Encontrar-se-á em todas as partes, sobretudo também
na forma, uma igual renúncia arbitrária aos instintos, a partir dos
quais apenas um Zaratustra seria possível. O requinte na forma, na
intenção, na arte do silêncio, surge em primeiro plano, a psicologia é
manejada com dureza e crueldade deliberadas – o livro esquiva-se a
toda a palavra de bondade... Tudo isto descontrai: quem é que, em
última análise, adivinha que espécie de descontracção requeria um tal
dispêndio de bondade, como é o Zaratustra?... Em termos teológicos
– preste-se atenção, pois raramente falo como teólogo – foi o próprio
Deus que, como serpente, se instalou na árvore do conhecimento, no
fim da obra dos sete dias: descansava assim de ser Deus... Tinha feito
tudo demasiado belo... O diabo é apenas o ócio de Deus no fim dos
sete dias...
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90 Friedrich Nietzsche
GENEALOGIA DA MORAL
Um escrito polémico
Os três ensaios de que se compõe esta genealogía são talvez, quanto à
expressão, à intenção e à arte do inesperado, o que até agora de mais
inquietante se escreveu. Dioniso é, como se sabe, também o deus das
trevas. – É de cada vez um começo que deve induzir em erro, é um
preliminar frío, científico, até irónico, intencional, intencionalmente
retardativo. A pouco e pouco, aumenta a agitação; relâmpagos isolados;
verdades muito desagradáveis vêm de longe e fazem-se ouvir
com um rugido surdo até que, por fim, se atinge um tempo feroce, em
que tudo se precipita com ingente tensão. Por fim, no meio de detonações
perfeitamente horrendas, torna-se de cada vez visível uma nova
verdade entre as espessas nuvens. – A verdade do primeiro ensaio é a
psicologia do cristianismo: o nascimento do cristianismo a partir do espírito
do ressentimento e não, como se crê, a partir do «espírito» – um
contra-movimento, segundo a sua essência, a grande rebelião contra a
dominação de valores nobres.
O segundo ensaio proporciona a psicologia da consciência: esta não
é, como se crê, «a voz de Deus no homem» – é o instinto da crueldade
que se volta para trás, após já não poder descarregar-se para fora. A
crueldade como um dos mais antigos e mais inevitáveis subsolos da
cultura veio aquí, pela primeira vez, à luz.
O terceiro ensaio fornece a resposta à questão sobre a procedência
do imenso poder do ideal ascético, do ideal sacerdotal, embora o
mesmo seja o ideal nocivo par excellence, uma vontade de fim, um
ideal de décadence. Resposta: não é porque Deus actue por detrás do
sacerdote, como se crê, mas faute de mieux – porque foi até agora o
único ideal, porque não tinha concorrente algum. «O homem deseja
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Ecce Homo 91
mais querer o nada do que não querer»... Acima de tudo, faltava um
contra-ideal – até ao Zaratustra.
Oxalá me tenham entendido. Três trabalhos preparatórios decisivos
de um psicólogo para uma transmutação de todos os valores. – Este
livro contém a primeira psicología do sacerdote.
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92 Friedrich Nietzsche
CREPÚSCULO DOS ÍDOLOS
Como se filosofa com o martelo
1
Este escrito, que nem chega a cento e cinquenta páginas, sereno e fatal
no tom, é um demónio que ri – a obra foi escrita em tão poucos dias que
hesito em dizer o seu número e constituí uma excepção entre os livros
em geral: nada há de mais substancioso, de mais independente, de mais
revolucionário – e de mais maligno. Se alguém quiser, brevemente, ter
uma ideia de como, perante mim, tudo estava de cabeça para baixo, que
comece por ler este escrito. Aquilo que o título refere como ídolos é
simplesmente o que, até agora, se chamou verdade. Crespúsculo dos
ídolos – em vernáculo: fim da velha verdade...
2
Não há nenhuma realidade, nenhuma «idealidade» que, neste escrito,
não fosse aflorada (– aflorada: que eufemismo tão discreto!...)
Não só os ídolos eternos, também os mais recentes, portanto mais senis.
As «ideias modernas», por exemplo. Um vento forte sopra entre
as árvores e por toda a parte caem os frutos – verdades.
Depara-se aí com a prodigalidade de um outono fecundo: tropeçase
em verdades, algumas são mesmo espezinhadas – são demasiadas...
Mas o que nos vem ter às mãos já não é nada de dúbio, são decisões.
Só eu tenho na mão a bitola para as «verdades», só eu posso decidir.
É como se em mim uma segunda consciência tivesse surgido, como se
em mim «a vontade» tivesse acendido uma luz sobre o plano inclinado
pelo qual, até agora, ela viera descendo... O plano inclinado – eis o
nome que se dava ao caminho para a «verdade»... Chega-se ao fim de
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Ecce Homo 93
todo o «impulso obscuro», o homem bom era justamente o que menos
consciente estava do recto caminho e, com toda a seriedade, ninguém
antes de mim conhecia o bom caminho, o caminho para as alturas: só
a partir de mim há de novo esperanças, tarefas, caminhos especificados
da cultura – sou o seu alegre mensageiro... Por isso mesmo, sou
também um destino.
3
Imediatamente após a conclusão da obra mencionada e sem sequer
perder um dia, encetei a tarefa ingente da transmutação, num soberano
sentimento de orgulho, a que nada se compara, certo a cada instante
da minha imortalidade e gravando em tábuas de bronze, símbolo após
símbolo, com a segurança de um destino. O prefácio surgiu a 3 de Setembro
de 1888: quando, de manhã, após esta redacção, vim para o
ar livre, deparei à minha frente com o mais belo dia que alguma vez
a Alta Engadine me mostrará – transparente, resplandecente nas cores,
englobando em si todos os contrastes, todos os pontos medianos entre
o pólo e o sul. – Só a 20 de Setembro deixei Sils-Maria, detido pelas
inundações, fui durante muito tempo o único hóspede deste lugar admirável,
ao qual a minha gratidão quer proporcionar a dádiva de um
nome imortal. Após uma viagem com muitos incidentes, e até com perigo
de vida em Como, que fora inundada e onde cheguei já noite alta,
arribei a Turim na tarde do dia 21, o meu lugar comprovado e, doravante,
minha residência. Ocupei de novo a mesma habitação onde já
morara na primavera, via Carlo Alberto 6, III, em frente do imponente
Palazzo Carignano, em que nasceu Vítor Emanuel, com a vista para a
píazza Carlo Alberto e, mais além, para as colinas. Sem hesitação e
sem me deixar distrair um só instante, mergulhei novamente no trabalho:
faltava só acabar a quarta parte da obra. A 30 de Setembro, grande
vitória; conclusão da transmutação; ócio de um deus nas margens do
Pó. No mesmo dia, escrevi ainda o prefácio do Crespúsculo dos ídolos,
e o meu descanso em Setembro consistiu na correcção das suas provas
tipográficas. – Nunca vivera um Outono assim, e também jamais supus
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94 Friedrich Nietzsche
que algo de semelhante fosse possível na terra – um Claude Lorrain
imaginado até ao infinito, e cada dia de idêntica e tremenda perfeição.
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Ecce Homo 95
O CASOWAGNER
Um problema musical
1
Para se fazer justiça a este escrito, é preciso sofrer do destino da música
como de uma ferida aberta. – De que sofro, quando sofro do destino da
música? Sofro de a música ter perdido o seu carácter transfigurador do
mundo, o seu carácter afirmativo; de ela já ser música da décadence,
e não já a flauta de Dioniso... Supondo, porém, que se sente a causa
da música como a sua própria causa, como a histeria do seu próprio
sofrimento, descobrir-se-á que este escrito está cheio de considerações
a tal respeito e é benévolo em excesso. Ser em tais casos divertido e
rir com bonomia de si mesmo – ridendo dicere severum [rindo, dizer
coisas graves], onde o verum dicere [dizer a verdade] justificaria todas
as durezas – é a própria humanidade. E quem duvida de que eu, como
velho artilheiro que sou, consiga dirigir a minha artilharia pesada entra
Wagner? Tudo quanto possuía de decisivo neste assunto eu o viera
adiando – amava Wagner. – Em última análise, deparava-se com um
ataque a um ilustre «desconhecido», que para um outro não era fácil
de adivinhar, no sentido e no percurso da minha tarefa – oh! tenho
ainda de desmascarar outros «desconhecidos», antes do Cagliostro da
música. – E, mais ainda, de dirigir um ataque contra a nação alemã,
a qual, nas coisas do espírito, se vai tornando sempre mais indolente
e pobre de instintos, sempre mais cândida, e continua com um apetite
invejável a comer avidamente tanto a «fé» como a cientificidade, tanto
o «amor cristão» como o anti-semitismo, tanto a vontade de poder (de
«império») como o évangile des humbles... Que incapacidade em tomar
partido entre oposições! Que neutralidade estomacal e que «ausência
de egoísmo»! Que sentido justo o do paladar alemão, que a tudo
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96 Friedrich Nietzsche
confere iguais direitos – que tudo acha saboroso... Sem dúvida alguma,
os Alemães são idealistas... Quando da última vez visitei a Alemanha,
encontrei o gosto alemão empenhado em atribuir direitos iguais aWagner
e ao trompetísta de Säckingen; eu próprio fui testemunha de como
em Leipzig se prestou homenagem a um dos músicos mais autênticos e
mais alemães, no velho sentido da palavra alemão, e não apenas no de
alemão imperial, o mestre Heinrich Schütz, ao fundar-se em sua honra
uma sociedade Liszt, com a finalidade de cultivar e difundir a astuta
música de Igreja... Não há dúvida, os Alemães são idealistas...
2
Mas nada aqui me deve impedir de ser violento e de dizer aos alemães
umas quantas verdades duras: de outro modo, quem o faria?
– Refiro-me à sua lubricidade in historicis. E não apenas porque os
historiadores alemães perderam totalmente a perspectiva grandiosa do
curso e dos valores da cultura, porque são na sua totalidade arlequins
da política (ou da Igreja); mas porque proscrevem até essa grande perspectiva.
Importa, antes de mais, ser «alemão», ser «raça»; só depois
é que se pode decidir sobre todos os valores e não valores in historicis
– estipula-se... «Alemão» é um argumento, «Alemanha, Alemanha,
acima de tudo» é um princípio, os Germanos são a «ordem cósmica
moral» na história; em relação ao Imperium Romanum, são os depositários
da liberdade; em relação ao século XVIII, são os restauradores da
moral, do «imperativo categórico»... Há uma historiografia alemã imperial,
e receio que exista também uma historiografia anti-semita – há
uma historiografia de corte e o Sr. Von Treitschke não se envergonha...
Ainda recentemente, uma opinião idiota in historicis, uma proposição
do esteta suábio Vischer, felizmente já falecido, que circulou pelos jornais
alemães como uma «verdade» a que todo o alemão devia dizer
sim: «O Renascimento e a Reforma constituem conjuntamente um todo
– a regeneração estética e a regeneração moral.» – Perante tais frases,
a minha paciência chega ao fim e sinto prazer, sinto até comi dever
referir aos Alemães tudo o que já têm na consciência. Têm na consciência
todos os grandes crimes contra a cultura dos últimos quatro
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Ecce Homo 97
séculos!... E sempre pela mesma razão: pela mais íntima cobardia perante
a realidade, que é também a cobardia perante a verdade, pela sua
falta de franqueza transformada já neles em instinto, por «idealismo»...
Os Alemães levaram a Europa a fracassar na colheita, no sentido da
última grande época, a época do Renascimento, num momento em que
uma ordem superior de valores, em que os valores nobres, que diziam
sim à vida, os valores que garantem o futuro, tinham já ocupado vitoriosamente
o lugar dos valores opostos, os valores da decadência – e
tinham mesmo penetrado nos instintos dos que aí imperavam! Lutero,
essa calamidade de monge, é que restaurou a Igreja e, o que foi mil
vezes pior, restabeleceu o cristianismo, no instante em que este sucumbia...
O cristianismo, a religião transformada em negação da vontade
de viver!... Lutero, um monge impossível que, por razões da sua «impossibilidade
», atacou a Igreja e – por conseguinte! – a restabeleceu...
Os católicos tinham razões para fazer festas em honra de Lutero, para
escrever dramas a propósito de Lutero... Lutero – e a «regeneração moral
»! Para o diabo, toda a psicologia! Não há dúvida, os Alemães são
idealistas. – Por duas vezes já, quando justamente com ingente ousadia
e auto-superação se alcançara um modo de pensamento rigoroso, sem
ambiguidade, perfeitamente científico, os Alemães souberam encontrar
sendas ocultas para o antigo «ideal», reconciliações entre a verdade e
o «ideal», no fundo, fórmulas para um direito à recusa da ciência, para
um direito à mentira. Leibniz e Kant - os dois maiores obstáculos à
probidade intelectual da Europa! – Finalmente, quando na ponte entre
dois séculos de décadence se tornou visível uma force majeure de génio
e de vontade, assaz forte para fazer da Europa uma unidade política
e económica, tendo como fim o governo da terra, os Alemães, com as
suas «guerras da independência», frustraram o sentido, o maravilhoso
sentido que, para a Europa, residia na existência de Napoleão – são
responsáveis por tudo o que ocorreu, por tudo o que hoje se encontra
diante de nós, pela enfermidade e irrazão mais adversa à cultura que
existe, o nacionalismo, esta névrose nationale, de que a Europa padece,
pela perpetuação de pequenos Estados na Europa, da pequena política:
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98 Friedrich Nietzsche
frustraram a Europa do seu próprio sentido, da sua razão – fizeram-na
enveredar por um beco sem saída... Será uma tarefa suficientemente
grande para de novo relíigar os povos?...
3
E, por último, porque é que não hei-de expressar a minha suspeita?
No meu caso, os Alemães tentarão ainda tudo para, a partir de um destino
imenso, darem à luz um rato. Até agora, comprometeram-se comigo,
e duvido que no futuro façam melhor. – Ah! Como desejaria eu
ser aqui um mau profeta!... Os meus naturais leitores e ouvintes são
agora já russos, escandinavos e franceses – sê-lo-ão sempre mais? –
Os Alemães inscreveram-se na história do conhecimento só com nomes
equívocos, produziram sempre apenas falsos moedeiros «inconscientes
» (– esta designação ajusta-se tanto a Fichte, Schelling, Schopenhauer,
Hegel, Schleiermacher como a Kant e Leibniz; todos eles
são simples «Schleiermacher» [fabricantes de véus]): jamais terão a
honra de que o primeiro espírito recto na história do espírito, o espírito
em que a verdade traz a tribunal a falsa moedagem de quatro milénios,
se venha a confundir com o espírito alemão. O «espírito alemão» é
a minha atmosfera viciada: respiro com dificuldade na proximidade
desta imundície in psicologicis, tornada instinto, que se descortina em
cada palavra e em cada atitude de um alemão. Nunca eles tiveram um
século XVII de severo auto-exame como os Franceses; um La Rochefoucauld,
um Descartes são cem vezes superiores em veracidade aos
primeiros alemães – não tiveram até agora psicólogo algum. Mas a
psicologia é quase o padrão da limpeza ou impureza de uma raça... E
quando não se é limpo, como se há-de ter profundidade? No alemão,
quase como na mulher, nunca se chega ao fundo, não tem nenhum: e
é tudo. Mas assim nem sequer se é superficial. – O que na Alemanha
se chama «profundo» é, em rigor, a falta de limpeza do instinto
para consigo, de que acabo de falar: não se quer estar na claridade
em relação a si mesmo. Não seria legítimo sugerir a palavra «alemão»
como moeda corrente internacional para esta depravação psicológica?
– No momento presente, por exemplo, o imperador alemão designa
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Ecce Homo 99
como seu «dever cristão» emancipar os escravos em África: entre nós
outros, europeus, chamar-se-ia simplesmente «alemão»... Produziram
ainda os Alemães um único livro que tenha profundidade? Até mesmo
o conceito do que num livro é profundo está bem longe deles. Conheci
eruditos que tinham Kant por profundo; receio que, na corte prussiana,
se tenha por profundo o Sr. Von Treitschke. E quando ocasionalmente
louvei Stendhal como psicólogo profundo, tive de soletrar o nome no
meu encontro com professores universitários alemães...
4
E porque não hei-de ir até ao fim? Gosto de fazer tábua rasa. É
ambição minha passar por desprezdor par excellence dos Alemães. Expressei
já a minha desconfiança perante o carácter alemão aos vinte e
seis anos (Terceira consideração intempestiva) – os Alemães são para
mim impossíveis. Quando imagino uma espécie de homem, que se contrapõe
a todos os meus instintos, é sempre um alemão que me ocorre.
A primeira coisa em vista da qual perscruto o coração de um homem
é se ele possui no corpo um sentimento da distância, se discerne em
geral a categoria, o grau, a hierarquia entre homem e homem, se sabe
distinguir: assim se é gentilhomme; em todos os outros casos, pertencese
irremediavelmente à ampla, ai!, à noção bonacheirona da canaille.
Mas os Alemães são canaille - ah! são tão bonacheirões... Um homem
degrada-se ao lidar com alemães... O alemão nivela... Se abstrair das
minhas relações com alguns artistas, sobretudo com Richard Wagner,
não vivi uma única hora agradável com alemães... Supondo que o espírito
mais profundo de todos os milénios aparecesse entre os Alemães,
logo uma qualquer libertadora do capitólio imaginaria que a sua alma
muito mesquinha se tomaria, pelo menos, também em consideração...
Não suporto esta raça, com a qual se está sempre em má companhia,
que não tem dedos para os matizes – ai de mim! eu sou um matiz –,
que não tem qualquer esprit nos pés e nem sequer pode andar... Ao
fim e ao cabo, os Alemães não têm pés, têm simplesmente pernas... Os
Alemães não têm a noção de quão vulgares são, mas isto é o superlativo
da vulgaridade –, nem sequer se envergonham de ser simplesmente alewww.
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100 Friedrich Nietzsche
mães... Conversam acerca de tudo, consideram-se a si mesmos como
decisivos, receio até que já sobre mim pronunciaram algo de decisivo...
– Toda a minha vida é a prova de rigueur de tais afirmações. Em vão
busquei neles qualquer sinal de tacto, de délicatesse para comigo. Dos
Judeus, sim, mas nunca dos Alemães. A minha índole leva-me a ser
afectuoso e benévolo para quem quer que seja – tenho um direito a
não estabelecer diferenças –: isto não me impede de ter os olhos abertos.
A ninguém exceptuo, e menos ainda aos meus amigos – em última
análise, espero que isto não tenha causado qualquer dano à minha humanidade
para com eles! Há cinco ou seis coisas de que sempre fiz
ponto de honra. – Apesar de tudo, é ainda verdade que sinto quase todas
as cartas, que de há anos me são enviadas, como um cinismo: há
mais cinismo na benevolência para comigo do que em qualquer ódio...
Digo na cara a cada um dos meus amigos que ele jamais considerou
suficientemente digno do esforço estudar qualquer dos meus escritos;
a partir dos mais pequenos indícios adivinho que eles nem sequer sabem
o que neles se encontra. No tocante ao meu Zaratustra, quem é
que dos meus amigos aí teria visto mais do que uma presunção ilícita,
felizmente de todo indiferente?...
Dez anos já: e ninguém na Alemanha se sentiu na obrigação de
consciência de defender o meu nome contra o silêncio absurdo em que
ele foi sepultado: foi um estrangeiro, um dinamarquês, quem primeiro
teve a suficiente finura do instinto e a coragem para se levantar contra
os meus pretensos amigos... Em que universidade alemã seriam hoje
possíveis lições sobre a minha filosofia como aquelas que, na última
primavera, deu em Copenhaga o Dr. Georg Brandes, demonstrando
assim, mais uma vez, o seu valor como psicólogo? – Eu próprio nunca
sofri por tudo isso; o que em si é necessário não me lesa; amor fati é a
minha mais íntima natureza. Mas isto não exclui que eu ame a ironia, e
até a ironia histórico-universal. E assim, mais ou menos dois anos antes
do arrasador raio da transmutação, que porá a terra em convulsões,
trouxe ao mundo o «Caso Wagner»: mais uma vez ainda, os Alemães
se deveriam enganar imortalmente a meu respeito e eternizar-se! E
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Ecce Homo 101
ainda é tempo! – Conseguem-no? – Óptimo, meus senhores germanos!
Apresento-lhes os meus cumprimentos...
Ainda não há muito, e para que também os amigos não faltem,
escreve-me uma velha amiga, e agora ri-se de mim... E isto no instante
em que uma indizível responsabilidade sobre mim impende – em que
nenhuma palavra pode ser assaz gentil, nenhum olhar suficientemente
respeitoso para comigo. Trago, de facto, sobre os ombros o destino da
humanidade.
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102 Friedrich Nietzsche
PORQUE SOU UM DESTINO
1
Conheço a minha sorte. Algum dia se associará ao meu nome a lembrança
de algo ingente – de uma crise como jamais outra existiu na
terra, da mais profunda colisão de consciência, de uma decisão proferida
contra tudo aquilo que, até hoje, foi objecto de fé, de exigência e
de sacralização. Não sou um homem, sou dinamite. – E com tudo isto
nada há em mim de um fundador de religião – as religiões são afazeres
da ralé, e eu preciso sempre de lavar as mãos depois de estar em contacto
com homens religiosos... Nada quero com «crentes», penso que
sou demasiado malicioso para acreditar em mim mesmo; nunca falo às
massas... Sinto uma angústia aterradora de que, um dia, me venham
a canonizar; adivinhar-se-á porque é que antes publico este livro; ele
impedirá que comigo se cometam patifarias... Não quero ser santo algum,
prefiro antes ser um arlequim... Sou porventura um arlequim... E
apesar disso ou, antes, não apesar disso – pois, até hoje, nada houve de
mais mentiroso do que um santo – a verdade fala por meu intermédio.
– Mas a minha verdade é temível: com efeito, até hoje, chamou-se à
mentira verdade.
Transmutação de todos os valores: eis a minha fórmula para um
acto de suprema auto-reflexão da humanidade, que em mim se fez
carne e génio. A minha sorte quer que eu seja o primeiro homem decente,
que tenha a consciência de estar em contradição com a mentira
de milénios. . . Fui o primeiro a descobrir a verdade, pois fui quem primeiramente
senti – cheirei – a mentira como mentira. . . O meu génio
reside nas narinas. . . Contradigo, como nunca se contradisse, e todavia
sou o contrário de um espírito negador. Sou um jovial mensageiro, conheço,
como jamais alguém conheceu, tarefas de uma altura tal que, até
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Ecce Homo 103
agora, delas não houve noção alguma; só a partir de mim há de novo
esperanças. Com tudo isso, sou também necessariamente o homem da
fatalidade. Com efeito, quando a verdade entrar em luta com a mentira
de milénios, teremos concussões, uma convulsão de tremores de terra,
uma deslocação de montanhas e vales, como jamais se sonhou. A noção
de política é então inteiramente absorvida numa luta de espíritos,
todas as estruturas de poder da antiga sociedade irão ao ar – todas assentam
na mentira: haverá guerras como ainda nunca houve na terra.
Só a partir de mim existe no mundo a grande política.
2
Pretender-se-á uma fórmula para semelhante destinob
que se torna homem? Encontra-se no meu Zaratustra.
«E quem quer ser criador no bem e no mal deve,
primeiro, praticar a destruição e despedaçar valores.
A suma malícia pertence, pois, à suprema bondade:
esta, porém, é criadora.
Sou, de longe, o homem mais temível que até agora existiu; mas
isso não exclui que eu venha a ser o mais benéfico. Conheço o prazer
da aniquilação num grau que é adequado ao meu poder de destruição –
em ambos obedeço à minha natureza dionisíaca, que não sabe separar
a acção negativa da afirmação. Sou o primeiro imoralista: sou assim o
destruidor par excellence.
3
Não se indagou de mim, como se deveria indagar, qual é justamente
na minha boca, na boca do primeiro imoralista, o significado do
nome Zaratustra: de facto, o que constitui a unicidade tremenda daquele
persa na história é precisamente o contrário em relação a mim.
Zaratustra foi o primeiro a ver na luta entre o bem e o mal o mecanismo
genuíno na engrenagem das coisas – a translação da moral em
metafísica, da moral como força, causa, fim em si, é a sua obra. Mas
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104 Friedrich Nietzsche
esta pergunta sería, no fundo, já a resposta. Zaratustra criou este erro
pejado de consequências fatais, a moral: por conseguinte, deve também
ser o primeiro a reconhecê-lo. Não só porque possui aqui uma
experiência mais ampla e profunda do que qualquer outro pensador – a
história inteira é, sim, a refutação experimental da tese da chamada «ordem
moral do mundo» – mas, o que é ainda mais importante, Zaratustra
é mais verídico do que qualquer outro pensador. A sua doutrina, e só
ela, considera a veracidade como a suprema virtude – isto significa a
oposição à cobardía do «idealista», que empreende a fuga perante a
realidade; Zaratustra tem mais ousadia no corpo do que todos os pensadores
em conjunto. Dizer a verdade e atirar bem setas, eis a virtude
persa. – Compreendem-me?... A auto-superação da moral graças à
veracidade, a auto-superação do moralista para o seu contrário – para
mim – eis o que significa na minha boca o nome de Zaratustra.
4
No fundo, são duas as negações que a minha palavra imoralista em
si encerra. Nego, por um lado, um tipo de homem que, até agora, se
impôs como o mais elevado, os bons, os benévolos, os caridosos; por
outro, nego uma espécie de moral que, enquanto moral em si, se tornou
conspícua e dominadora – a moral da décadence, em termos mais
óbvios, a moral cristã. Seria permitido encarar como mais decisiva a
segunda contradição, visto que a sobrestimação da bondade e da benevolência,
numa acepção lata, se me impõe já como consequência da
décadence, como sintoma de fraqueza, como incompatível com uma
vida ascendente e afirmativa: no dizer sim, a negação, a aniquilação
constitui a condição.
Antes de mais, vou deter-me na psicologia do homem bom. Para
apreciar o valor de um tipo humano, importa calcular o preço que a
sua conservação requer – é preciso conhecer as suas condições de existência.
A condição de existência do bom é a mentira –: por outros
termos, o não querer ver a todo o custo como, no fundo, a realidade
é constituída, a saber, não de modo a suscitar constantemente instintos
benévolos, menos ainda de maneira a permitir sempre a interferência de
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Ecce Homo 105
mãos míopes e bondosas. Considerar as indigências de toda a espécie
em geral como objecção, como algo que importa suprimir, é a niaiserie
par excellence, numa acepção lata, um verdadeiro desastre nas
suas consequências, uma fatalidade de estupidez – quase tão estúpida
como seria a vontade de suprimir o mau tempo – por compaixão para
com os pobres... Na grande economia do todo, os terrores da realidade
(nos afectos, nas paixões, na vontade de poder) são mais necessários
num grau inapreciável do que a forma da felicidade medíocre, a chamada
«bondade»; é preciso até ser indulgente para em geral facultar
à última um lugar, porque é condicionada pela mentira dos instintos.
Terei uma grande oportunidade de mostrar as consequências terríficas
e incomensuráveis que o optimismo, essa monstruosidade dos homines
optimi, tem para toda a história. Zaratustra foi o primeiro a compreender
que o optimista é tão décadent como o pessimista e talvez mais
nocivo; eis o que diz:
«Os homens nunca dizem a verdade. Os bons ensinaram-vos falsas
costas e seguranças; nascestes e abrigastes-vos nas mentiras dos bons.
Tudo foi deformado e pervertido, até ao fundo, pelos bons.»
Felizmente, o mundo não se edifica sobre instintos em que o animal
de rebanho apenas bonacheirão encontra a sua estreita felicidade; exigir
que todo «o homem bom», um animal gregário, tenha olhos azuis,
seja benévolo, tenha uma «bela alma» – ou, como deseja o Sr. Herbert
Spencer, que se torne altruísta, seria tirar à existência a sua característica
maior, significaria castrar a humanidade e fazê-la descer a uma
miserável chinesice. – E foi o que se tentou!... Eis o que justamente se
denominou moral... Nesse sentido, Zaratustra chama aos bons ora «os
últimos homens», ora o «começo do fim»; acima de tudo, considera-os
como a mais prejudicial espécie de homens, porque levam avante a sua
existência tanto à custa da verdade como do futuro.
Os bons – que não podem criar, que são sempre o começo
do fim –
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106 Friedrich Nietzsche
crucificam aquele que inscreve valores novos em novas tábuas;
sacrificam a si o futuro, crucificam todo o futuro dos homens!
Os bons – que foram sempre o começo do fim...
E seja qual for o dano
que possam fazer os caluniadores do mundo,
o dano causado pelos bons
é o mais prejudicial dos danos.
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Zaratustra, o primeiro psicólogo dos bons, é – por conseguinte –
um amigo dos maus. Quando uma espécie decadente de homem ascende
à categoria de espécie suprema – isso só pôde acontecer à custa
da espécie contrária, a espécie forte e vitalmente segura dos homens.
Quando o animal gregário surge fulgurante no esplendor da mais pura
virtude, o homem de excepção deve relegar-se para o plano inferior do
mal. Quando a mentira a todo o custo reivindica para a sua óptica a
palavra «verdade», deve assim reencontrar-se o genuinamente verídico
sob o pior nome. Zaratustra não deixa aqui qualquer dúvida: ele diz
que o conhecimento dos bons, dos «melhores», é que lhe inspirou a
ferocidade perante os homens; e desta aversão é que lhe nasceram asas
«para voar em direcção ao futuro longínquo» – não esconde que o seu
tipo de homem, um tipo relativamente sobre-humano – é justamente
sobre-humano em relação aos bons, que os bons e os justos chamariam
demónio ao seu super-homem...
«Ó homens superiores,
que os meus olhos encontram,
eis a minha dúvida a vosso respeito
e o meu riso secreto:
adivinho que chamareis demónio ao meu super-homem!
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Ecce Homo 107
Tão alheios sois, na vossa alma, à grandeza
que o super-homem na sua bondade
seria, para vós, temível...
Neste lugar e em nenhum outro se deve ter o ponto de partida para
compreender o que Zaratustra pretende: a espécie de homem que ele
concebe apreende a realidade como ela é: é suficientemente forte para
tal – ela não lhe é estranha, remota; é ela própria, tem ainda em si
também tudo o que nela há de temível e de problemático, só assim é
que o homem pode ter grandeza...
6
Mas escolhi ainda, noutro sentido, a palavra imoralista para meu
emblema e decoração; sinto orgulho em usar esta palavra, que me contrapõe
a toda a humanidade. Ninguém sentiu ainda a moral cristã como
abaixo de si: para tal é necessário uma elevação, um olhar distante, uma
profundidade psicológica e um sentido do abismo, até agora de todo
inauditos. A moral cristã foi, até hoje, a Circe de todos os pensadores
– todos eles estiveram ao seu serviço. Quem, antes de mim, desceu às
cavernas de onde emana a aura mefítica deste tipo de ideal – o ideal
da difamação do mundo? Quem ousou sequer suspeitar de que existem
tais cavernas? Quem, antes de mim, foi entre os filósofos psicólogo, e
não antes o oposto, um «charlatão superior», um «idealista»? Antes de
mim, ainda não havia psicología alguma. – Ser aqui o primeiro pode
constituir um anátema, é em todo o caso um destino: pois também se
despreza como o primeiro... O nojo do homem, eis o meu perigo...
7
Compreenderam-me? – O que me diferencia, o que me põe à parte
de todo o resto da humanidade, é ter descoberto a moral cristã. Eis
porque precisava de uma palavra que contivesse o sentido de um desafío
a cada um. E não ter aqui aberto antes os olhos equivale, para
mim, à maior indecência que a humanidade tem na consciência, ao instinto
tornado auto-ilusão, à vontade fundamental de não ver tudo o que
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108 Friedrich Nietzsche
acontece, toda a causalidade, toda a realidade efectiva, à falsa moeda in
psicologicis até ao crime. A cegueira perante o cristianismo é o crime
par excellence – o crime contra a vida... Os milénios, os povos, os
primeiros e os últimos, os filósofos e as velhotas – exceptuando cinco
ou seis momentos da história, e a mim como sétimo – são todos neste
ponto dignos uns dos outros. O cristão foi, até agora, o «ser moral»,
uma curiosidade sem igual – e, como «ser moral», mais absurdo, mais
mentiroso, mais vaidoso, mais frívolo, mais prejudicial para si mesmo
do que também o poderia sonhar para si mesmo o maior desprezador
da humanidade. A moral cristã – a mais maléfica forma da vontade de
mentira, a genuína Circe da humanidade: eis o que a corrompeu.
Não é o erro enquanto erro o que neste espectáculo me horroriza,
não é a falta milenária de «boa vontade», de disciplina, de decência,
de ousadia no campo espiritual, que se trai nesta sua vitória; é a deficiência
de natureza, o facto perfeitamente horrível de a própria contranatureza
receber, enquanto moral, as maiores honras e, como lei, como
imperativo categórico, ter ficado a pairar sobre a humanidade!...
Enganar-se a este ponto não como indivíduo, não como povo, mas
como humanidade!... Ensinou-se a desprezar os primordiais instintos
da vida; inventou-se enganadoramente uma «alma», um «espírito»,
para se desonrar o corpo; ensinou-se a divisar no pressuposto da vida,
na sexualidade, algo de impuro; procurou-se na mais profunda necessidade
de crescimento, no forte amor de si (– a palavra já em si é insultuosa),
o princípio mau; e, pelo contrário, no sinal típico da degenerescência
e da contradição dos instintos, no «interesse», na perda da base
de apoio, na «despersonalização» e «no amor ao próximo» (– raiva
pelo próximo!), vê-se o mais alto valor, que digo?, o valor em si!...
Como? Estaria a própria humanidade em décadence? Sempre o esteve?
– Certo é que lhe foram ensinados apenas valores de décadence como
valores supremos. A moral de auto-renúncia é par excellence a moral
de degenerescência, que traduz o facto «vou perecer» para o imperativo
«deveis todos perecer» – e não apenas para o imperativo!... Esta moral,
a única que até agora se ensinou, a moral de auto-renúncia, ostenta uma
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Ecce Homo 109
vontade de fim, nega a vida no seu mais ínfimo fundamento.
Permanece aqui em aberto a possibilidade de que não é a humanidade
que se encontra em degenerescência, mas apenas aquela espécie
parasita de homem, a do sacerdote, que, com a moral, se elevou falsamente
a árbitro do seu valor – que, na moral cristã, acertou com o
seu meio de conquistar o poder... E, de facto, o meu juízo é este: os
mestres, os condutores da humanidade, em suma, os teólogos, foram
todos eles também décadents; daí a transmutação de todos os valores
em inimigos da vida, daí a moral... Definição da moral: moral – a idiossincrasia
de décadents, com a intenção oculta de se vingar da vida –
e com êxito. Atribuo valor a esta definição.
8 Compreenderam-me? Não disse palavra alguma que já não tivesse
dito há cinco anos pela boca de Zaratustra. – A descoberta da
moral cristã é um acontecimento que não tem igual, uma verdadeira
catástrofe. Quem sobre ela
informa é uma force majeure, um destino – divide a história da humanidade
em duas partes. A dos que antes viveram, a dos que depois
viverão... O raio da verdade atingiu justamente o que até agora mais
alto se encontrava: quem compreender o que aí se destruiu veja se em
geral ainda tem algo nas mãos. Tudo o que até agora se chamou «verdade
» reconheceu-se como a forma mais prejudicial, mais pérfida e
mais subterrânea da mentira; o pretexto sagrado de tornar «melhor» a
humanidade surge como a astúcia para esgotar a própria vida, para a
tornar anémica. A moral como vampirismo... Quem descobre a moral
descobre com ela a ausência de valor de todos os valores, em que
se acredita ou se acreditava; nos tipos mais venerados, e até mesmo
canonizados, do homem já nada vê digno de veneração, divisa aí a
forma mais fatal de abortos, fatal, porque eles fascinavam... O conceito
de «Deus» foi inventado como o conceito antitético à vida – nele
se encontra condensado, numa unidade atroz, tudo o que é prejudicial,
venenoso, caluniador, toda a hostilidade mortal contra a vida! O conceito
de «além», de «mundo verdadeiro», foi inventado para desvalorizar
o único mundo que existe – para destituir a nossa realidade terrena
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110 Friedrich Nietzsche
de todo o fim, de toda a razão, de todo o propósito! O conceito de
«alma», de «espírito», finalmente ainda de «alma imortal», inventouse
para desprezar o corpo, para o tornar doente – «santo» –, para se
deparar com uma horrível incúria em todas as coisas que na vida merecem
seriedade, as questões de alimentação, habitação, dieta espiritual,
cuidado com os doentes, higiene, tempo! Em vez da saúde, a «salvação
da alma» – quer dizer, uma folie circulaire entre as convulsões da
penitência e a histeria da redenção! O conceito de «pecado» foi inventado,
juntamente com o instrumento complementar de tortura, a noção
de «vontade livre», para extraviar os instintos, para transformar em segunda
natureza a desconfiança para com os instintos! No conceito de
«desinteresse», de «renúncia a si mesmo», encontra-se o genuíno sinal
de décadence; o engodo pelo maléfico, a incapacidade de já não
encontrar a sua utilidade, a autodestruição, tornaram-se em geral qualidades
distintivas, o «dever», a «santidade», o «divino» no homem!
Por fim – e é o mais terrível – no conceito de homem bom, toma-se o
partido de tudo o que é fraco, doente, falhado, do que em si mesmo é
passivo, de tudo o que deve perecer – a lei da selecção é contrariada, e
faz-se um ideal a partir da oposição ao homem altivo e bem sucedido,
ao homem que diz sim, ao homem que garante e está certo do futuro –
este torna-se agora o mau... E em tudo isto se acreditou como moral!
Écrasez l’infâme!
9
Compreenderam-me? Dioniso contra o crucificado...
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Ecce Homo 111
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[Nota do Tradutor]
A versão aqui proposta ao público é a correcção e a melhoria da
que já fora publicada em 1989.
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