quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O Deus de Dawkins



O DEUS DE
DAWKINS
ALISTER MCGRATH
TRADUÇÃO
Sueli Saraiva
Shedd
publicações
Literatura Que Edifica
<.genes, memes e o s e n t i d o da vida.>
© 2007 BY ALISTER MCGRATH
This edition is published by arrangement with Blackwell Publishing Ltd,
Oxford. Translated by Shedd Publicações from the original English
language version. Responsability of the accuracy of the translation rests
solely with Shedd Publicações and is not the responsibiiity of Blackwell
Publishing Ltd.
1a Edição - Agosto de 2008
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Portuguese language - Printed in Brazil / Impresso no
Brasil ISBN 978-85-88315-70-9
TRADUÇÃO: Sueli Saraiva
REVISÃO: Regina Aranha
DIAGRAMAÇÃO: Edmilson
Frazão Bizerra CAPA: Júlio
Carvalho
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
(CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP,
Brasil)
McGrath, Alister, 1953-
O deus de Dawkins : genes, memes e o sentido
da vida / Alister McGrath ; tradução Sueli Saraiva. -
São Paulo : Shedd Publicações, 2008.
Título original: Dawkins' God : genes, memes and
the meaning of life. Bibliografia. ISBN:
978-85-88315-70-9
1. Apologética 2. Dawkins,
Richard, 1941 -I. Título.
08-07830
CDD-
261.55
índices para catálogo sistemático:
1. Universo : Criação : Ciência e fé
261.55
Sumário
Encontro com Dawkins: um relato pessoal 7
1. O gene egoísta: uma visão darwinista do mundo 23
Introdução a Dawkins 25
A nova abordagem: Charles Darwin 29
Os mecanismos da hereditariedade: Mendel e a genética 34
A descoberta do gene 39
0 pape! do DNA na genética 41
A abordagem de Dawkins: o gene egoísta 46
O rio que saía do Éden: investigando um mundo darwinista 54
2. O relojoeiro cego: a evolução e a eliminação de Deus? 65
A ciência natural não conduz nem ao ateísmo
nem ao cristianismo 69
Deus como hipótese explicativa 73
0 caso de William Paley 77
As concepções religiosas de Charles Darwin 90
A reação cristã a Darwin 94
3. Prova e fé: o lugar da evidência na ciência e na religião
105
Fé como confiança cega? 107
O ateísmo em si é uma fé? 115
A fé cristã como irracional? 121
O problema da mudança teórica radical em ciência 127
A amplificação retórica do caso em favor do ateísmo 133
4. Darwinismo cultural? A curiosa "ciência" da memética 151
As origens do meme 153
O desenvolvimento cultural é darwinista? 158
Os memes realmente existem? 161
A analogia deficiente entre gene e meme 163
A redundância do meme 167
Deus como um vírus? 169
5. Ciência e religião: diálogo ou conciliação intelectual? 177
A "guerra" entre ciência e religião 178
O pequeníssimo universo medieval da religião 184
O conceito de temor 189
A mente de Deus 190
Mistério, loucura e nonsense 193
Conclusão 198
Agradecimentos 201
Obras consultadas 203
Encontro com Dawkins
Um relato pessoal
Deparei-me pela primeira vez com uma obra de Richard Dawkins
no final de 1977, quando li seu primeiro livro importante, O gene
egoísta. Estava completando minha pesquisa doutorai no departamento
de bioquímica da Universidade de Oxford, sob a cordial supervisão
do professor Sir George Radda, diretor geral do Conselho
de Pesquisa Médica. Na época, esforçava-me por entender como
membranas biológicas podiam trabalhar de forma tão competente,
desenvolvendo novos métodos físicos para estudar o seu comportamento.
Apesar de que apenas alguns anos depois O gene egoísta iria alcançar
o status de peça de veneração que agora desfruta, era obviamente um
livro maravilhoso. Eu admirava o modo incrível de Dawkins lidar
com as palavras e sua habilidade em explicar com tamanha clareza
as cruciais — apesar de freqüentemente difíceis — idéias científicas.
Tratava-se de um texto de divulgação científica em sua melhor
forma. Não houve nenhuma surpresa, portanto, quando o New
York Times comentou que era "o tipo de texto de popularização da
ciência que fazia o leitor se sentir um gênio".
Da mesma forma, somente alguns anos mais tarde se estabeleceria
a reputação de Dawkins como o "rottweiler de Darwin". Porém,
mesmo nessa obra inicial, marcas de uma sensível polêmica anti-religiosa
podiam ser entrevistas. No tempo de aluno cheguei a acreditar,
da mesma maneira que Dawkins, que as ciências naturais exigiam
uma visão de mundo ateísta. Mas, naquele momento, não era mais
assim. Fiquei naturalmente interessado em ver que tipo de argumentos
Dawkins havia desenvolvido em defesa dessa idéia interessante.
O que encontrei não foi em especial persuasivo. Ele oferecia
algumas confusas tentativas de dar sentido à idéia de "fé", sem estabelecer
uma adequada base analítica e comprobatória para suas reflexões.
Senti-me incomodado por causa disso e mentalmente me
programei para escrever algum dia umas palavras em resposta.
Amo as ciências naturais desde que posso me lembrar de amar
qualquer coisa. Quando tinha quase dez anos, construí um pequeno
telescópio refletor de forma que pudesse estudar as maravilhas
dos céus. Encontrei-me encantado pelas imagens cintilantes das luas
de Júpiter e das crateras lunares. Fiquei extasiado pela sensação de
estar investigando um universo vasto, impressionante, misterioso e
bastante subjugado pela experiência. Um velho microscópio alemão
— presenteado por um tio-avô que havia sido chefe de patologia
no Royal Victoria Hospital, em Belfast — abriu o mundo da
biologia para mim (ainda repousa sobre a minha escrivaninha de
estudos). Aos 13 anos eu já fora fisgado. Não havia nenhuma dúvida
a respeito do que faria pelo resto de minha vida. Eu estudaria as
maravilhas da natureza.
Uma mudança de escola, em 1966, injetaria uma nova energia
em minha visão. O Methodist College de Belfast havia construído
todo um novo setor de ciências naquela época e o equipara de forma
esplêndida para os padrões da época. Lancei-me ao estudo das
ciências e da matemática, enquanto me especializava em química e
física. Foi um diletantismo amplamente recompensado pela
exci-tação mental que gerava. Nessa fase, era uma verdade
auto-evidente para mim que as ciências haviam desbancado Deus,
fazendo da crença religiosa uma relíquia bastante insensata de uma
era passada. No entanto, minhas concepções sobre isso foram
significativamente aguçadas pelos eventos no final dos anos 1960.
Uma onda de sentimento anti-religioso varria a face da cultura
ocidental. Tom Wolfe captou muito bem tal humor cultural em seu
ensaio "The Great Relearning" [O grande reaprender]: tudo seria varrido
para longe num frenesi de descontentamento e reconstruído do
zero.¹ Nunca antes havia sido possível uma radical reconstrução
prometéica das coisas como essa. Estava na hora de aproveitar o
momento e romper decisivamente com o passado! A religião seria
jogada fora como detrito moral da humanidade, na melhor das
hipóteses era uma impropriedade para a vida real e, na pior, um
mal, uma força perversa que escravizara a humanidade com suas
mentiras e ilusões.
Como a retórica da última oração deve ter deixado bem claro,
eu havia me inclinado para o pior cenário. As ciências naturais sugeriam
que Deus não era necessário para explicar qualquer aspecto do
mundo. Além disso, como muitos nesses dias embriagantes de otimismo
e fervor revolucionários, eu havia bebido profundamente
nas fontes marxistas, passando a ver a religião como uma ilusão
perigosa. Uma conclusão fácil de se chegar, no meu caso, em razão
do conflito religioso na Irlanda do Norte; e eu a aceitei no momento
sem muita dificuldade ou reflexão.
Possuía agora uma nova razão para amar as ciências. Havia me
deparado com um provérbio árabe que parecia resumir as coisas com
perfeição: "O inimigo de meu inimigo é meu amigo". As ciências
não eram só intelectualmente fascinantes e esteticamente prazerosas:
elas também arruinaram a plausibilidade da crença religiosa e,
por conseguinte, abriram caminho para um mundo melhor. A
re-ligião era sem dúvida uma superstição medieval "idiota" que
ne-nhum amante da verdade ou uma pessoa moralmente séria poderia
tolerar. E isso estava se consolidando. Um luminoso e ateu amanhã
estaria raiando era breve. O ateísmo era a única opção para quem se
confronta com os fatos. Vi meu futuro — com muita arrogância,
devo concordar por completo — em termos de trazer luz e alegria
ao pregar o evangelho do ateísmo científico, e até mesmo tentei
(sem sucesso) estabelecer uma Sociedade Ateísta em minha escola.
Decidi estudar química na Universidade de Oxford como um
meio para atingir esse fim. O curso de química de Oxford era o
melhor do país, o que me levou a fixá-lo firmemente como meu
objetivo. A decisão me obrigou a realizar um semestre a mais no
Methodist College, a fim de obter formação especial em química
avançada para a preparação aos exames de admissão de Oxford, em
dezembro de 1970. Pouco antes do Natal, soube que conseguira
uma vaga no Wadham College de Oxford para estudar química.
Meu cálice de alegria transbordava.
Mas só poderia ingressar em Oxford em outubro de 1971. O
que fazer enquanto isso? Meus colegas que também haviam prestado
exames de admissão se dispersaram em viagens pelo mundo ou
foram ganhar algum dinheiro honesto. Decidi permanecer no colégio
pelo resto do ano e usar o tempo me preparando para Oxford.
Aprenderia alemão e russo, que seriam úteis para ler periódicos
químicos profissionais como o Zeitschrift für physicalische Chemie
ou Zeitschrift für Naturforschung. O que também me permitiria ler
os trabalhos de Karl Marx, Friedrich Engels e V. I. Lênin em seus
idiomas originais. Além disso, teria tempo para consolidar minhas
leituras de biologia que havia negligenciado em virtude de me concentrar
tão pesadamente em física, química e matemática.
Depois de um mês ou mais de intensos estudos na biblioteca de
ciências, havendo esgotado as obras de biologia, encontrei uma seção
que antes nunca notara. Intitulava-se "A história e a filosofia da ciência"
e estava coberta de pó. Havia dedicado pouco tempo a esse tipo
de assunto, tendendo a considerá-lo como uma crítica desinformada
das certezas e simplicidades das ciências naturais por aqueles que se
sentiam ameaçados por elas — os quais Dawkins chamaria depois de
"provocadores da verdade".2 Filosofia, como teologia, era com certeza
uma especulação insensata sobre assuntos que poderiam ser resolvidos
por umas poucas experiências honestas. Qual era o problema?
Peguei um título e comecei a ler. Hoje sei que History and
Philosophy of Science: An Introduction (1959) [História e filosofia
da ciência: uma introdução], de L. W. Hull, é uma iniciação bastante
pobre à matéria, em especial por sustentar concepções que foram
populares no período vitoriano. Mas me chamou a atenção e me
seduziu para coisas mais importantes. Ao terminar a leitura das disponibilidades
algo escassas da biblioteca nesse campo, percebi que
necessitava fazer algumas reconsiderações muito sérias.
Longe de ser um obscurantismo tolo, que colocava obstáculos
desnecessários à condição inexorável do avanço científico, a história
e a filosofia da ciência faziam perguntas pertinentes sobre a confiabilidade
e os limites do conhecimento científico. E eram perguntas
que eu não havia enfrentado até ali. Senti-me como um cristão
fundamentalista que de repente descobrira que Jesus não havia pessoalmente
escrito o Credo dos Apóstolos, ou como alguém que
acreditava na terra plana e fora forçado a mudar de idéia com fotografias
do planeta tiradas do espaço. Questões como a
indetermi-nação da teoria pelos dados, mudanças teóricas radicais
na história da ciência, as dificuldades para desenvolver uma
"experiência crucial" e os problemas extremamente complexos
associados à determinação de qual a "melhor explicação" para um
conjunto definido de observações acumuladas em mim — tudo
isso turvou o que eu tomara como a clara e tranqüila água da
verdade científica.
As coisas se mostraram muito mais complicadas do que havia
pensado. Meus olhos tinham sido abertos e percebi que não havia
retorno àquela forma simplista de ciência na qual acreditara antes.
Como muitas pessoas na mesma fase de formação, eu desfrutara a
beleza e a inocência de uma atitude pueril em relação às ciências e,
secretamente, desejava permanecer naquele lugar seguro. De fato,
creio que uma parte de mim quis muito que eu nunca tivesse retirado
aquele livro, nunca tivesse feito tais perguntas desajeitadas e
nunca tivesse questionado a simplicidade da minha mocidade científica.
Mas não havia caminho de volta. Tinha entrado por uma porta
e não podia escapar ao novo mundo que então divisara.
Estudar química em Oxford foi, conforme esperava, uma experiência
estimulante, alargando meus horizontes mentais e criando
desafios novos. Do jeito que as coisas aconteceram, esses
horizontes se expandiram em uma direção que nunca teria conseguido
antecipar. Ao final de 1971, em meu primeiro semestre na
Universidade de Oxford, comecei a descobrir que o cristianismo
era bem mais interessante e consideravelmente mais excitante do
que pensava. Embora tivesse sido bastante crítico com o cristianismo
quando jovem, nunca havia estendido o mesmo exercício crítico
ao ateísmo, assumindo por princípio que era, de forma
auto-evidente, correto e, portanto, isento de ser avaliado desse
modo. De outubro a novembro de 1971, passei aperceber que a
justificativa intelectual para o ateísmo era muito menos
substancial do que supunha. Longe de ser uma verdade
auto-evidente, parecia descansar em bases bastante frágeis. Por
outro lado, o cristianismo se mostrou intelectualmente mais
robusto do que havia pensado.
Minhas dúvidas sobre os fundamentos intelectuais do ateísmo
começaram a se sedimentar ao perceber que o ateísmo era na verdade
um sistema de crenças, o qual eu havia assumido como uma
explicação factual da realidade. Também descobri que sabia bem
menos a respeito do cristianismo do que acreditava. Conforme
passei a ler livros cristãos e a escutar amigos cristãos explicando
sobre aquilo que de fato acreditavam, ficou gradualmente claro para
mim que eu havia rejeitado um estereótipo religioso. Tive então
que fazer uma reconsideração mais importante. Ao final de novembro
de 1971, tomei a minha decisão: virei as costas para uma fé
e abracei outra.
Em setembro de 1974, associe-me ao grupo de pesquisa do
professor George Radda, no departamento de bioquímica da Universidade
de Oxford. Radda estava desenvolvendo uma série de
métodos físicos para investigar sistemas biológicos complexos, incluindo
técnicas de ressonância magnética. Meu interesse particular
estava em desenvolver métodos físicos inovadores para estudar o
comportamento de membranas biológicas, entre eles o uso de testes
fluorescentes e emissão de pósitrons para investigar transições
dependentes de temperatura em sistemas biológicos e seus modelos.
3
Mas meu real interesse estava mudando de lugar. Nunca perdi
minha fascinação pelo mundo natural. Apenas me deparei com outra
coisa que surgia, inicialmente rivalizando com aquela fascinação e,
então, complementando-a. Pois o que antes eu havia assumido como
uma progressiva guerra aberta entre a ciência e a religião passou a se
apresentar como uma sinergia crítica e, ainda, construtiva, com um
imenso potencial de enriquecimento intelectual. Comecei a querer
saber, de que maneira os métodos de trabalho e os pressupostos das
ciências naturais poderiam ser usados para desenvolver uma teologia
cristã intelectualmente robusta?4 E o que deveria fazer para explorar
essa possibilidade de forma adequada? Passei o verão de 1976
trabalhando na Universidade de Utrecht, graças a uma bolsa de estudo
oferecida pela European Molecular Biology Organization [Organização
de Biologia Molecular Européia]; e pouco a pouco cheguei
à conclusão de que só poderia fazer isso estudando teologia na esfera
acadêmica, junto com uma pesquisa avançada sobre a relação
entre teologia e ciência.
Por sorte, eu acabara de ser escolhido para uma bolsa de estudos
sênior no Merton College que me permitiu continuar minha
pesquisa biofísica enquanto, ao mesmo tempo, estudava teologia.
Em junho de 1978, obtive meu doutorado em biofísica e uma
graduação com distinção em teologia e me preparava para deixar
Oxford a fim de fazer pesquisa teológica na Universidade de
Cam-bridge. Para minha surpresa, recebi um convite para almoçar
com um editor sênior da Oxford University Press [Editora
Universitária de Oxford]. A universidade é um lugar muito
pequeno e fofocas se espalham muito depressa. A editora ouvira
falar da minha "interessante carreira atual", explicou-me o
executivo, e tinha um atraente negócio a me oferecer. O gene egoísta
de Dawkins gerara um enorme interesse. Será que eu não teria
vontade de escrever uma resposta a partir de uma perspectiva
cristã?
Sob qualquer ponto de vista, O gene egoísta era uma grande
leitura: estimulante, polêmico e informativo. Dawkins possuía aquela
rara habilidade de fazer coisas complexas ficarem compreensíveis,
sem fazer concessões a seu público. No entanto, ele fizera mais do
que apenas tornar a teoria da evolução inteligível. Dawkins estava
disposto a expandir suas implicações a todos os aspectos da vida,
propondo na verdade o darwinismo como uma filosofia universal
de vida, em vez de uma mera teoria científica. Era um material
instigante — muito melhor, em minha opinião, do que a obra
precedente de Jacques Monod, Chance and Necessity (1971) [trad.
em port.: O acaso e a necessidade: ensaio sobre a filosofia natural da
biologia moderna. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006], que explorava temas
semelhantes. E, como todos os escritores provocativos, detonou
debates tão importantes quanto intrinsecamente interessantes, como
a existência de Deus e o significado da vida. Seria um livro fascinante
para se escrever. Só um tolo, lembro-me de ter pensado na
ocasião, poderia resistir a tal convite.
Bem, este sou eu: depois de muito pensar, escrevi uma educada
resposta, agradecendo ao meu colega pelo almoço e explicando que
ainda não me sentia preparado para escrever semelhante livro. Havia,
na minha visão, muitos outros mais bem qualificados. Seria
apenas uma questão de tempo antes de outra pessoa escrever um
livro em resposta às idéias de Dawkins. Assim fui para Cambridge
pesquisar a teologia cristã, sendo então ordenado na Igreja da Inglaterra.
Depois de um período de trabalho numa paróquia inglesa,
achei o caminho de volta para Oxford. Embora não fosse mais
capaz de empreender uma pesquisa científica, os recursos da excelente
biblioteca da Universidade de Oxford significavam que eu
poderia manter e ampliar minhas leituras sobre história e filosofia
da ciência, como também acompanhar os mais recentes desenvolvimentos
experimentais e teóricos nesse, campo.
Mas eu não havia esquecido Dawkins. O gene egoísta introduzira
um novo conceito e uma nova palavra na investigação da história das
idéias: o "meme". Como a área de pesquisa que esperava seguir era a
história das idéias (especificamente da teologia cristã, mas contraposta
ao pano de fundo do desenvolvimento intelectual em geral), eu
fizera uma extensa pesquisa básica sobre os modelos existentes de
como as idéias foram desenvolvidas e recebidas através das culturas.
Nenhum deles parecia satisfatório.5 Mas a teoria de Dawkins do
"meme" — um replicador cultural — parecia oferecer um vigamento
teórico novo e brilhante para se explorar a questão geral
sobre as origens, o desenvolvimento e a recepção de idéias, baseando-
se na rigorosa investigação científica empírica. Recordo com
intensa emoção o momento de completa excitação intelectual quando,
em certo dia no final de 1977, percebi que poderia haver uma
alternativa aceitável aos ultrapassados e inconvincentes modelos de
desenvolvimento de doutrinas que havia explorado e rejeitado naquela
fase. Esse poderia ser o futuro?6
Como conhecia o trabalho de Darwin sobre os tentilhões [ou
pintassilgos] das Galápagos, isso me ajudou a abordar as evidências
com ao menos uma estrutura teórica provisória.7 E assim comecei
a investigar usando o "meme" como um modelo para o desenvolvimento
de doutrina cristã. Num próximo capítulo, farei um
relato mais completo dos meus vinte e cinco anos de avaliação do
conceito de "meme", assim como de sua utilidade. Basta por ora
dizer que certamente fui um tanto otimista demais em relação à
sua fundamentação empírica rigorosa e ao seu valor como ferramenta
para o estudo crítico do desenvolvimento intelectual.
Nesse ínterim, Dawkins produziu uma série de livros brilhantes
e provocadores, que devorei com interesse e admiração. Dawkins,
depois de O gene egoísta, publicou: The Extended Phenotype (1981)
[O fenótipo estendido], O relojoeiro cego (1986), O rio que saía do
Éden (1995), A escalada do monte improvável (1996), Desvendando
o arco-íris (1998) e, finalmente, a coleção de ensaios O capelão do
Diabo (2003). O tom e o foco de sua escrita haviam mudado.
Conforme o filósofo Michael Ruse demonstrou em uma resenha
de O capelão do Diabo, "a preocupação [de Dawkins] passou de um
texto sobre a ciência dirigido a uma audiência popular para um
ataque total ao cristianismo".8 O brilhante divulgador científico se
tornou um selvagem polemista anti-religioso, pregando em lugar
de debater (ou assim me parece) sua posição.
Considero todos os tipos de fundamentalismo, religiosos ou
anti-religiosos, igualmente repugnantes e fiquei bastante decepcionado
com tal desenvolvimento de alguém que eu admirava. O juízo
de Dawkins sobre a religião chega a ser pouco mais que uma
avaliação excêntrica, sendo os extremos retratados como o típico.
Os religiosos são descartados como anticientíficos, intelectualmente
irresponsáveis ou existencialmente imaturos — isso quando ele está
num bom dia.
Apesar do ateísmo de Dawkins ter ficado mais estridente em
seu tom e mais agressivo em suas afirmações, não se tornou mais
sofisticado em termos de argumentos oferecidos. Gente religiosa é
demonizada como desonesta, mentirosa, tola e trapaceira, incapaz
de responder com honestidade ao mundo real, preferindo inventar
um falso, pernicioso e ilusório mundo, a fim de atrair o imprudente,
o jovem e o ingênuo. Uma linha de pensamento que levou
muitos a sugerir, não completamente sem razão, que Dawkins poderia
ter sido vítima de um tipo de presunção que os escritores
bíblicos associavam aos fariseus. O escritor Douglas Adams recorda
que Dawkins declarou um dia: "Realmente não acho que eu seja
arrogante, mas fico impaciente com pessoas que não compartilham
comigo a mesma humildade frente aos fatos".9 No entanto, há o
embaraçoso fato, que Dawkins parece não querer aceitar, de que
existem muitos indivíduos sadios e inteligentes tirando conclusões
por completo diferentes das suas, precisamente em virtude do mesmo
humilde compromisso com a evidência científica. Talvez eles
sejam loucos; talvez, maus, mas, por outro lado, talvez não sejam
nem uma coisa nem outra.
Dawkins escreve com erudição e sofisticação sobre assuntos de
biologia evolucionista, dominando claramente as complexidades
desse campo e de sua vasta literatura de pesquisa. No entanto, quando
pretende tratar de qualquer coisa referente a Deus, parece-nos
que entra num outro universo. É o universo de um colegial que
quer debater sobre a sociedade baseado em calorosos e apaixonados
exageros; entusiasmado por algumas evidentes simplificações e mais
outras ocasionais deturpações (acidentais, prefiro acreditar) para
tornar superficialmente plausíveis certas observações — o tipo de
argumentos que uma vez me persuadiram de que o ateísmo era a
única opção para um indivíduo pensante, quando ainda era um
colegial. Mas isso foi naquela época. E agora, como ficamos?
Havendo lutado com as implicações do método científico para
a crença em Deus ao longo da minha adolescência, estava mais do
que surpreso com a qualidade dos argumentos oferecidos a favor
do ateísmo nos escritos de Dawkins dos anos 1980. Parece bastante
patente para Dawkins que as ciências naturais devem levar a uma
visão de mundo ateísta por parte de qualquer pessoa honesta, inteligente.
Os que acreditam em Deus são, portanto, desonestos,
iludidos ou tolos. No entanto os argumentos que ele propôs nos
trabalhos publicados no final dos anos de 1970 e nos de 1980 simplesmente
não levavam a essa conclusão. O ateísmo de Dawkins
parecia estar fixado sobre sua biologia evolucionária com um velcro
intelectual. Minha esperança era que seus textos produzissem um
ateísmo novo, intelectualmente revigorado — algo de fato excitante
e atraente. Em vez disso, encontrei a mesma retórica pesada e
os velhos clichês surrados que bem conheci em meus dias de
estudante. Dawkins estava chovendo no molhado, reciclando em
vez de renovar as justificativas do ateísmo.
Desapontado, aguardei com paciência por seus trabalhos dos
anos 1990, esperando ver argumentos novos e mais persuasivos
serem desenvolvidos. Ao contrário, achei os mesmos velhos e
em-bolorados equivalentes ateístas aos argumentos "louco, mau
ou Deus" usados por alguns cristãos para provar a divindade de
Cristo,10 associados de maneira muito tênue a alguns interessantes
desenvolvimentos da biologia evolucionista. Ficou cada vez mais
claro para mim que as bases do ateísmo de Dawkins com certeza
repousavam, no final das contas, fora das ciências, e não dentro
delas.
O ano 2003 chegou e, com ele, a publicação de O capelão do
Diabo. Não é um dos melhores trabalhos de Dawkins, em particular
porque se trata de uma coleção de ensaios desconexos, curtos demais
para serem capazes de lidar de forma correta com as questões que
abordam. Em todo caso, o livro destila cansaço intelectual, como se,
a seu autor, tivesse faltado gás intelectual. Nenhum livro apareceu
ainda em resposta a Dawkins, além de uma útil introdução às diferenças
entre ele e Stephen Jay Gould em assuntos evolucionistas.11
Por fim, no verão de 2003, vinte e cinco anos depois que tal possibilidade
tivesse sido discutida pela primeira vez, decidi que estava
na hora de escrever uma resposta.
Alguns poderiam esperar que este livro fosse uma refutação
religiosa a Dawkins. Estes terão de procurar em outro lugar, pois
ele não é nada do tipo. O real assunto para mim é como Dawkins
deriva da teoria darwinista da evolução uma confiante visão de
mundo ateísta, a qual prega com zelo messiânico e certeza inexpugnável.
12 Como o título do livro indica, há algumas perguntas importantes
a serem feitas sobre o tipo de deus que Dawkins declara
para ser supérfluo ou sem crédito.13 Que deus está sendo rejeitado?
Esse deus mantém alguma relação com conceitos concorrentes de
divindade, como o Deus do cristianismo? E essa rejeição é de fato
justificada com base nos argumentos que Dawkins oferece?
Portanto, é importante reconhecer desde o início que este livro
não é uma crítica à biologia evolucionista de Dawkins. Não proponho
debater as concepções específicas de Dawkins sobre a teoria da
evolução, mas as conclusões mais amplas que ele tira delas, particularmente
as relativas à religião e à história intelectual. Suas opiniões a
respeito da evolução devem ser julgadas como um todo pela comunidade
científica; minha preocupação — e o campo em que sou
competente para me pronunciar — é por excelência a transição extremamente
importante e imensamente problemática da biologia para
teologia.
É algo por demais aceito que o método científico não pode
simplesmente decidir sobre a questão de Deus. A visão geral é que
as pessoas costumam chegar a suas concepções religiosas em outras
bases e, então, lançam mão de suas idéias científicas para a validação
retrospectiva dessas concepções. A ciência é assim usada para ajustar
a visão de mundo, e se prova capaz de acomodar pontos de vista
teístas e ateus com notável facilidade. Porém tal concepção aceita
pode estar errada, e Dawkins seria capaz de demonstrar que é esse o
caso. Os assuntos que propõe são tão importantes que não podem
ser ignorados, ou tratados com breves pronunciamentos ou críticas
superficiais, típicas da discussão proposta pela mídia. Eles merecem
uma discussão ampla e plena. O que espero encorajar é uma investigação
sobre o lugar das ciências naturais na formatação do mundo
de nossas mentes e da cultura em que vivemos, com base nos textos
publicados por Dawkins.
Dawkins empunha a força explicativa do darwinismo numa
mão, e os defeitos estéticos, morais e intelectuais da religião na
outra; conduzindo a pessoa honesta direta e inexoravelmente ao
ateísmo. A humanidade atinge a maturidade. Ela deixa para trás
suas ilusões. Podemos "deixar a fase do choro de bebê e finalmente
atingir a maioridade".14 Embora eu trate da substância das concepções
religiosas de Dawkins em certas ocasiões neste livro, meu
interesse se liga em especial à razão pela qual ele acredita que elas
estão corretas, em vez do que elas são em si mesmas. Este livro é um
confronto crítico com a cosmovisão de Dawkins, e tem a intenção
de perguntar se a afamada agressividade de seu ateísmo está, de fato,
fundamentada nos argumentos que ele apresenta.
A hostilidade de Dawkins contra a religião é profunda e não se
baseia em um único tópico específico. Podemos detectar quatro
razões interconectadas de hostilidade ao longo de seus escritos:
1. Uma visão de mundo darwinista torna a crença em Deus
desnecessária ou impossível. Embora indicada em O gene egoís
ta, a idéia é desenvolvida em detalhes em O relojoeiro cego.
2. A religião faz afirmações fundamentadas na fé, o que representa
o abandono da busca da verdade em termos rigorosos e baseados
na evidência. Para Dawkins, a verdade é fundamentada em pro
vas evidentes; qualquer forma de obscurantismo ou misticismo
fundamentada na fé deve ser vigorosamente combatida.
3. A religião oferece uma visão de mundo empobrecida e pálida.
"O universo apresentado pela religião institucionalizada é um
universo medieval estreito, pequeno e por demais limitado".15
Ao contrário, a ciência oferece uma concepção ousada e brilhante
do universo, percebido como grandioso, belo e impressionante.
Essa crítica estética à religião foi em especial desenvolvida em
1998, na obra Desvendando o arco-íris.
4. A religião leva ao mal. Ela é como um vírus maligno infectando
as mentes humanas. Esse não é um juízo estritamente científico,
pois, como Dawkins observa com freqüência, as ciências não
podem determinar o que é bom ou mau. "A ciência não possui
um método para decidir sobre o que é ético".16 Porém sua ob
jeção à religião é profundamente moral, profundamente arraigada
na cultura e história ocidentais, devendo ser considerada com
a maior seriedade.
Portanto qual dessas razões é a real base para o ateísmo de Dawkins?
Quais são as hipóteses nucleares e quais as auxiliares, tomando
emprestada a linguagem do empirismo? Em suas reflexões sobre o
próprio desenvolvimento intelectual, Dawkins costuma apresentar
seu ateísmo como havendo surgido naturalmente de sua progressiva
convicção no total poder explicativo do darwinismo — um desenvolvimento
iniciado ainda durante os anos finais na Oundle
School. Mas o que acontece se o ateísmo de Dawkins for de fato
fundamentado em considerações morais e, só então, reposicionado
em sua atividade científica?
Assim, por que escrever um livro como este? Podem ser dadas
três razões. Primeiro, Dawkins é um escritor fascinante; tanto em
termos de qualidade das idéias que desenvolve quanto pela desenvoltura
verbal com que as defende. Qualquer um que esteja remotamente
interessado no debate de idéias encontrará em Dawkins um
importante parceiro. Agostinho de Hipona escreveu uma vez sobre
o "eros da mente", definindo-o como um profundo desejo da mente
humana em dar sentido às coisas — uma paixão por entender e
conhecer. Qualquer um que compartilhe tal paixão desejará entrar
no debate iniciado por Dawkins.
E esse pensamento está por trás da minha segunda razão para
escrever este livro. Sim, Dawkins parece, a muitos, ser imensamente
provocador e agressivo, descartando visões alternativas com uma pressa
indecente, ou tratando as críticas a suas concepções pessoais como
um ataque a toda a atividade científica. Entretanto, semelhante tipo
de retórica acalorada é encontrada em qualquer debate público, seja
religioso, filosófico ou científico. Na verdade, é isso o que faz os
debates públicos serem interessantes e os põe acima do ramerrão
tedioso da discussão acadêmica normal, a qual invariavelmente parece
vir acompanhada de infinitas notas de rodapé, citações de autoridades
de peso, apesar de maçantes; e cautelosos eufemismos opressivamente
acompanhados de qualificativos. Quão mais excitantes
são os debates aguerridos, sem restrições nem preocupações com as
sufocantes convenções dos rigorosos estudos acadêmicos! Dawkins,
com toda clareza, deseja provocar tais debates e enfrentamentos;
seria descortês não aceitar seu convite.
Possuo, porém, uma terceira razão. Escrevo como um teólogo
cristão que acredita ser essencial ouvir com seriedade e atenção a
crítica à minha disciplina e respondê-la de maneira adequada. Um
dos motivos para levar Dawkins tão a sério é descobrir o que se
pode aprender com ele. Como qualquer honesto historiador do
pensamento cristão sabe, o cristianismo se obriga a uma constante
revisão de suas idéias à luz das Escrituras e da tradição,
perguntan-do-se sempre se certa interpretação contemporânea de
uma doutrina é adequada ou aceitável. Conforme veremos,
Dawkins oferece, em minha opinião, uma poderosa e convincente
contestação a um modo de pensar a doutrina da criação que
influenciou tremendamente a Inglaterra no século XVIII e que
ainda hoje encontra alguns abrigos. Ele é um crítico que precisa
ser ouvido e levado a sério.
Mas basta de preliminares. Vamos seguir em frente e começar
a investigar a visão de mundo darwinista que Dawkins tanto investiga
e recomenda.
Alister McGrath
Oxford
1 Tom Wolfe, "The Great Relearning". In Hooking Up, p. 140-5. Londres: Jonathan
Cape, 2000 [trad. em port.: Ficar ou não ficar. R. Janeiro: Rocco, 2001].
2 A Devil's Chaplain, p. 16 [rrad. em port.: O capelão do Diabo: ensaios escolhidos].
3 Para alguns exemplos, ver Alister E. McGrath, Christopher G. Morgan, e George
K. Radda, "Photobleaching: A Novel Fluorescence Method for Diffusion Studies
in Lipid Systems". Biochimica et Biophysica Acta 426 (1976), p. 173-85; idem,
"Positron Lifetimes in Phospholipid Dispersions". Biochimica et Biophysica Acta
466 (1976), p. 367-72.
4 Gastei a melhor parte de vinte e cinco anos para entender como fazer isso: sobre o
resultado, ver Alister McGrath, A Scientific Theology, 3 v. Grand Rapids, MI: Eerdmans,
2001-3. Para uma abordagem mais básica, ver Alister McGrath, The Science of God:
An Introduction to Scientific Theology. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2004.
5 Um dos modelos que inicialmente me despertou maiores esperanças foi o de
Pierre Rousselot, "Petit théorie du développement du dogme". Recherches de Science
religieuse 53 (1965), p. 355-90.
6 Eu não era o único que estava tão entusiasmado com a nova idéia de Dawkins: ver
Stephen Shennan, Genes, Memes and Human History: Darwinian Archaeology
and Cultural Evolution. Londres: Thames & Hudson, 2002, p. 7.
7 Mais tarde me perguntei se havia dado muita importância a esse incidente no
desenvolvimento intelectual de Darwin: ver Frank J. Sulloway, "Darwin and His Finches:
The Evolution of a Legend". Journal of the History of Biology 15 (1982), p. 1-53.
8 Michael Ruse, "Through a Glass, Darkly". American Scientist 91 (2003), p. 554-6.
9 Citado por Robert Fulford, "Richard Dawkins Talks Up Atheism with Messianic
Zeal". National Post November 25, 2003.
10 Eles argumentam que Jesus de Nazaré era ou louco, mau ou Deus. Não sendo
nem o primeiro nem o segundo, ele deveria ser então o terceiro. O argumento
trabalha propondo apenas três soluções para um assunto imensamente complexo,
descartando duas delas. A principal crítica feita a tal raciocínio é sua recusa
simplista em considerar alternativas além das que ele depende.
11 Kim Sterelny, Dawkins vs. Gould: SurvivaloftheFittest. Cambridge: Icon Books,
2001. As idéias de Dawkins, é claro, são tratadas em vários artigos e seções de
livros, por exemplo, veja Michael Poole, "A Critique of Aspects of the Philosophy
and Theology of Richard Dawkins". Science and Christian Belief 6 (1994), p.
41-59; Luke Davidson, "Fragilities of Scientism: Richard Dawkins and the
Paranoid Idealization of Science". Science as Culture 9 (2000), p. 167-99; Holmes
Rolston, Genes, Gênesis and God: Values and Their Origins in Natural and Human
History. Cambridge: Cambridge University Press, 1999; KeithWard, God, Chance
and Necessity. Oxford: One World, 1996, p. 105-30.
12 Ver Fulford, "Richard Dawkins Talks Up Atheism with Messianic Zeal".
13 Para questões relacionadas à concepção de Deus defendida por Darwin, ver
Cornelius G. Hunter, Darwin's God: Evolution and the Problem of Evil. Grand
Rapids, MI: Brazos Press, 2001.
14 "Alternative Thought for the Day"; BBC Radio 4, 14 de agosto de 2003.
15 Richard Dawkins. "A Survival Machine". In John Brockman (ed.). The Third
Culture, p. 75-95. Nova York: Simon & Schuster, 1996.
16 A Devil's Chaplain, p. 34 [trad. em port.: O capelão do Diabo].
O gene egoísta
Uma visão darwinista do
mundo
Por que as coisas são do modo que são? E o que isso nos revela
a respeito do significado da vida? As duas perguntas, ingênuas embora
profundas, têm um papel decisivo na formatação do pensamento
ocidental sobre o mundo. Desde o princípio da civilização humana,
as pessoas desejaram saber que explicação poderia ser oferecida
para as estruturas do mundo, por exemplo, para as estrelas à noite
no céu, as maravilhas naturais como um arco-íris e o misterioso
comportamento dos seres vivos. Tais maravilhas não provocam
apenas uma sensação de temor, elas também pedem uma explicação.
Os primeiros filósofos gregos — os "pré-socráticos" — discutiram
interminavelmente sobre a natureza do mundo e como ele
se tornou assim. Insistiam que o universo fora construído de forma
racional e que, portanto, poderia ser entendido pelo correto uso da
razão e argumentação humanas. Os seres humanos possuíam a habilidade
de dar sentido ao universo. Sócrates levou essa linha de
pensamento mais adiante, identificando uma ligação entre o modo
como o universo fora construído e o melhor modo dos seres humanos
viverem. Refletir sobre a natureza do universo era ganhar discernimento
em relação à natureza da "vida virtuosa" — o melhor e o
mais autêntico modo de se viver. Refletir sobre os indícios da estruturação
do mundo conduziria a uma compreensão de nossa identidade
e nosso destino.
Para muitos, a resposta forneceria as origens divinas do mundo —
a idéia de que, de algum modo, o mundo fora ordenado ou construído.
Inúmeras pessoas têm achado essa idéia espiritualmente atraente
e intelectualmente satisfatória. Isaac Newton vem à mente. Assim
como John Polkinghorne, famoso por se demitir da cátedra de física
matemática da Universidade de Cambridge, em 1979, para estudar
teologia cristã. Para Richard Dawkins, porém, o advento de Charles
Darwin mostrou que tais atitudes eram "sentimentalidade cósmica",
"propósitos falsos e melosos", os quais a ciência natural tem como
missão moral expurgar e desmascarar. Semelhantes convicções ingênuas,
diz o polemista, seria compreensível antes da vinda de Darwin.
Mas não agora. Darwin mudou tudo. Newton teria sido ateu se
nascesse depois de Darwin. Antes de Darwin, o ateísmo era apenas
uma entre as muitas possibilidades religiosas; agora, é a única opção
séria para um indivíduo pensante, honesto e cientificamente informado.
Acreditar em Deus hoje em dia é ser "ludibriado por um
conto de fadas".
Em outros tempos tais convicções religiosas seriam compreensíveis,
talvez até mesmo perdoáveis. Mas hoje não. A humanidade
já foi criança. Agora crescemos e descartamos as explicações infantis.
E Darwin é aquele que marca o ponto decisivo da transição. A
história intelectual é dividida em duas eras: antes de Darwin e depois
de Darwin. Conforme prognosticou James Watson, prêmio
Nobel e co-descobridor da estrutura do DNA: "Charles Darwin
será em algum momento visto na história do pensamento humano
como uma figura mais influente do que Jesus Cristo ou Maomé".
Mas por que Darwin? Por que não Karl Marx? Ou Sigmund
Freud? Cada um deles é proposto regularmente como havendo provocado
um terremoto intelectual, destruindo concepções hegemônicas
e introduzindo novos e radicais modos de pensar que levaram à
bifurcação do pensamento humano. As teorias da evolução biológica,
do materialismo histórico e da psicanálise têm sido propostas para
definir os limites da maioridade da humanidade. De forma interessante,
todos se ligaram ao ateísmo, movimento que no século XIX
e no início do XX esperava poder provar que era um libertador
intelectual e político. Portanto, por que Darwin?
Fazer essa pergunta é adentrar nos temas que tão profundamente
têm preocupado Dawkins, e que ainda apresenta implicações
mais amplas.
Introdução a Dawkins
Devemos, no entanto, primeiro fazer uma apresentação de Dawkins.
Clinton Richard Dawkins nasceu no Quênia em 26 de março de
1941, filho de Clinton John e Jean Mary Vyvyan Dawkins. Seu
ambiente religioso, ele nos conta, era o anglicismo tradicional, embora
haja sugestões de que na juventude tenha se fascinado pelas idéias do
jesuíta francês e paleontólogo Pierre Teilhard de Chardin, a respeito
da relação entre evolução e espiritualidade.1
Depois de estudar na Oundle School, foi para o Balliol College,
Oxford, estudar zoologia em 1959. Após se formar em 1962, dedicou-
se à pesquisa no departamento de zoologia da Universidade de
Oxford, sob a coordenação do professor Niko Tinbergen
(1907-88), um dos vencedores do Prêmio de Nobel em Medicina
e Fisi-ologia de 1973.
Tinbergen e seu colega austríaco Konrad Lorenz (1903-89)
abriram caminho para a etologia — o estudo dos padrões de comportamento
animal em ambientes naturais, com ênfase na análise
da adaptação e da evolução de padrões. Embora se proponha que
Lorenz tenha estabelecido os fundamentos conceituais dessa disciplina
nos anos 1930, o paciente e detalhado trabalho de observação
de Tinbergen é amplamente aceito como sendo o posterior desenvolvimento
conceituai e prático da etologia, em especial sua obra
referencial, The Study of Instinct (1951) [O estudo do instinto].2 A
tese de doutorado de Dawkins, intitulada Selective Pecking in the
Domestic Chick [A bicada seletiva no pintinho doméstico] se coloca
firmemente dentro dessa tradição. Seu objeto havia sido bem
definido e delimitado: que mecanismo poderia ser proposto para
explicar o modo como um pintinho bica conforme os estímulos a
sua volta?
Lâmina 1. Richard Dawkins (nascido em 1941). © Rex Features
Dawkins relata que sua pesquisa fora inspirada por uma conferência
do professor N. S. Sutherland (1927-98), que havia deixado
Oxford em 1964 para fundar o Laboratório de Psicologia
Experimental da Universidade de Sussex, recentemente fundada.
Sua investigação se concentrava em desenvolver um "modelo limiar"
que pudesse explicar uma série detalhada de observações experimentais
referentes à cronometragem e orientação das bicadas de
um pintinho em pequenas manchas hemisféricas, apresentadas aos
pares. Os dados foram processados numa máquina Eliot 803 —
um primitivo computador que dependia de fitas perfuradas para as
informações. A tese foi submetida em junho de 1966 e aprovada
no final do ano.
Dawkins dedicou um ano para sua pesquisa de pós-doutorado
e deu algumas aulas no departamento de zoologia. Tinbergen esteve
de licença sabática durante o ano letivo 1966-7, motivo pelo
qual pediu a Dawkins que, enquanto preparava sua tese para publicação,
3 cobrisse algumas das aulas do período. As aulas de Dawkins
lhe permitiram explorar alguns aspectos da teoria da seleção de
parentesco, de W. D. Hamilton, incluindo a questão de como surgem
certas formas aparentemente cooperativas de comportamento.
4 Um indivíduo se comporta de tal modo que a capacidade
reprodutiva de outro indivíduo é aumentada, mesmo em detrimento
de sua própria capacidade seletiva. O fenômeno pode ser
observado em aspectos do comportamento animal no âmbito social,
na paternidade e no acasalamento. Portanto, como isso poderia
ter evoluído?
Dawkins chegou à conclusão de que a "maneira mais criativa
de considerar a evolução e o modo mais inspirador de ensiná-la,"
era ver todo o processo a partir da perspectiva do gene. Os genes,
para o seu próprio bem, "manipulam" e dirigem os corpos que os
contêm e carregam. Ao longo de suas obras, Dawkins desenvolveu
a retórica da visão das coisas pelo olho de um gene — não apenas
para o indivíduo, mas para todo o mundo vivo. Os organismos
podem ser reduzidos a genes, e os genes à informação digital (não
analógica).
A vida é apenas bytes e bytes de bytes de informação digital. Os
genes são pura informação — informação que pode ser codificada,
recodificada e decodificada, sem qualquer degradação
ou mudança de significado. [...] Nós — e isso significa todas
as coisas vivas — somos máquinas de sobrevivência programadas
para disseminar o banco de dados digitais que fez a
programação. O darwinismo é visto agora como a sobrevivência
dos sobreviventes ao nível do puro código digital.5
Com efeito, Dawkins estava defendendo que deveríamos extrapolar
a teoria de Hamilton da seleção de parentesco, e aplicá-la a
todo aspecto do comportamento social. Animais seriam vistos
como "máquinas que levam consigo as suas instruções", enquanto
usam todas as suas características como "alavancas para propagar os
genes na próxima geração". Em virtude dos grupos de parentescos
compartilharem os mesmos genes, o sacrifício de um indivíduo
pode ainda aumentar a probabilidade de esses genes sobreviverem
dentro do grupo genético como um todo. Dawkins pode ser considerado
como o primeiro, e ainda o mais sistemático, etologista
do gene. Eis o tema central que foi tão decisivo para o seu modo de
ver o mundo e que investigaremos agora de maneira detalhada.
De Oxford, Dawkins foi ser professor assistente de zoologia
na Universidade da Califórnia, em Berkeley, em 1967; voltando a
Oxford como professor de zoologia e membro do New College em
1970. Foi durante esse período que seus trabalhos mais influentes e
criativos foram publicados, incluindo O gene egoísta e O relojoeiro
cego. Em 1995 foi designado para uma nova posição acadêmica na
Universidade de Oxford, graças à generosidade de Charles Simonyi,
na época um dos principais arquitetos de software da Microsoft
Co., e que se tornou um dos co-fundadores da Intentional Software
Co., em agosto de 2002. Dawkins foi nomeado o primeiro
lente da cátedra Charles Simonyi de Compreensão Pública da Ciência.
Um avanço adicional em sua carreira aconteceu em 1996, quando
a Universidade de Oxford concedeu a Dawkins o título adicional
de "professor de Compreensão Pública da Ciência", conferindo-lhe
assim a eminente, embora um pouco incômoda, distinção de ser
tanto "lente da cátedra Charles Simonyi de Compreensão Pública da
Ciência" quanto "professor de Compreensão Pública da Ciência". A
Universidade de Oxford recomenda que ele seja designado de uma
maneira mais simplificada: "lente da cátedra Simonyi e professor de
Compreensão Pública da Ciência".6 Dawkins tornou-se membro
da Royal Society — a suprema distinção para um cientista britânico
— em maio de 2001.
Então por onde devemos começar a investigação das idéias que
deram a Dawkins tal vigor? Talvez o melhor lugar se encontre com
o próprio Charles Darwin, que propôs os fundamentos da abordagem
de Dawkins e a visão de mundo que ele construiu como resultado.
A nova abordagem: Charles Darwin
A publicação de A origem das espécies de Charles Darwin (1859)
é justamente considerada como um marco da ciência do século
XIX. No dia 27 de dezembro de 1831, o HMS Beagle partiu do
porto de Plymouth, sul da Inglaterra, em uma viagem que durou
quase cinco anos. Sua missão era cumprir uma pesquisa nas costas
meridionais da América do Sul e depois circunavegar o globo. O
naturalista do pequeno navio era Charles Darwin (1809-82). Durante
a viagem, Darwin notou alguns aspectos da flora e da vida
animal da América do Sul, particularmente das Ilhas de Galápagos
e da Tierra del Fuego, para os quais as explicações das teorias em
voga não lhe pareciam satisfatórias. As palavras de abertura de A
origem das espécies propõem um enigma que o cientista estava determinado
a resolver:
As relações geológicas que existem entre a fauna atual e a fauna
extinta da América meridional, assim como certos fatos relativos
à distribuição dos seres organizados que povoam este continente,
impressionaram-me profundamente quando da minha viagem
a bordo do navio Beagle, na qualidade de naturalista. Estes
fatos, como se verá nos capítulos subseqüentes deste volume,
parecem lançar alguma luz sobre a origem das espécies —
mistério dos mistérios — para empregar a expressão de um
dos maiores filósofos.
Uma difundida explicação para a origem das espécies, amplamente
apoiada pelas instituições religiosas e acadêmicas do início
do século XIX, propunha que Deus havia de alguma maneira criado
tudo, mais ou menos conforme nós o conhecemos hoje. O
sucesso dessa concepção muito se deveu à influência de William
Paley (1743-1805), arcediago de Carlisle, que comparava Deus a
um dos gênios da mecânica da Revolução Industrial. Deus havia
diretamente criado o mundo em toda sua complexidade. Estudaremos
as origens e a influência do pensamento de Paley no próximo
capítulo; nesta fase, precisamos apenas observar que Paley possuía a
concepção de que Deus tinha construído — Paley preferia a palavra
"elaborado" — o mundo em sua forma acabada, como o conhecemos
agora. A idéia de qualquer tipo de desenvolvimento
parecia-lhe impossível. Um relojoeiro deixaria o seu trabalho
inconcluso? Certamente não!
Darwín conhecia as concepções de Paley e, a princípio,
achou-as persuasivas. Porém, suas observações no Beagle
levantaram algumas perguntas. Em seu retorno, Darwin começou
a desenvolver uma explicação mais satisfatória das suas próprias
observações e das de outros. Embora Darwin pareça ter topado
com a idéia básica da evolução pela seleção natural antes de 1842,
não se sentiu pronto para as publicar. Uma teoria radical como
essa exigia volumosas provas observacionais a serem
disponibilizadas em seu apoio.
Alguns trabalhos anteriores que defendiam a evolução das espécies
— em especial Vestiges of the Natural History of Creation
[Vestígios da história natural da criação] (1844), de Robert
Cham-bers — eram cientificamente tão incompetentes que
ameaçavam desacreditar as idéias que procuravam difundir.7
Thomas H. Hux-ley, que mais tarde defenderia a teoria de Darwin,
censurou o livro de Chambers como uma "atraente e notória obra
de ficção" e seu autor como um "daqueles que [...] se vicia em
ciência de segunda mão e dispensa por completo a lógica". Esse
autor era um editor, não um cientista, e um pouco ingênuo em
certos pontos; por exemplo, levava a sério a idéia altamente
improvável de que as criaturas vivas foram o resultado da passagem
de correntes elétricas por uma solução de ferrocianeto de potássio.
Em razão do estrago causado por Chambers, não havia clima
no momento para que uma nova e radical teoria das origens biológicas
pudesse ser lançada sem uma esmagadora documentação, capaz
de desarmar seus críticos em razão do inegável peso de seus dados. A
origem das espécies de Darwin ofereceria tanto a evidência mundial da
evolução biológica quanto uma explicação de seu mecanismo. Em
seu retorno à Inglaterra, Darwin iniciou a construção de um banco
de evidências.
Quatro características do mundo natural pareciam a Darwin
exigir uma maior atenção, levando-se em conta os problemas e as
deficiências nas explicações disponíveis.
1. As formas de certas criaturas vivas pareciam estar adaptadas às
suas necessidades específicas. A teoria de Paley propunha que essas
criaturas haviam sido projetadas individualmente por Deus com
tais necessidades em mente. Darwin cada vez mais considerava a
idéia como uma explicação desajeitada.
2. Algumas espécies eram reconhecidas como havendo desapareci
do completamente — foram extintas. O fato, conhecido antes
de Darwin, era em geral explicado através de teorias "catastrófi
cas", como a da "inundação universal", sugerida a partir do relato
bíblico de Noé.
3. A viagem de pesquisa de Darwin no Beagle o havia persuadido
da distribuição geográfica desigual das formas de vida ao longo
do mundo. Em particular, Darwin ficara impressionado pelas
peculiaridades das populações insulares.
4. Muitas criaturas possuem "estruturas rudimentares", que não
apresentam nenhuma função visível ou previsível — como os
mamilos nos mamíferos masculinos, os rudimentos de pélvis e
membros posteriores em cobras, e as asas em muitos pássaros
que não voam. Como estes poderiam ser explicados com base na
teoria de Paley, que enfatizava a importância do plano individual
das espécies? Por que Deus projetaria coisas supérfluas?
Tais aspectos da ordem natural haviam sido considerados pela
teoria de Paley. No entanto, as explicações oferecidas pareciam excessivamente
complicadas e forçadas. O que fora em princípio uma
teoria até certo ponto inteligente e elegante começava a se decompor
sob o peso das dificuldades e tensões acumuladas. Deveria haver uma
explicação melhor. Darwin então ofereceu uma profusão de evidências
em defesa da idéia da evolução biológica, e propôs um mecanismo
através do qual ela se realizaria: a seleção natural.
A origem das espécies expõe com extremo cuidado por que a
idéia da "seleção natural" é o melhor mecanismo para explicar como
a evolução das espécies aconteceu e como deve ser entendida. O
ponto chave está na proposição de que a seleção natural é o análogo
da natureza para o processo de "seleção artificial" na pecuária. Darwin
estava familiarizado com o assunto, em particular quando relacionado
à procriação de pombos.8 O primeiro capítulo de A origem
das espécies considera então a "variação sujeita à domesticação" —
ou seja, o modo pelo qual as plantas e os animais domésticos são
criados por agricultores. Darwin nota como a reprodução seletiva
permite aos fazendeiros criar animais ou plantas com características
particularmente desejáveis. As variações se desenvolvem em gerações
sucessivas por meio de semelhante processo de procriação, e essas
podem ser exploradas a fim de provocar características hereditárias
consideradas de valor particular pelo criador. No segundo capítulo,
Darwin introduz as noções fundamentais de "luta pela sobrevivência"
e "seleção natural" para explicar aquilo que pode ser observado
tanto nos registros fósseis quanto no presente mundo natural.
Darwin então argumenta que o processo de "seleção doméstica"
ou "seleção artificial" oferece um modelo para o mecanismo
que ocorre na natureza. A "variação sujeita à domesticação" é apresentada
como análoga à "variação sujeita à natureza". O processo de
"seleção natural" é explicado como acontecendo dentro da ordem
natural de modo análogo a um processo conhecido, familiar aos
criadores ingleses e horticultores: "Da mesma forma como o homem
pode produzir e certamente produziu grandes resultados através de
seus metódicos e inconscientes meios de seleção, por que a natureza
não poderia fazê-lo?".
A teoria de Darwin possui um considerável poder explicativo
— uma qualidade reconhecida na ocasião por muitos, mesmo por
Lâmina 2. Charles Darwin (1809-82). © Bettmann/CORBIS
aqueles que estavam preocupados com as implicações que suas idéias
poderiam ter para o lugar da humanidade dentro da natureza; embora
houvesse um sério problema com a teoria. Como a natureza
"memorizava" os novos desenvolvimentos e os "transmitia"? Como
a geração seguinte poderia "herdar" as características de sua antecessora?
Por qual mecanismo os novos desenvolvimentos seriam passados
para as gerações futuras? Os contemporâneos de Darwin em
geral criam que as características dos pais eram "misturadas" ao serem
transmitidas à descendência. Mas, se era assim, como uma única
mutação poderia ser difundida ao longo de uma espécie? Ela acabaria
diluída a ponto de não representar nada, como uma gota de tinta
num balde de água. Parecia que a hipótese evolutiva de Darwin
estava em dificuldades genéticas. A variação simplesmente se diluiria.
Uma nova característica seria como uma colher de chá de
tinta branca misturada num barril de melaço preto: desapareceria
de vista.
Darwin possuía completa consciência da necessidade de uma
abrangente explicação dos mecanismos de hereditariedade. A teoria
que ele desenvolveu (conhecida como "pangênese") se baseava em
"gêmulas" hipotéticas — partículas minúsculas que de alguma maneira
determinariam todas as características do organismo.9 As
"gêmulas" nunca haviam sido observadas, não obstante, Darwin
defendeu ser necessário propor sua existência a fim de dar sentido
aos dados observacionais que dispunha. Em cada célula de um organismo
e até mesmo em partes das células, seriam produzidas gêmulas
de um tipo específico correspondente à célula ou à parte dela. Elas
seriam capazes de circular por todo o corpo e entrar no sistema
reprodutivo. Todos os espermas e óvulos conteriam tais gêmulas
hipotéticas, que seriam assim transmitidas à próxima geração. Foi
uma solução engenhosa, embora não estivesse correta.10 A teoria de
Darwin vacilava, necessitando de uma teoria genética plausível.
Os mecanismos da hereditariedade: Mendel e a
genética
Sem que Darwin soubesse, os assuntos que para ele estavam
sendo tão problemáticos naquele momento eram investigados em
um jardim de um tranqüilo monastério na Europa Central.
Gre-gor Mendel (1822-84) era um monge que entrara para o
mosteiro agostiniano de St. Thomas, na cidade austríaca de Brünn
(hoje, a cidade tcheca de Brno), aos 20 anos. Seus superiores
monásticos ficaram impressionados com o entusiasmo do jovem,
apesar de sua pouca formação. Eles o enviaram para a Universidade
de Viena para estudos complementares (1851-3), período em que
se especializou em física, química, zoologia e botânica. Depois de
voltar ao monastério, Mendel ensinou numa escola local e realizou
algumas experiências
no jardim do mosteiro. Foi encorajado tanto por seus professores na
Universidade de Viena quanto pelo abade do monastério para explorar
seu interesse na hibridação de populações vegetais. Com efeito,
Men-del estudou a hereditariedade de características específicas,
conforme eram passadas das plantas genitoras para sua descendência. As
experiências terminaram quando ele foi eleito abade do monastério em
1868 e assumiu novas responsabilidades administrativas.
Lâmina 3. Gregor Mendel (1822-84). © Science Photo Library.
As experiências de Mendel envolveram o cultivo de algo em torno
de 28.000 ervilhas plantadas no período de 1856-63 e a observação
de como as características foram transmitidas de uma geração
para a outra. Ele decidiu se concentrar em sete características facilmente
determináveis de suas ervilhas. As duas mais bem conhecidas
destas são a cor das flores (roxa ou branca?) e a cor das sementes
(amarela ou verde?). À medida que observava os padrões de herança
dessas características, Mendel notou algumas significativas propriedades
recorrentes. Em virtude de haver usado tantas plantas e
registrado os dados de forma tão meticulosa, os resultados eram
passíveis de uma análise estatística detalhada, permitindo a descoberta
de padrões matemáticos regulares e recorrentes de imensa importância.
Com a polinização cruzada entre plantas que produziam
exclusivamente, ou ervilhas amarelas, ou verdes; Mendel descobriu
que a primeira geração de descendentes produzia sempre ervilhas
amarelas. Porém, a geração seguinte apresentava uma relação constante
de 3:1 entre as amarelas e as verdes. Percebeu-se, então, que
certas características, como as sementes amarelas, eram "dominantes"
em relação a outras características "recessivas", como as sementes verdes.
A partir de sua pesquisa, Mendel pôde formular três princípios
fundamentais que pareciam governar a hereditariedade:
1. A herança de cada característica — como a cor da flor ou da se
mente — parece ser determinada por certas unidades ou fatores
que são passados para os descendentes.
2. Uma planta individual herda uma determinada unidade de cada
pai para cada uma dessas características.
3. As características que não aparecem em certo indivíduo podem,
no entanto, serem passadas para uma geração posterior.
Mendel propôs assim uma teoria da "herança particulada", na
qual as características eram determinadas por unidades discretas de
herança que seriam passadas intactas de uma geração a outra. Mutações
adaptativas poderiam se difundir lentamente por uma espécie
e nunca seriam "misturadas", conforme algumas teorias genéticas contemporâneas
asseguravam. As implicações evolucionistas da descoberta
eram consideráveis. A teoria da seleção natural de Darwin, constituída
de pequenas mutações através de longos períodos de tempo, ficara
muito mais plausível de repente.
Mendel apresentou suas idéias na Sociedade de História Natural
de Brno, no começo de 1865. Elas foram recebidas educadamente,
mas sem entusiasmo, e publicadas no ano seguinte.11
Relatos tradicionais desse acontecimento revelam que quase
ninguém leu o Verhandlungen des naturforschenden Vereins in Brünn,
e o artigo passou despercebido, apesar de haver sido enviado para as
bibliotecas de umas 120 instituições, inclusive as da Royal Society
e da Linnean Society, em Londres. Mendel remeteu umas quarenta
reimpressões adicionais do artigo a botânicos proeminentes, mas
parece que chamaram pouca atenção. Apenas em 1900, as Leis de
Mendel foram redescobertas por Carl Correns naAlemanha, Hugo
de Vries nos Países Baixos e Erich von Tschermak-Seysenegg na
Áustria, e o seu valor pôde ser apreciado.12
No entanto, fontes contemporâneas em língua alemã sugerem
que as idéias de Mendel eram relativamente bem conhecidas naquele
momento,13 sendo citadas em obras de ampla circulação como o
Catalogue of Scientific Papers ofthe Royal Society (1879), o Die
Pflan-zen-Mischlinge (1881) de Focke e a Enciclopédia Britânica
(1881). Há outra explicação para o motivo das concepções de
Mendel terem sido ignoradas: elas foram entendidas como
estando em tensão com as idéias de Darwin, que rapidamente se
tornaram aceitas como ortodoxia científica. Na verdade, tal foi a
hostilidade contra Mendel dentro de alguns círculos, que se chegou
até mesmo a questionar a credibilidade de suas experiências.
Mendel, era o que se dizia, estaria em oposição à teoria da
evolução de Darwin. Seus resultados poderiam ser aceitos,
considerando-se tal ordem do dia?14
Havia ainda algumas outras razões para a precaução manifestada
em relação ao trabalho de Mendel. Em 1930, o biólogo
matemático britânico Ronald A. Fisher publicou um trabalho crucial
na teoria darwinista, em que argumentava que os resultados
empíricos de Mendel poderiam ter sido presumidos por um cientista
de gabinete, equipado apenas com "algumas suposições muito
simples" relativas à noção mendeliana de "herança fatorial".15 Fisher
também sugeriu, sobre bases matemáticas, que as observações informadas
por Mendel eram precisas demais para ser verdade. As
taxas de segregação de Mendel eram muito mais altas do que permitiriam
os princípios estatísticos de variação. Considerando-se que
tais taxas de segregação só poderiam acontecer com muita raridade,
a integridade das idéias de Mendel teria de ser reconsiderada. Essa
crítica ainda hoje é sustentada. Tão recentemente quanto 1991,
discutiu-se que "o relato de Mendel, de suas experiências não é nem
verdadeiro nem cientificamente provável", e que "a maioria das experiências
descritas em Versuche deveria ser considerada fictícia".16
Porém a base de tais críticas é em geral considerada como duvidosa,
e não parece ser o caso de merecer resposta.17
No entanto, é de especial interesse o fato de que Mendel possuía
uma cópia de A origem das espécies de Darwin,18 com a seguinte
passagem assinalada com linhas duplas na margem, mostrando claramente
a considerável importância que tinha para ele:
O leve grau de variabilidade em híbridos do primeiro cruzamento
ou na primeira geração, em contraste com a sua extrema
variabilidade nas gerações seguintes, é um fato curioso
que merece atenção.19
Conforme o mais importante biógrafo de Mendel indicou, tal curiosidade
não permaneceria misteriosa por muito tempo: "Mendel
deve ter sentido certa satisfação ao pensar que sua teoria em breve
poderia explicar esse fato curioso".20 Mendel parece ter apreciado a
importância das próprias idéias para Darwin. No entanto, Darwin;
até onde se sabe, não conheceu as idéias de Mendel, nem suas implicações
de grande alcance para a própria teoria.
O próprio Dawkins observa que as coisas teriam sido muito
diferentes se Darwin tivesse conhecido esses resultados.21 Ele sugere
que "Mendel talvez não tenha percebido o significado de seus
resultados, caso contrário poderia ter escrito a Darwin".22 Sou inclinado
a suspeitar que ele percebera sim, como indica a inusual
marca sobre aquela passagem em A origem das espécies, mas sentiu
que já havia feito o suficiente ao dar publicidade a seus resultados.
Afinal de contas, ele era um monge e, conseqüentemente, pouco
disposto a qualquer autopropaganda adicional. Em todo caso, seu
tratado foi relacionado em várias e importantes fontes britânicas
antes de 1881.
Mendel havia demonstrado que a herança parecia ser determinada
por certas "unidades" ou "fatores". Mas o que seriam eles? O
que nos leva à descoberta do gene — um evento admirável em si
mesmo e de importância fundamental para a tese de Dawkins sobre
uma visão de mundo darwinista.
A descoberta do gene
A importância das idéias de Mendel foi reconhecida no mundo
de língua inglesa por William Bateson, que despendeu um considerável
esforço tentando clarificar os princípios que governam as
características ou propriedades herdadas. Em 1905, sabia-se que certas
características estavam de alguma maneira associadas, embora o
padrão de associação (mais tarde interpretado como atração "completa"
e "incompleta") estava longe de ser claro. Bateson usara uma
série de vagas analogias físicas — como "atração" e "repulsão" —
numa tentativa por fim malsucedida de explicar suas incompreensíveis
observações. Fica claro pelos textos de Bateson que ele estava
pensando em termos de certas forças (análogas às forças magnéticas
ou elétricas) capazes de atrair ou repelir fatores de valor genético.
No final das contas, a solução acabou sendo apresentada num artigo
seminal publicado por Thomas Hunt Morgan em 1926. A
solução? O gene.
Entusiasmado com as idéias de Mendel, Morgan investigara o
curto ciclo reprodutivo da mosca Drosophila melanogaster, a fim de
estudar a transmissão de suas características hereditárias. Conforme
Mendel, decidiu se concentrar em algumas propriedades bem definidas
que ocorriam aos pares. A mais conhecida delas era a cor dos
olhos. Observando os padrões de distribuição de olhos vermelhos
e brancos, Morgan modificou a teoria de Mendel em um ponto
importante: propôs que nem todas as características genéticas são
transmitidas de forma independente, como supusera Mendel. Ao
contrário, algumas características genéticas pareciam estar associadas,
sendo herdadas em conjunto, em vez de individualmente.
A conclusão mais importante de Morgan se relacionava às "unidades"
ou "fatores" que transmitiam tais características, agora conhecidas
como "genes". Já se sabia há algum tempo que a divisão das células
era acompanhada pelo aparecimento de minúsculas estruturas
fili-formes, parecidas com varas e conhecidas como
"cromossomos". Alguns haviam especulado que os cromossomos
poderiam ser os responsáveis por transmitir a informação
hereditária. Morgan ofereceu uma evidência decisiva de que esse era
de fato o caso. Os "genes" responsáveis por transmitir tal informação
ficavam fisicamente situados nos cromossomos. À medida que
microscópios com resolução cada vez maior foram desenvolvidos,
foi possível confirmar visualmente a hipótese.
As moscas de Morgan possuíam quatro cromossomos muito
grandes que os tornavam fáceis de estudar ao microscópio. Ele descobriu
que quatro grupos distintos de características, que pareciam
ser herdadas juntas, correspondiam exatamente ao número de pares
cromossômicos observados na Drosophila. O biólogo também descobriu
que um dos quatro grupos associados possuía menos características
que os outros três. O que parecia corresponder ao fato de que
um dos cromossomos da Drosophila era menor do que os outros
três. Embora mais trabalhos sobre a transmissão hereditária dos
cromossomos no núcleo da célula fossem necessários ainda, um
quadro coerente começava agora a emergir.
Aceitou-se então que os princípios da transmissão hereditária se
baseavam na noção mendeliana dos fatores hereditários discretos
("genes"). Aquilo que ficou conhecido como a síntese do
"neodar-winismo" era agora possível: a genética mendeliana, como
a explicação básica da mudança evolutiva, associada ao processo de
seleção natural darwinista, como determinante de seu resultado.
Ainda seria preciso uma clarificação adicional com relação à base
molecular da genética. Um passo decisivo seria dado nos Estados
Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, para o qual nos
voltaremos agora.
O papel do DNA na genética
A descoberta por Morgan do papel crítico dos cromossomos
na genética despertou um grande interesse pela sua composição
química. Do que eram feitas na verdade essas fibras filiformes? O
bioquímico suíço Friedrich Miescher (1844-95) havia estabelecido a
composição química dos núcleos celulares em 1868. Ele descobrira
que estes continham dois componentes básicos: um ácido nucléico
(agora designado como ácido desoxirribonucléico e universalmente
conhecido pela sigla DNA) e uma classe de proteínas (hoje denominadas
histonas). Os ácidos nucléicos não foram em particular considerados
importantes biologicamente. Os estudos químicos sugeriam
que não eram muito diversificados e possuíam um pequeno número
de componentes.
Em 1938, Phoebus Levene (1869-1940), trabalhando no Rockefeller
Institute em Nova York, descobriu que o DNA era um polímero
notavelmente longo. Porém adotou a visão de que o longo polímero
simplesmente consistia em unidades repetidas de quatro bases
nu-cleotídeas: adenina (A), guanina (G), timina (T) e citosina (C),
Por isso, muitos (inclusive o próprio Levene) consideraram
altamente improvável que o DNA tivesse um papel importante na
transmissão das características herdadas. Ele era quimicamente
muito simples para codificar informações genéticas. Inúmeros
estudiosos acreditaram então que a última chave para a base
molecular genética repousaria nas proteínas encontradas dentro
dos cromossomos.
Ácido desoxirribonucléico DNA: a molécula que contém o
código genético. Consiste em duas longas cadeias trançadas
(uma "dupla hélice") compostas de nucleotídeos. Cada
nu-cleotídeo contém uma base, uma molécula de fosfato e o
açúcar desoxirribose. As bases nos nucleotídeos do DNA são
adenina, timina, guanina e citosina.
Ácido ribonucléico RNA: a molécula que leva a cabo as instruções
do DNA para fazer proteínas. Consiste em uma longa
cadeia composta de nucleotídeos. Cada nucleotídeo contém
uma base, uma molécula de fosfato e o açúcar ribose. As bases
nos nucleotídeos do RNA são adenina, uracil, guanina e
cito-sina. Há três tipos principais de RNA: RNA mensageiro,
RNA transportador e RNA ribossômico.
Como acontece tão freqüentemente nesses casos, a chave para
resolver o enigma veio de uma fonte inesperada. Em 1928, o médico
inglês Fred Griffith se encontrava investigando uma epidemia de
pneumonia em Londres. Enquanto pesquisava o pneumococo responsável
por esse surto, Griffith fez a surpreendente descoberta de
que os pneumococos vivos podiam adquirir características genéticas
de outros pneumococos mortos, em um processo que ele denominou
de "transformação". Mas como isso podia acontecer? Tudo
o que os pneumococos mortos poderiam transmitir eram substâncias
químicas: especificamente dois tipos de ácido nucléico — ácido
ribonucléico (o RNA) e ácido desoxirribonucléico (o DNA) —
e proteína. Como estes poderiam provocar uma mudança genética
nas células vivas?
A importância do trabalho de Griffith não foi apreciada até
que uma equipe de pesquisadores liderada por Oswald Avery reproduziu
os seus resultados no Rockefeller Institute de Nova York.
Avery e sua equipe iniciaram um detalhado estudo de como a informação
genética era transmitida aos pneumococos vivos. Eles realizaram
uma série de experiências que demonstraram que a
informação genética não era transmitida através das proteínas ou
do RNA, mas especificamente pelo DNA.23 Essa foi uma descoberta
momentosa, até mesmo antes que suas plenas implicações fossem
apreciadas. Se o DNA — e nenhuma outra substância — era o
portador da informação hereditária, ele deveria ter uma estrutura
muito mais complexa do que previamente se pensara. Embora ninguém
soubesse qual era essa estrutura, nem como o DNA podia
cumprir tal função genética crucial.
Deu-se um novo ímpeto a uma série de notáveis estudos.
Rosa-lind Franklin (1920-58) se encarregou do pioneiro trabalho de
crista-lografla de raios X no DNA, facilitando imensamente as
revolucionárias pesquisas do físico inglês Francis Crick (n. 1916) e do
geneticista americano James Watson (n. 1928), que demonstraram
a estrutura em dupla hélice do DNA.24 Tal realização foi uma descoberta
física notável em si mesma, além de também abrir caminho à
compreensão de como o DNA conseguia passar a informação
genética. Watson e Crick perceberam imediatamente que o
emparelhamento das bases no DNA duplamente trançado deveria
ser a chave de sua função como um replicador e transmissor da
informação genética. Eles escreveram: "Não deve passar
despercebida a nossa observação de que o emparelhamento
específico que estamos postulando sugere de imediato um
possível mecanismo copiador do material genético". Em outras
palavras, o conhecimento da estrutura física do DNA indicava um
mecanismo através do qual ele poderia se reproduzir.
Com base nessa pesquisa, Crick propôs o que chamou de "Dogma
Central", isto é, que o DNA se replica, agindo como um modelo
para o RNA, que em troca age como um modelo para as proteínas.
A molécula de DNA longa e complexa contém a informação genética
necessária para a transmissão "codificada", usando os quatro
nu-cleotídeos básicos: adenina (A), guanina (G), timina (T) e
citosina (C); organizados em seqüências de "pares básicos" (a
adenina é sempre unida à timina, e a guanina à citosina na
estrutura de dupla hélice do DNA), fixados numa coluna de
açúcar e fosfato. Ê a seqüência desses pares básicos que determina
a informação genética transmitida.25
(a) Estrutura da trança simples
fim
da
cadeia 5
(b) Estrutura da trança dupla
2,0 nm
Lâmina 4. A estrutura do DNA: (a) Cada trança do DNA é composta de uma
seqüência de unidades de nucleotídeos, consistindo de uma base, uma molécula de
fosfato e o açúcar desoxirribose. As bases nos nucleotídeos do DNA são adenina
(A), timina (T), guanina (G) e citosina (C). (b) A molécula completa de DNA tem
duas trancas complementares, organizadas em uma dupla hélice. A largura da
hélice é tipicamente 2 nanômetros — em outras palavras, dois bilionésimos de um
metro.
Fonte: Ridley, Mark. Evolution, Third Edition. Oxford: Blackwell Publishing,
2004, p. 23. Reimpresso com permissão.
Por que isso é tão importante para uma compreensão da biologia
evolucionista? O ponto mais importante a enfatizar é que a
teoria da seleção natural de Darwin exigia que uma variação ocorresse
e fosse transmitida, em vez de diluída, para as gerações seguintes.
A seleção natural então se daria, determinando se o código genético
para esta variação sobreviveria ou não. A síntese neodarwinista é
} 0.34 nm
fim da cadeia 3
3.4 nm
fundamentada na suposição de que pequenas mudanças genéticas
fortuitas (mutações) em longos períodos de tempo ocasionalmente
teriam valor de sobrevivência positivo. Os organismos que possuíssem
as mutações favoráveis teriam uma relativa vantagem de
sobrevivência e reprodução, tendendo a passar tais características
para seus descendentes. Assumindo que haja taxas diferenciais de
sobrevivência, não é difícil perceber como uma característica favorável
pode se estabelecer e ser transmitida.
Cromossomo Gene RNA
Mensageiro
Tradução Proteína
Lâmina 5. A transferência de informação em uma célula
Fonte: Ridley, Mark. Evolution, Third Edition. Oxford: Blackwell Publishing,
2004, p. 27. Reimpresso com permissão.
O ponto chave é que a variação genética ocorre na natureza, o
processo de seleção natural determina se essa variação sobreviverá e
o processo de réplica genética assegura que a variação seja transmitida.
A explicação, no entanto, ainda deixa em aberto muitos problemas
da biologia evolucionista. Para dar um exemplo: em que nível
a seleção natural ocorre? No nível dos próprios genes? Ou dos organismos
individuais que contêm esses genes? Ou no nível da família
(dos indivíduos aparentados) ou dos grupos?
Neste momento, preparamos o terreno para uma adequada
abordagem das concepções de Richard Dawkins sobre o "gene egoísta",
podendo agora estudá-las de forma mais detalhada.
A abordagem de Dawkins: o gene egoísta
Para Dawkins, a base lógica mais satisfatória do processo evolutivo
é estruturada nos termos das linhagens de gene. As mudanças
necessárias para que a evolução se desenvolva ocorrem de forma muito
lenta. A vida de um organismo individual ou de um grupo de organismos
é muito curta se comparada ao tempo exigido para a ocorrência
das mudanças. O que requer uma unidade de transmissão genética
estável e.de longo prazo — apenas as linhagens de gene podem satisfazer
essa condição. Conforme Richard Alexander mostrou: "Os genes
são as mais persistentes de todas as unidades vivas, logo, por qualquer
cálculo, eles são a provável unidade da seleção".26 Para Dawkins, a
evolução é, portanto, a luta de linhagens de gene para se reproduzir:
[O gene] não envelhece: é menos provável que ele morra quando
tiver um milhão de anos do que quando estiver com apenas
cem anos. Salta de corpo para corpo, ao longo das gerações,
manipulando corpo após corpo de um modo próprio e
para fins próprios, abandonando uma sucessão de corpos mortais
antes que entrem na senilidade e morte. Os genes são imortais,
ou quase, eles são definidos como entidades genéticas que
se mostram muito perto de merecer o título.27
Embora as moléculas individuais de DNA possam sobreviver pouco
mais do que alguns meses, sua habilidade para se replicar significa
que uma determinada "molécula de DNA poderia teoricamente se
manter viva na forma de cópias de si mesma durante cem milhões de
anos".28 Em contraste, os organismos individuais ou grupos de organismos
são de vida curta, e não se prolongam em uma escala
temporal necessária para perpetuar as mudanças que lentamente se
acumulam através de longos intervalos de tempo. Falando "em termos
genéticos, os indivíduos e grupos são como as nuvens no céu
ou as tempestades de areia no deserto. São agrupamentos ou uniões
temporárias. Não são estáveis através do tempo evolutivo".29 Logo,
tudo depende do gene.
Então como as mudanças genéticas ocorrem? Não há, em face
ao que foi dito, uma contradição óbvia e fatal entre a ênfase de Dawkins
na "alta fidelidade copiadora" dos replicadores e o aparecimento
da mudança? Se os replicadores transmitem a informação digital com
tanta precisão, como a mudança pode vir a ocorrer? A fidelidade da
transmissão não estaria, portanto, apontando para uma situação com
certeza estática, e não dinâmica?
E uma pergunta importante que parece propor dificuldades
formidáveis. Certas espécies nos sugerem ter relativamente sofrido
um pequeno desenvolvimento ao longo de enormes períodos de
tempo — por exemplo, as ostras e a árvore ginkgo teriam mudado
pouco nos últimos 150 milhões de anos.30 No entanto as mudanças
de fato acontecem. Como? A teoria para esse fenômeno fora mais
ou menos proposta antes de Dawkins escrever O gene egoísta. Em
O acaso e a necessidade (1971), o Nobel francês Jacques Monod
lançou o consenso básico que logo emergiu dentro da biologia
molecular. Monod mostrou que as mutações genéticas podem ser
observadas no laboratório. Mutações raras e espontâneas em populações
de drosófilas ou de outros organismos exemplares podem
ser observadas, enquanto outros podem ser induzidos ao acaso com
o uso de mutágenos, como certas substâncias químicas ou radiação.
Por que tais mutações não poderiam surgir também com o
passar do tempo na própria natureza?
Acredita-se que as mutações surgem acidentalmente, de forma
inesperada, na própria natureza, e por causa de uma variedade de
razões. Mas, uma vez que essas mudanças sejam "incorporadas na
estrutura do DNA, o acidente — em essência imprevisível, porque
sempre singular — será mecânica e fielmente reproduzido e transmitido".
31 Os resultados das mutações genéticas são então transmitidos
dentro do processo evolutivo, que age como um "filtro",
determinando se eles e os seus códigos genéticos sobreviverão. A
maioria não consegue. "O sistema replicador, longe de poder eliminar
as perturbações microscópicas pelas quais é inevitavelmente
abalado, sabe apenas registrá-las e oferecê-las — quase sempre em
vão — ao filtro teleonômico através do qual seu desempenho é
finalmente julgado pela seleção natural".32
Dawkins não endossa a ênfase de Monod sobre o papel decisivo
do "acaso". Embora reconhecendo que muitos haviam realmente
chegado à conclusão de que o darwinismo era uma "teoria do acaso",
Dawkins insiste que esta é uma deturpação da situação. "O acaso é
um ingrediente secundário na receita darwinista, o ingrediente mais
importante é a seleção cumulativa que é essencialmente não fortuita".
33 A evolução poderia assim ser vista como o resultado da sobrevivência
não fortuita de replicadores fortuitamente modificados, com
a ênfase colocada na regularidade da seleção em lugar da casualidade
da variação. Mudanças fortuitas no DNA dão origem a organismos
novos que se reproduzem e estão sujeitos à pressão da seleção natural.
O "darwinismo nuclear" poderia então ser definido como a
"teoria mínima de que a evolução é conduzida em direções não
fortuitas em termos adaptativos, em virtude da sobrevivência não
fortuita de pequenas mudanças hereditárias fortuitas".34
E sobre os organismos individuais ou grupos, como ficam?
Embora urna leitura precipitada de Dawkins possa sugerir que a
evolução é compreendida em termos puramente moleculares, envolvendo
tão-somente uma silenciosa e invisível competição entre
genes, logo fica claro que ele evita semelhante absurdo. Sendo os
organismos o "veículo" pelo qual os genes são transmitidos, a capacidade
do organismo para sobreviver e reproduzir revela imensa
importância. O processo de seleção não é uma competição entre
genes per se (como isso poderia acontecer?), mas se dá no nível dos
intermediários, isto é, dos "veículos" que carregam ou encarnam
esses genes.
Um macaco é uma máquina que preserva genes em cima das
árvores, um peixe é uma máquina que preserva genes na água;
há até mesmo um pequeno verme que preserva genes em descansos
de papelão para copos de cerveja.35
Tais "máquinas de sobrevivência de genes" reproduzem seus genes e
morrem; são os genes que sobrevivem, não os veículos, na forma de
cópias de sua informação. Conforme Dawkins observa, os corpos
tendem "a fazer o que for preciso para propagar os genes" e podem
então ser considerados corretamente como "máquinas de propagação
de genes". Essa distinção poderia ser formalizada em termos
de replicadores e veículos, isto é, entre pequenas unidades genéticas
("genes") e as entidades de nível superior (em geral organismos, mas
às vezes uma família de organismos geneticamente relacionados) que
transmitem os genes no processo evolutivo.36
Em O gene egoísta, Dawkins ofereceu o que poderia ser chamada
uma "etologia do gene" — embora na verdade não se possa
dizer que genes se "comportem" ou "ajam" — a qual passou a ênfase
dos animais individuais, ou dos grupos de animais, para a natureza
dos próprios genes como a unidade de evolução. Tal "visão
de mundo pelo olho do gene" considera um organismo individual
como uma "máquina de sobrevivência", um "receptáculo passivo para .
genes" ou uma "colônia de genes". Dawkins enfatiza que não está
sugerindo que tais organismos não tenham nenhuma individualidade
própria: sua idéia é que as características individuais são geneticamente
determinadas e, em conseqüência, podem contribuir ou não
para que aquela linhagem de genes tenha êxito. Devemos "assimilar
profundamente a verdade fundamental de que um organismo é uma
ferramenta do DNA, e não o contrário".37 A evolução, portanto,
ocorre quando propriedades geneticamente produzidas são passadas
para a próxima geração.
Então, o que é um gene? Aqui nos deparamos com várias dificuldades
amplamente reconhecidas. O termo é capaz de ser definido
ou visualizado de modos bastante diferentes. Em um artigo clássico,
Seymour Benzer ofereceu uma definição essencialmente molecular
do conceito,38 que objetivava criar uma ponte entre a visão
clássica do gene como unidade indivisível da informação genética e
a estrutura física do DNA, descoberta há pouco, e que mostrava
que a base molecular da genética consistia numa seqüência de
nu-cleotídeos. Dawkins possui completo domínio do significado
do
termo, mas observa que é perfeitamente aceitável conceitualizar o
"gene" em termos da unidade envolvida na criação de uma adaptação
darwinista. Sua definição, emprestada de George C. Williams,
propõe: "Qualquer porção de material cromossômico que potencialmente
perdure por suficientes gerações para servir como uma
unidade de seleção natural".39 Trata-se de uma definição funcional,
mas perfeitamente aceitável, apesar dos muxoxos dos geneticistas
populacionais. Porém, a fórmula leva a um preocupante grau de
circularidade, ao tornar quase verdadeiro por definição que o gene é
a unidade da seleção.
O próprio Williams não se mostrou completamente satisfeito
com tal definição.40 Segundo ele, Dawkins definiu o replicador de
uma forma que acabou sendo entendido "como uma entidade física
que duplica a si mesmo no processo reprodutivo". Embora necessariamente
não discorde disso, Williams entende que Dawkins "foi
enganado pelo fato de os genes serem sempre identificados ao DNA".
Para Williams, seria essencial deixar claro que a molécula do DNA
é o meio, e não a mensagem: o gene é "um conjunto de informações,
não um objeto". O próprio Williams insistiu em que nem
todos os genes são evolutivos, se a definição de gene evolutivo for
"qualquer informação herdada para a qual há uma tendência seletiva
favorável ou desfavorável, igual a algumas ou muitas vezes a sua
taxa de mudança endógena".41
Assim, como se dá o processo na prática? Talvez o modo mais
fácil de entender isso seja através de um estudo de caso. Pensemos em
um leão: quanto mais rápido puder correr, mais provável será sua
sobrevivência — em parte porque o leão conseguirá correr mais do
que sua presa e, conseqüentemente, assegurará sua provisão de comida.
Imaginemos que uma mutação genética leve um leão a possuir
habilidades de corrida superiores. A população leonina local terá agora
dois tipos diferentes de leão: os novos, com a mutação, e os velhos,
sem ela. No início, coexistirão lado a lado. Mas os leões mutantes
terão uma maior capacidade para sobreviver e logo passarão suas características
para as gerações posteriores através do gene — ou seja,
através daquilo que em primeiro lugar causou a mutação.42
Nesse caso, como as mutações genéticas se manifestam nos
or-ganismos vivos? Precisamos agora apresentar uma distinção entre
o gene (ou "genótipo"), definido como a "informação hereditária,
in-ternamente codificada", carregada por cada organismo vivo e
usada como um "plano" ou conjunto de instruções capazes de
construir uma criatura e mantê-la viva; e o fenótipo: a manifestação
externa e física do organismo — as características visíveis ou os
comportamentos que são o resultado da interação entre o plano
genético de um organismo e o ambiente. Dawkins propõe que o
gene, sendo a unidade da seleção, manifesta efeitos fenotípicos
no organismo como, por exemplo, o aguçamento de suas garras, a
natureza de seu metabolismo ou a força de seus músculos da
perna. Os genes bem sucedidos são os que produzem efeitos
fenotípicos capazes de promover a sua sobrevivência.
Dawkins elevou essa concepção um estágio acima através de suas
idéias sobre o "fenótipo estendido".43 Ele mostrou que os efeitos do
gene não são limitados às características físicas do organismo individual,
mas se estendem ao seu ambiente. Os pássaros
cara-mancheiros (bowerbirds) constroem estruturas de grama nas
quais se acasalam. As espécies de caramancheiros com plumagem
especialmente brilhante tendem a construir ninhos menos
elaborados, enquanto as de plumagem menos atraente compensam
a característica fabricando estruturas mais complicadas.44
Apresentamos aqui um breve esboço da abordagem de Dawkins
dentro de seu contexto histórico. Entretanto existem problemas
nessa abordagem, alguns surgidos com os avanços da biologia molecular
— como a publicação das seqüências do genoma — e outros
em razão de pressupostos questionáveis, que parecem estar
embutidos em sua concepção, dos quais devemos apontar um ou
dois antes de seguir adiante. Comecemos considerando uma recente
pesquisa que levanta dúvidas sobre a validade do modelo da
"árvore da vida" darwinista.
O modelo da "árvore da vida" de Dawkins, conforme apresentado
em O relojoeiro cego, amplia uma simples fórmula darwinista
de "descendência com modificação", que usa a idéia de "ninhada
perfeita".45 Uma descendência evolutiva exige uma estrutura ramificada,
semelhante a uma árvore genealógica. No entanto, recentes
trabalhos sobre o seqüenciamento do genoma em organismos simples,
como bactérias ou archaea, parece apontar para a transferência
recorrente de genes, ou talvez até mesmo de agrupamentos de genes,
de organismo para organismo.46 A maioria dos estudos iniciais admitia
que as espécies evoluíam principalmente por herança vertical
do pai ou dos pais. Porém, a comparação das seqüências de genes
microbianas sugere que a herança horizontal possa ser relativamente
comum. A crescente evidência a favor de uma extensa transferência
lateral de genes entre organismos nos mais baixos níveis da árvore
da vida47 indica que a imagem de uma "árvore da vida" ramificada
precisa de revisão, a fim de dar conta dessa aparente interseção de
anéis próxima de sua base.
Parece cada vez mais necessário se falar de um "horizonte
dar-winista": um ponto muito remoto no tempo evolutivo no
qual a transferência horizontal de genes era tão comum que a
explicação darwinista tradicional se torna problemática. O
darwinismo, que postula a transferência vertical de genes como o
tema dominante da evolução, pode lidar com a transferência
lateral de genes como um subtexto ou um assunto secundário,
mas, quando esta passa a ser a história principal, as coisas ficam
bem mais difíceis. Precisamos esperar e ver como as coisas se
desenvolverão aqui. Não considero que isso exija uma revisão
global da abordagem de Dawkins, não obstante, altera os detalhes
de alguns pontos importantes — em particular por indicar que a
explicação darwinista padrão não abarca a totalidade da história
evolutiva.
No entanto, a maior parte da crítica de Dawkins se concentra
na validade do conceito do "gene egoísta". A expressão "o gene egoísta"
cunhada por Dawkins foi criticada pela filósofa Mary Midgley,
em parte por causa do que ela considerou imprecisão definitória,
mas, de peso bem maior, em razão de preguiça filosófica. "Genes
não podem ser egoístas ou altruístas, não mais do que átomos possam
ter ciúmes, elefantes possam ser abstratos ou biscoitos, teológicos".
48 A preocupação básica expressa por Midgley é que a atribuição
de "egoísmo" para genes representava uma forma de pensamento
autropomorfo, pelo qual os genes são entendidos como possuindo
qualidades e vícios humanos. Os genes em si mesmos não podem
ser egoístas: o termo só pode ser aplicado de forma significativa a
um organismo capaz de comportamento.49 É uma questão lógica,
relativa à validade da linguagem metafórica ou analógica. Afinal de
contas, pode-se dizer de fato que os genes de alguma forma se "comportam",
seja de modo "egoísta" ou não? Genes replicam, não é
possível dizer que se "comportam" ou "agem", nem mesmo de uma
forma pseudoteleológica. Tal questão lógica infelizmente acabou se
perdendo no ruído de uma peça polêmica, confusa em termos científicos,
que resultou na distorção das concepções de Dawkins sobre o
gene.50
No entanto, não é estranho para Dawkins o uso de analogias
nas ciências. Em sua tese de doutorado, dedicou várias páginas à
reflexão sobre o uso adequado de modelos ou "apoios ilustrativos"
na explicação e descrição científicas, especialmente em relação a assuntos
de comportamento.51 Dawkins defendeu que é possível se
fazer uma clara distinção entre o sentido subjetivo e
comporta-mental do termo e que sua definição era
inequivocamente com-portamental por natureza. Os genes se
comportam como se fossem egoístas, com todas as implicações que
isso possa trazer. Conforme mostrou em O gene egoísta, "não
devemos pensar em genes como agentes conscientes, com
propósitos. Porém, a cega seleção natural os faz se comportar
como se fossem intencionais, sendo conveniente, como uma
abreviatura, referir-se aos genes com a linguagem da intenção".52
(O próprio Darwin, devemos frisar, já havia observado que "a
seleção natural" era uma "abreviatura" de um processo muito mais
complexo e matizado.) Os genes não são conscientemente egoístas;
embora sua dinâmica se assemelhe à dos agentes conscientemente
egoístas.
Dessa forma traçamos as linhas gerais da abordagem darwinista
defendida por Dawkins. Mas quais são as suas implicações? Qual a
diferença que ela poderia trazer à nossa visão mais ampla da realidade,
inclusive em relação àquele reino da vida e do pensamento humanos
em geral chamado, mas de um modo algo enganoso, de "religião"?
Em seguida investigaremos algumas das características da visão
dar-winista da realidade desenvolvida e tão competentemente
divulgada por Dawkins.
O rio que saía do Éden: investigando um mundo
darwinista
Para Dawkins, a teoria da evolução de Darwin — conforme
desenvolvida à luz da genética mendeliana e de nossa compreensão
do papel do DNA na transmissão de informação hereditária — é
mais que uma teoria científica. E uma visão de mundo, uma explicação
total de realidade. Darwinismo é um "princípio universal e
infinito", capaz de ser aplicado a todo o universo. Em comparação,
visões de mundo como o marxismo são "paroquiais e efêmeras".53
Enquanto a maioria dos biólogos evolutivos defende que o darwinismo
oferece uma descrição da realidade, Dawkins insiste em que
ele proporciona mais que isso: o darwinismo é uma explicação.54 O
darwinismo é uma visão de mundo, um grand récit, uma
metanarra-tiva — uma estrutura totalizante através da qual as
grandes perguntas da vida devem ser avaliadas e respondidas. Por
isso, a explicação das coisas de Dawkins tem provocado a reação
dos escritores pós-modernos, para os quais qualquer metanarrativa
— seja marxista, seja freudiana, seja darwinista — deve ser
recusada por uma questão de princípios.55
Assim, com o que essa visão de mundo se parece? Vamos assinalar
algumas de suas características principais.
Um mundo sem propósito
O livro de Jacques Monod, O acaso e a necessidade (1971),
causou certo alvoroço com a sua publicação, principalmente por
causa de sua total rejeição a qualquer propósito no cosmo. Tudo o
que Monod estava fazendo era explorar as implicações de uma explicação
da realidade em termos genéticos, em que mudanças acidentais
são propagadas pelo DNA e sujeitas ao filtro "teleonômico"
da seleção natural. Monod, na época diretor do Instituto Pasteur
de Paris, estava criticando em particular as concepções de dois compatriotas,
Henri Bergson e Pierre Teilhard de Chardin, os quais
haviam desenvolvido filosofias de vida fundadas na aceitação da
evolução, mas interpretando esta como tendo algum tipo de
propósito. A compreensão moderna da base molecular da evolução
eliminou completamente a noção de "propósito". Talvez seja possível
falar sobre a direção do processo evolutivo — mas sem dúvida
não sobre o seu propósito. Para Monod, a teleonomia havia desalojado
a teleologia. Não havia sentido, portanto, em se perguntar por
que coisas aconteceram assim. Elas apenas aconteceram. Embora os
mecanismos que governam a evolução sejam de interesse, não possuem
nenhuma meta.
Dawkins repercute essas idéias ao longo de seus trabalhos publicados
nos últimos vinte e cinco anos. As ciências naturais podem
esclarecer quase todos os aspectos do mecanismo evolutivo; o desenvolvimento
científico se dá em tal progressão que dificilmente
os atuais enigmas se manterão por muito tempo sem explicação. E
quando esse mecanismo é compreendido, a própria noção de
"propósito" deve ser declarada desnecessária. O mundo pode parecer
que foi projetado ou criado com algum propósito. No entanto,
essa "forte ilusão de um plano intencional" pode ser facilmente explicada
cora base no resultado de mutações acidentais por enormes
períodos de tempo. Dawkins é particularmente crítico em relação
aos que argumentam que, "como a ciência não pode responder
questões sobre a 'razão das coisas', deve então haver outra disciplina
qualificada para fazê-lo". Nenhuma resposta é possível, exceto a
resposta darwinista da seleção natural.56 Não estamos aqui por causa
de algum princípio superior ao da seleção natural, pela qual nossos
antepassados distantes puderam aumentar a representação de seus
genes às custas de outros. Não há nenhuma explicação das coisas
que seja mais elevada nem mais profunda do que essa.
Para alguns, essa visão de mundo parece bastante melancólica.
E é claro que ela dificilmente seria aceitável como mediadora do
que é certo ou errado. Recordo-me que, durante meus dias de ateu,
eu achava um pouco de consolo no fato de ninguém poder me
acusar de ser ateu por causa do conforto metafísico que isso me
trazia. Sendo assim, era irrelevante se o ateísmo fizesse de seus
partidários sombrios ou radiantes, agradáveis ou tediosos. A questão
se resumia à sua relação com os fatos observados. Para Dawkins,
Deus não tem nenhuma "função útil" para a explicação sobre como
as coisas são, e pode ser seguramente descartado como "de fato
muitíssimo improvável". (Voltaremos mais tarde ao assunto, pois
o argumento aqui demonstrado fica muito distante da ambiciosa
conclusão esperada.)
Dawkins assume um firme e decidido engajamento ao
dar-winismo e à mensagem que este traz ao mundo. Em uma
breve declaração à Rádio BBC em 2003, expôs seu credo pessoal
nos seguintes termos:
[Devemos] nos alegrar com o surpreendente privilégio de que
desfrutamos. Nascemos e vamos morrer. Mas antes de morrer
temos tempo para entender, em primeiro lugar, por que nascemos.
Tempo para entender o universo em que nascemos. E,
com essa compreensão, finalmente podemos crescer e perceber
que não há qualquer ajuda além de nossos próprios esforços.57
Por que mesmo nascemos? A resposta darwinista é a "seleção natural".
Na realidade, essa é a resposta darwinista para quase tudo.
No entanto, devemos considerar essa resposta para a pergunta
sobre a razão de nós — isto é, os seres humanos — estarmos aqui.
Quais são as suas implicações?
O lugar da humanidade no universo darwinista
Se havia um aspecto da própria teoria da evolução que deixava
Charles Darwin preocupado, esse dizia respeito a suas implicações
para o status e a identidade da raça humana. Em cada edição de A
origem das espécies, Darwin constantemente declarou que o mecanismo
da seleção natural, por ele proposto, não exigia uma lei fixa
ou universal de desenvolvimento progressivo. Além disso,
explici-tamente rejeitou a teoria de Lamarck de que a evolução
manifestava uma "tendência inata e inevitável para a perfeição". A
conclusão fatal então deve ser que os seres humanos (agora
entendidos como participantes, em vez de apenas observadores, do
processo evolutivo) não poderiam em qualquer sentido serem vistos
como a "meta" ou o "ápice" da evolução. Não era uma conclusão
fácil para Darwin, nem para a sua geração. Na conclusão de A
origem do homem, fala da humanidade em termos exaltados,
embora insistindo em suas "humildes" origens biológicas:
O homem deveria ser perdoado por sentir algum orgulho de
haver atingido, apesar de não pelos próprios esforços, o verdadeiro
ápice da escala orgânica; e o fato de haver assim subido,
em vez de originariamente colocado lá, pode lhe dar a esperança
de um destino ainda mais alto, em um futuro distante.
Mas não estamos interessados aqui em esperanças ou medos,
apenas na verdade, até onde nossa razão nos permita
descobri-la; e tenho buscado evidências com o máximo das
minhas capacidades. Porém, devemos reconhecer, segundo
me parece, que o homem, com todas as suas nobres
qualidades, [...] ainda carrega em sua estrutura corporal o
indelével selo de sua humilde origem.58
Usando sua versão da imagem da "grande cadeia do ser", Darwin
parece por vezes sugerir que a evolução implica em progresso para
as criaturas superiores, projetando qualidades morais (e ocasionalmente
até ontológicas) sobre a descrição científica mais neutra.59
Dawkins não demonstra aqui nenhuma hesitação. Devemos
reconhecer que somos animais, parte do processo evolutivo. Ele
critica firmemente as suposições absolutistas que percebe por trás
do "especiesismo" — um termo inventado por Richard Ryder e
tornado moeda corrente por Peter Singer, atualmente na Universidade
de Princeton.60
No entanto, Dawkins faz uma importante — na verdade, uma
notável — distinção entre a humanidade e todos os outros produtos
vivos da mutação genética e da seleção natural. Apenas nós podemos
resistir a nossos genes. Enquanto alguns escritores — como
Julian Huxley — tentaram desenvolver um sistema ético baseado a
partir do que consideraram os aspectos mais progressistas da evolução
darwinista, Dawkins considera o empreendimento equivocado.61 A
seleção natural pode ser a força dominante na evolução biológica,
o que não significa, nem por um momento, que precisemos
sancionar suas aparentes implicações éticas.
Eis um ponto importante, pois alguns têm defendido que a
teoria darwinista endossa uma moral da "sobrevivência do mais
forte". Uma carta recentemente descoberta do próprio Darwin
parece emprestar credibilidade a semelhante abordagem "darwinista
social",62 embora Darwin tenha sido em geral cauteloso em propor
tal conclusão. Dawkins é categórico: os seres humanos não são
prisioneiros de seus genes, sendo capazes de se rebelar contra tal
tirania genética:
Como cientista acadêmico, sou um darwinista apaixonado,
acreditando que a seleção natural é, se não a única força mo-.
triz da evolução, certamente a única força conhecida capaz de
produzir a ilusão de um propósito, que por isso impressiona
todos os que analisam a natureza. Mas, ao mesmo tempo em
que, como cientista, apoio o darwinismo, sou um apaixonado
anti-darwinista quando a teoria é proposta para a política e para
como deveríamos administrar os negócios humanos.63
O mesmo tema aparece em O gene egoísta. Dawkins conclui o livro
com uma apaixonada defesa da dignidade e liberdade humanas em
face ao determinismo genético. Nós — ou seja, os seus (humanos)
leitores — podemos nos rebelar:
Possuímos o poder de desafiar os genes egoístas de nosso nascimento
e, se necessário, os memes egoístas de nosso
doutrina-mento. Podemos até debater as formas de
deliberadamente cultivar e desenvolver o mais puro e
desinteressado altruísmo — algo que não tem lugar na
natureza, algo que nunca existiu antes em toda a história do
mundo. Somos construídos como máquinas de gene e
aculturados como máquinas de meme, mas temos o poder
de contrariar nossos criadores. Na terra, apenas nós podemos
nos rebelar contra a tirania dos replicadores egoístas.64
(Note-se que Dawkins apresenta aqui o termo "meme" como um
"rcplicador cultural" análogo ao gene, o replicador genético. Em
seguida, teremos mais a dizer sobre o novo tipo de replicador.)
Dawkins sugere que nossa condição é comparável à de um oncologista,
cuja especialidade profissional é estudar o câncer, sendo sua
vocação profissional lutar contra ele.
Portanto há algo de diferente na humanidade, afinal de contas.
Parece que evoluímos a ponto de poder nos rebelar precisamente
contra o processo que, a princípio, nos trouxe aqui. Apenas nós
possuímos cérebros evoluídos, capazes de, em primeiro lugar, entender
como chegamos aqui e, em segundo, subverter o processo
que poderia em algum ponto muito distante nos desalojar, talvez
por algum primata superior.
A evolução do cérebro humano é, conforme Dawkins assinala,
tão notável quanto controversa. Que pressões teriam levado ao aumento
do cérebro humano?65 E por que tal processo deveria render
alguma vantagem evolutiva importante? Esse novo desenvolvimento
requer que, grosso modo, um quarto do metabolismo humano
seja dedicado a assegurar o funcionamento do cérebro. O que representa
um investimento significativo de energia e um correspondente
de alto risco para a sobrevivência da espécie. Não obstante,
qualquer que seja a explicação, aconteceu.66
Por meio de um sábio uso desse recurso adicional, só os seres
humanos podem subverter seus "genes egoístas" — por exemplo,
através dos meios artificiais de contracepção.67 É um ponto discutível
se esse exemplo pode ser considerado como um corajoso
ato de rebelião de seres humanos iluminados contra seus genes.
Pode-se argumentar da mesma forma que se trata de um ato de
cumplicidade, pois um dos principais objetivos da contracepção
artificial é limitar as desastrosas conseqüências da explosão populacional,
capaz de criar um sério obstáculo à continuidade da espécie
humana — e conseqüentemente à transmissão do gene humano.
Neste capítulo, apresentei o "gene egoísta", noção típica do
pensamento de Dawkins, posicionando-o no contexto da biologia
evolucionista, conforme seu desenvolvimento desde Darwin. O que
nos permite passar para o verdadeiro tema deste livro: oferecer um
exame crítico dos juízos de Dawkins a respeito das implicações religiosas
derivadas desse conceito. A fim de investigarmos essa importante
questão, devemos imediatamente considerar um dos
trabalhos mais importantes de Dawkins: O relojoeiro cego.
A Devil's Chaplain, p. 196.
Para um retrato crítico, embora elogioso, de Tinbergen, ver Hans Kruuk, Nikos
Nature: The Life of Niko Tinbergen, and His Science of Animal Behaviour. Oxford:
Oxford University Press, 2003. Para a avaliação pessoal de Dawkins sobre o
significado de Tinbergen, ver Marian S. Dawkins, Tim Halliday & Richard
Dawkins, The Tinbergen Legacy. Londres: Chapman & Hall, 1991.
Richard Dawkins, "The Ontogeny of a Pecking Preference in Domestic Chicks".
Zeitschrift fürTierpsychologie 25 (1968),p. 170-86.
O principal texto foi publicado em duas partes em 1964: William Hamilton,
"The Genetic Evolution of Social Behaviour". Journal of'Theoretical Biology 7
(1964), p. 1-16; 17-52.
River out of Eden, p. 19 [trad. em port.: O rio que saía do Éden].
6 Oxford University Calendar 2003-4. Oxford: Oxford University Press, 2003, p.
77. , "
7 Para detalhes adicionais, ver James A. Secord, Victorian Sensation: The Extraordinary
Publication, Reception, and Secret Authorship of Vestiges of the Natural History of
Creation. Chicago: University of Chicago Press, 2000.
8 Sobre o assunto, ver James A. Secord, "Nature's Fancy: Charles Darwin and the
Breeding of Pigeons". Isis 72 (1981), p. 163-86.
9 A teoria foi lançada em sua obra The Variation of Animais and Plants under
Domestication, 2 vols. Londres: John Murray, 1868.
10 Ver Conway Zirkle, The Early History ofthe Idea ofthe Inheritance ofAcquired
CharactersandofPangenesis. Philadelphia, PA: American Philosophical Society,
1946.
11 Gregor Johann Mendel, "Versuche über Pflanzen-Hybriden". Verhandlungen des
naturforschenden Vereins in Brünn 4 (1866), p. 3-47.
12 Ver, por exemplo, Carl Correns, "G. Mendels Regei über das Verhalten der
Nachkommenschaft Der Rassenbastarde". Berichte der deutschen botanischen
Gesellschaft 18 (1900), p. 158-68.
13 Por exemplo, ver os relatos de G. von Niessl, publicados no Verhandlungen des
naturforschenden Vereins in Brünn 41 (1902), p. 18-21; 44 (1905), p. 5-9.
114 B. E. Bishop, "Mendels Opposition to Evolution and to Darwin". Journal of
Heredity 87 (1996), p. 205-13. Porém, é necessário que se diga que esse artigo
"não representa nada além de uma inferência por parte de Bishop, já que Mendel
só se referiu a Darwin quatro vezes em seus escritos, e essas referências não indicam
nem apoio nem hostilidade às visões de Darwin.
15 Ronald A. Fisher, The Genetical Theory of Natural Selection. Oxford:
Clarendon
Press, 1930.
16 E diTrocchio, "Mendels Experiments: A Reinterpretation". Journal of the
History
of Biology 24 (1991), p. 485-519.
17 A melhor crítica em inglês é a de Daniel J. Fairbanks & Bryce Rytting, "Mendelian
Controversies: A Botanical and Historical Review". American Journal of Botany
88 (2001), p. 737-52.
18 Mais especificamente se trata de uma cópia da segunda edição alemã, de 1863,
baseada na terceira edição inglesa de 1861. Apenas duas passagens estão marcadas
desse modo no livro.
19 Charles Darwin, On the Origin of Species by Natural Selection, 3a ed.
Londres:
John Murray, 1861, p. 296.
20 Vítezslav Orei, Gregor Mendel: The First Geneticist. Oxford: Oxford University
Press, 1996, p. 193.
21 A DeviVs Chaplain, p. 67-9.
22 The Selfish Gene, p. 34 [trad. emport.: O gene egoísta].
23 Oswald Avery, Colin MacLeod & Maclyn McCarty, "Studies on the Chemical
Nature of the Substance Inducing Transformation of Pneumococcal Types:
Induction of Transformation by a Desoxyribonucleic Acid Fraction Isolated from
PneumococcusType III". Journal of Experimental Medicine (1944), p. 137-58.
24 Francis H. C. Crick & James D. Watson, "Molecular Structure of Nucleic Acids:
A Structure for Deoxyribose Nucleic Acid". Nature 171 (1953), p. 737-8.
25 Para detalhes adicionais, ver obras como Anthony J. F. Griffiths, An Introduction
to Genetic Analysis, 7a ed. Nova York: W H. Freeman, 2000; idem, Modern
GeneticAnalysis: Intevratinç Genes and Genomes, 2a ed. Nova York: W H. Freeman,
2002.
26 Richard D. Alexander, Darwinism and Human Affairs. Londres: Pitman, 1980,
p. 38.
27 The Selfish Gene, p.
34. 28 The Selfish Gene, p.
35. 29 The Selfish Gene, p.
34.
30 Zhiyan Zhou & Shaolin Zheng, "The Missing Link in Ginkgo Evolution".
Nature 423 (2003), p. 821-2.
31 Jacques Monod, Chance and Necessity: An Essay on the Natural Philosophy of
Modem Biology. Nova York: Alfred A. Knopf, 1971, p. 114.
32 Monod, Chance and Necessity, p. 118.
33 TheBlindWatchmaker, p. 49 [trad. emport.: O relojoeirocego].
34 A Devils Chaplain, p. 81. A propósito, isso não implica que toda mudança
evolutiva seja adaptativa.
K The Selfish Gene, $.21.
36 Richard Dawkins, "Replicators and Vehicles". In Current Problems in Sociobiology,
editado por King's College Sociobiology Group, p. 45-64. Cambridge:
Cambridge University Press, 1982. Outros biólogos evolutivos usam
terminologia diferente: por exemplo, David Hull prefere falar de "interatores" e
"replicadores". Ver David L. Hull, Science as a Process: An Evolutíonary Account of
the Social and ConceptualDevelopment of Science. Chicago: University of Chicago
Press, 1990.
37 The Extended Phenotype, p. 239.
38 Seymour Benzer, "The Elementary Units of Heredity". In W. D. McElroy & B.
Glass (eds.). The Chemical Basis of Heredity. Baltimore, MD: Johns Hopkins
University Press, 1957, p. 70-93.
39 The Selfish Gene, p. 28.
40 George C. Williams, "A Package of Information". In John Brockman (ed.). The
Third Culture. Nova York: Simon & Schuster, 1995, p. 38-50.
41 George C. Williams, Adaptation and Natural Sekction: A Critique of Some Current
Evolutíonary Thought. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1966, p. 25.
Observe-se neste ponto que a proposta de Dawkins é muito mais competente
para explicar a modificação das características de espécies existentes do que para
elucidar a geração de novas espécies. Ver Steven Rose, "The Rise of Neurogenetic
1 )eterminism". In John Cornwell (ed.). Consciousness andHuman Identity. Oxford:
Oxford University Press, 1998, p. 86-100.
1' Richard Dawkins, "Replicator Selection and the Extended Phenotype". Zeitschrift
fiir Tierpsychologie 47 (1978), p. 61-76.
11 The Extended Phenotype, p. 199-200. "
The BlindWatchmaker, p. 259.
"' Por exemplo, ver L. N. Benachenhou, P. Forterre & B. Labedan, "Evolution of
Glutamate Dehydrogenase Genes: Evidence forTwo Paralogous Protein Families
and Unusual Branching Patterns of the Archaebacteria in the Universal Tree of
Life". Journal of Molecular Evolution 36 (1993), p. 335-46; Elizabeth Pennisi, "Is
it Time to Uproot die Tree of Life?". Science as Culture 284 (1999), p. 1305-7.
17 Por exemplo, ver K. Henze, C. Schnarrenberger & W. Martin, "Endosymbiotic
Gene Transfer: A Special Case of Horizontal Gene Transfer Germane to
Endosymbiosis, the Origins of Organelles and the Origins of Eukaryotes". In M.
Syvanen & C. Kado (eds.). Horizontal Gene Transfer. Londres: Academic Press,
2001, p. 343-52.
48 Mary Midgley, "Gene-Juggling". Philosophy 54 (1979), p. 439-58.
!" Uma censura regularmente feita pelos críticos de Dawkins dentro da comunidade
da biologia evolutiva: ver, por exemplo, Steven Rose, "The Rise of Neurogenetic
Determinism". In John Cornwell (ed.). Consciousness and Human Identity. Oxford:
Oxford University Press, 1998, p. 86-100.
50 Para a resposta de Dawkins, ver Richard Dawkins, "In Defence of Selfish Genes".
Philosophy 56 (1981), p. 556-73.
51 Richard Dawkins, "Selective Pecking in the Domestic Chick". Tese de doutorado,
Oxford University, 1966, p. 183-5.
sl The Selfish Gene, p. 196.
53 Para uma pesquisa sobre esse ponto, ver o ensaio "Darwin Triumphant: Darwinism
as Universal Truth", in A Devils Chaplain, p. 78-90.
54 Para a diferença entre as duas expressões, ver Karl-Otto Apel, "The Erklaren-
Verstehen Controversy in the Philosophy of the Natural and Human Sciences".
In G. Floistad (ed.). Contemporary Philosophy: A New Survey.The Hague: Nijhof,
1.982, p. 19-49.
55 Para um exemplo iluminador, ver Luke Davidson, "Fragilities of Scientism:
Richard Dawkins and the Paranoid Idealization of Science". Science as Culture 9
(2000), p. 167-99. Para uma resposta pós-moderna mais geral à crítica científica
das explicações culturais da ciência, ver Brian Martin, "Social Construction of an
'Attack on Science' ". Social Studies of Science 26 (1996), p. 161-73.
56 River out of Éden, p. 96-9 [trad. em port.: O rio que saía do Éden}.
57 Richard Dawkins, "Alternative Thought for the Day". BBC Radio 4, 14 de
agosto de 2003.
58 Charles Darwin, The Descent of Man, 2a ed. Londres: John Murray, 1882, p. 6191
[trad. em port.: A origem do homem: e a seleção sexual. Belo Horizonte: Ed.
Itatiaia, 2004].
59 Para comentários, ver Maurice Mandelbaum, History, Man, and Reason: A Study
in Nineteenth-Century Thought. Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press,
1971, p. 77-88; Dov Ospovat, The Development ofDarwins Theory: Natural
History, Natural Theology, and Natural Selection, 1838-1859- Cambridge:
Cambridge University Press, 1995, p. 229-35.
m A DevWs Chaplain, p. 20-5.
61 Ver aqui Paul L. Farber, The Temptations ofEvolutionary Ethics. Berkeley, CA:
University of Califórnia Press, 1994, p. 136. Farber comenta que a ética de
Huxley "era uma projeção dos seus valores sobre a história do homem", de forma
que seu "naturalismo adotou a visão que pretendia descobrir".
62 Richard Weikart, "A Recently Discovered Darwin Letter on Social Darwinism".
Isis 86 (1995), p. 609-11.
63 A DevWs Chaplain, p. 10-11.
64 The Selfish Gene, p. 200-1. A primeira edição (1976) termina nesse ponto; a
segunda edição (1989) acrescenta mais dois capítulos.
65 Para os comentários de Dawkins, ver Unweaving the Rainbow, p. 286-90 [trad.
em port.: Desvendando o arco-íris]; A DevWs Chaplain, p. 74-7.
66 Para algumas reflexões não divergentes de Dawkins, ver Geoffrey Miller, The
MatingMind: How Sexual Choice Shaped the Evolution of Human Nature. Londres:
Vintage, 2001.
67 The Selfish Gene,?. 109-22.
O relojoeiro cego
A evolução e a eliminação
de Deus?
Darwin marca a divisão dos caminhos. Ele é o colosso que separa
dois modos radicalmente diferentes de pensar. Robert Green
In-gersoll (1833-99), o jurista que se tornou um dos escritores
ateus mais proeminentes dos EUA no século XIX, não hesitou ao
predizer o triunfo de Darwin sobre todas as formas de fé religiosa.
Escrevendo em 1884, Ingersoll declarou:
Este século será chamado o século de Darwin. [...] A doutrina
da evolução, a doutrina da sobrevivência do mais forre, a
doutrina da origem das espécies, removeu de cada mente
pensante o último vestígio de cristianismo ortodoxo.
Como se viu, o cristianismo conseguiu sobreviver às fatais profecias
de Ingersoll. E, quanto ao restante, o darwinismo seria, como
Ingersoll e Dawkins insistem, necessariamente ateísta?
Antes de Darwin era possível, segundo Dawkins, ver o mundo
como algo planejado por Deus, depois de Darwin só podemos falar
da "ilusão de um plano". Um mundo darwinista não tem nenhum
propósito e estaremos nos iludindo se pensarmos diferente. Se o
universo não pode ser descrito como "bom", ao menos não pode
ser tampouco descrito como "mau".
Em um universo de forças físicas cegas e replicação genética,
algumas pessoas contrairão moléstias, outras serão mais afortunadas,
e você não encontrará nenhuma explicação lógica para
isso, nem qualquer justiça. O universo que observamos teria
precisamente as propriedades que deveríamos esperar caso não
houvesse, de forma alguma, nenhum plano, nenhum propósito,
nem o mal, nem o bem, nada mais do que uma impiedosa
indiferença cega.1
Mas alguns insistem em que parece de fato haver um "propósito"
para as coisas e citam o aparente plano dessas coisas em seu
apoio. Certamente, argumentam tais críticos, a intrincada estrutura
do olho humano assinala algo que não pode ser explicado por
forças naturais — isso não exigiria de nós a proposição de um criador
divino como possibilidade explicativa? Caso contrário, como
poderíamos esclarecer as vastas e complexas estruturas que observamos
na natureza?2
A resposta de Dawkins foi exposta principalmente em dois
trabalhos: O relojoeiro cego e A escalada do monte improvável. O
argumento fundamental, comum a ambos, é que as coisas complexas
evoluem a partir de origens simples, através de longos períodos
de tempo.
As coisas vivas são tão incríveis e tão elegantemente "planejadas"
que não poderiam existir por acaso. Como, então, vieram
a existir? A resposta, aquela oferecida por Darwin, é: através
de transformações graduais, feitas passo a passo a partir de
origens simples, de entidades primordiais suficientemente
simples para terem entrado na existência por acaso. Cada
mudança bem sucedida no gradual processo evolutivo é
bastante simples em relação à sua antecessora, passível, portanto,
de surgir por acidente. Mas toda a sucessão de passos
cumulativos constitui algo mais do que um processo casual.3
O que poderia parecer um desenvolvimento altamente improvável
precisa ser visto contra o pano de fundo de extensos períodos de
tempo enfrentados pelo processo evolutivo. Dawkins explora esse
ponto usando a imagem de um metafórico "monte improvável".
Visto de certo ângulo, seus "altos e verticais penhascos" parecem
impossíveis de escalar. No entanto, visto de outro ângulo, a montanha
mostra que possui "prados verdejantes, suavemente inclinados,
nivelados de forma suave e cômoda até os altiplanos distantes".4
A "ilusão de um plano", argumenta Dawkins, surge porque intuitivamente
consideramos as estruturas como muito complexas para
terem surgido por acaso. Um excelente exemplo é fornecido pelo
olho humano, citado por alguns defensores do plano divino e da
criação especial e direta do mundo como uma prova infalível da existência
de Deus. Em um dos capítulos mais detalhados e
argumenta-tivos de A escalada do monte improvável, Dawkins
mostra como, considerando-se um tempo bastante longo, até
mesmo um órgão complexo poderia ter evoluído a partir de algo
muito mais simples.5
Trata-se do darwinismo padrão. O que é novo aqui é a lucidez
da apresentação, a ilustração detalhada e a defesa das idéias por estudos
de casos criteriosamente selecionados e analogias buriladas com
esmero. Conforme Dawkins concebe o darwinismo como visão de
mundo, em vez de uma teoria biológica, não hesita de forma alguma
em levar adiante seus argumentos, para além-dos limites puramente
biológicos. A palavra "Deus" está ausente do índice de O
relojoeiro cego precisamente porque ele próprio está ausente do
mundo darwinista em que Dawkins habita e o qual glorifica.6 O
processo evolucionário não deixa nenhum espaço conceituai para
Deus. Tudo aquilo que a geração anterior explicava recorrendo a
um criador divino podia agora ser acomodado dentro do sistema
darwinista. Não haveria nenhuma necessidade para se acreditar em
Deus depois de Darwin.
Mas Dawkins não vai ficar só nisso. Alguns poderiam concluir
que o darwinismo encoraja o agnosticismo. Longe disso, para Dawkins,
Darwin nos impele ao ateísmo. A evolução não apenas solapa o
poder explicativo de Deus, ela elimina Deus completamente. Em um
importante texto de 1996, Dawkins argumenta que só há três modos
possíveis de ver o mundo no momento: darwinismo, lamarckismo ou
Deus.7 Como os dois últimos não explicam o mundo, a única opção,
portanto, é o darwinismo.
Sou um darwinista porque acredito que as únicas alternativas
são o lamarckismo ou Deus, sendo que nenhuma delas funciona
como princípio explicativo. A vida no universo ou é darwinista
ou outra coisa qualquer ainda não pensada.
Ora, a retórica de sua argumentação implica em que o darwinismo,
o lamarckismo e a crença em Deus sejam três concepções mutuamente
excludentes, de forma que o compromisso com uma por
necessidade obrigue a rejeição das outras. No entanto, sabe-se muito
bem que diversos darwinistas acreditam que haja uma convergência
entre o darwinismo e o teísmo. A extensão dessa convergência
está certamente aberta à discussão e longe de ser um assunto resolvido.
Entretanto a conclusão de Dawkins depende da aceitação
de uma dicotomia absoluta — darwinismo ou Deus —- apesar de
que essas teorias não requeiram tais modos absolutos de pensamento
(embora elas certamente o permitam).
Dawkins sem dúvida demonstrou o que uma descrição puramente
natural pode oferecer ao que hoje se conhece da história e do
presente estado dos organismos vivos. Mas por que isso leva à conclusão
que não há nenhum Deus? Um grande número de suposições
não mencionadas nem discutidas está por trás de seu argumento.
Neste capítulo, trataremos de uma série de objeções que poderiam
ser feitas à conclusão de Dawkins, assim resumidas:
1. No nível mais geral, o método científico é incapaz de decidir
sobre a hipótese de Deus, positiva ou negativamente.
2. Os argumentos de Dawkins levam à conclusão de que Deus não
precisa ser invocado como agente explicativo no processo evolu
tivo. O que é consistente com várias concepções ateístas, agnós
ticas e cristãs do mundo, mas sem exigir nenhuma delas.
3. O conceito de Deus como "relojoeiro", o qual Dawkins desper
diça muito tempo procurando demolir, ganhou importância no
século XVIII, não sendo típico da tradição cristã. Foi desenvolvi
do por Robert Boyle (1627-91), que comparou o universo ao
Grande Relógio de Estrasburgo. Inicialmente aplicada aos aspectos
físicos do mundo, a analogia foi transferida à esfera biológica
no no final do século XVIII. O que Dawkins demonstra é a
vulnerabilidade da aplicação à doutrina da criação de uma abordagem
historicamente contingente, associada às circunstâncias
históricas específicas da Inglaterra do século XVIII, que já havia
sido rejeitada como inadequada, talvez até não ortodoxa, por
muitos dos principais teólogos ingleses da época.
Se tais considerações possuem alguma força cumulativa, elas
conduzem a uma conclusão importante: o ateísmo de Dawkins é
inadequadamente baseado na evidência biológica. Então somos
obrigados a buscar seus fundamentos em outro lugar. A seguir consideraremos
cada um desses pontos individualmente.
A ciência natural não conduz nem ao ateísmo nem ao
cristianismo
O método científico é incapaz de expedir uma sentença decisiva
sobre a questão de Deus. Aqueles que acreditam que a ciência
pode provar ou refutar a existência de Deus pressionam o método
para além de seus limites legítimos e correm o risco de ultrajá-lo ou
desacreditá-lo. Alguns notáveis biólogos (como Francis S. Collins,
diretor do Projeto Genoma Humano) defendem que as ciências
naturais criam uma positiva presunção de fé.8 Outros (como o
biólogo evolucionista Stephen Jay Gould) dizem que elas têm implicações
negativas para a convicção teísta. Mas, de qualquer modo,
as ciências nada provam. Se a questão sobre Deus puder ser solucionada,
deverá ser em outras bases.
Essa não é uma idéia nova. Na verdade, o reconhecimento dos
limites religiosos do método científico era bem compreendido já
ao tempo do próprio Darwin. Ninguém menos do que o
"Bul-dogue de Darwin", T. H. Huxley, escreveu em 1880:9
Uns vinte anos atrás, ou por aí, inventei a palavra "agnóstico"
para designar as pessoas que, como eu, confessavam ser desesperadoramente
ignorantes em relação a uma variedade de assuntos,
entre eles os que os metafísicos e teólogos, tanto ortodoxos
quanto heterodoxos, dogmatizam com extrema confiança.
Enfadado com teístas e ateus que faziam declarações dogmáticas ao
extremo, sem apoio adequado na evidência empírica, Huxley declarou
que a questão sobre Deus não poderia ser resolvida com base
no método científico.
O agnosticismo é da essência da ciência, seja antiga seja moderna.
Ele simplesmente significa que um homem não dirá que
sabe algo ou nele acredita se não possuir uma base científica
para o declarar saber ou acreditar. [...] Por conseguinte, o agnosticismo
não só afasta a maior parte da teologia popular, mas
também a maior parte da antiteologia.
Lâmina 6. Thomas Henry Huxley (1825-95). Foto AKG-Images.
Os argumentos de Huxley são tão válidos hoje como eram no final
do século XIX, apesar dos protestos de ambos os lados do grande
debate a respeito de Deus.
Em uma crítica de 1992 a um trabalho antievolucionista que
postulava que o darwinismo era necessariamente ateísta,10 Stephen
Jay Gould invocou a memória da sra. Mclnerney, sua professora da
terceira série, que tinha o hábito de bater nos nós dos dedos dos
jovens, quando seus donos dissessem ou fizessem coisas particularmente
estúpidas:
Preciso dizer isto para todos meus colegas e pela milionésima
vez (desde os bate-papos na faculdade até os mais doutos
tratados): a ciência simplesmente não pode (através de seus
legítimos métodos) decidir a respeito da questão da possível
ingerência de Deus sobre a natureza. Nós nem podemos afirmar
nem negar isso: como cientistas, simplesmente não podemos
comentar sobre a matéria. Se alguns de nosso grupo
fizerem declarações inapropriadas defendendo que o darwinismo
contesta Deus, então vou procurar a sra. Mclnerney
para que bata nos nós dos dedos desses sujeitos (desde que
ela também possa tratar de igual modo os membros de nosso
grupo que afirmarem que o darwinismo seria o método de
ação de Deus).
Gould insiste com razão em que a ciência só pode trabalhar com
explicações naturalistas, não sendo possível a ela nem afirmar nem
negar a existência de Deus. O ponto principal para Gould é que o
darwinismo na prática não tem nenhuma relevância em relação à
existência ou à natureza de Deus. Se os darwinistas decidirem
dog-matizar sobre assuntos de religião, estarão se desviando do
caminho reto e justo do método científico e vão acabar nos
ermos filosóficos. Ou não é possível de forma alguma se chegar a
uma conclusão, ou esta será alcançada em outras bases.
Ora, Dawkins sabe perfeitamente bem que "a ciência não pode
de nenhuma maneira contestar a existência de um ser supremo".11 O
que, segundo ele, não significa que se deva aceitar então que "a
crença (ou descrença) em um ser supremo seja um assunto de pura
inclinação individual". Mas quem falou algo sobre "pura inclinação
individual"? De onde veio tal idéia? Dawkins parece insinuar que,
onde o método científico não pode ser adequadamente aplicado,
só encontramos anarquia epistemológica. Sem o método científico,
somos reduzidos à pura subjetividade da opinião individual.
Esse comentário equívoco a respeito de um debate sério e legítimo
sobre os limites do método científico permite a Dawkins se
esquivar do ponto em questão. Se o método científico não pode
provar nem contestar a existência ou a natureza de Deus, então, ou
desistimos da pergunta por ser irrespondível (algo que Dawkins
certamente não quer fazer), ou procuramos respondê-la em outras
bases.
Mas o ponto em debate não pode ser evitado assim desse modo.
Se uma resposta deve ser dada, não se trata, portanto, de uma
questão de "pura inclinação individual", mas de uma discussão debatida
e apreciada com base em algum critério de juízo aplicado ao
debate. Essa não é uma questão arbitrária ou caprichosa, mas um
assunto de integridade intelectual em que todos os lados do debate
— quer o ateu, quer o teísta, quer o cristão — procuram oferecer
as "melhores explicações" para as evidências disponíveis.12 Eis a
filosofia básica da ciência, que não vai sumir só porque Dawkins a
está ignorando.
O assunto se torna importante por causa do problema da
"in-determinação da teoria pela evidência". Às vezes é impossível
julgar entre teorias concorrentes porque elas parecem oferecer
explicações igualmente boas sobre o observado. Duas teorias
bastante diferentes podem se mostrar "empiricamente
equivalentes", forçando assim a comunidade científica a suspender
o julgamento até que o assunto seja resolvido através das
evidências, ou se chegue a uma decisão por outras bases. Um
excelente exemplo pode ser fornecido por duas escolas de
mecânica quântica rivais: a "escola de Copenhague", baseada na
abordagem de Niels Bohr e Werner Heisenberg, e a de David
Bohm.13 As duas são empiricamente equivalentes e sem dúvida
da mesma forma elegantes e simples.
Na prática, a abordagem de Copenhague alcançou o predomínio
— mas, em grande parte, por causa de contingências históricas, não
por superioridade teórica. As duas teorias estão associadas a visões de
mundo bem diferentes: a concepção de Copenhague favorece um
universo essencialmente indeterminista, enquanto que a bohmiana
se aproxima mais de um modelo determinista. Muita coisa depende
da escolha teórica a ser feita, embora a escolha não possa ser feita
com convicção. Conforme mostra James Cushing, isso não impediu
que as pessoas fizessem escolhas. No entanto, a legitimidade
científica de tais decisões está aberta à discussão. Ou somos incapazes
de chegar a uma decisão, ou devemos atingi-la em outras
bases.
Apesar de o método científico não poder resolver o assunto, isso
não significa que todas as respostas devam ser consideradas igualmente
válidas, ou que se deva abandonar a racionalidade ao se tratar
delas. Significa apenas que a discussão muda de nível, usando critérios
diferentes de evidências e argumentação. Por acaso, é exatamente
o que Dawkins faz: desenvolve argumentos a favor do ateísmo que
são, no final das contas, de caráter não científico. Vamos considerar
quão bem sucedidos eles são em seu devido tempo. Mas o ponto
chave no momento é simplesmente este: o método científico sozinho
não pode enfim determinar a questão sobre Deus, embora ofereça
algumas importantes contribuições ao debate.
Sigamos em frente, voltando a atenção para outro aspecto do
debate a respeito das implicações teológicas do darwinismo.
Deus como hipótese explicativa
Dawkins discute que Deus é desnecessário como hipótese explicativa.
Deus não tem nenhuma "função útil" visível na explicação
científica. Em defesa dessa idéia, oferece vários argumentos,
entre os quais o mais interessante é o seu "programa biomórfico".14
Trata-se de uma analogia que pretende nos ajudar a apreciar que a
aparência de planejamento pode surgir a partir de desenvolvimentos
fortuitos. Imagine-se, sugere ele, um macaco (ou algo equivalente)
com uma máquina de escrever equipada com vinte e seis
letras maiúsculas e uma tecla de espaço. Dawkins seleciona uma
frase com vinte e oito caracteres retirada de Hamlet de. Shakespeare,
conforme abaixo:
PARECE MESMO COM UMA DONINHA
Essa é a "expressão alvo". Ora, um computador gera ao acaso
uma expressão de vinte e oito caracteres — o equivalente ao
pro-verbial macaco que tenta digitar as obras de Shakespeare.
É desnecessário dizer que ele não mantém nenhuma relação com
a expressão alvo.
Mas então algo acontece. O computador é ensinado a examinar
a expressão e selecionar a "que mais se assemelhe, mesmo ligeiramente,
à expressão alvo".15 O processo continua agora. Depois de
apenas umas trinta repetições, alguma coisa reconhecível como a
expressão alvo aparece:
PARECE MESMO COM UMATONINHA
Somente com uma dúzia ou pouco mais de repetições, e a
expressão alvo é alcançada. Dawkins conclui que o processo de
evolução é capaz de ocasionar uma aparência de ordem bem mais
depressa e de forma efetiva do que se poderia esperar.
Porém, a analogia é deficiente. Na verdade, ela seria um excelente
exemplo daquilo que Friedrich Waismann definiu como
"exor-cismo de problemas filosóficos" através de analogias
cuidadosamente controladas e selecionadas.16 O problema mais
óbvio é que a analogia pressupõe uma teleologia que Dawkins
acredita ausente na natureza. Não havendo portanto nenhuma
"expressão alvo" que a evolução devesse fornecer. Dawkins
admite esse ponto no mesmo texto, mas não o considera como
crítico para sua analogia.17
No entanto, há outro problema para o qual Dawkins não dedica
a devida atenção. A idéia de plano ou seleção intencional foi eliminada
somente no nível verbal. Embora a analogia nos permita evitar
o vocabulário relativo a "plano", a noção de plano está implícita no
programa de computador, que foi construído para controlar o desenvolvimento
de um modo específico. Um antropomorfismo não
reconhecido está por trás da analogia e lhe dá a plausibilidade que o
leitor visado pelo texto espera. Remova-se o (planejado) programa
de computador e a analogia perde muito de sua plausibilidade. O
programa deveria ser visto apenas e simplesmente como uma indicação
de como pequenas mutações fortuitas podem ser acumuladas
e produzir mudanças significativas, desde que sejam selecionadas
de modo não fortuito.18
Deixando de lado a plausibilidade da analogia, devemos nos
concentrar no ponto em que Dawkins quer chegar. Uma "teoria de
mutação fortuita mais seleção cumulativa não fortuita" poderia
explicar a aparência de planejamento no mundo. Não haveria
qualquer necessidade de se postular um Deus como mecanismo
explicativo. Supondo que aceitemos esse ponto: quais seriam as
suas implicações? Dawkins deduz que, desde que Deus possa ser
ignorado como irrelevante, a única atitude significativa é o
ateís-mo. Na verdade, ele não faz os movimentos lógicos exigidos
para se chegar a tal conclusão, aparentemente assumindo que estes
são tão patentes que não necessitam de demonstração. Mas não é
bem assim. Para esclarecer esse ponto, devemos examinar a visão
de mundo proposta pelo iminente teólogo cristão Tomás de
Aquino no século XIII.
Aquino construiu um sistema para compreender a relação de
Deus com o inundo, enlaçando os temas fundamentais dos credos
cristãos.19 As idéias básicas desenvolvidas por Aquino podem ser
expostas de um modo muito simples, como se segue. Deus é a
causa de todas as coisas. Entretanto a causalidade divina opera de
vários modos. Deus, apesar de ser capaz de fazer certas coisas diretamente,
delega eficácia causai à ordem criada. Para Aquino, a noção
de causalidade secundária deve ser considerada como uma extensão
da causalidade primária do próprio Deus, e não uma alternativa a
ela. Eventos dentro da ordem criada podem existir devido a relações
causais complexas, sem negar de qualquer forma a sua dependência
última de Deus como causa final.
O ponto crítico a se apreciar é que a ordem criada apresenta
relações causais que podem assim ser investigadas pelas ciências
naturais. As relações causais podem ser investigadas e correlacionadas
— por exemplo, na forma de "leis da natureza" — sem de
forma alguma implicar, e menos ainda exigir, uma visão de mundo
ateísta. Apresentando de um modo tão simples quanto possível:
Deus cria um mundo com ordenação e processos próprios.
A abordagem clássica tem suas forças e fraquezas. A mais óbvia
de suas forças é que estabeleceu os fundamentos conceituais para o
desenvolvimento das ciências naturais no final da Idade Média,
encorajando a investigação de processos e eventos naturais. A
propósito, é importante notar que essa visão cristã do mundo perdurou
por muito tempo antes de Darwin. Como resultado, a abordagem
de Aquino não pode de forma alguma ser descrita como
uma tentativa post hoc de se defender o cristianismo contra a visível
ameaça da nova ciência da biologia evolucionista.
Uma potencial fraqueza da abordagem tomista é que a
auto-regulação da ordem natural pode conduzir à marginalização
conceituai de Deus em qualquer explicação do mundo. Uma
explicação das órbitas dos planetas, por exemplo, poderia ser
oferecida sem fazer nenhuma referência a Deus. Conforme
Pierre-Simon Laplace (1749-1827) demonstrou em seu volumoso
Tratado de Mecânica Celeste, um mecanismo auto-sustentado
efetivamente eliminou a necessidade de Deus ou como hipótese
explicativa ou como susten-tador ativo na cosmologia. Embora para
muitos, esse seja um risco aceitável.
É exatamente essa marginalização conceituai do divino que pode
ser vista na explicação de Darwin sobre a seleção natural. O que
Darwin ofereceu a seus leitores de A origem das espécies foi uma
explicação das origens e da atual distribuição geográfica das espécies
biológicas, a qual opera por completo em termos de causalidade
secundária. Dawkins interpreta isso como ao menos eliminando, e
mais provavelmente desacreditando, a existência de Deus. Em seus
próprios escritos, oferece uma explicação darwinista mais avançada
da diversidade biológica, com ênfase particular incidindo na base
molecular do processo evolutivo. Mais uma vez, a conclusão é que
Deus é supérfluo: os dados observacionais podem ser explicados
sem precisar invocar a agência divina.
Os cientistas naturais cristãos consideram que a hipótese de Deus
oferece novas compreensões e adiciona profundidade ao compromisso
que têm com a natureza e sua apreciação. Outros preferem explicar
o mundo etsi Deus non daretur ("como se Deus não fosse dado"),
para usar uma expressão popularizada pelo jurista holandês Hugo
Grotius (1583-1645). De qualquer forma, a suposta superfluidade
explicativa de Deus claramente não tem nenhuma relevância para a
pergunta sobre a sua existência. E consistente com explicações do
mundo de cristãos, agnósticos e ateus. Se houver algum argumento
que possa ser feito contra a existência de Deus, suas fontes devem
ser procuradas em outro lugar.
O caso de William Paley
O relojoeiro cego representa uma importante e altamente bem
sucedida crítica ao conceito, cunhado no século XVIII, de Deus
como um "relojoeiro". Mas quais são as suas implicações? A concepção
que Dawkins destrói só se tornou importante no século
XVIII e não é típica da tradição cristã como um todo. Trata-se de
uma precipitada resposta ao desafio intelectual proposto pela "filosofia
mecânica", como é normalmente conhecida.20 A princípio aplicada
ao mundo físico, a analogia do "relojoeiro" foi transposta à
esfera biológica, no final do século XVIII, com resultados que alguns
acharam confortáveis e outros bastante insatisfatórios.
Dawkins de fato demonstra que uma compreensão muito específica
da doutrina da criação, surgida em resposta às circunstâncias
históricas do século XVIII na Inglaterra, foi completamente
prejudicada pela explicação darwinista da evolução. Essa teoria, associada
a William Paley (1743-1805), arquidiácono de Carlisle, já
fora rejeitada como inadequada por muitos teólogos importantes
da época — como John Henry Newman (1801-90) — antes de
Darwin a arruinar ainda mais. Devido à importância desse ponto,
examinaremos a teoria de Paley com algum detalhe.
O contexto para a ênfase de William Paley sobre o aparente
"engenho" do mundo biológico é particularmente um assunto inglês,
surgido em virtude da complexa interação entre política e religião
na Inglaterra do começo do século XVIII. Tal desenvolvimento
é historicamente tão fascinante quanto também importante para a
tese do "relojoeiro cego" de Dawkins.21
Ao final do século XVII, uma série de eventos no estado britânico
e em toda sua sociedade colocou a Igreja da Inglaterra na defensiva.
Um deles é de relevância particular para nossos propósitos: o
aparecimento de "deísmo", uma concepção sobre Deus que o reconhece
como criador divino, embora rejeite a continuidade do
envolvimento divino com o mundo. O surgimento do deísmo
causou alguns problemas para a igreja oficial, especialmente em
relação ao modo como a Bíblia e a tradição doutrinária da igreja
deveriam ser interpretadas. Impressionados pela demonstração de
Isaac Newton sobre a regularidade mecânica do mundo, muitos
dentro da igreja começaram a estudar a idéia de que um recurso ao
mundo natural poderia ser a base para uma nova defesa das idéias
cristãs.22
Ora, um interesse em relação ao mundo natural sempre fez
parte da tradição intelectual cristã. Porém, no passado, isso levava
geralmente a uma forma de interpretar o mundo de uma perspectiva
cristã, apelando à maravilha e à beleza do mundo natural como
um modo de apreciar a beleza de Deus.23 E bem conhecido que
um dos impulsos mais fundamentais para o desenvolvimento das
ciências naturais entre os séculos XVI e XVII era a convicção de que
o estudo da natureza de perto, permitia uma avaliação mais profunda
da sabedoria de Deus.24 Conforme o grande naturalista John Ray
(1628-1705), autor da célebre obra The Wisdom of God Manifested
in the Works of Creation [A sabedoria de Deus manifestada nas obras
da criação] (1691), propunha em 1660:
Não há para um homem livre nenhuma ocupação mais valiosa
e encantadora do que contemplar os belos trabalhos da natureza
e honrar a sabedoria e bondade infinitas de Deus.
No entanto, tudo isso mudou no início do século XVIII. Uma
nova abordagem para o trabalho teológico foi desenvolvida, que seria
variavelmente conhecida ou como "teologia natural" ou "teologia
física" (da palavra grega physis, "natureza"). A existência e os atributos
de Deus, argumentava-se, poderiam ser deduzidos da própria natureza.
A medida que o racionalismo adquiria uma crescente influência
sobre a vida intelectual inglesa, a igreja oficial respondia substituindo
sua ênfase das fontes tradicionais de autoridade (como a Bíblia) para
o mundo natural. A existência e a sabedoria de Deus poderiam ser
provadas para um mundo cada vez mais cético através de um apelo à
organização da natureza.
Inicialmente, a "teologia natural" recorreu à ordenação do
mundo físico — e, acima de tudo, à regularidade da "mecânica
celeste" demonstrada por Isaac Newton. De repente, Newton passou
a ser visto como havendo traçado uma nova abordagem para a
defesa do cristianismo e para a atividade teológica. A "teologia física"
tornou-se a última moda nos inícios dos anos 1700. Entretanto,
aquilo que parecia ser uma promissora aliança entre ciência e
religião pouco depois levou a uma crescente e potencialmente irreversível
separação entre ambas.25 Uma abordagem, então defendida
pelos principais cientistas da época, fora abraçada por bispos e
arquidiáconos bem menos competentes, que em geral repetiam idéias
de segunda mão, mal compreendidas, cujas implicações eram propensas
ao exagero. O sistema newtoniano se apresentava a muitos
como um mecanismo auto-sustentado do mundo, que prescindia
por completo do governo ou suporte divino para sua operação
contínua.26 Longe da encorajadora crença em Deus, declarava-se
que esta se tornara por completo desnecessária.
Ao final do século XVIII, ficara patente que o sistema de Newton
certamente conduzia ao ateísmo ou agnosticismo, em vez de
levar à fé. Em 1750, tornava-se óbvio que a síntese de Newton
entre as ciências físicas e a religião havia falhado. O golpe fatal veio
quando Percy Bysshe Shelley fez a famosa advertência: "O
newto-niano coerente é necessariamente um ateu".27
Mas, bem antes disso, outros se haviam voltado para o mundo
da biologia. Se a física era um beco sem saída, seria possível construir
argumentos a favor da existência de Deus recorrendo-se ao mundo
vivo da natureza, em lugar das órbitas regulares dos planetas? Tal
empreendimento acabou sendo o último recurso de um movimento
intelectual que se encontrava em fim de carreira. Foi uma experiência
em apologética cristã — disciplina que se interessa em responder às
objeções levantadas contra a fé cristã — que dera errado e que,
portanto, deveria ser abandonada. Mas Paley foi capaz de ver um
modo de injetar uma nova vida a essa abordagem. Ela voltaria para
lutar mais uma vez. Por acaso, a abordagem de Paley alcançou um
sucesso popular maior do que poderia imaginar. No entanto, isso
criou a falsa impressão de que a credibilidade intelectual do cristianismo
dependia da abordagem que de alguma maneira Paley
adotara. Que abordagem? Deus como o relojoeiro.
A obra de Paley, Natural Theology; or Evidences of the Existence
and Attributes of the Deity, Collected jrom the Appearances of
Na-ture [Teologia natural; ou evidências da existência e atributos
da divindade, recolhidas de fenômenos da natureza] (1802), teve
uma profunda influência sobre o pensamento religioso popular da
Inglaterra, na primeira metade do século XIX, sendo famoso por
haver sido lido por Charles Darwin. Paley impressionara-se
profundamente com a descoberta de Newton da regularidade da
natureza, especialmente em relação à área normalmente conhecida
como "mecânica celeste". Estava claro que o universo inteiro
poderia ser pensado como um mecanismo complexo, operando de
acordo com princípios regulares e compreensíveis.
Para Paley, a analogia de Deus como um relojoeiro precisava
ser transferida do domínio físico para o biológico. A natureza seria
vista como um "engenho". Essa importante palavra sugere as idéias
de plano e construção — as quais Paley assegurou serem evidentes
no mundo biológico. Paley argumenta que só um louco poderia
sugerir que uma complexa tecnologia mecânica existiria por força de
um acaso despropositado. Mecanismo pressupõe engenho — ou seja,
tanto um senso de propósito quanto uma habilidade para projetar e
fabricar, O corpo humano, em particular, e o mundo, em geral, podem
ser vistos como mecanismos projetados e construídos, perfeitamente
adaptados às suas necessidades e situações específicas.
Lâmina 7. William Paley (1743- 1805).© CORBIS
Os parágrafos de abertura da Natural Theology de Paley apresentam
a analogia que tornou seu autor famoso e que é o objeto de
muitas referências generosas, embora no final das contas críticas,
em O relojoeiro cego de Dawkins:
Vamos supor que, ao atravessar uma campina, eu tropece em
uma pedra e me pergunte como a pedra foi parar ali. Possivelmente
responderia que, até onde soubesse, ela sempre
es-tivera ali; não sendo muito fácil mostrar o absurdo dessa
resposta. Mas suponhamos que eu tenha encontrado um
relógio no chão e me questione sobre como o relógio tinha
aparecido naquele lugar. Dificilmente deveria pensar na
resposta que havia dado antes, que, até onde soubesse, o
relógio sempre estivera ali. No entanto, por que essa resposta
não serve para o relógio apesar de ter servido para a pedra?
Por que não é admissível para o segundo caso como foi para o
primeiro?28
Paley então oferece uma descrição detalhada do relógio, observando
em particular a sua caixa, sua mola cilíndrica encaracolada, as
muitas rodas integradas e o visor de vidro. Havendo conduzido
seus leitores por essa minuciosa análise, Paley se prepara para extrair
uma conclusão extremamente importante para ele:
Esse mecanismo ao ser observado — o que exigiria com certeza
um exame instrumental e talvez algum conhecimento
prévio do assunto para percebê-lo e entendê-lo — mas, sendo
uma vez, como dissemos, observado e compreendido, a
conclusão a que se chega é inevitável: o relógio teve um fabricante
— deve ter existido, em algum momento e em algum
outro lugar, um artífice ou artífices que o formaram para o
propósito ao qual achamos que ele de fato corresponde, e que
compreendiam sua construção e projetaram seu uso.
A analogia, como a maioria do trabalho de Paley, foi emprestada,
e a erudição é decididamente de segunda categoria. Paley, em
sua busca por uma nova teologia natural, plagiou sem dó os escritos
de John Ray. Apesar de ser um pensador não original e antiquado,
Paley era sem dúvida um excelente comunicador. O que ele
com tanta competência comunicou era, no entanto, um modo
antiquado de se pensar. A natureza, segundo Paley, apresentava sinais
de "engenho", ou seja, plano e fabricação intencionais. A natureza
dá testemunho de uma série de estruturas biológicas que
foram "engenhadas", isto é, construídas com um claro propósito
em mente. "Cada indicação de engenho, cada manifestação de planejamento
que existe no relógio, existe nas obras da natureza". Na
verdade, diz Paley, a natureza mostra até um maior grau de planejamento
que o relógio. O melhor de seu trabalho trata das estruturas
imensamente complexas do olho humano e do coração, sendo que
cada uma delas pode ser descrita em termos mecânicos. Qualquer
um que usa um telescópio, observa o autor, sabe que o instrumento
foi projetado e construído. Quem, ele deseja saber, ao olhar para
o olho humano, não percebe que também teve um projetista?
O próprio Dawkins é eloqüente e generoso em seu relato sobre
o empreendimento de Paley, anotando com apreço suas "belas e reverentes
descrições da dissecada maquinaria da vida".29 Dawkins, sem
nunca menosprezar o prodígio dos "relógios mecânicos" que tanto
fascinaram e impressionaram Paley, argumenta que essa justificativa
para Deus — feita, no entanto, com "apaixonada sinceridade" e
"com base nos melhores conhecimentos biológicos de seu tempo"
— é "gloriosa e totalmente errada". O "único relojoeiro na natureza
são as forças cegas da física".
Esse é o Dawkins, mas e quanto a Darwin? Embora a pesquisa
acadêmica sobre a evolução das idéias de Darwin tenha descoberto
novas e potencialmente importantes conexões com abordagens alternativas
da teologia natural nos anos 1830 e 1840,30 não há nenhuma
dúvida sobre a prolongada influência de Paley sobre Darwin.
Quando era estudante na Universidade de Cambridge, Charles
Darwin leu Paley e ficou impressionado com seus argumentos.
Naquele momento, Paley era largamente lido em Cambridge.31
A Natural Theology [de Paley] me deu tanto prazer quanto a
leitura de Euclides. O cuidadoso estudo dessas obras, sem
precisar aprender qualquer trecho mecanicamente, foi algo
raro no curso acadêmico, o qual, como eu então sentia e como
ainda acredito, teve menos utilidade para mim na educação
da minha mente. Naquela época não me inquietei com as
premissas de Paley e, aceitando-as de boa fé, fui seduzido e
convencido por sua linha de argumentação.
No entanto, ele estava atento a alguns problemas no esquema de
Paley, mesmo ainda sem o recurso da teoria evolutiva.
O argumento de Paley enfatizava a sabedoria de Deus na criação.
Mas, Darwin se perguntava, onde estaria a bondade de Deus?
Como a brutalidade, a dor e o completo desperdício da natureza
poderiam ser reconciliados com a idéia de um Deus benevolente?
Em seu "Esboço de 1842", Darwin ponderava, dentro do esquema
de Paley, sobre como se poderiam justificar coisas como "parasitas
rastejantes" e outras criaturas que botam seus ovos nos intestinos
ou na carne de outros animais. Como a bondade de Deus poderia
se conciliar com os aspectos menos agradáveis da ordem criada?
Não pode haver nenhuma dúvida a respeito da influência de
Paley sobre Darwin. Até mesmo em seus escritos posteriores, Darwin
se inclinava a usar "os padrões discursivos, as estruturas
argu-mentativas e os conceitos básicos de Paley como se fossem
seus".32 Entretanto Darwin não tinha nenhuma dúvida de que sua
teoria da seleção natural havia descartado a teoria da "teologia física"
ou "físico-teologia" de Paley. Imitando deliberadamente o vocabulário
de Paley, Darwin defendeu com veemência que os fenômenos
considerados com certa razão pela geração anterior de naturalistas
como "engenhos" — ou seja, características projetadas de forma
proposital — poderiam ser vistos agora como havendo evoluído
naturalmente.
Darwin desenvolveu esse ponto por completo em um trabalho
publicado em 1862, intitulado On the various contrivances by which
British and foreign orchids are fertilised by insects [Sobre os vários
engenhos pelos quais as orquídeas britânicas e estrangeiras são fertilizadas
por insetos]. O uso deliberado da palavra "engenho" deve
ser visto aqui como uma crítica direta e explícita a Paley. As orquídeas,
explica Darwin, possuem muitos "belos engenhos", que alguns interpretam
"como o resultado da intervenção direta do Criador".
Outros, sugere ele, desejariam agora ver esses mesmos engenhos
como "devidos a leis secundárias". Por diversas razões, O relojoeiro
cego de Dawkins pode ser entendido como uma expansão do argumento
desse escrito de 1862 de Darwin, reposto dentro de uma
estrutura neodarwinista. A ciência pode ter mudado, mas as conclusões
religiosas são as mesmas: processos e leis naturais explicam
o plano aparente.
Entretanto outros tinham suas desconfianças sobre Paley em bases
teológicas e, logo, as expressaram. Antes da nova teoria de Darwin
aparecer, um crescente corpo de opinião teológica informada defendia
o abandono das idéias de Paley ou mudanças significativas nelas.
Em 1852, John Henry Newman fora convidado a dar uma série de
conferências em Dublin sobre "a idéia de uma universidade". O
tema lhe permitiu explorar a relação entre o cristianismo e as ciências,
especialmente a "teologia física" de William Paley. Newman era
severo sobre a abordagem de Paley, reprovando-a como "um falso
evangelho". Longe de ser um avanço em relação às mais modestas
abordagens adotadas pela igreja primitiva, ela representava uma
degradação dessas idéias.
Lâmina 8. John HeniyNewman (1801-90). © Hulton-Deutsch Collection/CORBlS
O núcleo da crítica de Newman pode ser resumido em uma
oração: "Ela foi tirada de seu lugar, foi posta de modo muito proeminente
na frente e, por isso, foi quase usada como um instrumento
contra o cristianismo".33 A "teologia física" de Paley era um
embaraço e deveria ser abandonada antes que pudesse desacreditar
o cristianismo.
A teologia física não pode, em razão da natureza do problema,
nos dizer uma palavra sobre o próprio cristianismo. Ela
não pode ser cristã, em um verdadeiro sentido, nada. [...]
Não, mais do que isso: não hesito em dizer que, conhecendo
os homens como são, essa assim chamada ciência tende, se
ocupar as mentes, a se colocar contra o cristianismo.34
Sete anos antes de Darwin contestar em bases científicas a abordagem
de Paley, Newman — amplamente considerado o teólogo
inglês mais importante do século XIX — havia repudiado Paley
como uma tendência teológica antiquada.
E interessante notar que não havia nenhuma consciência por
parte de Newman de uma nova crise de fé a se precipitar em
razão da obra de Darwin. Seu argumento, que antecede A
origem das espécies de Darwin, repousa somente em sua
convicção de que a abordagem de Paley falha naquilo que
pretendeu oferecer e confina a teologia cristã numa apologética,
que só pode levar desastrosamente ao erro. Não era a primeira vez
que a apologética cristã con-dúzia a um calamitoso erro, e uma
imediata correção era, na visão de Newman, muito necessária.
Outros, porém, conceberam a idéia de que a teoria da evolução
de Darwin permitiria que Paley fosse desenvolvido em direções mais
úteis. Conforme James Moore mostrou em sua extensa e definitiva
exposição sobre as respostas cristãs dadas a Darwin, muitos acreditaram
que as óbvias deficiências da explicação de Paley para a vida
biológica — em especial a noção de "adaptação perfeita" — haviam
sido corrigidas pela noção de seleção natural de Darwin.35 Mais
importante ainda, uma série de escritores descartou o interesse
de Paley pelas adaptações específicas (para usar um termo
darwinista
desconhecido para ele) e preferiu se concentrar no fato de que a
evolução parecia ser governada por certas leis bastante definidas —
uma clara aplicação para biologia da abordagem geral desenvolvida
na Idade Média por Tomás de Aquino. Um excelente exemplo está
em Essays on the Spirit of the Inductive Philosophy [Ensaios sobre o
espírito da filosofia indutiva] (1855), de R. S. S. Baden-Powell, livro
escrito antes da teoria de Darwin haver obrigado a reconsideração
tio assunto por causa de sua nova abordagem sobre o mundo natural.
36
Paley deve ser visto em seu contexto histórico. Ele representa o
florescimento tardio e final de um movimento surgido como resultado
da grande revolução newtoniana ao término do século XVII,
e que havia se perdido completamente em meados do século
XVI-I I. Paley apenas adaptou velhas idéias, sem se aperceber que
a já tênue credibilidade delas estava a ponto de expirar. A origem
das espécies de Darwin e os escritos posteriores devem ser vistos
como a refutação de uma idéia do século XVIII feita pelo século
seguinte — uma idéia já rejeitada por escritores cristãos da época.
Mas não podem ser considerados como uma refutação do próprio
cristianismo — apenas de um passo errado dado pela igreja nacional
inglesa.
O cristianismo não é uma entidade estática, mas sim, uma planta
em crescimento.37 Embora fundamentada na Bíblia, a tradição
teológica cristã sempre esteve atenta à necessidade de interpretar seu
texto fundador da forma mais autêntica possível. O que conduziu
a debates dentro da igreja sobre como melhor interpretar certas
passagens. Nos primeiros quinhentos anos de cristianismo, surgiram
vários princípios básicos. Um deles determina interpretar a Bíblia
de um modo que permita uma interação criativa com a melhor
ciência natural do momento.
O teólogo mais influente dessa era foi Agostinho de Hipona
(354-430), de especial importância para o estudo da relação entre
interpretação bíblica e as ciências. Agostinho enfatizou a importância
de se respeitar as conclusões das ciências no tocante à exegese
bíblica. Como Agostinho observou em seu comentário ao Gênesis,
certas passagens estavam genuinamente abertas a diversas interpretações.
Portanto, seria importante permitir que a pesquisa científica
adicional ajude na determinação do modo mais apropriado de
interpretação para uma determinada passagem:38
Com relação a assuntos por demais obscuros e muito além de
nossa visão, encontramos passagens nas Sagradas Escrituras
que podem ser interpretadas de modos muito diferentes sem
prejuízo para a fé que recebemos. Em tais casos, não devemos
nos precipitar e tomar tão firmemente um dos lados, para
que, se um progresso posterior na busca da verdade corretamente
derrubar nossa escolha, não caiamos junto com ela.
Não devemos lutar pela nossa própria interpretação, mas pelo
ensino das Sagradas Escrituras. Não devemos desejar conformar
o significado das Sagradas Escrituras a nossa interpretação,
mas nossa interpretação ao significado delas.
Agostinho advertiu em seguida que a interpretação bíblica deveria
levar em conta aquilo que pudesse ser razoavelmente considerado
como fato estabelecido. Essa abordagem da interpretação bíblica
procurava assegurar que a teologia cristã nunca fosse apanhada em
uma visão de mundo pré-científica. Sendo sempre esse o tema dominante
na interpretação bíblica ocidental. O que, no entanto, não '
impediu a existência de debates sobre qual a melhor abordagem. E
tais debates com freqüência envolveram tentativa e erro, determinando
o melhor modo de interpretar uma passagem bíblica após
um extenso período de discussão e pesquisa.
Uma dessas abordagens se deve a William Paley. Não importa
que a história a considere um dos momentos menos felizes do
aven-tureirismo teológico. Não podemos adotar uma "visão whig
da história", que louva as experiências bem sucedidas e condena as
que falharam. Para usar a famosa expressão de Arnold Toynbee,
todo o empreendimento da teologia cristã, como a própria
civilização humana, é "um movimento e não uma condição, uma
viagem e não um porto". O mesmo é verdade para o método
científico. Pesquisar é essencial.
A avaliação da abordagem da apologética cristã proposta por
Paley começou a ser feita em 1800 e essencialmente completada
antes de 1850, antes, portanto da publicação da teoria de Darwin.
O veredicto? Foi uma experiência mal sucedida. Era hora de
re-descobrir abordagens mais antigas da apologética e desenvolver
outras novas, não contaminadas pelos fracassos de Paley. Porém tal
foi o impacto de Paley que suas idéias permaneceram por muito
tempo na cultura vitoriana—e, com elas, uma compreensão
basicamente estática do mundo biológico, assumida de forma
imprópria como a visão cristã das coisas. Não é de se estranhar
que tantos teólogos quisessem voltar a um modo mais autêntico e
primitivo de se fazer teologia, abandonando o aventureirismo de
Paley.
A avaliação de Dawkins sobre as implicações teológicas do darwinismo
é por demais dependente da concepção de que as abordagens
de Paley (ou Paleyesque) em relação à biosfera são típicas ou
normativas do cristianismo. Ele também parece assumir que a justificativa
intelectual do cristianismo repouse em grande parte, se não
totalmente, em um "argumento a favor do plano", conforme fora
proposto por Paley. No entanto, a teologia cristã não defende que a
crença cristã seja irracional ou careça de um status epistêmico positivo
sem o tipo de argumentos que Paley desenvolveu. Dawkins
elaborou um soberbo juízo para a rejeição de Paley. Infelizmente,
parece pensar que isso exige também a rejeição de Deus.
E se nós nos esquecêssemos de Paley e voltássemos à interpretação
bíblica e aos métodos teológicos da igreja primitiva? Infelizmente,
essa é uma experiência histórica que não pode ser empreendida.
A história, como o processo evolutivo descrito por Darwin e Dawkins,
é irreversível e propensa a contingências que se situam além do
controle experimental. O acaso é tão importante na evolução cultural
como na biológica. Mas o que pode ser dito, e precisa ser
dito, é isto: se o debate darwinista tivesse acontecido na igreja de
língua grega do século IV, as coisas teriam sido muito diferentes.39 A
crítica que desejo fazer é a seguinte: a avaliação fortemente negativa
de Dawkins das implicações religiosas do darwinismo depende da
descrição de uma contingência histórica local como se fosse uma
necessidade teológica universal. Mesmo se considerando a importância
cultural da Inglaterra no século XIX, não se podem apresentar as
condições locais da Inglaterra vitoriana como se fossem determinantes
da fé cristã em todas as eras.
Até aqui apresentei três objeções à análise de Dawkins sobre as
implicações do darwinismo em relação à crença cristã. Neste momento,
quero introduzir duas outras considerações. Não se tratam
de "argumentos", mas sim de observações históricas que põem em
dúvida se Dawkins justifica adequadamente seu ateísmo na leitura
do darwinismo. Em seguida refletiremos sobre a própria avaliação
de Darwin acerca das implicações religiosas de sua teoria da evolução,
sobre os juízos emitidos pelos principais biólogos e teólogos cristãos
por volta do tempo de Darwin.
As concepções religiosas de Charles Darwin
As implicações religiosas de uma visão de vida darwinista são
controversas. Podem ser interpretadas de uma maneira cristã, agnóstica
e ateísta. Mas e quanto ao próprio Darwin? Que idéias ele
tinha a respeito das implicações religiosas de suas concepções? Serviria
admiravelmente aos propósitos de Dawkins se fosse possível provar
que Darwin abandonara qualquer fé em Deus, como conseqüência
de sua teoria da evolução. Entretanto a discussão de
Dawkins sobre a complexa e fascinante interação entre as visões
científicas e religiosas de Darwin é muito desapontadora e não lida
satisfatoriamente com as questões envolvidas.40 Se tudo mudou
depois de Darwin, é sem dúvida importante determinar o que o
próprio Darwin acreditou ter mudado como resultado de suas idéias
novas.
A idéia de que Darwin fosse de fato ateu por causa de sua doutrina
evolucionista foi vigorosamente defendida num panfleto de
Edward Aveling, The Religious Views of Charles Darwin [As con-\
cepções religiosas de Charles Darwin] (1883).41 A evidência apresentada
neste curto trabalho está longe de ser persuasiva, não sendo
claro que peso lhe deveria ser concedido. Darwin havia recusado o
pedido anterior de Aveling de lhe dedicar o seu Student's Darwin
[Darwin do estudante]. Aveling era um dos mais dedicados
seguidores ingleses de Karl Marx, e considerava que as idéias
evolu-cionistas de Darwin reforçavam as idéias básicas do
materialismo marxista. Darwin não quis endossar tal associação.42
Existem de fato várias passagens importantes nos textos de
Darwin que podem ser interpretadas como significando que Darwin
deixara de acreditar em uma concepção cristã ortodoxa de Deus,
por causa de suas idéias sobre a evolução. O problema é que há
também outras passagens que diversamente indicam que Darwin
manteve uma crença religiosa, ou que perdeu sua fé por razões
to-talmente diferentes das preocupações evolucionistas. Porém,
uma nota de cautela deve ser empregada: com base nas evidências
publicadas e disponíveis, fica claro que o próprio Darwin estava
longe de ser consistente em relação a suas concepções religiosas.
Seria, portanto pouco inteligente extrair uma conclusão
inquestionável sobre o assunto.43
Não pode haver nenhuma dúvida de que Darwin abandonou
o que nós poderíamos chamar "crenças cristãs convencionais" em
algum ponto dos anos 1840, embora a data se mantenha imprecisa.
No entanto, há uma significativa distância teórica entre "abandonar
a fé cristã ortodoxa" e "se tornar ateu". O cristianismo envolve
uma concepção altamente específica de Deus, sendo perfeitamente
possível crer em um deus diferente daquele do cristianismo, ou
acreditar em Deus e rejeitar certos aspectos da fé cristã. Na verdade,
a "crise de fé vitoriana" — em que Darwin foi espectador e participante
— pode ser entendida como um distanciamento das particularidades
do cristianismo em direção a um conceito mais genérico
de Deus, em grande parte determinado pelos valores éticos da época.
Como qualquer história razoável do ateísmo deixa claro, as
alternativas disponíveis nos séculos XVIII e XIX incluíam muitas
formas de crença em Deus, expandindo intensamente a visão cristã
de Deus. Voltaire (1694-1778), em geral visto como ateu, era na
realidade um deísta — alguém que acreditava em uma divindade
racional. Sua Carta para Úranie (1722; publicada em 1732) faz
uma firme defesa da existência de um ser supremo, que é inadequada
e falsamente representado pelas grandes religiões formais do mundo,
em especial pela igreja católica francesa e seus principais representantes.
Voltaire rejeitou o conceito cristão de Deus, conforme este
representava uma distorção da concorrente divindade racional. Há
um espectro de possibilidades teístas entre o "cristianismo ortodoxo"
e o "ateísmo". O Darwin maduro, até onde se pode saber, se localizaria
no meio desse espectro, em algum lugar entre os seus extremos.
São conhecidos dois fatores de particular interesse para Darwin
com implicações negativas para o cristianismo tradicional. Primeiro,
Darwin achava que a existência da dor e do sofrimento no mundo
era um insuportável fardo moral e intelectual. C. S. Lewis concorda
em absoluto que essa questão, que denominou de "o problema
da dor", seja um dos obstáculos mais importantes para a crença
cristã, sendo completamente compreensível que alguém tão sensível
quanto Darwin sentisse o peso desse assunto, em particular devido à
sua prolongada (e ainda inexplicável) doença.44 A morte da filha
Annie, na tenra idade de dez anos, inquestionavelmente aprofundou
seu sentimento de afronta moral em relação ao assunto.45
Em 1961, Donald Fleming desenvolveu a importante tese de
que a experiência do sofrimento de Darwin foi um elemento crucial
para a perda da sua fé. Fleming argumenta que Darwin passou
a acreditar que "o homem moderno deveria preferir o sofrimento
absurdo ao sofrimento justificado, compreensível porque enviado
do alto".46 A dor e o sofrimento seriam aceitáveis como o resultado
ininteligível do processo evolutivo, o que, apesar de desagradável,
parece ser preferível à sua alternativa, isto é, que o próprio Deus
infligiu o sofrimento ou permitiu que fosse infligido por outros.
A idéia de que a evolução acontece de acordo com certos princípios
ou leis gerais, com detalhes específicos deixados ao acaso, nunca
satisfez Darwin por completo: havia muitas questões intelectuais
sem explicação e difíceis impasses morais — em particular, a imensa
perda de vida que ocorre no processo de seleção natural. Porém
isso parecia a Darwin menos perturbador do que a sua opção, "um
Deus caridoso e onipotente teria deliberadamente criado a Ichneumonidae
[família das vespas] com a expressa intenção de que se
alimentasse dentro de corpos vivos de lagartas".47 Ao menos isso
poderia ser debitado a um acidente da natureza, em vez de a um
desígnio divino intencional.
Sobre o segundo fator, Darwin compartilhou da indignação
moral do período médio-vitoriano contra alguns aspectos da doutrina
cristã especialmente associados à crescente influência do movimento
evangélico. Como George Eliot e muitos outros na ocasião,48
Darwin reagiu com repugnância a idéias como a danação perpétua
no inferno daqueles que explicitamente não acreditassem no evangelho
cristão.49 Darwin sentia essa indignação com uma força particular,
por causa das convicções religiosas um pouco heterodoxas
de seu pai. Conforme escreveu em sua Autobiografia:
Na realidade, quase não consigo entender como alguém possa
desejar que o cristianismo seja verdade, pois, nesse caso, a
linguagem direta do texto parece mostrar que os homens que
não crêem, o que incluiria meu pai, irmão e quase todos os
meus amigos, serão punidos pela eternidade. E essa é uma
doutrina execrável.
Em outubro de 1882, seis meses depois da morte de Darwin, sua
viúva pediu que essa passagem em particular não fosse publicada.
Ela escreveu a seguinte observação na margem do manuscrito de
seu marido, ao lado daquele trecho:
Não gostaria que a passagem em parênteses fosse publicada.
Parece-me crua. Nada que se diga contra a doutrina do castigo
perpétuo para o descrente poderá ser considerado muito
duro — no entanto, hoje, pouquíssimos a chamariam de "cristianismo".
Podemos ver aqui um pouco do espírito desse notável período da
história cultural inglesa, no qual alguns aspectos do cristianismo
evangélico foram submetidos a um nível sem precedente de crítica,
refletindo uma crescente convicção de que as explicações sobre a
natureza e os propósitos de Deus eram deficientes e inaceitáveis
numa cultura cada vez mais sofisticada.50 Darvvin se exprime aqui
com a voz de seu tempo, e nada acrescenta de caráter especificamente
evolucionista.
Darwin pode ter abandonado uma versão tradicional do cristianismo.
Isso, porém, não significa nem por um momento que
tenha se tornado um ateu. Embora o ateísmo fosse certamente encontrado
ao término da era vitoriana, a resposta mais comum sem
dúvida era o agnosticismo — uma embasada recusa em se procurar
uma solução para a questão sobre Deus com base em evidências
inadequadas.51 Thomas H. Huxley, que inventara o termo, sentia
uma profunda irritação por aqueles que dogmatizavam sobre assuntos
de religião, fosse de forma positiva ou negativa. A ciência é,
por definição, agnóstica em assuntos de religião. E assim, dizia ele,
as coisas deviam ficar.
Há pouca informação nos escritos de Darwin que nos force a
uma conclusão alternativa. Em 1879, enquanto trabalhava em sua
autobiografia, Darwin fez um comentário sobre sua confusão religiosa
pessoal: "Meu juízo flutua com freqüência. [...] Nas minhas
flutuações mais extremas nunca cheguei a ser um ateu, no sentido
de negar Deus. Penso que em geral (e cada vez mais, conforme
envelheço), mas nem sempre, um agnóstico seria a descrição mais
correta de meu estado de mente".
Eis Darwin. Mas e quanto às pessoas que entraram em contato
com as idéias de Darwin no momento de sua publicação? Qual foi
a resposta que a nova teoria de Darwin obteve no meio literário e
religioso vitoriano? Como essa reação é bastante esclarecedora, devemos
abordá-la na seção final deste capítulo.
A reação cristã a Darwin
Após trinta anos da publicação de A origem das espécies de Darwin,
muitos na liderança da Igreja da Inglaterra foram influenciados
pelas novas idéias e advogaram que eram perfeitamente consistentes
com a teologia cristã. A nova e positiva atitude dentro da igreja
oficial foi percebida pela grande maioria, incluindo Huxley. Em
novembro de 1887, publicou um ensaio no jornal Nineteenth
Cen-tury, resumindo e avaliando três recentes sermões de
importantes bispos da Igreja da Inglaterra. As prédicas foram lidas
na catedral de Manchester, no domingo de 4 de setembro de
1887, durante a reunião da Associação Britânica para o Avanço
da Ciência, pelos bispos de Carlisle, Bedford e Manchester.52
"Esses excelentes discursos", escreveu Huxley com evidente
entusiasmo, "sinalizam um novo começo no curso adotado pela
teologia em relação à ciência e indicam a perspectiva de se
proporcionar um honroso modus vi-vendi entre as duas".
É impossível ler os discursos dos três prelados sem ficar impressionado
pelo conhecimento que exibem, e pelo espírito
de justiça; eu poderia mesmo dizer de generosidade, para
com a ciência que os atravessa. Não há nenhum sinal daquele
pressuposto tácito ou aberto de que a rejeição em bases científicas
dos dogmas teológicos se deve à perversidade moral; uma
posição que é a nota ordinária nos sermões eclesiásticos sobre
o assunto, que os faz parecer extremamente tolos aos homens
cujas vidas são gastas na luta com essas questões. Não há nenhuma
sugestão de que um homem honesto possa manter
convicções contraditórias em bolsos separados de seu cérebro;
nenhum questionamento do método de investigação científica
é válido, quaisquer que sejam os resultados aos quais ele
conduza; de que a busca pela verdade, e apenas pela verdade,
enobrece o pesquisador; não havendo dúvidas também de
que sua vida, de qualquer modo, é uma vida digna.
Huxley saudou essa genuína tentativa de buscar uma reconciliação
— não, mais que isso: uma genuína convergência — entre as
ciências naturais e a teologia. Certamente seu maior entusiasmo foi
reservado para a firme rejeição de qualquer noção que exija
com-partimentos intelectuais isolados na mente humana para se
lidar com ambas as áreas. Huxley selecionou um comentário do
bispo
de Bedford para um elogio especial, em que o prelado repudiava
qualquer idéia de que ciência e religião...
ocupam esferas completamente diferentes, mas não precisam
de forma alguma se intrometer uma com a outra. Giram,
dessa forma, em planos distintos, sem nunca se encontrarem.
Assim podemos nos dedicar a estudos científicos com extrema
liberdade e, ao mesmo tempo, prestar a mais reverente estima
à teologia, sem o receio de uma colisão, pois não é permitido
nenhum ponto de contato.
Por que nos preocupar com semelhantes detalhes históricos?
Porque eles deixam claro que é profundamente problemático supor
que o darwinismo exija o ateísmo. Como uma questão de fato
histórico, o darwinismo não foi percebido como requerendo o ateísmo
pelos juizes mais bem informados da época. A visão pessoal de
Huxley era de que a nova teoria conduzia a um agnostícismo de
princípios. Porém, seus comentários sobre os sermões indicam que
ele não considerava essa postura como uma questão completamente
fechada. Apesar de ter existido oposição às idéias de Darwin, em
particular por parte de alguns pastores populares, o amplo empreendimento
intelectual feito para se compreender a reação popular e
acadêmica à teoria tem demonstrado um nível muito maior de
apoio a Darwin do que se esperaria.53
O apoio a Darwin não se restringia à Igreja da Inglaterra. Um
crescente interesse em Darwin é evidente na América do Norte por
volta desse período, até mesmo entre grupos religiosos mais conservadores,
dos quais se poderia esperar oposição. Um bom exemplo da
avaliação positiva de Darwin pode ser encontrado em Benjamim B.
Warfield (1851-1921), amplamente considerado o teólogo americano
mais importante ao final do século XIX. Embora caracterizado
por uma perspectiva protestante conservadora, Warfield deixou
claro o seu apoio ao conceito da evolução biológica.54 Ali onde
Darwin considerava que o processo evolutivo se baseava em variações
acidentais, cujo destino subseqüente era determinado por
princípios gerais, Warfield argumentou ser absolutamente apropriado
ver o processo evolutivo sendo guiado pela providência divina.
Na realidade, a teoria foi amplamente aceita nos primórdios do
fundamentalismo norte-americano. O movimento deriva seu
nome de uma se'rie de curtas publicações intituladas The
Funda-mentals [Os fundamentos], editada no período de
1912-17.55 Num desses escritos fundamentalistas, seu autor, James
Orr, avaliou que a evolução "viria a ser reconhecida como apenas
um novo nome para a 'criação', só que com o poder criador agora
operando de dentro, e não, como na antiga concepção, de uma
forma externa e plástica".56 Embora hostil à noção de Darwin de
variações fortui-tas, Orr deixava claro que o processo de seleção
natural poderia facilmente ser compreendido em termos
compatíveis com o teís-mo cristão.
Lâmina 9. Ronald A. Fisher (18904962). © Science Photo Library.
Precisamos ainda nos deter aqui para apreciar as concepções de
Sir Ronald Fisher (1890-1962), um dos biólogos evolucionistas
mais importantes do século XX.57 Fisher, cujas muitas realizações
teóricas são celebradas por Dawkins, é citado freqüentemente como
o pai da síntese neodarwinista. Foi nomeado professor de genética
da cátedra Arthur Balfour, na Universidade de Cambridge, em 1943;
permanecendo nesse cargo até sua aposentadoria em 1957. Recebeu
o prêmio Darwin Medal da Royal Society em 1948, "em reconhecimento
a suas destacadas contribuições para a teoria da seleção
natural, para o conceito de gene complexo e a evolução da
dominân-cia". Embora fosse um homem bastante reservado, Fisher
se sentia perfeitamente preparado para se envolver em controvérsias
toda vez que a verdade científica estivesse, em sua opinião, correndo
risco. Em uma entrevista concedida ao BBC Third Programme,
em junho de 1947, deixou totalmente claro que não considerava o
ateísmo (ou mesmo o agnosticismo) uma exigência do
neodarwinismo:
Para o homem tradicionalmente religioso, a novidade essencial
introduzida pela teoria da evolução da vida orgânica é
que a criação não foi concluída há um longo tempo atrás,
mas ainda está em desenvolvimento, no meio de sua incrível
duração. Na linguagem do Gênesis, estamos vivendo no sexto
dia, provavelmente de manhã bem cedo, e o Divino Artista
ainda não se afastou de sua obra, nem declarou que isso era
"muito bom". Talvez isso só aconteça quando aquela imagem
muito imperfeita de Deus for mais competente para administrar
os negócios do planeta que o próprio Deus controla.58
Fisher se mudou para a Austrália em 1959, e está enterrado em
Adelaide Cathedral, no sul da Austrália.
Stephen Jay Gould corretamente observou que muitos dos
principais darwinistas se autodefinem como religiosos e não vêem
nenhum problema nisso.59 Segundo Gould, qualquer sugestão de
que a teoria darwinista da evolução seja necessariamente ateísta extrapola
a competência das ciências naturais, vagando por um território
onde o método científico não pode ser aplicado. Se for
aplicado, será de forma imprópria. Por isso Gould acredita que
Charles Darwin era agnóstico (havendo perdido suas convicções
religiosas devido à trágica morte da filha predileta), apesar de que o
grande botânico americano Asa Gray, que defendia a seleção natural
e escreveu um livro intitulado Darwiniana, era um cristão devoto.
Mais recentemente, continua Gould, Charles D. Walcott, o
descobridor dos fósseis Burgess Shale, era um ferrenho darwinista e
um cristão igualmente firme, que acreditava que Deus havia ordenado
a seleção natural para construir uma história da vida de acordo
com seus planos e propósitos. Mais recentemente ainda, os "dois
maiores evolucionistas de nossa geração" expressavam atitudes radicalmente
diferentes em relação à existência de Deus: G. G. Simpson
era um agnóstico humanista, enquanto Theodosius Dobzhansky,
um crente ortodoxo russo. Como conclui Gould:
Ou metade dos meus colegas é por demais estúpida, ou então
a ciência darwinista é completamente compatível com as
crenças religiosas convencionais — e, da mesma forma, compatível
com o ateísmo.
E aqui, em resumo, parece ser onde o debate termina. O darwinismo
pode ser considerado compatível com crenças religiosas
convencionais, com o agnosticismo e o ateísmo. Tudo dependendo
de como esses termos forem definidos. O próprio debate é fascinante
e abre muitas perguntas importantes sobre os limites do
método científico, sobre a interpretação da Bíblia, a base
compro-batória da fé, a passagem das teorias científicas para visões
de mundo e a história da biologia. É impossível estudar ou estar
envolvido em tal debate sem ser desafiado e estimulado a refletir
sobre algumas das grandes questões da vida.
Mas o debate, apesar de muito importante e intelectualmente
fascinante, está inconcluso em termos religiosos. Dawkins apresenta
o darwinismo como uma pista expressa do intelecto em direção ao
ateísmo. Na realidade, a trajetória intelectual traçada por Dawkins
parece empacar no agnosticismo. E, atolado, fica por ali mesmo.
Há uma substancial lacuna lógica entre o darwinismo e o ateísmo,
que Dawkins parece preferir atravessar através da retórica, em vez
de pela evidência. Se sólidas conclusões podem ser obtidas, devem
ser em outras bases. E aqueles que com seriedade propõem o contrário
têm algumas explicações a dar.
O que sem dúvida nos leva a considerar o lugar da evidência na
ciência e na religião, um assunto sobre o qual Dawkins tem muito
a dizer.
1 RiveroutofEden, p. 133.
2 Um excelente estudo sobre o assunto encontra-se em Michael Ruse, Darwin and
Design: Does Evolution Have a Purpose? Cambridge, MA: Harvard University
Press, 2003.
3 TheBlindWatchmaker, p. 43.
4 ClimbingMountlmprobable, p. 64 [trad. em port.: A escalada do monte improvável.
5 ClimbingMountImprobable, p. 126-79.
6 O índice certamente não é exaustivo: ver, por exemplo, a breve (e algo confusa)
discussão sobre Deus encontrada na p. 141 de O relojoeiro cego; mas a omissão é
interessante.
7 Richard Dawkins, "A Survival Machine". In John Brockman (ed.). The Third
Culture. Nova York: Simon & Schuster, 1996, p. 75-95-
" Francis S. Collins, "Faith and the Human Genome". Perspectives on Science and
Christian Faith 55 (2003), p. 142-53.
' Ver sua carta de 1883 a Charles A. Watts, editor do Agnostic Annual. Para
comentários adicionais, ver Alan Willard Brown, The Metaphysical Society:
Victorian Minds in Crisis, 1869-1880. Oxford: Oxford University Press, 1947.
10 Stephen Jay Gould, "Impeaching a Self-Appointed Judge". ScientificAmerican
267, 1 (1992), p. 118-21.
11A Devils Chaplain, p. 149.
12 Sobre tais questões, que se aplicam igualmente bem às ciências naturais e sociais,
ver o estudo clássico de Gilbert Harman, "The Inference to the Best Explanation".
Philosophical Review 74 (1965), p. 88-95. Para uma discussão mais recente e
extensa, ver Ernan McMullin, The Inference ThatMakes Science. Milwaukee, WI:
Marquette University Press, 1992.
13 Ver James T. Cushing, Quantum Mechanics: Historical Contingency and the
Copenhagen Hegemony. Chicago: University of Chicago Press, 1994.
14 The Blind Watchmaker, p. 46-51.
15 TheBlindWatchmaker, p. 47.
16 Friedrich Waismann, The Principies of Linguistic Philosophy. Londres: Macmillan,
1965, p. 60.
17 The BlindWatchmaker, p. 50.
18 ClimbingMountImprobable, p. 75.
19 Para o desenvolvimento deste tópico, ver Etienne Gilson, The Christian Philosophy
of St. ThomasAquinas. Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 1994.
20 Sobre o contexto, ver Margaret J. Osler, Divine WillandtheMechanical Philosophy:
Gassendi and Descartes on Contingency and Necessity in the Created World.
Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
21 The BlindWatchmaker, p. 4-6.
22 Ver James R. Jacob & Margaret C. Jacob. "The Anglican Origins of Modern
Science: The Metaphysical Foundations of the Whig Constitution". Isis 71
(1980), p. 251-67.
23 Ver, por exemplo, Umberto Eco, The Aesthetics ofThomas Aquinas. Londres:
Radius, 1988; Patrick Sherry, Spirit and Beauty: Anlntroduction to Theological
Aesthetics. Oxford: Clarendon Press, 1992.
24 Para algumas reflexões, ver John Hedley Brooke, Science and Religion: Some
Historical Perspectives. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.
25 Ver o cuidadoso estudo de H. H. Odom, "The Estrangement of Celestial
Mechanics and Religion". Journal ofthe History ofldeasll (1966), p. 533-58.
26 James E. Force, "The Breakdown of the Newtonian Synthesis of Science and
Religion: Hume, Newton and the Royal Society". In R. H. Popkin & J. E. Force
(eds.). Essays on the Context, Nature and Influence oflsaac Newtons Theology.
Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1990, p. 143-63.
27 John Gascoigne, "From Bentley to the Victorians: The Rise and Fali of British
Newtonian Natural Theology". Science in Contextl (1988), p. 219-56.
28 William Paley, Works. Londres: Win. Orr, 1849, p. 25.
29 TheBlindWatchmaker, p. 5.
30 Para um exemplo, ver Dov Ospovat, TheDevelopmentofDarwirís Theory: Natural
History, Natural Theology, and Natural Selection, 1838-1859. Cambridge:
Cambridge University Press, 1995.
31 Sobre o assunto, ver Aileen Fyfe, "The Reception of William Paley's Natural
Theology in the University of Cambridge". British Journal for the History of
Science 30 (1997), p. 321-35.
32 Ver Edward Manier, The Young Darwin and His Cultural Circle: A Study of
Influences Which Helped Shape the Language and Logic of the First Drafis of the
Theory of Natural Selection. Dordrecht: Reidel, 1978.
33 John Henry Newman, The Idea of a University. Londres: Longmans, Green,
1907, p. 450-1. Para o contexto, ver Fergal McGrath, The Consecration of
Learning: Lectures on Newmans Ideaofa University. Dublin: Gill, 1962.
34 Newman, Idea of a University, p. 454.
35 James R. Moore, The Post-Darwinian Controversies: A Study of the Protestam
Struggle to Come to Terms with Darwin in Great Britain and America, 1870-
1900. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.
36 R. S. S. Baden-Powell, Essays on the Spirit of the Inductive Philosophy. Londres:
Longman, Brown, Green, and Longmans, 1855. Para uma excelente análise
desse pensador, ver Pietro Corsi, Science and Religion: Baden Powell and the
Anglican Debate. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
37 Ver aqui Aidan Nichols, From Newman to Congar: The Idea of Doctrinal
Developmentfrom the Victorians to the Second Vatican Council. Edimburgo: T. &
T. Clark, 1990.
38 Sobre o assunto, ver Tarsicius van Bavel, "The Creator and the Integrity of
Creation in the Fathers of the Church". Augustinian Studies 21 (1990), p. 1-33.
39 Ver Francês M. Young, "Adam and Anthropos: A Study of the Interaction of
Science and the Bible in Two Anthropological Treatises of the Fourth Century".
Vigiliae Christianae 37 (1983), p. 110-40.
40 Um relato muito mais satisfatório pode ser encontrado em John Hedley Brooke,
"The Relations between Darwin's Science and His Religion". In John Durant
(ed.). Darwinism andDivinity. Oxford: Blackwell, 1985, p. 40-75-
41 Edward Aveling, The ReligiousViews of Charles Darwin. Londres: Freethought,
1883.
42 Uma das notáveis lendas relativas a Darwin está associada a Aveling: uma confusão
sobre o verdadeiro destinatário da carta em que Darwin recusava o pedido de
Aveling levou à convicção generalizada de que o próprio Karl Marx havia pedido
permissão para dedicar Das Kapital a Darwin. Aveling estava reunindo a
correspondência de Marx na ocasião, e a carta de Darwin parece ter sido misturada
por engano. Ver Ralph Colp, Lewis Feuer & P. Thomas Carroll, "On the
Darwin-Marx Correspondence". Anuais of Science 33 (1976), p. 383-94.
43 Para a excelente análise, ver Frank Burch Brown, The Evolution of Darwins
Religious Views. Macon, GA: Mercer University Press, 1986.
44 Para um estudo das causas da doença de Darwin, caracterizada pela intermitência
de "excitação, tremores violentos e ataques de vômitos", ver Ralph E. Colp, To be
anlnvalid: The Illness of Charles Darwin. Chicago: University of Chicago Press,
1977.
45 O fato foi elegantemente documentado por Randal Keynes, Annies Box: Charles
Darwin, His Daughter andHuman Evolution. Londres: Fourth Estate, 2001.
46 Donald Fleming, "Charles Darwin, the Anaesthetic Man". Victorian Studies 4
(1961), p. 219-36.
47 Carta aAsaGray (1860): The Life and Letters of Charles Darwin, 3 v. Londres:
John Murray, 1887, v. 2, p. 310-12.
48 Ver U. C. Knoepflmacher, Religious Humanism and the Victorian Novel: George
Eliot, WalterPater, and Samuel Butler. PrincetonNJ: Princeton University Press,
.1970.
49 Para uma excelente avaliação dessa repugnância moral, ver Geoffrey Rowell, Hell
and the Victorians: A Study oftheNineteenth-Century Theological Controversies
Concerning EternalPunishment and the Future Life. Oxford: Clarendon Press,
1974.
50 Ver sobre o assunto trabalhos como o de Howard R. Murphy, "The Ethical
Revolt against Christian Orthodoxy in Early Victorian England". American
HistoricalReview 60 (1955), p. 800-17.
51 Ver Bernard V. Lightman, The OriginsofAgnosticism: Victorian Unbeliefandthe
LimitsofKnowledge. Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press, 1987.
52 O texto está em Thomas H. Huxley, "An Episcopal Trilogy". In Science and
Christian Tradition: Essays, p. 126-59. Londres: Macmillan, 1894.
33 Ver, por exemplo, David N. Livingstone, Darwins Forgotten Defenders: The
Encounter between Evangelical Theology andEvolutionary Thought. Grand Rapids,
MI: Eerdmans, 1987.
54 Ver dois estudos recentes e importantes: David N. Livingstone, "B. B. Warfield,
the Theory of Evolution and Early Fundamentalism". Evangelical Quarterly 58
(1986), p. 69-83; David N. Livingstone & Mark A. Noll. "B. B. Warfield
(1851-1921): A Biblical Inerrantist as Evolutionist". Isis 91 (2000), p. 283-
304.
55 Para detalhes, ver George Marsden, Fundamentalism and American Culture: The
Shaping ofTwentieth Century Evangelicalism 1870—1925- Nova York: Oxford
University Press, 1980.
56 James Orr, "Science and Christian Faith". In The Fundamentais. 4 v. Los Angeles:
Bible Institute of Los Angeles, 1917, v. 1, 334-47.
57 Ver a excelente biografia escrita por sua filha, Joan Fisher Box, R. A. Fisher: The
Life of a Scientist. Nova York: Wiley, 1978.
58 R. A. Fisher, "The Renaissance ofDarwinism". TheListeneròl (1947), p. 1009.
59 Gould, "Inipeaching a Self-Appointed Judge".
Prova de fé
O lugar da evidência na
ciência e na religião
Um dos temas centrais da busca humana por conhecimento é a
necessidade de distinguir a mera "opinião" do "conhecimento".
Como podemos distinguir uma crença que é justificada e rigorosamente
fundamentada na mera opinião infundada? O debate remonta
a Platão e continua hoje. A questão fundamental — seja nas
ciências naturais, filosofia ou teologia — é esta: quais condições
devem ser atendidas antes de podermos concluir que uma determinada
crença é justificada? Para Dawkins, o único conhecimento seguro
que podemos ter do mundo é o científico. Os filósofos, juristas,
teólogos e outros podem fazer declarações espúrias para justificar
um conhecimento. No final, porém, somente as ciências naturais é
que podem oferecer uma verdadeira compreensão do mundo.
Não resta dúvida de que o debate sobre como geramos e justificamos
nossas crenças é imensamente importante, e a contribuição
de Dawkins para tal debate deve ser saudada e — juntamente com
suas concorrentes — tratada com seriedade. Nos últimos anos,
tem-se prestado considerável atenção ao modo como as pessoas
validam seus sistemas de crença. As evidências são perturbadoras,
especialmente para aqueles que continuam acreditando na visão do
Ilumi-nismo de total objetividade de julgamento em todas as
coisas. Há, porém, um corpo de evidências cada vez maior de que
os sistemas de crenças — sejam teístas sejam ateístas — não são
gerados nem validados desse modo.
Pesquisas em psicologia cognitiva demonstraram em diversas
ocasiões que as pessoas "tendem a procurar, retomar e interpretar uma
evidência de modo a validar suas crenças".1 A interpretação de dados,
não raro, é bastante influenciada pelas crenças do investigador.
Essas crenças implícitas são muitas vezes de tal maneira interiorizadas
que afetam o modo como as pessoas processam uma informação e
chegam às conclusões. Tanto os sistemas de crenças religiosas quanto
anti-religiosas são freqüentemente resistentes a qualquer coisa
que ameace minar, desafiar, limitar ou refutá-los. As suposições
enraizadas tornam muitas vezes as teorias implícitas "quase impermeáveis
aos dados".2
Alguns escritores cristãos e islâmicos parecem pouco dispostos
a examinar suas crenças profundamente enraizadas, talvez por temerem
que esse tipo de coisa seja má notícia para a fé. Bem, talvez
seja — para as idéias intelectualmente deficientes e imaturas. Mas
não deve ser assim. Existem formas de fé intelectualmente sólidas
— o tipo que encontramos em escritores como Agostinho de
Hipo-na, Tomás de Aquino e C. S. Lewis. Eles não tiveram
medo de refletir sobre sua fé e levantar difíceis questões sobre as
bases de evidências, a consistência interna ou a suficiência de suas
teorias.
Mas, o problema não se limita àqueles que crêem em Deus.
Conforme descobri enquanto pesquisava para o meu livro The
Twilight of Atheism [O crepúsculo do ateísmo], uma visão de
mundo ateísta pode ser tão desprovida de evidência empírica
quanto uma religiosa. Dawkins tem suas próprias perspectivas
sobre o que os religiosos acreditam e continua a refutar tais idéias
com entusiasmo. Qualquer pessoa que seja teologicamente
analfabeta fica, sem dúvida, impressionada com tal performance,
e chega à conclusão de que a religião deve ser julgada e relegada ao
mais profundo abismo. Bem, ela certamente foi julgada. Mas se tal
julgamento se sustenta com base na evidência é uma questão
totalmente diferente.
Em poucas palavras, o confronto de Dawkins com a teologia é
superficial e inexato, muitas vezes eqüivalendo a pouco mais do
que uma disputa barata de pontos. Meu colega em Oxford, Keith
Ward, apontou isso em muitas ocasiões, observando em particular
o sistemático escárnio e demonização que Dawkins faz das visões
concorrentes, as quais são sempre apresentadas sob a luz mais ingênua.
3 Sua tendência de falsear as visões de seus oponentes é o
aspecto menos atraente de sua obra. Isso simplesmente reforça a
percepção de que ele habita um mundo conceituai hermeticamente
fechado, impermeável a um legítimo confronto com a religião.
Dawkins tende a procurar, retomar e interpretar uma evidência de
modo a sustentar suas crenças ateístas. Para ilustrar isso, podemos
abrir nossa discussão sobre o lugar das evidências na apreensão da
realidade por Dawkins, investigando sua abordagem à idéia de "fé".
Fé como confiança cega?
Fé "significa um confiança cega, na ausência de evidências ou
mesmo diante delas".4 Essa visão, expressa pela primeira vez em
1976, é a declaração de uma das "crenças centrais" que determinam
a atitude de Dawkins para com a religião. Em 1989, endureceu sua
concepção: a fé é agora qualificada "como um tipo de doença mental".
5 Essa crença central, não aberta à discussões, aparece novamente
em 1992, quando Dawkins fez uma conferência no Festival
de Ciência Internacional de Edimburgo, onde expôs sua visão a
respeito da relação fé e evidência. Dawkins foi mordaz sobre a irresponsabilidade
intelectual da fé:
A fé é o grande pretexto, a grande desculpa para escapar à
necessidade de pensar e avaliar a evidência. A fé é uma crença
apesar da falta de evidência, talvez até em função desta [...].
Não se permite à fé justificar-se pelo argumento.6
Quatro anos depois, Dawkins foi eleito o "Humanista do Ano".
No seu discurso de agradecimento, publicado no ano seguinte no
periódico The Humanist [O humanista], Dawkins propôs sua agenda
para a erradicação daquilo que considera o maior mal de nossa era:
Está na moda ser apocalíptico sobre a ameaça trazida à humanidade
pelo vírus da AIDS, a doença da "vaca louca" e
muitas outras; mas, penso que é preciso levar em conta que a
fé é um dos grandes males do mundo, comparável ao vírus da
varíola, mas mais difícil de erradicar. A fé, sendo uma crença
não baseada em evidências, é o principal vício de qualquer
religião.
Isso deve ser comparado com as ciências naturais, que oferecem
uma perspectiva baseada em evidência. "Como amante da verdade,
suspeito de crenças fortemente defendidas que não sejam validadas
pela evidência".7 E com toda a razão. Mas essa suspeita não se estenderia
às próprias visões ateístas, defendidas por ele de forma tão
vigorosa, as quais parecem aos seus críticos surpreendentemente não
validadas pela evidência que ele fornece?
Dawkins neste momento abre as portas para toda a questão do
lugar das provas, da evidência e da fé na ciência e na religião. É um
tópico fascinante e devemos agradecê-lo por isso. Neste capítulo,
investigaremos algumas das questões levantadas pela história e filosofia
da ciência em relação a esse debate, e indagaremos se é realmente
tão simples quanto Dawkins sugere. Eu certamente pensava assim
durante minha fase ateísta e teria considerado os argumentos de
Dawkins decisivos. Mas não agora.
Comecemos analisando sua definição de fé, perguntando de
onde ela vem. Fé "significa confiança cega, na ausência de evidências
ou mesmo diante delas". Mas por que alguém deveria aceitar
essa definição absurda? Em seu "Prayer for my Daughter" [Oração
para a minha filha], Dawkins levanta um ponto importante, que é
claramente relevante aqui:
Da próxima vez que alguém disser que certa coisa é verdade,
por que não lhe perguntar: "Que tipo de evidência existe para
isso?". E se a pessoa não puder dar uma boa resposta, espero
que você pense muito cuidadosamente antes de acreditar em
alguma palavra que foi dita.8
Se for assim, qual é a evidência para que qualquer pessoa — deixando
de lado os religiosos — defina "fé" dessa maneira absurda?
A verdade é que Dawkins não oferece justificativa para tal
definição, que tem pouca relação com qualquer sentido religioso (ou
com qualquer outro) da palavra. Ele não oferece nenhuma evidência
de que seja representativa da opinião religiosa. Nenhuma autoridade
é citada em seu apoio. Eu não aceito essa idéia de fé e ainda
não conheci nenhum teólogo que a leve a sério. Ela não pode ser
defendida a partir de qualquer declaração oficial de fé, de qualquer
denominação cristã. Trata-se da definição particular de Dawkins,
construída tendo em mente a sua própria agenda e representada
como se fosse característica daqueles que ele deseja criticar.
O que de fato preocupa é que Dawkins genuinamente parece
acreditar que a fé realmente é uma "confiança cega", apesar de nenhum
escritor cristão importante adotar tal definição. Essa é uma
crença central para Dawkins, que determina mais ou menos cada
aspecto de sua atitude em relação à religião e aos religiosos. No
entanto, crenças centrais muitas vezes precisam ser desafiadas. Pois,
conforme Dawkins uma vez observou, partindo das idéias de Paley
sobre o plano, essa crença é "gloriosa e totalmente errada".
A fé, afirma Dawkins, "significa confiança cega, na ausência de
evidência ou mesmo diante dela". Isso pode ser o que Dawkins
pensa; não o que os cristãos pensam. Apresento uma definição de
fé concebida por W. H. Griffith-Thomas (1861-1924), um notável
teólogo anglicano que foi um de meus predecessores como diretor
do Wycliffe Hall, em Oxford. A definição de fé que oferece é típica
de qualquer escritor cristão:
[A fé] afeta toda a natureza do homem. Começa com a convicção
da mente com base na evidência adequada; continua
na confiança do coração ou emoções com base na convicção e
é coroada no consentimento da vontade, por meio do qual a
convicção e a confiança são expressas em conduta.9
Trata-se de uma definição boa e confiável, sintetizando os elementos
centrais da compreensão caracteristicamente cristã da fé. Essa fé
"começa com a convicção da mente baseada na evidência adequada".
Não vejo motivo para cansar os leitores com outras citações de
escritores cristãos que defenderam esse ponto ao longo dos tempos.
Em todo caso, é responsabilidade de Dawkins demonstrar,
pelo argumento baseado na evidência, que a sua tendenciosa e absurda
definição de "fé" é característica do cristianismo.
Havendo montado o seu espantalho, Dawkins o nocauteia.
Não chega a ser um feito intelectual muito difícil ou trabalhoso. A
fé é infantil, nos afirma — tudo bem que encha a cabeça de criancinhas
impressionáveis, mas ridiculamente imoral e intelectualmente
risível no caso de adultos. Somos crescidos agora e precisamos mudar.
Por que deveríamos acreditar em coisas que não podem ser provadas
de modo científico? A fé em Deus, argumenta Dawkins, é exatamente
como acreditar em papai Noel e na fada do dente. Quando
se cresce, esquece-se de tudo isso.
Eis o argumento de um colegial que por acaso conseguiu uma
brecha numa discussão adulta. E tão amador quanto pouco convincente.
Não há qualquer evidência empírica séria de que as pessoas
considerem Deus, papai Noel e a fada do dente como
pertencentes à mesma categoria. Deixei de acreditar em papai Noel
e na fada do dente quando tinha seis anos mais ou menos. Depois
de ser ateu durante alguns anos, descobri Deus quando tinha dezoito
anos, e nunca considerei isso algum tipo de regressão infantil.
Como percebi enquanto pesquisava para The Twilight ofAtheism
[O crepúsculo do ateísmo], um grande número de pessoas passa a
acreditar em Deus na vida adulta — quando estão "crescidas". Ainda
não conheci ninguém que passou a acreditar em papai Noel ou
na fada do dente depois na vida adulta.
Se o argumento algo simplista de Dawkins tiver alguma
plausi-bilidade, exige que haja uma verdadeira analogia entre Deus e
papai Noel — o que claramente não existe. Todos sabem que as
pessoas não consideram a crença em Deus como pertencendo à
mesma categoria das crenças infantis. Dawkins, é claro, afirma que
ambos representam uma crença em entidades não-existentes. Mas
isso representa uma confusão muito elementar sobre qual é a
conclusão e qual a pressuposição de um argumento.
Em todo caso, papai Noel e a fada do dente não são conceitos
inventados pelas crianças; esses mitos são impostos a elas pelos adultos,
ainda que muitas vezes as próprias crianças colaborem com
eles. Dawkins adota a visão de que a crença em Deus é algo forçado
sobre as crianças por adultos tiranos, e, portanto, deve ser rejeitada.
No entanto é impossível estudar o desenvolvimento do ateísmo
no século XX sem notar como precisamente este padrão de imposição
de idéias foi encontrado na União Soviética e em outros
Estados ateus.10
Em julho de 1954, o Partido Comunista da União Soviética
ordenou uma grande e explícita campanha pelo ateísmo em suas
escolas. A crença em Deus ainda não havia sido eliminada pelo argumento
ou pela força. A única opção parecia ser um programa
agressivo de doutrinamento de suas crianças. Os livros escolares
soviéticos afirmavam reiteradas vezes a malevolência da religião por
meio de slogans como "a religião é uma visão fanática e perversa do
mundo", ou "a religião tornou-se instrumento para a escravidão
espiritual das massas". Alarmado com a persistência da religião, o
Partido decretou que "o ensino das disciplinas escolares (história,
literatura, ciências naturais, físicas, química etc.) deveria ser saturado
de ateísmo". No fim, tudo o que o programa fez foi estabelecer
os fundamentos para o sólido renascimento da crença em Deus
após o colapso da União Soviética nos anos noventa.
Desse modo, se o argumento de Dawkins tiver algum peso,
devemos concluir que o ateísmo é mau, imoral e ilógico — o tipo
de tolice que precisa ser imposto às crianças, pois caso contrário elas
nunca acreditariam nele? Não. O abuso institucional de uma idéia
não a desacredita, quer estejamos falando sobre ateísmo, teísmo ou
democracia. Mas esse é um contra-argumento tão óbvio que fico
surpreso que Dawkins não tenha tido a preocupação de observá-lo.
Embora eu acredite que seja errado impor crenças às crianças —
sejam crenças teístas ou ateístas — isso não as invalida. E somente o
ponto de partida para um argumento, não a sua conclusão.
Às vezes, Dawkins parece se deixar levar por sua retórica
anti-religiosa, passando com uma facilidade alarmante de "isto não
pode
ser provado" para "isto é falso", aparentemente inconsciente dos
lapsos de raciocínio durante esse processo. Por exemplo, consideremos
sua resposta, num debate em 1999 sobre "Whether Science is
Killing the Soul" [Se a ciência está matando a alma], a uma pergunta
do público: a ciência pode oferecer consolo do mesmo modc
que a religião — por exemplo, após a morte de um amigo intime
ou de um parente?
O fato de a religião poder lhe consolar, naturalmente não a
torna verdadeira. E um ponto discutível saber se alguém deseja
ser consolado por uma falsidade.11
Dawkins passa sem esforço de "a consolação não torna a religião
verdadeira" para "a religião é falsa". Ora, talvez essa seja uma conclusão
completamente natural para o próprio Dawkins, dado seus
sentimentos anti-religiosos profundamente arraigados. Mas não é
uma conclusão válida em termos lógicos. E com clareza uma conclusão
óbvia para o próprio Dawkins, impregnado de um modo
particular de pensar guiado por suas crenças centrais. Mas isso com
certeza não segue àquilo: uma vez que A não foi provado, A é falso.
Como a crença central de que a fé é "confiança cega" permeia
muitas das críticas que Dawkins faz à religião, ela claramente requer
um exame cuidadoso. Vamos examinar uma de suas declarações
sobre a natureza daje de maneira mais pormenorizada. Na segunda
edição de O gene egoísta, Dawkins propõe uma dicotomia absoluta
entre "fé cega" e "evidência decisiva, publicamente disponível":
Mas o que, afinal de contas, é a fé? E um estado mental que
leva as pessoas a acreditar em alguma coisa — não importa o
que —, na total ausência de evidências que a sustentem. Se
houvesse uma boa evidência sustentando-a, então a fé seria
supérflua, pois a evidência nos forçaria a acreditar naquilo de
qualquer maneira.12
Essa, devo enfatizar, é a definição de fé de Dawkins e não guarda
nenhuma semelhança com aquilo que os cristãos acreditam. Ela
corresponderia a dizer que a teoria da evolução é sobre girafas que
quiseram chegar aos galhos mais altos das árvores, de forma que,
em conseqüência, seu pescoço esticou. E uma caricatura divertida
da coisa real.13 Infelizmente, algumas pessoas levam isso a sério e
pensam ser a coisa real.
A idiossincrática definição de fé de Dawkins é impraticável e
insustentável. Ela propõe uma dicotomia absoluta entre "fé cega" e
uma crença fundamentada em "evidência decisiva, publicamente
disponível". E uma distinção interessante, mas não guarda qualquer
relação com o cristianismo, ou com os métodos de funcionamento
e os pressupostos normais das ciências naturais, incluindo a biologia
evolutiva. A questão é sobre probabilidade, não certeza. O ponto
em questão é que a evidência baseada na observação nunca pode
tornar uma predição ou generalização exata; pode, no entanto, tornar
uma ou ambas prováveis. A pergunta é: quanto provável?
O modelo altamente simplista proposto por Dawkins parece
reconhecer apenas duas opções: 0% de probabilidade (fé cega) e
100% de probabilidade (crença provocada por uma evidência decisiva).
No entanto, a grande maioria das informações científicas precisa
ser discutida em termos de possibilidade de conclusões alcançadas
com base na evidência disponível. Alguns têm defendido que se
avalie a confiabilidade da probabilidade de uma hipótese com base
no teorema de Bayes.14 Tais abordagens são extensamente usadas
em biologia evolutiva. Por exemplo, Elliott Sober propôs a noção
de "modus Darwin" para defender a linhagem darwiniana comum
com base nas semelhanças presentes entre as espécies.15 A abordagem
só pode funcionar com base na probabilidade, levando a julgamentos
probabilísticos. Mas não há qualquer problema aqui. É
uma tentativa de quantificar a confiabilidade das conclusões.
E isso se aplica na mesma medida tanto a Deus quanto a
qualquer outra coisa. Dawkins afirma — pois certamente não argumenta
— que Deus é uma questão de fé cega. Ele terminou sua
conferência de 1992 no Festival de Ciência Internacional de
Edirn-burgo com a seguinte refutaçao da hipótese de Deus. A
medida que o darwinismo pode explicar a "beleza espetacular e a
complexidade
da vida", não há qualquer necessidade de alternativas ou explicações
adicionais:
A hipótese alternativa, de que tudo começou com um criador
sobrenatural, não somente é supérflua, também é altamente
improvável. Ela conflita com o próprio argumento que foi
originalmente lançado em seu favor. É assim, porque qualquer
Deus digno do nome deveria ter sido um ser de inteligência
colossal, uma supermente, uma entidade de probabilidade
extremamente baixa — na verdade um ser muito improvável.
Mesmo se a postulação de uma entidade assim explicasse alguma
coisa (e não precisamos disso), ainda não ajudaria,
porque em vez de resolver, suscitaria um mistério ainda maior.
Ora, esse não é um argumento razoável. É um parágrafo distorcido,
feito às pressas, confundindo várias idéias e sem a continuidade de
pensamento que distingue sentenças errantes de linhas de pensamento.
Mas o mais preocupante é a conversa frouxa, imprecisa e vaga
sobre "improbabilidade". Deus, diz ele, é "altamente improvável".
Bem, quanto improvável? E com base no quê esse cálculo é determinado?
Além disso, Deus é "uma entidade de probabilidade extremamente
baixa". Quão baixa? E com base em que evidência essa
probabilidade é determinada? Como exatamente Dawkins chega a
tais cálculos? E desde quando uma probabilidade determina se alguma
coisa de fato existe ou não?
E interessante passar dessa peça de retórica particularmente
medíocre para um argumento mais cuidadoso, formulado por
Ri-chard Swinburne, professor de filosofia da religião da cátedra
Nol-loth da Universidade de Oxford, que utiliza a teoria da
probabilidade para estimar a confiabilidade de uma crença em Deus
•— ou, mais especificamente, da crença cristã de que Jesus Cristo é
Deus encarnado.16 Não espero que Dawkins concorde com a
conclusão teísta de Swinburne, ou com sua consideração sobre a
altamente provável existência de Deus. Mas de fato espero que
mostre a mesma atenção cuidadosa ao detalhe na avaliação das
probabilidades relativas de crença e descrença, em vez de seus
habituais exageros retóricos
de fanfarrices populistas. Afinal de contas, Dawkins, não
Swin-burne, tem a intenção de ser cientista.
Dawkins encerra sua conferência no Festival de Ciência Internacional
de Edimburgo, em 1992, com estas palavras: "Não podemos
provar que Deus não existe, mas podemos concluir
seguramente que ele é sem dúvida muito, muito improvável". Com
base nos argumentos oferecidos, essa é uma conclusão altamente
precária, melhor se ignorada como uma peça de retórica
não-cientí-fica. Em vez de enfatizar esse não-argumento, passemos
a explorar alguns confrontos mais específicos com questões de fé.
Vamos fazer uma pergunta difícil, apesar de óbvia. O ateísmo
poderia ser uma fé?
O ateísmo em si é uma fé?
A ciência é uma religião? Essa pergunta é freqüentemente feita
a Dawkins e tem uma resposta padrão: não. As ciências, argumenta
ele, possuem todos os pontos bons da crença religiosa e nenhum de
seus pontos ruins. Elas evocam um senso de admiração sobre a
realidade oferecendo à humanidade exaltação e inspiração. E estão
imunes aos problemas da fé. O ateísmo é a única opção para quem
reflete hoje em dia, cujas idéias são fundamentadas no único modo
válido de encontro com a realidade — o das ciências naturais. E
uma explicação magnificamente simples das coisas.
No entanto, tudo começa a se desvendar muito rapidamente.
Já observamos a convicção de Dawkins de que a fé religiosa é "confiança
cega, na ausência de evidências ou mesmo diante delas".17
Essa definição arbitrária e idiossincrática simplesmente não resiste à
investigação séria. Na verdade, é em si mesmo um excelente exemplo
de crença persistentemente sustentada e defendida "na ausência
de evidências ou mesmo diante delas". Dawkins se agarra com obstinação
à sua própria idéia por demais confusa do que é "fé" e supõe
que outros partilhem essa confusão. Mas o que se passa com o
próprio ateísmo?
Dawkins apresenta o agnosticismo como uma opção intelec
tual mais fraca, oferecendo uma rejeição retórica da noção. Em su;
Conferência de Edimburgo, 1992, afirmou que, assim como a fé.
o agnosticismo é um pretexto — um argumento que pode ser apli
cado a qualquer coisa. "Existe uma infinidade de crenças hipotéti
cas que poderíamos afirmar não sermos capazes de positivament<
contestar". Ora, há sem dúvida certa verdade nisso. Mas, a verdadeira
dificuldade é que os argumentos biológicos de Dawkins — à
medida que são argumentos genuínos, e não cegas afirmações dogmáticas
— conduzem apenas ao agnosticismo. Ele é obrigado a
complementá-las com outros argumentos de uma natureza
não-científica para chegar ao pretendido objetivo conceituai. E tais
argumentos são muitas vezes de natureza retórica, em vez de
analítica. No fim, o ateísmo de Dawkins definitivamente não
repousa em sua ciência, mas num emaranhado de dissimulados
valores e crenças não-científicos, não especificados e em grande
parte não analisados. Como esse ponto é muito importante,
voltaremos a ele mais adiante.
O debate entre ateísmo e crença religiosa ocorre há séculos e
quase todos os aspectos já foram de tal modo explorados, que até
mesmo os filósofos parecem entediados com ele. O resultado é um
beco sem saída. Ninguém pode provar a existência de Deus, e ninguém
pode contestá-la. Dawkins, seguindo G. G. Simpson, afirma
que tudo mudou com a publicação de As origens das espécies, de
Darwin, em 1859.18 Assim, qual seria exatamente o impacto de
Darwin sobre a crença religiosa? Uma questão que tem sido estudada
em detalhes.
A conclusão básica, como já vimos, é que o darwinismo nem
prova nem contesta a existência de Deus (a menos que, é claro,
Deus seja definido por seus críticos precisamente de uma tal maneira
que a sua existência seja desmentida por alguma pressuposição
central da teoria darwinista). Se o grande debate sobre Deus fosse
decidido somente em bases darwinistas, o resultado seria o agnosticismo
— uma escrupulosa e bem embasada insistência de que as
evidências são insuficientes para se obter um veredicto seguro.
Isso de modo algum satisfaz Dawkins. Seus esforços para forçar
uma conclusão ateísta em cima de uma descrição darwinista do
mundo são os aspectos menos convincentes, para não mencionar
menos atraentes, de seus escritos. Como um exemplo, podemos
apresentar a refutação de Dawkins do teísmo em A escalada do
monte improvável. Ali, argumenta que a própria idéia de um "Deus
projetista" é intelectualmente contraproducente:
Qualquer projetista capaz de construir uma disposição fascinante
de coisas vivas teria que ser inteligente e complicado
além da imaginação. "Complicado" é apenas uma outra palavra
para improvável — e, por conseguinte, exige explicação
[...]. Ou seu deus é capaz de projetar mundos e tornar todas
as outras coisas como divinas, e nesse caso ele próprio requer
uma explicação; ou ele não é capaz, e nesse caso não pode
oferecer uma explicação.19
Trata-se apenas de meras asserçÕes: declarações ousadas, impetuosas,
confiantes, associadas aos padrões de pensamento dicotomistas
e absolutos que Dawkins aprecia.
Comecemos com o primeiro ponto, sobre Deus ser uma entidade
"complicada" e, conseqüentemente, "improvável" se levarmos
em conta a riqueza da biosfera. O que Dawkins quis dizer
com a extraordinária declaração de que "qualquer projetista capaz
de construir uma disposição fascinante de coisas vivas teria que ser
inteligente e complicado além da imaginação"? Trata-se de uma afirmação
temerária, feita sem o habitual processo de um argumento
cuidadoso, necessário para se chegar a tal tipo de conclusão, incluindo
ajusta e completa avaliação das propostas alternativas.
O texto está longe de esclarecer que força tem essa avaliação. O
próprio Dawkins dedicou grande parte de sua carreira como
popu-larizador da ciência para demonstrar que a "disposição
fascinante de coisas vivas" poderia ter surgido muito simplesmente,
durante longos períodos de tempo, por um processo de evolução
neodarwinista. Sua proposição teria algum mérito como crítica ao
teísmo — embora a quantidade de mérito ainda pudesse ser discutida
— se este tivesse
proposto uma doutrina da criação especial e individual, semelhante
à proposta por William Paley. Mas não há razão alguma para isso.
Um teólogo poderia responder que Deus criou um ambiente dentro
do qual entidades inacreditavelmente complexas poderiam se
desenvolver de começos bastante simples, através de processos bastante
simples. Dawkins parece pensar que a crença em Deus exige da pessoa
uma forma de pensar a criação conforme a do final do século
XVIII. Mas como a história da tradição cristã sobre tal ponto deixa
claro, simplesmente não é esse o caso.
Dawkins afirma que, sendo Deus "complicado", ele é "improvável".
Essas noções não são equivalentes, nem a segunda é implicada
pela primeira. Elas são conectadas por um salto de fé
kierkegaar-diano, sustentadas por uma retórica agressiva e não por
um argumento rigoroso, baseado em evidências. Além disso, é mais
uma vez bastante obscuro por que isso teria qualquer relevância.
Para reiterar o ponto fundamental levantado na seção anterior: não
importa se Deus é improvável (deixando de lado o fato de que
Dawkins nem determina o quanto de probabilidade, nem nos
oferece em primeiro lugar um método para determinar essa
probabilidade): coisas improváveis acontecem. Afinal de contas, esse é
o ponto a que chega Dawkins em A escalada do monte improvável.
Improbabilidades existem.
De qualquer maneira, por que Deus precisa ser explicado? Em
quais das muitas teorias divergentes da explicação científica, Dawkins
fundamenta essa afirmação? O modelo inferencial de Carl
Hem-pel? A abordagem causai de Wesley Salmon? Ou um dos
muitos outros modelos que tentam esclarecer se uma "explicação"
de fato explica alguma coisa?. Existe uma singular falta de clareza
conceituai na análise de Dawkins com relação à problemática,
ainda que seja extremamente importante essa noção de explicação.
Como bem se sabe, a filosofia da ciência considera uma variedade
de significativos, embora bastante diferentes, conceitos de
explicação científica;20 nenhum dos quais possui o sentido
reduzido que Dawkins parece pressupor. Como Paul Kitcher
demonstra, a questão mais fundamental é a redução dos
fenômenos a uns poucos "princípios" na medida do possível:
A ciência avança nossa compreensão da natureza nos mostrando
como produzir descrições de muitos fenômenos usando cada
vez mais o mesmo padrão de derivação e, ao demonstrar isso,
ensina-nos como reduzir o número de fatos aceitáveis como
princípios.21
Então, qual é exatamente o problema com Deus? Por que Deus
deveria requerer uma explicação? Ele poderia simplesmente ser um
"princípio", para usar o termo de Kitcher — uma dessas coisas que
devemos aceitar como dadas, sendo, portanto, suscetíveis à descrição,
e não à explicação. Dawkins precisa elaborar muito mais o que quis
dizer aqui, antes que sua proposição possa ser entendida e submetida
a um rigoroso escrutínio.
Um das coisas mais notáveis sobre o ateísmo de Dawkins é a
confiança com que afirma a sua inevitabilidade. E uma confiança
curiosa, que parece curiosamente fora de lugar — talvez até defeituosa
— para quem tem familiaridade com a filosofia da ciência.
Conforme Richard Feynman (1918-88), que ganhou o Prêmio
Nobel de física em 1965 por seu trabalho com eletrodinâmica
quân-tica, apontou muitas vezes, o conhecimento científico é um
corpo de declarações de graus variados de certeza — alguns mais
incertos, alguns quase certos, mas nenhum absolutamente certo.22
No entanto, Dawkins parece deduzir o ateísmo do "livro da natureza"
como se fosse uma pura questão de lógica. O ateísmo é afirmado
como se fosse a única conclusão possível para uma série de axiomas.
Muitos intelectuais de inclinação mais filosófica vão querer
perguntar neste momento: considerando-se que as ciências naturais
procedem da conclusão de dados observacionais, como Dawkins
pode estar tão seguro sobre o ateísmo? Às vezes, fala sobre as certezas
de um mundo não-religioso com a convicção de um crente. E
como se o ateísmo fosse o resultado seguro e inevitável de um argumento
lógico sem costura. Mas como pode chegar a tal certeza,
quando as ciências naturais não são dedutivas em seus métodos?
Essa dificuldade me surpreendeu ao longo da leitura dos trabalhos
de Dawkins. A inferência e, por definição, uma questão incerta,
com a qual se deve tomar enorme cuidado para não chegar a
conclusões prematuras. Assim, como pode Dawkins estar tão certo
sobre isso? Outros têm examinado as mesmas evidências e chegado
a conclusões bastante diferentes. Como fica claro pelo que foi dito
até aqui, a insistência de Dawkins de que o ateísmo é a única visão
de mundo legítima para um cientista natural é um julgamento inseguro
e incerto. Todavia, minha inquietação não se limita ao julgamento
intelectual falho com que Dawkins direciona suas convicções,
preocupa-me a ferocidade com que afirma o seu ateísmo. Uma óbvia
resposta potencial é que a base do ateísmo de Dawkins se encontra
em outro lugar, diferente de sua ciência, de forma que talvez haja
um aspecto fortemente emotivo para suas crenças neste momento.
Mas, não me deparei com nada que me levasse a semelhante conclusão.
A resposta deve estar em outro lugar.
Comecei a achar uma resposta para a minha pergunta ao fazer
uma análise cuidadosa do estilo característico de argumentação que
encontramos nos textos de Dawkins. Em um importante estudo
comparativo, Timothy Shanahan declarou que a perspectiva de
Stephen Jay Gould à questão do progresso evolutivo foi determinada
por um método indutivo, baseado principalmente em dados
empíricos.23 Dawkins, observou, "procedeu pela elaboração da lógica
da 'filosofia adaptacionista para o raciocínio darwinista". Sendo
esse o caso, as conclusões de Dawkins são determinadas por um
conjunto de premissas lógicas que, no final das contas — ainda que
indiretamente—são fundamentadas em dados empíricos. "A própria
natureza de um argumento dedutivo válido é tal que, dadas certas
premissas, segue-se uma dada conclusão de uma necessidade lógica
totalmente independente de as premissas usadas serem verdadeiras
ou não". Com efeito, Dawkins usa uma abordagem essencialmente
indutiva para defender uma visão de mundo darwinista — mas
extrai dessa visão um conjunto de premissas por meio das quais se
pode chegar a conclusões seguras.
Embora Shanahan limite a sua análise à investigação de como
Gould e Dawkins chegaram a conclusões antiteticamente contrárias
sobre a questão do progresso evolutivo, sua análise pode claramente
se estender às visões religiosas de Dawkins. Tendo inferido que o
darwinismo é a melhor explicação da observação, Dawkins vai em
frente para transformar uma teoria provisória numa certa visão de
mundo. O ateísmo é assim apresentado como a conclusão lógica
de uma série de premissas axiomáticas, possuindo a certeza de uma
crença deduzida, embora sua base elementar seja de fato inferencial.
Não tenho dúvida de que Dawkins está convencido do juízo
em favor do ateísmo. Porém, o juízo em questão não é publicamente
convincente. Dawkins é obrigado a dar um "salto de fé" do
agnosticismo para o ateísmo, correspondendo àqueles que dão um
mesmo salto na direção oposta. A idéia de que o ateísmo é uma
forma de fé não é problemática. Ela se resume a pouco mais do que
afirmar o que todos sabem ser verdade: as coisas que realmente
importam na vida, com freqüência, estão além da prova demonstrativa.
Ninguém vai poder resolver a questão da existência de Deus
com total certeza. Simplesmente ela não está na mesma categoria
de saber se a terra é plana, ou se o DNA tem a forma de uma hélice
dupla. E mais como a questão de saber se a democracia é melhor
que o totalitarismo. Isso não pode ser resolvido por meios científicos
— o que, porém, não impede as pessoas de chegarem às suas
próprias conclusões sobre essa questão. Nem exige que suas decisões
sobre tais questões sejam irracionais — uma questão que
investigaremos um pouco mais na próxima seção.
A fé cristã como irracional?
Como vimos, a análise que Dawkins faz da fé é altamente simplista
e não leva em conta o modo como as palavras são usadas em
contextos religiosos. Ludwig Wittgenstein levantou o ponto incontestável
de que as palavras são usadas com significados diferentes em
contextos diferentes. Para Wittgenstein, a Lebensform ("forma de
vida") dentro da qual uma palavra é usada possui importância decisiva
para se estabelecer o seu significado. Conforme Wittgenstein
mostrou, precisamente a mesma palavra pode ser usada num grande
número de contextos, com significados diferentes em cada um.
Um modo de contornar esse problema poderia ser inventar um
vocabulário totalmente novo, no qual o significado de cada palavra
fosse definido de modo firme e inequívoco. Mas essa não é uma
opção real. As línguas são entidades vivas e não podem ser forçadas
a se comportar de um modo artificial.
Uma abordagem perfeitamente aceitável, de acordo com
Witt-genstein, é se dar ao trabalho de definir o sentido específico
pelo qual uma palavra deveria ser entendida, para se evitar confusão
com os seus muitos outros sentidos. Isso envolve um estudo
cuidadoso de suas associações e uso na "forma de vida" à qual ela
se relaciona.24 Em vez de assumir cega e ingenuamente que uma
palavra que significa uma coisa numa dada situação signifique
precisamente o mesmo em outra, é universalmente aceito que
precisamos tomar muito cuidado ao estabelecer como as palavras
são usadas em cada contexto, e os significados que carregam.
Esse tópico deveria ser familiar a qualquer cientista competente,
bastante acostumado a usar na vida cotidiana as palavras num
certo sentido e, num sentido mais preciso, restrito, dentro de uma
cultura de laboratório. Trabalhei durante vários anos, no final da
década de 1970, no grupo de pesquisa do professor Sir George
Radda, no departamento de bioquímica da Universidade de Oxford.
Todas as manhãs, às onze horas, reuníamo-nos para um café
em torno de um antigo fogão. Quando alguém pedia ao vizinho
"passe o açúcar", o que a pessoa pedia de fato era a substância química
conhecida como "sacarose' ou, mais precisamente: [2-0-(alpha-D~
glucopyranosyl)-beta-D-fructofuranoside]. Já nas ciências naturais,
o termo "açúcar" representa uma classe muito ampla de substâncias
químicas, que exclui os açúcares específicos encontrados na
cana-de-açúcar (sacarose), leite (lactose) e várias frutas (frutose).
Todos variando enormemente em graus de "doçura". Por exemplo,
a lactose tem apenas 16% da doçura da sacarose.
O "açúcar" do mundo cotidiano é, portanto, uma forma de
fato muito específica da categoria científica mais geral de açúcar —
especificamente, um l,2'-glicosídeo. Essa simples diferença de vocabulário
pode causar imensa confusão, especialmente em relação
aos problemas de saúde que surgem do consumo de sacarose.25
Poderia até levar alguém a colocar lactose em seu café. Precisaríamos
de uma quantidade seis vezes maior de lactose em nosso café
para alcançar o mesmo grau de doçura da sacarose. Mas essa confusão
simplesmente não ocorreu. Todos que estavam reunidos para
o café sabiam que as palavras estavam sendo usadas com significados
diferentes em contextos diferentes, e percebiam a distinção entre
eles.
Ora, não há um problema aqui. A pessoa se acostuma a viver
em mundos diferentes e ser sensível às suas sutis diferenças lingüísticas.
Ela percebe que as palavras significam coisas diferentes dentro
de comunidades diferentes. Os que estão de fora podem considerar
um problema essas diferenças sutis, e muitas vezes não entender
por que as diferentes linguagens de diferentes comunidades existem.
Não se trata de nenhuma questão de desonestidade, como se alguém
estivesse tentando enganar as pessoas usando essas formas
específicas de linguagem. Elas evoluem naturalmente, em resposta
às necessidades profissionais e diferentes tarefas das comunidades
envolvidas. E uma questão de simplesmente se tornar bilíngüe, e
sensível aos diferentes significados das palavras nos diversos contextos.
Significa estar preparado para perguntar às pessoas: "O que
você quer dizer quando usa esta palavra?" e preparar-se para aceitar
que o uso que elas fazem daquela palavra pode não ser idêntico ao
uso que você faz da palavra — o que não significa que as pessoas
estejam erradas, e você certo. Caso contrário, a comunicação através
das fronteiras disciplinares se tornaria impossível. Os cientistas usam
a linguagem de um modo que difere do uso comum; assim também
fazem os teólogos. A primeira fase em qualquer tentativa de se
engajar numa disciplina é entender o uso que ela faz da linguagem.
Dawkins, de forma correta, fez uma crítica mordaz à filósofa
Mary Midgley por ela criticar a sua hipótese do "gene egoísta" sem
qualquer consciência de como os cientistas usavam a linguagem. As
palavras de Dawkins merecem ser citadas:
[Midgley] parece não entender o uso que a biologia ou os
biólogos fazem da linguagem. Sem dúvida minha ignorância
ficaria da mesma maneira óbvia se me lançasse precipitadamente
ao campo em que ela é perita, mas eu então adotaria
um tom mais modesto. Como ambos estamos em meu terreno,
é difícil não considerar isso uma grosseria.26
Mas, esse não é o mesmo Richard Dawkins que, nada sabendo
sobre teologia cristã, se lança precipitadamente no campo, e diz aos
teólogos o que eles realmente querem dizer ao usarem a sua própria
linguagem? Ou que eles de fato querem dizer "confiança cega" quando
falam de "fé?" Há uma total falha por parte de Dawkins até
mesmo para começar a entender, na linguagem da teologia cristã, o
que ela significa. Na verdade, é muito difícil considerar com algum
grau de seriedade os julgamentos que faz das alegadas falhas na linguagem
teológica.
Vamos tentar ser mais diretos neste momento. Como um teólogo
histórico profissional, não hesito em afirmar que a tradição
cristã clássica sempre valorizou a racionalidade, não defendendo que
a fé envolva o completo abandono da razão ou a crença contra a
evidência. Na verdade, a tradição cristã é tão consistente nessa questão
que é difícil entender de onde Dawkins tirou a idéia da fé come
"confiança cega". Até mesmo uma leitura superficial das obras dos
grandes filósofos cristãos como Richard Swinburne (Universidade
de Oxford), Nicolas Wolterstorff (Universidade de Yale) e Alvin
Plantinga (Universidade de Notre Dame) revelaria um fervoroso
compromisso com a questão de como alguém poderia fazer
declarações "seguras" ou "coerentes" a respeito de Deus.27 Não existe
a questão da "confiança cega". A questão é como se poderia fazer
um juízo embasado, racional e defensável da questão sobre Deus,
quando a evidência é tão ambivalente.
Ora, talvez Dawkins esteja tão ocupado escrevendo livros contra
a religião que não tenha tempo de ler as obras de religião. Nas
raras ocasiões em que cita os teólogos clássicos, tende a fazê-lo de
segunda mão, muitas vezes com resultados assustadores. Por exemplo,
Dawkins elege o escritor cristão Tertuliano (c. 160 - c. 225)
para fazer um comentário particularmente acerbo, por conta de
duas citações de seus escritos: "É certo porque é impossível" e "sem
dúvida creio porque é absurdo".28 Dawkins tem pouco tempo para
tal tipo de tolice. "Esse é o caminho da loucura".
Na visão dele, a abordagem de Tertuliano — como comprovada
por essas duas citações isoladas —- é exatamente como a da Rainha
Branca em Através do espelho, de Lewis Carroll, que teimava
em acreditar em seis coisas impossíveis antes do café da manhã.
Como essa referência desprezível a Tertuliano é uma das poucas
ocasiões em que Dawkins emprega representantes sérios da tradição
teológica cristã, proponho tomar seus comentários com seriedade e
verificar para onde nos levam. Eles poderiam nos dizer algo sobre
Tertuliano, até mesmo sobre o cristianismo, ou, então, mais uma
vez, sobre o próprio Dawkins.
Tertuliano nunca escreveu as palavras "sem dúvida creio porque
é absurdo". Essa citação deturpada é muitas vezes atribuída a ele em
textos menores. Mas é uma atribuição indevida e assim tem sido
tratada por muitos.29 Portanto, no mínimo podemos pressupor
com certa razão que Dawkins não leu diretamente Tertuliano, mas
tirou essa citação de uma duvidosa fonte secundária. Isso poderia
nos dizer algo sobre quão seguros são seus julgamentos sobre estas
questões.
No entanto, Tertuliano escreveu as palavras "é certo porque é
impossível". Porém, o contexto deixa claro que, em nenhum momento,
está argumentando em defesa de uma "fé cega". Eis a passagem
completa, primeiro em latim:
Crucifixus est dei filius; non pudet, quia pudendum est. Et
mortuus est dei filius; credibile prorsus est, quia ineptum est.
Et sepultus resurrexit; certum est, quia impossibile.
O Filho de Deus foi crucificado: não me envergonho, porque é
vergonhoso.
O Filho de Deus morreu: é absolutamente crível, porque é
torpe.
Ele foi sepultado, e se levantou novamente: é certo, porque é
impossível.30
Nessa passagem, ao contrário do que Dawkins acredita, Tertuliano
não está discutindo a relação entre fé e razão, ou a base evidenciai
do cristianismo. Lendo a passagem no contexto, imediatamente é
eliminada qualquer idéia desse tipo. Sabe-se desde 1916 que, nessa
passagem, Tertuliano está lidando com algumas idéias de Aristóteles.
James Moffat, que demonstrou a relação, nota o aparente absurdo
das palavras de Tertuliano:
Este é um dos paradoxos mais desafiantes em Tertuliano, uma
das sentenças vivas, reveladoras, nas quais não hesita em destruir
o sentido das palavras para fazer a sua observação. Ele
exagera deliberadamente para chamar a atenção para a verdade
que quer transmitir. A frase é muitas vezes citada de
forma errônea, e muito freqüentemente é considerada como
cristalização de um preconceito irracional em sua mente, como
se ele desprezasse e desdenhasse a inteligência na religião —
uma suposição que não sobreviverá a uma comparação em
primeira mão com os escritos do pai africano.31
A questão é que o evangelho cristão é, naquele momento, profundamente
contracultural e contra-intuitivo. Assim, por que alguém
iria querer ajustá-lo, quando é tão obviamente improvável, a tais
padrões de sabedoria? Tertuliano, então, parodia uma passagem da
Retórica de Aristóteles, a qual argumenta que uma afirmação extraordinária
poderia muito bem ser verdadeira, precisamente pelo
fato de ser tão fora do comum. O que com certeza devia ser uma
piada retórica para os que conheciam Aristóteles.
Mas esse é apenas um de toda uma série de argumentos que
Tertuliano apresenta nesse momento, e é grotescamente inexato
determinar toda a sua atitude em relação à racionalidade com base
em uma única e isolada frase.32 A atitude de Tertuliano a respeito
da razão está definitivamente resumida na seguinte citação:
Porque a razão é uma propriedade de Deus, visto que não
existe nada que Deus, o criador de todas as coisas, não previu,
organizou e determinou através da razão. Além disso,
não existe nada que Deus não deseje que seja investigado e
entendido pela razão.33
No final das contas o que importa é que não existe limite para o
que pode ser "investigado e entendido pela razão". O mesmo Deus
que criou a humanidade com a capacidade de raciocinar espera que
a razão possa ser usada na investigação e representação do mundo.
Sendo o que a vasta maioria dos teólogos cristãos faz hoje, como
fez no passado. Com certeza há exceções. Mas Dawkins parece preferir
tratar as exceções como se fossem a regra, não oferecendo qualquer
evidência em defesa dessa conclusão altamente questionável.
As visões de Dawkins sobre a natureza da fé deveriam muito
bem ser consideradas como um embaraço a qualquer um envolvido
com a precisão acadêmica. Algo que não contribui em nada para
a sua credibilidade, em especial suas ocasionais declarações em tom
de sermão, por exemplo: "Como amante da verdade, suspeito de
crenças defendidas com vigor que não sejam sustentadas pela evidência".
34 Então, vamos apenas estipular um limite para esse nonsensec
passar para algo mais interessante.
O problema da mudança teórica radical em ciência
Quando estava aprendendo física na escola, gradualmente me
dei conta de uma estranha contradição naquilo que me ensinavam.
De um lado, me garantiam que as teorias da física moderna eram
totalmente confiáveis, a forma mais segura de conhecimento com
o qual a humanidade jamais sonhou. Mas, de vez em quando, nos
aventurávamos numa região estranha, crepuscular, a qual, nos explicavam,
em tons sussurrados, conspiratórios, que "os físicos de
outrora costumavam acreditar, mas agora não mais". A maior parte
disso tinha a ver com a luz — algo que seria razoavelmente simples
para alguém de dezesseis anos compreender. Antigamente se ensinava
que a luz exigia um meio para viajar — mas agora, nos iluminados
anos sessenta, ninguém mais acredita nisso. Antes se acreditava
que a luz era composta apenas de ondas — mas hoje sabemos
que ela consiste de fótons. A princípio, pensei que tais concepções
antiquadas datavam do século XVI. Mas a terrível verdade logo se
revelou. A aceitação dessas novas idéias sobre a luz datava mais ou
menos de quarenta anos atrás. "Antigamente" passou a significar
"muito recentemente".
O problema da "mudança teórica radical" na ciência não pode
ser negligenciado em qualquer explicação responsável do escopo do
método científico. É impossível pressupor que o conhecimento
científico de hoje determinará como as coisas serão vistas no futuro,
ou que as teorias científicas atuais continuarão a manter a
confiança das futuras gerações. Não há dúvida de que essas atitudes
confiantes foram defendidas no final do século XIX.35 A estabilidade
teórica tem sido considerada um sinal de verdade teórica. No entanto,
isso simplesmente se mostrou complacente.
Muitos cientistas notáveis do século XIX defenderam que tudo
o que valia a pena saber já se sabia. Em 1871, James Clerk Maxwell
expressou sua irritação com a idéia de que a física havia descoberto
tudo quanto poderia ser conhecido, de forma que só restava estabelecer
medidas para a próxima casa decimal.36 Max Planck relata
que se encontrava em dúvida sobre que assunto estudar na Universidade
de Munique, em 1875. Sua inclinação para o estudo das ciências
naturais era desprezada pelo professor de física na universidade,
que declarou que nada que valesse a pena restava ser descoberto.37
Robert A. Millikan — cujas investigações do elétron desbravaram
novos campos — recorda como a física era amplamente considerada
um "assunto morto" nos círculos acadêmicos americanos no início
dos anos de 1890.38 Tais visões eram difundidas e podem ser encontradas
em muitos textos científicos do período. O principal
astrônomo americano Simon Newcomb teve a coragem de afirmar
em 1888 que quase tudo que tinha importância já havia sido
visto e medido: o que faltava era consolidar esse corpo de conhecimento.
39 Com certeza, mais alguns cometas seriam descobertos.
Mas o "grande quadro" estava estabelecido. Restavam apenas uns
poucos detalhes a serem preenchidos.
O mesmo aconteceu no campo da biologia evolutiva. As idéias
de Darwin foram aceitas rapidamente como definitivas, e outras
pesquisas nesse campo acabaram sendo inibidas. Esse fato curioso
foi apontado pelo geneticista William Bateson em 1909:
Com o triunfo da idéia evolucionista, a curiosidade sobre o
significado das diferenças específicas foi satisfeita. As Origens
foram publicadas em 1859. Durante a década seguinte, enquanto
as novas perspectivas estavam sendo julgadas, os criadores
experimentais continuaram seus trabalhos, mas, em
1870, o campo fora praticamente abandonado. No que diz
respeito às espécies, os próximos trinta anos são marcados
pela apatia característica de uma era de fé. A evolução se tornara
a base de exercícios dos ensaístas. De fato, o número de
naturalistas decuplicou, mas suas atividades foram dirigidas
para outro lugar. O feito de Darwin até então excedia tudo o
que antes seria possível imaginar, o que deveria ter sido saudado
como um início, há muito tempo esperado, foi tomado
como um trabalho acabado. Lembro-me bem de ter recebido
de um de meus superiores mais sérios a amigável advertência
de que era um desperdício de tempo estudar a variação, pois
"Darwin tinha varrido o campo".40
De 1870 a 1900, tal era o grau de estabilidade que pairava nas
ciências físicas e biológicas que muitos pressupunham que essa situação
de repouso temporário era na realidade o destino final.
Por volta de 1920, ocorreu uma revolução dentro da física. A
grande era da "física clássica" terminava, e uma nova raiava, dominada
pela mecânica quântica, pela teoria da relatividade e pela
cos-mologia do "big bang". Não havia sido dada qualquer
indicação, nas últimas décadas do século XIX, da grande onda de
mudança que varreria as ciências naturais no século XX. Ninguém
no século XIX parecia fazer idéia das revoluções que aconteceriam,
destruindo muitas das certezas científicas da época. As teorias
pareciam resolvidas,
seguras e constantes. Porém, um século depois, "novos" paradigmas
teóricos — para usar um termo popularizado por Thomas
Kuhn41 — tinham dominado.
Historiadores e filósofos da ciência produziram extensas listas
de teorias científicas, cada uma sendo considerada por uma geração
a melhor representação possível da realidade; mas depois eram abandonadas
pelas gerações seguintes, à luz de novas descobertas e de
avaliações cada vez mais precisas daquilo que já era conhecido. Algumas
teorias se provaram notavelmente estáveis, muitas foram
radicalmente modificadas e outras abandonadas por completo.42
Conforme observou Michael Polanyi (1891-1976), um notável
químico e filósofo da ciência, os cientistas naturais se vêem obrigados
a acreditar em algumas coisas sabendo que mais tarde se mostrarão
erradas — mas sem ter certeza sobre qual das atuais convicções
se revelará errada. Como Dawkins pode estar tão certo de que suas
convicções atuais são verdadeiras, quando a história mostra um persistente
padrão de abandono de teorias científicas quando surgem
melhores abordagens? Que historiador da ciência não consegue perceber
que tantas coisas já foram uma vez consideradas como conhecimento
seguro e se desmancharam com a passagem do tempo?
A teorização científica é, portanto, provisória. Em outras palavras,
ela oferece o que se acredita ser a melhor explicação das observações
experimentais disponíveis no momento. Uma mudança
teórica radical ocorre ou quando se acredita haver uma explicação
melhor sobre certo assunto no momento, ou quando surge uma
informação nova que nos força a ver aquilo que conhecíamos sob
uma nova luz. A menos que saibamos o futuro, é impossível adotar
uma posição absoluta sobre se determinada teoria é "correta". O
que se pode dizer — e, de fato, deve ser dito — é que essa é a
melhor explicação atualmente disponível. A história simplesmente
transforma em tolos os que defendem que um aspecto da atual
situação teórica é verdadeiro para sempre. O problema é que não
sabemos quais das teorias de hoje serão descartadas como interessantes
fracassos pelas gerações futuras.
Se as teorias estão assim sujeitas à erosão, o que se passa com as
visões de mundo que são baseadas nelas? O que acontece a uma
visão de mundo quando seus fundamentos teóricos entram em
colapso? Mais uma vez, a história nos proporciona amplas advertências
do que acontece quando uma teoria que serve de base a uma
visão de mundo desmorona. Como uma pirâmide feita de cartas, a
visão de mundo tem o mesmo destino.
No caso do darwinismo, há ainda uma outra dificuldade. Enquanto
Charles Darwin tentava oferecer uma explicação de como
surgiram as atuais formas de vida animal e vegetal, percebeu que
algumas partes das evidências de seu argumento eram históricas.
Qualquer tentativa de avaliar a teoria darwinista da evolução requer
um conhecimento do passado. No entanto, o método científico
poderia de fato ser aplicado ao estudo do passado? A questão é que
tal método deve usar no presente uma evidência disponível para
reconstruir o que aconteceu no passado — mas com que grau de
plausibilidade?
Este problema era tão relevante que, em 1976, Karl Popper
hesitou em declarar que a teoria darwinista da seleção natural se
incluía estritamente no escopo do método científico, portanto ela
poderia ser considerada de caráter "científico".43 Hoje essa atitude é
vista como uma reação exagerada, mas baseada numa preocupação
legítima. Sempre resta um grau significativo de incerteza e
tempo-rariedade a quaisquer conclusões que sejam
fundamentadas numa análise do passado, precisamente pelo fato de
não ser possível se acessar diretamente a história passada da terra.
Embora essa consideração não seja suficiente para arruinar a teoria
original de Darwin, levanta, de qualquer modo, questões que não
podem ser ignoradas e que deveriam levar a um grau de modéstia a
respeito de quaisquer conclusões que extraímos de uma análise do
passado.
Todas essas questões tomadas em conjunto suscitam uma pergunta
difícil que não pode ser respondida com algum grau de certeza.
A teoria da evolução darwinista em si teria um dia que ser
radicalmente modificada, ou até mesmo abandonada, sofrendo o
mesmo destino de tantas outras teorias científicas do passado? E o
que restará então das confiantes declarações sobre o significado da
vida feitas com base nela? Dawkins está ciente deste problema e é
bastante explícito sobre suas conseqüências:
Darwin pode triunfar no final do século XX, mas devemos
reconhecer a possibilidade de que novos fatos possam vir à
tona, forçando nossos sucessores do século XXI a abandonar
o darwinismo ou modificá-lo até se tornar irreconhecível.44
Exatamente!
Enquanto Dawkins apressa-se em refutar aqueles que sugerem
que a fé desempenha um papel na ciência, seus argumentos ao
fazê-lo não atingem de fato o ponto da discussão. A questão não
é, conforme Dawkins parece acreditar, se as ciências naturais
fundamentam suas teorias num instinto cego, em vez de uma
avaliação cuidadosa da evidência disponível. Não existe dúvida
sobre o papel crítico e fundamental do raciocínio científico baseado
na evidência. Antes, a questão diz respeito ao inegável fato histórico
de que a "evidência disponível" é determinada pela situação. A
evidência disponível às gerações futuras — por exemplo, por meio
do avanço tecnológico— pode exigir uma revisão teórica radical.
Não existe, portanto, contradição em declarar que "se acredita
que o darwinismo é atualmente a melhor explicação do desenvolvimento
da vida biológica". Essa declaração afirma que a evidência e
os modelos teóricos atualmente disponíveis são aceitos como os
mais sólidos e coerentes, embora permitindo futuros desenvolvimentos
evidenciais e teóricos, os quais podem levar à revisão ou
eventual rejeição das perspectivas de hoje.
As implicações disso são perfeitamente claras, como são suas
implicações religiosas e metafísicas. Está absolutamente correto dizer
que "os biólogos evolucionistas de hoje acreditam que o darwinismo
é a melhor explicação teórica das formas de vida na terra". Mas isso
não significa que os futuros biólogos evolucionistas compartilharão
deste julgamento. Podemos acreditar que o darwinismo está certo,
mas não sabemos se é assim. Para isso temos que permanecer numa
posição hipotética que nos permita ver a evidência do futuro. Com
base no que sabemos hoje, podemos defender esta posição teórica,
mas a história da ciência deixa claro que novas evidências costumam
aparecer, provocando uma revisão radical — talvez até o abandono
—- de muitas teorias há muito defendidas. O darwinismo
será uma delas? E o que acontecerá então a qualquer visão de mundo,
ateísta ou teísta que seja fundamentada nesse mesmo darwinismo?
A única resposta honesta é que não sabemos. O darwinismo,
como qualquer outra teoria científica, deve ser visto como um lugar
temporário de repouso, não um destino final.
A amplificação retórica do caso em favor do ateísmo
Res ipsa loquitur — "a coisa fala por si mesma". No início de
meu caso de amor com as ciências naturais, tive o que agora reconheço
serem expectativas totalmente irreais sobre a disciplina. Uma
delas era a idéia encantadora e ingênua, que só poderia ser aceita por
um adolescente idealista, de que as ciências naturais eram completamente
baseadas nas evidências e somente demonstravam suas conclusões
de acordo com tais evidências. Enquanto as outras disciplinas
intelectuais, inferiores, faziam uso de manipulações verbais e outros
truques da arte da persuasão, isso era completamente desnecessário
nas ciências. A evidência, e só a evidência, era o solo determinante
da verdade. "A boa pesquisa não precisa de retórica".
Ainda amo as ciências. No entanto, agora está claro para mim
que alguns cientistas naturais usam a retórica além dos limites aceitáveis
para impor seu ponto de vista — freqüentemente, deve-se dizer, ao
se aventurar além do seu campo de competência, ou ao tentar encobrir
um déficit de evidência experimental com uma cortina de fumaça
verbal. Não se admira que os críticos culturais tenham começado
a ler as publicações e literaturas científicas com vista a expor algumas
das prestidigitações argumentativas e persuasivas ocultas nesses
textos.45 O nível de retórica é um indicador infalível do caráter
polêmico do argumento. Quanto maior o apelo à retórica, mais
fraco o argumento.
Que tipo de técnicas? Uma das técnicas retóricas mais simples
é relacionar seus críticos com aqueles que seu pretendido público
leitor entenda como párias. No caso da sociobiologia — uma disciplina
científica amplamente vista como muito carregada de retórica
— isso significa criar a impressão de que uma discordância com ela
coloca você junto com os fundamentalistas religiosos ou inimigos
da ciência. Os trabalhos de E. O. Wilson são muitas vezes eleitos
como exemplo de uso excessivo desse tipo de retórica. Como Daniel
Dennett demonstra, Wilson tende a retratar os seus críticos como
nada mais que "fanáticos religiosos ou mistificadores cientificamente
analfabetos". Qualquer um que for pouco esperto o bastante para
discordar de Wilson será por ele ridicularizado como um
"enrola-dor ignorante, que teme a ciência".46 Mas isso não é
ciência, e todos sabem.
É fascinante ler Dawkins tendo essa questão em mente.
Tem-se notado com freqüência o seu modo maravilhoso de tratar
com as palavras, e compartilho a admiração geral por sua lucidez
de expressão e a ilustração soberba de pontos complexos,
particularmente em O gene egoísta e The Extended Phenotype [O
fenótipo estendido]. Esse é Dawkins em sua melhor forma — o
valioso comunicador científico. No entanto, ao ler suas outras obras
— em particular os ensaios efêmeros e, até certo ponto, de pouco
valor reunidos em O capelão do Diabo — tem-se uma impressão
bastante diferente. Conforme Robert McFarlane demonstrou ao
criticar essa obra no Spectator, Dawkins em geral "se encontra
entre os leões-de-chácara da ciência: aqueles brutamontes
mal-humorados com um taco de beisebol". Nesses ensaios, não
raro encontramos um argumento surpreendentemente raso,
sustentado por uma correspondente prosa agressiva.
Depois de ler a produção significativa de Dawkins, percebi que
uma análise retórica de suas obras facilmente as poderia dividir em
duas categorias.
1. A primeira consiste na maior parte de seus livros publicados,
com as significativas exceções de O capelão do Diabo e Desvendando
o arco-íris. Tal categoria também inclui alguns de seus trabalhos
acadêmicos mais curtos, em particular os primeiros textos
que tratam de questões etológicas. Nesses trabalhos encontramos
um modo de argumentação fortemente baseado na evidência, com
pontos de vista alternativos apresentados de forma cuidadosa e
reflexiva e avaliados à luz dos dados. Embora Dawkins use instrumentos
retóricos tradicionais nesses trabalhos, são tratados com
rédea curta. Mesmo que o leitor discorde da interpretação que
Dawkins fez das evidências, ainda assim se mantém a prioridade
do compromisso específico com os resultados experimentais,
como pressuposto compartilhado pelo autor e leitor.
2. O segundo consiste principalmente em trabalhos mais curtos,
lidando com coisas que Dawkins não gosta muito — acima de
tudo, a religião. Aqui a anedota substitui a evidência, e as alternativas
em geral são recusadas. O tom dos escritos é agressivo e
desprezível, e demonstra pouca, quando há alguma, tentativa de
levar as alternativas a sério. Eles são caracterizados muitas vezes
por um modo fortemente dicotômico de argumento: "é ou A
ou B, e B é totalmente estúpido, logo, deve ser o A". A proporção
retórica dessas partes é notavelmente alta — tão alta, na
realidade, que às vezes é difícil acreditar que seu autor seja o mesmo
defensor das evidências de O gene egoísta. Tanto Desvendando
o arco-íris quanto a coleção de ensaios agrupada em O capelão
do Diabo desdobram um número extraordinariamente grande
de dispositivos retóricos, muitas vezes no lugar de uma argumentação
mais rigorosa. Como um jornalista comentou de forma
perspicaz: "As obsessões geminadas formam virtualmente
cada parte [de O capelão do Diabo] — a evolução darwinista (viva!)
e a religião (arre!)".47
Comecemos com um dos mais consistentes trabalhos científicos
de Dawkins, que é rigorosamente guiado pela evidência. Li pela
primeira vez a tese de doutorado de Dawkins numa fria tarde de
inverno na Radcliffe Science Library, na Universidade de Oxford.48 É
uma fascinante obra de pesquisa, baseada na observação meticulosa
do comportamento de pintinhos domésticos quando confrontados
com vários tipos de estímulos. Dawkins abordou sua pesquisa
com uma gama de possíveis modelos sobre tomada de decisão.
A cada ponto, a soberania do empírico era afirmada. Cada modelo
proposto para explicar como os pintinhos decidem bicar e o que
bicar, foi avaliado de forma rigorosa, com base em experiências
cuidadosamente planejadas e controladas. O comportamento de
um grande número de pintinhos foi examinado de maneira cuidadosa
e comparado criticamente com outros estudos publicados no
campo (como os famosos estudos de Impekhoven de filhotes de
gaivota da cabeça preta). A tese é um modelo de pesquisa científica
objetiva, distanciada e fundamentada nas evidências.
Quando passa a lidar com o comportamento dos religiosos,
Dawkins parece abandonar rigorosamente sua abordagem empírica.
A linguagem esmerada, a pesquisa meticulosa e os padrões intransigentes
de justificação do laboratório são trocados pelo
palavrório dos comícios. Em contraste com os seus estudos
etológi-cos dos pintinhos, Dawkins oferece uma "etologia das
pessoas religiosas" desprovida de qualquer análise empírica
detalhada. Onde se poderia esperar encontrar referência a uma
observação sistemática extensa do impacto do comportamento
religioso nas pessoas — há um vasto corpo de dados —
encontram-se, ao contrário, anedotas notoriamente parciais e
generalizações desesperadamente sem substância. A retórica
substitui a observação e a análise cuidadosa.
Há uma grande e crescente literatura que trata do impacto da
religião — seja considerada de forma genérica, ou como uma forma
específica de fé — sobre indivíduos e comunidades.49 Embora
já tenha sido moda sugerir que a religião seja algum tipo de patologia,
50 tal visão está hoje em retração devido à quantidade de evidência
empírica que sugere (mas não conclusivamente) que muitas formas de
religião poderiam ser na verdade benéficas.51 Com toda a certeza,
algumas formas de religião podem ser patológicas e destrutivas.
Outras, porém, parecem ser bastante boas para você.
Uma pesquisa feita em 2001 a respeito de cem estudos que
examinaram sistemática e empiricamente a relação entre religião e
bem-estar humano revelou o seguinte:
• 79 informaram pelo menos uma correlação positiva entre en
volvimento religioso e bem-estar.
•13 não encontraram nenhuma associação significativa entre religião
e bem-estar.
• 7 encontraram associações mistas ou complexas entre religião e
bem-estar.
• 1 encontrou uma associação negativa entre religião e bem-estar.52
Toda a visão de mundo de Dawkins depende precisamente desta
associação negativa entre religião e bem-estar humano que apenas
1 % dos resultados experimentais parece inequivocamente afirmar,
e 79%, da mesma forma inequívoca, rejeitar. Os resultados deixam
pelo menos uma coisa bem clara: precisamos enfocar esse assunto à
luz de evidência científica, não do preconceito pessoal.
Para Dawkins, o caso é simples: a questão é "se você valoriza a
saúde ou a verdade".53 Como a religião é falsa — uma das inexpugnáveis
crenças centrais recorrentes ao longo de seus textos — seria
imoral crer, independentemente dos benefícios que ela possa trazer.
Mas, os argumentos de Dawkins de que a crença em Deus é falsa
simplesmente não têm sentido. Talvez seja por essa razão que ele os
complementa com o argumento adicional de que a religião é ruim
para você. O corpo de evidências cada vez maior de que a religião
promove o bem-estar humano de fato é muito problemático para
ele aqui. Isso não apenas subverte um argumento funcional em
prol do ateísmo; começa a suscitar algumas das mesmas questões
problemáticas a respeito de sua verdade.
Embora o próprio Dawkins seja por demais crítico da "sedução
superficial das histórias individuais que parecem — mas só parecem
— mostrar um padrão",54 ele, no entanto, parece confiar de
forma excessiva em padrões revelados por esse mesmo tipo de
histórias individuais em seu rotineiro desprezo das pessoas e idéias
religiosas. Seu ensaio "O vírus da mente", de onde se extraiu essa
citação, é um excelente exemplo do uso seletivo deste dispositivo.
55
Um dos argumentos centrais do ensaio é que os religiosos fazem
coisas muito ruins. Em seu modo alegremente fanfarrão, Dawkins
reúne anedotas para nos dizer o quão terríveis são os religiosos. Eles
crêem em coisas totalmente estúpidas, pedantes e insensatas (como
a doutrina da Trindade), ou exagera sobre as trivialidades (criticando
a precisão das leis da comida kosher). Pessoas inteligentes —
como o filósofo Anthony Kenny — afastaram-se da religião. Em
vez de tolerar "as contradições óbvias dentro da crença católica",
tornou-se "um estudioso altamente respeitado". E, como se não
bastasse, a religião encoraja o assassinato de seus oponentes e outros
comportamentos ultrajantes.
Bem, alguns religiosos realmente se comportam de maneiras
inaceitáveis. Sejamos honestos sobre isso. Mas quantos? Dawkins é
um pouco modesto sobre as estatísticas e análises detalhadas das
evidências disponíveis. Já vimos como ele também se afasta dos
enfoques probabilísticos para avaliação da crença. Em alguns pontos
de suas obras, Dawkins parece se deixar levar por sua retórica,
insinuando que os religiosos são totalmente enganados e enganadores.
Mas esse apelo altamente seletivo à evidência e recusa fácil de
alternativas não é científico. Nem mesmo é uma falácia científica.
É apenas falácia.
Vamos voltar a Freeman Dyson para esclarecer este ponto.
Dyson -— professor de física do Instituto para Estudos Avançados
de Princeton — talvez seja um dos físicos mais respeitados do século
XX. Resume a situação com o que parece ser uma justiça admirável.
Alguns religiosos fazem coisas terríveis, outros fazem coisas
maravilhosas:
Todos nós sabemos que a religião tem sido historicamente, e
ainda é nos dias de hoje, uma causa de grande mal bem como
de grande bem nas questões humanas. Vimos guerras e perseguições
terríveis cometidas em nome da religião. Também
vimos um grande número de pessoas inspiradas pela religião
para vidas de virtude heróica, levando educação e cuidado
médico aos pobres, ajudando a abolir a escravidão e difundindo
a paz entre as nações.56
Não é tão burilado quanto o pastiche polêmico de Dawkins, mas
tem o mérito de fazer alguma justiça aos fatos.
Todos concordariam que alguns religiosos fazem coisas muito
perturbadoras. Mas a introdução dessa pequena palavra, "alguns",
ao argumento de Dawkins dilui imediatamente seu impacto. Pois
isso obriga a uma série de questões críticas. Quantos? Em que circunstâncias?
Com que freqüência? Também obriga uma questão
comparativa: quantas pessoas com visões anti-religiosas também
fazem as mesmas coisas perturbadoras? Uma vez que comecemos a
fazer tais perguntas, afastamo-nos da armadilha fácil e de mau gosto
de nossos oponentes intelectuais, e temos que nos confrontar
com alguns aspectos obscuros e inquietantes da natureza humana.
Vamos explorar isso.
já fui um anti-religioso. Em minha adolescência, fui totalmente
convencido de que a religião era inimiga da humanidade, por razões
bem parecidas àquelas que Dawkins estabelece em seus conhecidos
textos. Mas já não sou. E uma das razões deve-se à minha terrível
descoberta do lado obscuro do ateísmo. Permitam-me explicar. Em
minha inocência, supunha que o ateísmo difundia a genialidade
absoluta de suas idéias, a natureza convincente de seus argumentos,
a sua libertação da opressão da religião e o brilho deslumbrante do
mundo que recomendava. Quem precisava ser coagido por tais
crenças, quando se estava tão obviamente certo?
Agora as coisas parecem muito diferentes. O ateísmo não foi
"provado" em nenhum sentido por qualquer ciência, incluindo a
ciência evolucionista. Dawkins pensa que pode ser provado, mas
oferece argumentos que estão longe de convencer. E, sim, o ateísmo
libertou as pessoas da opressão religiosa, especialmente na França
dos anos 1780. Mas quando o ateísmo deixou de ser uma questão
privada e se tornou uma ideologia estatal, as coisas ficaram de repente
bastante diferentes. O libertador virou o opressor. Para a surpresa
de alguns, a religião se tornou o novo libertador da opressão
ateísta. De modo pouco surpreendente, tais evoluções tendem a
ficar de fora da leitura bastante seletiva que Dawkins faz da história.
Mas elas precisam ser consideradas com muita seriedade, caso se
deseje contar toda a história.
A abertura final dos arquivos soviéticos nos anos noventa levou
a revelações que acabaram com qualquer noção de que o ateísmo
era uma visão de mundo totalmente boa, gentil e generosa; como
alguns de seus partidários mais idealistas acreditavam. O livro negro
do comunismo, baseado nesses arquivos,57 gerou sensação quando
foi lançado na França em 1997, não menos porque insinuava que o
comunismo francês — ainda uma importante força na vida nacional
— estava irredutivelmente manchado com os crimes e excessos
de Lênin e Stalin. Muitos leitores irados se perguntaram: onde estão
os "tribunais de Nuremberg para o comunismo?". O comunismo
foi uma "tragédia de dimensões planetárias" com uma grande
quantidade de vítimas estimada, de modo variável, pelos colaboradores
a um volume entre 85 e 100 milhões — superando em muito
os excessos cometidos sob o Nazismo.
Ora, é preciso ter cautela com tais estatísticas, ser igualmente
cauteloso sobre conclusões apressadas e fáceis com base nelas. No
entanto, o ponto básico não pode, de fato, ser negligenciado. Uma
das maiores ironias do século XX é que muitos dos atos mais deploráveis
de assassinato, intolerância e repressão foram levados a
cabo por aqueles que pensavam que a religião era assassina, intolerante
e repressiva — e assim procuraram removê-la da face do planeta
como um ato humanitário. Até mesmo seus leitores mais críticos
não podem deixar de perguntar por que Dawkins curiosamente
não menciona, sem falar em se posicionar, os rastros de sangue do
ateísmo no século XX— uma das razões que, diga-se de passagem,
levaram-me a concluir que não poderia mais ser ateu.
Ora, eu poderia chegar à conclusão, com base em algumas
histórias selecionadas — como a dos maiores charlatões do século
XX, Madalyn Murray O'Hair, fundador da American Atheists Inc.
[Cia. dos Ateus Americanos]58 — e numa leitura altamente seletiva
da história, que todos os ateus são por completo corruptos, violentos
e depravados. Mas não posso e não o farei, simplesmente porque
os fatos não me permitem. A verdade, evidente a qualquer pesquisador
de campo, é que alguns ateus de fato são pessoas muito
estranhas — mas que a maioria é gente bem comum, querendo
apenas seguir com sua vida, não desejando oprimir, coagir ou assassinar
ninguém. A religião e a anti-religião são capazes de inspirar
grandes atos de bondade por parte de alguns e atos de violência por
parte de outros.
A verdadeira questão — conforme apontou Friedrich Nietzsche
um século atrás — é que parece existir algo sobre a natureza humana
que torna nossos sistemas de crença capazes de inspirar tanto grandes
atos de bondade quanto grandes atos de depravação. Para ilustrar esse
ponto, podemos nos valer de uma anedota pouco conhecida sobre
a ciência, que mostra como ela, assim como todas as outras áreas da
atividade humana, pode ser usada para o bem ou para mal.
Quando estudava química orgânica em Oxford no início dos
anos setenta, fiz uso extensivo de uma obra volumosa intitulada
Advanced Organic Chemistry [Química orgânica avançada].59 Ela
fora escrita por um casal, marido e esposa, e invariavelmente era
chamada "Fieser & Fieser". Foi minha companheira por muitas
longas noites na biblioteca da faculdade, quando tentava dar sentido
a algumas das experiências em que estava trabalhando na ocasião.
Louis e Mary Fieser eram da Universidade de Harvard, onde abriram
caminho para algumas inovações sintéticas muito importantes. Estas
incluíam a vitamina K-l, o agente coagulante do sangue no
corpo humano (uma descoberta fundamental para a hemofilia) e a
cortisona (importante agente antiinflamatório). Em reconhecimento
a este e outros sucessos, Harvard deu o nome deles a um novo
laboratório: o Louis and Mary Fieser Laboratory for Undergraduate
Organic Chemistry [Laboratório Louis e Mary Fieser para Estudantes
de Química Orgânica] inaugurado em 1996. Adequadamente, a
própria Mary Fieser se dedicou ao novo prédio, até sua morte em
1997. Em todos os sentidos, os Fieser fizeram contribuições importantes
para a química e o avanço do tratamento clínico humano.
Sem dúvida, os novos caminhos sintéticos por eles abertos salvaram
milhares de vidas.
Louis Fieser também foi o pioneiro em outro desenvolvimento
em Harvard, não mencionado por aqueles com visões positivas
e acríticas das ciências. O napalm foi uma das armas mais importantes
do exército dos Estados Unidos nas guerras da Coréia e do
Vietnã. Fabricada pela Dow Chemical Co., o napalm era um modo
rápido e efetivo de neutralizar as tropas escondidas em buracos ou
sob a cobertura da selva. Agia queimando os soldados vivos ou
privando-os de oxigênio ao incendiar o meio-ambiente. Por volta de
1942, o exército dos Estados Unidos havia percebido a ineficácia no
uso da gasolina como um dispositivo incendiário para esse propósito.
Ela queimava muito depressa. O que na verdade se precisava era
que a gasolina fosse modificada para queimar mais lentamente, em
temperaturas mais elevadas. Assim grudaria nas pessoas e elas não
poderiam interromper a queima do material. Dissolver borracha
na gasolina foi uma opção. Mas a borracha era escassa e, portanto,
se fazia necessária uma alternativa química.
Um contrato de pesquisa foi lançado para desenvolver gasolina
em gel. A Du Pont e a Standar Oil investiram pesadamente tentando
chegar lá primeiro. Mas a corrida foi vencida por uma pequena
equipe sediada em Harvard, encabeçada por ninguém menos que
Louis Fieser. (De forma interessante, Mary não parece ter se envolvido
nesse projeto desumano). Embora inicialmente Fieser e sua
equipe tivessem esperança de que o divinylacetylene criasse um gel
que fosse suficientemente viscoso para aderir à carne humana, essa
linha de pesquisa se provou improdutiva. Em vez disso, descobriram
que a gasolina poderia ser gelificada se fosse acrescida em aproximadamente
um décimo de seu peso de um pó de napthenate de
alumínio (feito de resíduos de óleo cru) e palmitato de alumínio
(feito de óleo de coco). As fontes dos materiais deram à substância
seu acrônimo — napalm. O uso tanto de pó preto quanto fósforo
na espoleta da bomba garantia que o material inflamável e explosivo
não pudesse ser apagado. No momento em que entrasse em
contato com o ar, acenderia. Cerca de 35 milhões de quilos da
fórmula de Fieser foram produzidos durante a Segunda Guerra
Mundial. E a maior parte foi usada contra os japoneses.
Durante a noite de 9 para 10 de março de 1945, 279 bombardeiros
US B-29 Superfortress, de baixa altitude, jogaram 1.667 toneladas
de napalm sobre Tóquio. A conseqüente tempestade de fogo
devastou uma ampla área composta principalmente de construções
de madeira. Ainda não se sabe precisamente quantos foram queimados
vivos, quantos feridos e quantos desabrigados. Um número
que pode ter chegado a 100.000 seria a contagem de mortos naquela
noite. Mas quaisquer que sejam as estatísticas, foi sem sombra de
dúvida um dos atos mais destrutivos da Segunda Guerra Mundial,
excedendo o dano inicial e o morticínio posteriormente causado
pela primeira bomba atômica.
Fieser declarou que não era responsável pelo modo como sua
invenção era usada por outras pessoas. Chegou mesmo a encontrar
um uso para o produto que não fosse para queimar pessoas ou edifícios
—livrar-se de um tipo de erva daninha muito comum no jardim
(a Digitaria ischaemum), queimando suas sementes e deixando a
grama boa intata. De qualquer modo, ficou demonstrado que o
napalm foi projetado para incinerar pessoas e edifícios. Uma "versão
melhorada" do napalm foi desenvolvida depois da guerra por Dow,
consistindo de 46% de poliestireno, 33% de gasolina e 21% de
ben-zeno. A fórmula original de Fieser só tem agora interesse
puramente histórico. Mas sua invenção havia queimado homens,
mulheres e crianças vivos, numa escala assustadora.
Ora, o que devemos concluir dessa anedota? Que todos os cientistas
são necessariamente maus? Ou que a ciência em si é malévola?
Sem dúvida há alguns que desejariam extrair essa conclusão, em
especial os alarmados com o papel da ciência e dos cientistas no
desenvolvimento de armas — algo que, a propósito, Dawkins encobre
bastante — usando esta, bem como outras histórias, numa
tentativa de destruir a reputação pública da ciência e dos cientistas.
O que seria tão inválido quanto as igualmente fracassadas tentativas
de difamar o ateísmo ou a religião por causa dos atos de alguns
de seus seguidores. Se tais atos fossem, de modo demonstrável,
típicos ou característicos, seria diferente. A verdadeira questão aqui se
refere ao que é um comportamento normal e ao que é aberrante.
Pode ser útil aos seus propósitos polêmicos tratar o patológico como
característico, ou o aberrante como normal. Mas goste Dawkins
ou não, a maioria dos ateus, cristãos e cientistas são pessoas comuns,
nem muito virtuosas nem muito más.
A crença religiosa às vezes conduz ao mal, direta ou indiretamente.
Mas a religião não tem o monopólio disso, como se fosse a
única área da vida e do pensamento humano que levasse à ruína
dessa maneira. A própria ciência pode ser mal usada, conforme algumas
das experiências médicas mais sinistras da Alemanha nazista
não deixam dúvida. No entanto, Dawkins com certeza diria que se
trata de um mau uso da ciência, totalmente atípico em relação a
seus valores e perspectivas normais. Eu concordaria. Mas, se essa
estratégia defensiva pode ser permitida à ciência, por que não também
à religião? Por que não reconhecer que o mau uso da religião é
patológico e destrutivo, como a maioria já sabe? A religião, como
todas as outras áreas da atividade e pensamento humano, precisa ser
reformada, revista e corrigida — mas não abolida.
Há aqui uma questão muito séria que precisa ser discutida, de
forma aberta e franca, do mesmo modo por ateus, cristãos e cientistas:
como alguns daqueles que são inspirados e edificados por
uma grande visão da realidade acabam fazendo coisas tão terríveis?
Essa é uma verdade sobre a natureza humana em si. Se realmente
quisermos ter uma "sociedade aberta", é preciso haver uma discussão
cuidadosa e informada de como devemos evitar a violência e a
agressão. Fingir que a religião é o único problema no mundo, ou a
base de toda dor.e sofrimento, não é uma opção válida para quem
pensa. É apenas retórica, um mascaramento de um problema difícil
que todos precisamos discutir — isto é, como os seres humanos
podem coexistir e controlar suas paixões.
Então, a religião é uma "fé cega", que se nega à evidência? Dificilmente.
Essa definição é por si só uma peça de retórica, inventada
para satisfazer as necessidades do projeto de Dawkins. Quando discuto
essas questões em público, sempre me perguntam por que os
cristãos crêem cegamente em Deus, na ausência de qualquer amparo
na evidência. Peço que tenham a gentileza de me dizer onde
adquiriram uma idéia tão absurda e, para justificá-la, que citem um
escritor cristão importante. Em geral sou contemplado com um
silêncio embaraçado. Em algumas ocasiões recebi a resposta: "Bem,
é isso o que Richard Dawkins diz". O público em geral ri, entendendo
tudo.
Ainda em sua bastante condescendente "Oração para a minha
filha", Dawkins diz a ela que uma "razão errada para se acreditar em
alguma coisa" é "que alguém importante lhe disse para acreditar".60
Assim por que alguém deveria acreditar em Dawldns quando ele nos
diz o que os cristãos acreditam que seja a fé? Tal definição idiossincrática
é de sua própria lavra, criada ao que tudo indica para fins
puramente polêmicos. Seria muito importante uma análise com
base nas evidências para esclarecer a questão, de forma que a discussão
se fundamentasse no que os cristãos de fato acreditam, não
no que Dawkins pensa que acreditam. Então poderíamos chegar a
algum lugar numa discussão sobre a relação entre ciência e religião.
1 Richard E. Nisbett & Lee D. Ross, Human Inference: Strategies andShortcomings
ofSocialJudgment. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1980, p. 192.
2 Nisbett & Ross, Human Inference, p. 169.
3Keith Ward, God, Chance andNecessity. Oxford: One World 1996, p. 99-100.
4 The Selfish Gene, p. 198.
5 The Selfish Gene, p. 330 (essa passagem foi acrescentada à segunda edição).
6 A conferência não teve um título definido e foi publicada sob o título "Lions 10,
Christians Nil" no volume 1, número 8 (dezembro de 1994) de um periódico
eletrônico intitulado "The Nullafidian", que se descreve como "The E-Zine of
Atheistic Secular Humanism and Free thought", antigamente conhecida como
"Lucifers Echo". Não há paginação. O periódico parece ter interrompido a
publicação em março de 1996.
7 A DevWs Chaplain, p. 117 *A
Devils Chaplain, p. 248.
'WH, Griffith.-Th.omas, The Principies of Theology. Londres: Longmans, Green,
1930, p. xviii. A fé inclui, portanto, "a certeza da evidência" e a "certeza de
coerência"; "não é cega, mas sim inteligente" (p. xviii-xix).
10 Ver, por exemplo, DimitryV. ¥osç'ie\ovsky,AHistoryofMarxist-LeninistAtbeism
andSovietAnti-Religious Policies. Nova York: St. Martins Press, 1987.
11 Debate entre Richard Dawkins & Steve Pinker na Westminster Central Hall,
Londres, em 19 de fevereiro de 1999, presidido por Tim Radford, correspondente
de ciência do The Guardian.
12 The Selfish Gene, p. 330.
13 Dawkins compara uma série de "caricaturas" do darwinismo com a coisa real em
The Blind Watchmaker, p. 308-11. Seria instrutivo fazer o mesmo para as
caricaturas da crença religiosa, no que, eu temo, Dawkins poderia figurar de
forma bastante proeminente, e então compará-las com as declarações autênticas
dos principais teólogos e declarações de fé, como a carta-encíclica "Fé e Razão", do
papa João Paulo II (setembro de 1998).
14Ver David Corfield & Jon Williamson, Foundations ofBayesianism. Dordrecht:
Kluwer Academic, 2001; Eric D. Green & PeterTillers, Probability andTnference
in theLawofEvidence: The UsesandLimitsofBayesianism. Dordrecht: Kluwer
Academic, 1988.
15 Elliott R Sober, "Modus Darwin." Biology andPhilosophy 14 (1999), p. 253-
78.
16 Richard Swinburne, The Resurrection ofGodlncarnate. Oxford: Clarendon Press,
2003.
n The Selfish Gene, p. 19%.
18 The Selfish Gene, p. 1.
19 ClimbingMountlmprobable, p. 68.
20 Ver, por exemplo, Wesley C. Salmon, Scientific Explanation and the Causai
Structure of the World. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1984.
21 Paul Kitcher, "Explanatory Unification and the Causai Structure of die World".
In Scientific Explanation, editado por P. Kitcher & W Salmon, Minneapolis:
University of Minnesota Press, 1989, p. 410-505.
22 Ver especialmente Richard P. Feynman, WhatDo You Care What Other People
Think? Londres: UnwinHyman, 1989; Richard P. Feynman, TheMeaningoflt
Ali. Londres: Penguin Books, 1999.
23 Timothy Shanahan, "Methodological and Contextual Factors in the Dawkins/
Gould Dispute over Evolutionary Progress". Studies in History and Philosophy of
Science 31 (2001), p. 127-51.
24 Lu dwig Wittg en st ein , Lectu res a n d Con versation s o n Aesth eti cs, Psycholog y an d
Religious Belief. Oxford: Blackwell, 1966. "Se eu tivesse que dizer qual o principal
erro cometido pelos filósofos, [...] eu diria que, quando a linguagem é considerada,
o que é considerado é uma forma de palavras e não o uso feito da forma de
palavras".
25 Madeleine Sigman-Grant & Jaime Morita, "Defining and Interpreting Intakes
ofSugars"'. American Journal of^ClinicaiNutrition 78 (2003), p. 815S-826S.
26 Richard Dawkins, "In Defence of Selfish Genes." Philosophy 56 (1981), p. 556-
73. Para um artigo original de Midgley, ver Mary Midgley, "Gene-Juggling".
Philosophy 54 (1979), p. 439-58. Para sua resposta às críticas de Dawkins,,ver
Mary Midgley, "Selfish Genes and Social Darwinism". Philosophy 58 (1983), p.
365-77.
27 Tenho em mente obras como Richard Swinburne, The Coherence of Theism.
Oxford: Clarendon Press, 1977; Nicholas Wolterstorff, Reason within theBounds
ofReligion. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1984; Alvin Plantinga, Warranted
Christian Belief. Oxford: Oxford University Press, 2000.
2SADevil's Chaplain, p. 139.
29Para detalhes, verRobert D. Sider,"'Credo QuiaAbsurdumY'. ClassicalWorld73
(1978), p. 417-19.
30 Tertuliano, depaenitentia v, 4.
31 James Moffat, "TertullianandAristotle". Journalof ^Theological Studies 17 (1916),
p. 170-1.
32 Ver especialmente Robert D. Sider, Ancient Rhetoric and the Art ofTertullian.
Oxford: Oxford University Press, 1971, p. 56-9.
33 Tertuliano, de paenitentia i, 2. "Quippe res dei ratio quia deus omnium conditor
nihil non ratione providit disposuit ordinavit, nihil enim non ratione tractari
intellegique voluit".
34 A DeviVs Chaplain, p. 1Í7.
35 Ver o excelente estudo de Lawrence Badash, "The Completeness of Nineteenth-
Century Science". Isis 63 (1973), p. 48-58.
36 W D. Niven (ed.), TheScientificPapers of James ClerkMaxwell, 2 v. Cambridge:
Cambridge University Press, 1980, v. 2, p. 244.
i7 lSÁax.V\anái, A Scientific Autobiography. Nova York: Philosophical Library, 1949,
p.8.
38 Robert A. Millikan, The Autobiography of Robert A. Millikan. Nova York:
Houghton, Mifflin, 1950, p. 23-4. Sobre Millikan, ver Robert Hugh Pargon,
The Rise of Robert Millikan: Portrait of a Life in American Science. Ithaca, NY:
Cornell University Press, 1982.
39 Simon Newcomb, "The Place of Astronomy among the Sciences". The Sidereal
Messenger7 (1888), p. 69-70.
40 William Bateson, MendeVs Principies of Heredity. Cambridge: Cambridge
University Press, 1909, p. 2-3. Para o trabalho do próprio Bateson sobre as
ervilhas-de-cheiro, ver William Bateson, E. R. Saunders & R. C. Punnett,
"Further Experiments on Inheritance in Sweet Peas and Stocks: Preliminary
Account". In Scientific Papers ofWilliam Bateson, editado por R. C. Punnett, p.
139-41. Cambridge: Cambridge University Press, 1905.
41 Thomas S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, 2a. ed. Chicago:
University of Chicago Press, 1970.
42 A respeito das ciências biológicas, ver os pontos levantados por Sylvia Culp &
Philip Kitcher, "Theory Structure and Theory Change in. Contemporary
Molecular Biology". British Journal for the Philosophy of Science 40 (1989), p.
459-83.
43KarlR. Popper. Autobiografia intelectual. 2a. ed. São Paulo: Cultrix, 1986. Ele
mudou de idéia durante os anos seguintes: ver Karl R. Popper, carta para o New
Scientist 87, p. 611, 21 de agosto de 1980. Para um estudo sobre tais questões,
ver David N. Stamos, "Popper, Falsifiability, and Evolutionary Biology". Biology
and Philosophy 11 (1996), p. 161-91.
44 A Devils Chaplain, p. 81. Dawkins sugere ser possível isolar um "núcleo
darwinista" que seria relativamente resistente a esse tipo de erosão histórica.
45 Em geral se considera que a obra que incitou isso foi a de Alan G. Gross, The
Rhetoric of Science. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1990; segunda
edição, 1996. Para algumas reflexões sobre as implicações desse ponto, ver Gillian
Beer, Darwins Plots: Evolutionary Narrative in Darwin, George Eliot, and
Nineteenth-Century Fiction, 2a ed. Cambridge: Cambridge University Press,
2000.
46 Daniel C. Dennett, Darwins Dangerous Idea: Evolution andtheMeaningofLife.
Nova York: Simon & Schuster, 1995, p. 471.
47 Simon Hattenstone. "Darwins Child". Guardian, 10 de fevereiro de 2003.
48 Richard Dawkins, "Selective Pecking in the Domestic Chick". Tese de doutorado,
Oxford University, 1966.
49 Ver W. R. Miller & C. E. Thoreson, "Spirituality, Religion and Health: An
Emerging Research Field". American Psychologist58 (2003), p. 24-35.
50 A visão da "religião como patologia" tem origem em grande parte dos estudos
pseudocientíficos de Sigmund Freud: ver Frederick Crews (ed.), Unauthorized
Freud: Doubters Confronta Legend. Nova York: Penguin Books, 1998. Sobre o
crescente reconhecimento do positivo impacto pessoal e social da fé, ver Rodney
Stark, For the GloryofGod-.HowMonotheismLedtoReformations, Science, Witch-
Hunts, andtheEndof Slavery. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2003.
51 Por exemplo, ver Harold G. Koenig & Harvey J. Cohen, The Link between
Religion and Health: Psychoneuroimmunology andthe Faith Factor. Oxford: Oxford
University Press, 2001; A. J. Weaver, L. T. Flannelly, J. Garbarino, C. R. Figley
& K. J. Flannelly, "A Systematic Review of Research on Religion and Spirituality
in the Journal ofTraumatic Stress, 1990-99". Mental Health, Religion andCulture
6 (2003), p. 215-28.
^2 Koenig & Cohen. The Link between Reiigion and Health, p. 101.
53 Citado em Kim A. McDonald. "Oxford U. Professor Preaches Darwinian
Evolution to Skeptics". ChronicleofHigherEducation, 29 de novembro de 1996.
HA Devils Chaplain, p. 185.
55 A DeviVs Chaplain, p. 128-45.
56 Discurso de agradecimento ao ser premiado com oTempleton Prize for Progress
in Religion, de 2000; republicado em The Tablet (20 de maio de 2000), p. 234.
57StéphaneCourtois, The Black Book of Communism: Crimes, Terror, Repression.
Cambridge, MA: Harvard University Press, 1999.
58 Para detalhes, ver Alister McGrath, The TwilightofAtheism: The Rise and Fali of
Disbeliefin the Modem World. Nova York: Doubleday, 2004.
59 Louis Frederick Fieser & Mary Fieser, Advanced Organic Chemistry. Londres:
Chapman & Hall, 1968.
60 A Devils Chaplain, p. 243-5.
Darwinismo cultural?
A curiosa "ciência" da
memética
O darwinismo é uma teoria demasiado grande para ser limitada
ao campo da biologia. Por que restringir o darwinismo ao mundo
do gene, quando está carregado de significado para cada aspecto da
vida e pensamento humano? Em O gene egoísta (1976), Dawkins
explica que por muito tempo esteve interessado na analogia entre
informação cultural e genética. A teoria darwinista não poderia ser
aplicada à cultura humana, tanto quanto ao mundo da biologia?
Esse movimento intelectual dá a base para converter o darwinismo
de uma teoria científica para uma visão de mundo, uma
metanarra-tiva, uma visão abrangente da realidade.
A proposição, no entanto, exige um equivalente cultural ao gene
— um "replicador cultural", que garanta a transmissão da informação
no tempo e no espaço. Se o conceito de um replicador cultural pudesse
ser estabelecido numa base científica sólida, o darwinismo seria transformado
num método universal, indo além do domínio específico
da evolução biológica para incluir o mundo da cultura.1
Dawkins faz parte de uma longa tradição dos que tentam aplicar
a teoria da evolução à cultura humana, inclusive Herbert
Spen-cer no século XIX e E. O. Wilson no XX. O psicólogo
evolucionista Donald T. Campbell (1916-96) desenvolveu a idéia
de um "replicador cultural" já em 1960,2 e introduziu o termo
"mnemone".3 A idéia relacionada da "culturgen" encontrou
particular aceitação na sociobiologia norte-americana.4
Embora a noção de um replicador cultural estivesse longe de
ser novidade, Dawkins fez o máximo para popularizar o conceito e
torná-lo acessível a um público mais amplo por meio de sua terminologia
e exemplos simples. Sobretudo, introduziu o termo que
passou a dominar a discussão pública do assunto — o "meme". Em
parte, o grande sucesso desse termo se deve à terminologia mais
elegante e memorável que Dawkins desenvolveu. Mas, outro fator
foi o grande alcance popular de seus textos, que possibilitou a um
amplo público leitor conscientizar-se do potencial das analogias
essencialmente biológicas para o desenvolvimento cultural. Como
resultado, a obra de Dawkins gerou uma considerável discussão
popular.5
Neste capítulo, analisaremos a contribuição central de Dawkins
para uma explicação darwinista da evolução da cultura humana
—-uma concepção específica do replicador cultural que ele chamou
de "meme". Desde o início, Dawkins associou sua idéia de "meme"
às questões de crença religiosa, referindo-se às religiões como
"principais exemplos de memes".6 Por isso, é evidentemente
importante explorar o conceito neste livro, situando-o dentro do
amplo espectro das recentes críticas ateístas às crenças religiosas.
Uma série de escritores — inclusive Karl Marx (1818-83) e
Sig-mund Freud (1856-1939) — argumentaram que, visto não
existir nenhum Deus em quem acreditar, a crença religiosa
humana é em essência uma invenção destinada a proporcionar
um "conforto metafísico" (Nietzsche) para uma humanidade
existencialmente sitiada.7 Dawkins desenvolve essa perspectiva em
uma nova direção, afirmando que as religiões são basicamente
"vírus da mente". A crença em Deus deve ser vista como uma
"informação auto-repli-cada" que "pula, de maneira infecciosa, de
cérebro em cérebro". É uma idéia que Dawkins considera tanto
academicamente atraente quanto humanamente repulsiva,8 e que
passou a descrever de forma proeminente em recentes textos
ateístas polêmicos bem conhecidos. Mas isso está correto?
A seguir, explorarei as origens do conceito do "meme" por
Dawkins, expondo quatro objeçÕes essenciais que confrontam essa
idéia específica; antes de passarmos a considerar a idéia seguinte de
Dawkins de que Deus é um parasitário "vírus da mente". Essas
ob-jeções podem ser resumidas da seguinte forma:
• Não existe razão para supor que a evolução cultural seja darwinista,
ou que de fato a biologia evolutiva tenha algum valor particular
na explicação do desenvolvimento das idéias.
• Não existe prova direta para a existência dos próprios "menies".
• A justificativa para a existência do "meme" encontra-se na suposição
questionável de uma analogia direta com o gene, que se mostra
incapaz de sustentar o peso teórico que é colocado sobre ele.
• Não existe razão necessária para propor a existência de um "meme"
como uma idéia explicativa. Os dados observacionais podem
perfeitamente ser explicados por outros modelos e mecanismos.
Voltaremos a considerar isso mais demoradamente depois de analisarmos
como surgiu a noção de "meme".
As origens do meme
Em um artigo importante de 1968, expandido em 1975, o
antropólogo F. T. Cloak propôs que a cultura evoluía por um
mecanismo essencialmente darwinista, e estabeleceu como os métodos
etológicos poderiam ser aplicados ao comportamento de uma
cultura específica.9 A questão se é possível identificar e estudar os
replicadores culturais, diretamente em analogia com os genes, tinha
sido, portanto, levantada antes que Dawkins publicasse O gene egoísta.
Evidentemente, o modelo de Cloak foi importante para Dawkins
quando escreveu O gene egoísta. Cloak fez uma distinção entre
"i-cultura" (o conjunto de informações culturais contidas no sistema
nervoso) e "m-cultura" (as relações nas estruturas materiais que
são mantidas por tais informações, ou mudanças nas estruturas
materiais que ocorrem como resultado dessas informações).
Dawkins recorda, como queria um termo para "replicador cultural"
que soasse como "gene" — enfatizando, assim, a analogia
entre transmissão cultural e genética — e, portanto, propôs
"meme"10 — uma abreviação do termo "mimeme" derivado do
grego mimesis ("imitação"). O meme foi proposto como um replicador
hipotético — "uma unidade de transmissão cultural, ou uma
unidade de imitação"11 — para explicar o processo do desenvolvimento
da cultura dentro de uma estrutura darwinista:
Da mesma maneira que os genes se propagam no conjunto
de genes saltando de corpo em corpo via esperma ou óvulos,
também os memes se propagam no conjunto de memes saltando
de cérebro em cérebro por um processo que, no sentido
amplo do termo, pode ser chamado de imitação.
Como exemplos do que tem em mente, Dawkins aponta coisas
como melodias, idéias, frases captadas, costumes, aspectos de arquitetura,
músicas — e Deus.
No entanto, existe um problema com esta definição de meme.
Na explicação que Dawkins faz da síntese neodarwinista, o gene é
que constitui a unidade de seleção, embora seja o fenótipo que está,
de fato, sujeito ao processo de seleção. O gene é o replicador, ou o
conjunto de informações; o fenótipo é a manifestação física do
organismo, as características ou comportamentos visíveis que são o
resultado daquele conjunto de informações. Entretanto, todos os
exemplos de "memes" que Dawkins oferece em O gene egoísta são
o resultado de tais informações, não das informações em si.12 Embora
Dawkins tenha proposto uma analogia entre meme e gene, na verdade
exemplificou isso recorrendo ao equivalente cultural de
fenóti-pos, não de genes. A sugestão de Dawkins de um paralelo
entre a propagação de genes no conjunto de genes e memes em
um (hipotético) conjunto de memes não foi, deste modo,
totalmente justificada.
Dawkins reconheceu esse problema e modificou tais idéias em
sua obra seguinte, mais popular — The Extended Phenotype [O
fenótipo estendido] (1982). A sua proposta original do meme,
admitiu ele, era falha; exigia correção.
Eu estava insuficientemente esclarecido sobre a diferença entre
o meme em si, como replicador e, por outro lado, de seus
"efeitos fenotípicos" ou "produtos do meme". Um meme deveria
ser considerado como uma unidade de informação que
reside num cérebro (a "i-cultura de Cloak). Ele possui uma
estrutura definida, percebida dentro de qualquer meio que o
cérebro usa para armazenar informação (...) Assim ocorre para
distingui-lo dos efeitos fenotípicos, que são suas conseqüências
no mundo exterior (a "m-cultura de Cloak).13
Esse esclarecimento subtraiu um problema fundamental com
o conceito de meme. Em qualquer explicação neodarwinista padrão,
os genes dão origem a fenótipos. Não há possibilidade de causa
fenotípica de propriedades genéticas. Em poucas palavras: os genes
são selecionados, não ordenados}'1 Dawkins, que vigorosamente
defende este "dogma central" da ortodoxia darwinista, colocou-se
numa posição potencialmente indefensável, com isso ele parecia
sugerir que os fenótipos é que eram herdados.
A nova definição de meme o identifica como a unidade fundamental
de informação ou instrução que dá origem aos artefatos e
idéias culturais. É o conjunto de informações, o projeto, não o
produto. O que Dawkins originalmente definiu como memes —
coisas como "melodias contagiosas" — agora serão consideradas
"produtos do meme". No plano popular, porém, o conceito de
meme de Dawkins continua sendo discutido em termos de sua
definição de 1976, estabelecido em O gene egoísta; em vez de sua
revisão de 1982, conforme apresentado no, um pouco menos lido,
The Extended Phenotype [O fenótipo estendido].
Então, qual é a relevância disso para Deus? Dawkins é um ateu
e incorretamente acredita que a fé religiosa é uma "confiança cega",
que recusa levar em conta a evidência. Logo, por que as pessoas
acreditam em Deus, quando não existe Deus para acreditar? A resposta
proposta por Dawkins repousa na possibilidade de um "memeDeus"
de se reproduzir na mente humana. O "meme-Deus" opera
particularmente bem porque tem "grande valor de sobrevivência,
ou poder de contaminação, no ambiente proporcionado pela cultura
humana".15 As pessoas não crêem em Deus porque lhes foi
possível uma longa e cuidadosa reflexão sobre o assunto, elas o
fazem porque foram infectadas por um meme poderoso. (Essa idéia
seria desenvolvida posteriormente em termos da imagem de Deus
como um vírus). Em ambos os casos, a intenção e resultado é uma
subversão da legitimidade intelectual da crença em Deus. O
meme-Deus ou vírus-Deus serve apenas para infectar as pessoas.
O mesmo, naturalmente, seria do mesmo modo válido para
um meme-"ateu". Dawkins não aborda, com base em sua perspectiva
memética, o modo como o ateísmo se difunde, presumivelmente
devido à sua crença central de que o ateísmo é cientificamente
correto. Na verdade, ele é em si uma crença, que requer explicação.
O modelo de Dawkins na realidade exige que tanto o ateísmo quanto
a crença em Deus sejam vistos como conseqüências meméticas. Elas
são, portanto, igualmente válidas — ou igualmente inválidas, nesse
sentido.
O problema de tal perspectiva fica imediatamente óbvio. Se todas
as idéias são memes, ou conseqüências dos memes,16 Dawkins
fica, decididamente, na incômoda posição de ter que admitir que
suas próprias idéias também precisam ser reconhecidas como conseqüências
dos memes. As idéias científicas se tornariam, deste modo,
mais um exemplo de memes se reproduzindo dentro da mente
humana. Isso não se ajustaria absolutamente aos propósitos de
Dawkins e ele exclui a noção de uma maneira intrigante:
As idéias científicas, como todos os memes, estão sujeitas a um
tipo de seleção natural, e, nisso, poderiam se assemelhar, à
primeira vista, a um vírus. Mas as forças seletivas que examinam
a fundo as idéias científicas não são arbitrárias ou caprichosas.
São regras exatas, bem afiadas, não estando a serviço de
comportamento egoísta e sem sentido.17
Isso representa um exemplo de falácia, na qual Dawkins faz uma
tentativa malsucedida de fugir da armadilha de fazer referência a si
mesmo. Qualquer um que tenha familiaridade com a história intelectual,
reconhece imediatamente o padrão. O dogma de todos
está errado, exceto o meu. Minhas idéias são isentas dos padrões
gerais que identifico em outras idéias, as quais me permitem explicá-
las de outro modo, renunciando a mim mesmo para dominar
o campo.
Mas por que afinal, estar em conformidade com critérios científicos
permitiria determinar se um meme é "bom" ou "útil"? Em
qualquer leitura convencional das coisas, um "meme bom" ou "útil"
seria aquele que pudesse promover harmonia, que desse a alguém
um sentimento de pertencimento, ou que aumentasse a expectativa
de vida. Esses pareceriam critérios mais naturais e óbvios para os
memes "bons". Mas numa reflexão posterior, a verdade vem à tona.
Não existem, de maneira alguma, "critérios naturais" envolvidos.
Decidimos se gostamos deles ou não, e então rotulamos os memes,
respectivamente. Se você gostar de religião, é um "meme bom"; se
não, é "ruim". No fim, tudo o que Dawkins faz aqui é construir
um argumento completamente circular, refletindo o seu próprio
sistema subjetivo de valores.
Voltaremos a isso, ainda neste capítulo, para analisar a idéia de
"Deus como um vírus". Mas primeiro, devemos mostrar as quatro
objeções, já mencionadas, que levaram muitos a abandonar o
"meme" como uma ferramenta séria de pesquisa científica. Conforme
demonstrado por Simon Conway Morris, os memes não
têm lugar na reflexão científica séria:
Os memes são triviais, podendo ser banidos por simples exercícios
mentais. Em qualquer contexto mais amplo, são absolutamente,
se não risivelmente, simplistas. Invocar os memes
revela não somente uma estranha imprecisão de pensamento,
mas, como observou Anthony O'Hear; se os memes realmente
existissem, no final das contas, negariam a realidade do pensamento
refletivo.18
O desenvolvimento cultural é darwinista?
Meu próprio interesse na história intelectual se desenvolveu
mais ou menos ao mesmo tempo em que Dawkins pela primeira
vez estabeleceu a teoria do "meme". Quando me deparei com a
idéia do "meme" pela primeira vez em 1977, achei-a imensamente
instigante. Ali estava algo potencialmente aberto a uma investigação
rigorosa com base na evidência, oferecendo novas possibilidades
para o estudo do desenvolvimento intelectual e cultural. Por que
fiquei tão otimista com a idéia? Eu estava em vias de dar início ao
que viria a ser uma de minhas preocupações por toda a vida: a história
das idéias. Meu interesse particular estava em como as idéias religiosas
se desenvolvem com o passar do tempo, e os fatores que
levam ao seu desenvolvimento, modificação, aceitação ou rejeição
e — pelo menos em alguns casos — à sua lenta caída no esquecimento.
Conforme eu pensava na época, o "meme" me permitiria criar
e validar modelos sólidos e seguros para o desenvolvimento intelectual
e cultural, firmemente fundamentados na evidência
ob-servacional. Mas, quando iniciei minha pesquisa, fui me
deparando com sérios obstáculos em praticamente cada área da
atividade intelectual que investigava.
O mais importante deles foi minha crescente percepção de que
o próprio darwinismo parecia muito inadequado para responder
pelo desenvolvimento da cultura, ou a forma global da história
intelectual. Quando pesquisei o aumento do ateísmo durante sua
"Idade de Ouro" (1789-1989), fiquei impressionado com a
inten-cionalidade da recuperação contemporânea dos mais antigos
ateís-mos de escritores como Xenofanes ou Lucrécio. Essas idéias
eram deliberadamente reapropriadas. Sua revivificação não
aconteceu simplesmente; fez-se com que acontecesse para se alcançar
um objetivo específico. O processo era fortemente teleológico,
guiado precisamente pelo propósito e intencionalidade que a
ortodoxia darwinista excluía do processo evolutivo.
O mesmo ponto pode ser visto no advento do Renascimento,
amplamente considerado um dos desenvolvimentos mais notáveis
na história da cultura ocidental. Suas origens encontram-se na Itália
do século XIII, embora seu florescimento pleno tenha acontecido
nos dois séculos seguintes.19 O movimento se expandiu da Itália
para o norte da Europa, causando relevantes mudanças onde quer
que fosse estabelecido. O impacto cultural do movimento foi imenso
— por exemplo, o estilo gótico de sua arquitetura abriu caminho
ao estilo clássico, causando um impacto significativo nas paisagens
urbanas européias ocidentais.20
Mas por qual motivo isto aconteceu? Que explicação pode ser
dada para este radical e altamente criativo redirecionamento da cultura
européia naquele momento? Uma vez que as origens e o desenvolvimento
do movimento são tão bem conhecidos, ele
representa um exemplo ideal — na verdade, até mesmo crítico —
para o apelo da teoria do meme.
Desde a obra pioneira de P. O. Kristeller tem-se aceito amplamente
que a base fundamental do Renascimento é a reapropriação
crítica da cultura da Roma antiga (e, em menor extensão, de Atenas).
21 Talvez estimulado pela presença de resquícios da civilização
clássica na Itália, os teóricos do Renascimento defenderam a recuperação
do rico patrimônio cultural do passado — o latim elegante
de Cícero; a eloqüência da retórica clássica; o esplendor da arquitetura
clássica; as filosofias de Platão e Aristóteles; os ideais políticos
republicanos que inspiraram a constituição romana.22 Os escritores
do Renascimento estabeleceram de forma deliberada e sistemática a
adoção desses princípios e os aplicaram à própria condição.
É um quadro fascinante e complexo que continua deleitando
uma nova geração de estudiosos. Mas, de fato, traz à tona algumas
sérias dificuldades para teoria de Dawkins. As origens, o desenvolvimento
e a transmissão do humanismo renascentista — embora
sujeitos ao acaso inevitável da história — era deliberado, intencional
e planejado. Se o darwinismo fala sobre copiar as instruções
(genóti-po), o lamarckismo fala sobre copiar o produto (fenótipo).
Pareceria
então que Lamarck, em vez de Darwin, oferece a melhor explicação
da evolução cultural.
Os padrões de desenvolvimento que encontrei na história do
Renascimento — e, devo acrescentar, na maior parte dos outros
fenômenos intelectuais e culturais que estudei — são o da mistura
de memes, e um padrão claro de causalidade intelectual que nos
forçam a usar uma interpretação lamarckiana do processo evolutivo,
em vez de neodarwinista, — supondo, naturalmente que, a
biologia evolutiva tem alguma relevância para o desenvolvimento
da cultura, ou para a história das idéias. O uso de termos como
"dar-winismo" e "lamarckianismo" para descrever o desenvolvimento
cultural pode simplesmente ser um completo equívoco, sugerindo
uma analogia fundamental onde nada — a não ser a passagem do
tempo e a observação da mudança — existe de fato.
Dawkins parece estar ciente de problemas desse tipo. Considere
estes comentários de advertência de 1982:
Os memes podem se misturar parcialmente entre si de um
modo que os genes não podem. Novas "mutações" podem ser
"controladas" em vez do aleatório em relação às propriedades
evolutivas. O equivalente do weismannismo é menos rígido
para os memes do que para os genes; pode haver cursores
lamarckianos causais no sentido do fenótipo para o
replica-dor, bem como no sentido oposto. Essas diferenças
podem se provar suficientes para tornar a analogia com a
seleção genética inútil, ou positivamente equivocada.23
Penso que este é um julgamento justo. Se a evidência observacional
nos obrigasse a concluir que a evolução cultural ou o desenvolvimento
de idéias aconteceu de uma maneira darwinista, então seria
o fim do debate. Mas o modelo é singularmente desobrigatório,
talvez porque seja especialmente impróprio. A evolução biológica e
cultural pode ter os seus pontos de semelhança; no entanto, parecem
proceder de mecanismos bastante diferentes.
Os memes realmente existem?
A segunda dificuldade com a idéia de meme é que ela é inadequadamente
fundamentada na evidência. Em seu prefácio para The
Meme Machine (A máquina de meme) de Susan Blackmore (1999),
Dawkins mostra os problemas que o "meme" enfrenta para ser levado
com seriedade dentro da comunidade científica:
Outra objeção é que ainda não sabemos do que os memes são
feitos, ou onde residem. Os memes ainda não encontraram
os seus Watson e Crick; falta-lhes até mesmo o seu Mendel.
Enquanto os genes são encontrados em locais exatos nos cromossomos,
os memes presumivelmente existem no cérebro, e
temos ainda menos chance de ver um meme do que, um
gene (embora o neurobiólogo Juan Delius tenha levantado
hipóteses sobre qual seria a aparência de um meme).24
Ao falar sobre os memes Dawkins é como os crentes que falam
sobre Deus — um postulado invisível, inverificável que ajuda a
explicar algumas coisas sobre a experiência, mas no final das contas
encontra-se além da investigação empírica.
E o que devemos fazer exatamente quanto ao fato de o neurobiólogo
Juan Delius ter descrito a sua hipótese do que um meme
poderia parecer? Eu já vi incontáveis descrições de Deus em muitas
visitas às galerias de arte. E isso confirma o conceito? Ou o torna
cientificamente plausível? A proposta de Delius de que um meme
teria uma estrutura única localizável e observável como "uma constelação
de sinapses neuronais ativadas" é puramente conjetural, e ainda
precisa passar pelo escrutínio de uma investigação empírica.25 É
uma coisa para especular sobre o que algo poderia parecer; a verdadeira
questão é se isso existe de algum modo.
Em 1993 Dawkins estabeleceu a essência do que constituía
uma perspectiva "científica": "possibilidade de exame, suporte na
evidência, precisão, quantificação, consistência, intersubjetividade,
repetitividade, universalidade, progressividade, independência de
ambiente cultural, e assim por diante".26 Então, onde está o suporte
na evidência para os memes? Na análise quantitativa? Na formulação
de critérios pelo qual o meme pode ser confirmado ou eliminado
enquanto uma idéia útil? Aguardamos esclarecimentos.
O evidente contraste com o gene é óbvio. Os genes podem ser
"vistos" e seus padrões de transmissão estudados sob condições
empíricas rigorosas. O que começou como idéias hipotéticas deduzidas
da experiência e observação sistemáticas, acabou sendo ele próprio
observado. O gene era visto inicialmente como uma necessidade
teórica, visto que nenhum outro mecanismo poderia explicar as
observações correspondentes, antes de ser aceito como uma entidade
real por conta do claro peso da evidência. Mas e os memes? A questão
pura e simples é que eles são, em primeiro lugar, idéias hipotéticas,
deduzidas a partir da observação em vez de observados em si mesmos;
em segundo lugar, inobserváveis; e em terceiro lugar, são mais
ou menos ineficazes no plano explicativo. Isso torna a sua investigação
rigorosa intensamente problemática, e o proveito de sua aplicação
um pouco improvável.
Um gene é uma entidade observável bem definida nos planos
biológico, químico e físico. Biologicamente, o gene é uma porção
distinta de um cromossomo; quimicamente, consiste em DNA;
fisicamente, consiste numa dupla-hélice, com uma sucessão de núcleotídeos
representando um "código genético", que pode ser lido e
interpretado. Ainda que os genes nunca fossem observados, continuariam
a ser considerados uma excelente explicação teórica do
que pode ser observado.
A situação com os memes é bastante diferente. O que são
memes? Onde eles se localizam? Como podem ser descritos em
termos biológicos, químicos e físicos? Se não fossem propostos,
nossa compreensão do desenvolvimento cultural e da história das
idéias não seria prejudicada. O meme é simplesmente um figurante
opcional, um complemento desnecessário para a gama de mecanismos
teóricos propostos para explicar o desenvolvimento da cultura.
Ele pode ser abandonado sem problema pelos teóricos da cultura.
E o que dizer do mecanismo pelo qual os memes são supostamente
transmitidos? Uma das implicações mais importantes da
descoberta da estrutura do DNA foi que ele abriu caminho para uma
compreensão do mecanismo da replicação. Então, qual mecanismo
físico é proposto no caso do meme? Como um meme causa um
efeito memético? Ou, colocando a questão de uma forma mais
contundente: por onde deveríamos começar se fossemos fazer experiências
para identificar e estabelecer a estrutura dos memes, sem
dizer explorar a sua relação com os alegados efeitos meméticos?
Ora, se a memética fosse uma legítima ciência baseada na evidência,
comparável à genética, não haveria qualquer dificuldade específica.
Poderia ser argumentado que o pesquisador memeticista
da evolução cultural estaria numa situação semelhante à de Darwin
nos anos de 1850 — observando padrões que parecem exigir algum
tipo de transmissão de características herdadas, embora ele
não tivesse nenhuma explicação para tal mecanismo. No entanto,
não vejo qualquer razão para sugerir que a memética oferece sequer
uma descrição plausível, para não dizer uma explicação, da evolução
da cultura humana. Enquanto Darwin acumulou uma grande quantidade
de evidência observacional era favor de suas teorias, a memética
ainda precisa fazer muitos avanços significativos nessa frente. Sem
nenhuma surpresa, a sua plausibilidade está em decadência.
Uma vez que o meme não é autorizado cientificamente, devemos
concluir que existe um meme para a fé nos próprios memes.27 O
conceito de meme morre a morte lenta da auto-referencialidade;
nisso, se levado a sério, a idéia explica a si mesma tanto quanto a
qualquer outra coisa. E enquanto as qualificações aumentam, o
conceito perde sua plausibilidade. E como acrescentar mais e mais
epiciclos ao modelo ptolemaico do sistema solar. O que certa vez
foi uma idéia brilhante, clara, torna-se imensamente incômoda, seu
brilho inicial vai enfraquecendo cada vez que se adiciona um argumento
qualificativo em sua defesa.
A analogia deficiente entre gene e meme
O argumento de Dawkins para a existência e função do meme
se baseia numa analogia proposta entre a evolução biológica e cultural.
A sua suposição implícita parece ser que, como a transmissão
da cultura e a transmissão dos genes são processos análogos, os conceitos
e métodos bem-desenvolvidos do neodarwinismo podem
responder por ambas. O argumento pode ser dividido como segue:
A evolução biológica exige um replicador, agora sabido existir de
fato, ou seja, o gene. Assim, por analogia:
Evolução cultural também exige um replicador, que hipoteticamente
seria o meme.
É um movimento corajoso e ousado. Mas está correto? Essa analogia
realmente funciona? Qual é a evidência sólida, observacional
para os memes, que nos levaria a aceitar este conceito hipotético
como um meio necessário e efetivo para explicar o desenvolvimento
cultural?
Como se demonstra com freqüência, a argumentação por analogia
é um elemento essencial do raciocínio científico.28 A percepção
de uma analogia entre A e B é freqüentemente o ponto de
partida para novas linhas de investigação, abrindo fronteiras novas
e estimulantes. Mas, essa mesma percepção muitas vezes leva a becos
científicos sem saída, inclusive as idéias há muito abandonadas
do "calorífico" e "flogístico". Conforme Mario Bunge demonstra,
as analogias têm uma tendência marcante a ser enganosa nas ciências.
29 Então, seria a analogia postulada entre gene e meme verdadeira,
em primeiro lugar, e em segundo efetiva?.
Vamos começar analisando se a analogia tem algum fundamento
na realidade. A análise e o teste dos limites das analogias
científicas são um aspecto importante e legítimo do método científico.
Em O relojoeiro cego, Dawkins faz uma discussão eloqüente
sobre como a ciência muitas vezes avança investigando se uma possível
analogia pode apontar para algo mais profundo:
Alguns dos maiores avanços na ciência ocorreram porque alguém
inteligente descobriu uma analogia entre um assunto
que já era compreendido e outro assunto ainda misterioso. O
truque é encontrar um equilíbrio entre o analogismo indiscriminado,
por um lado, e uma cegueira estéril para as analogias
efetivas, por outro.30
As analogias nem sempre são enganadoras. O problema é saber quais
são efetivas e quais são becos sem saída. Ao propor o meme, Dawkins
estava explorando uma analogia potencialmente relevante entre
evolução biológica e cultural, propondo um processo ou mecanismo
analógico para responder por isso. Ele não foi o primeiro a
fazê-lo, mas o comunicou com particular habilidade.
Exatamente o mesmo processo de explorar analogias pode ser
visto em As origens das espécies de Darwin. Darwin percebeu o que
parecia ser uma analogia entre o modo como os animais eram criados
para melhorar certas características desejáveis, e o modo como a
natureza parecia provocar mudanças. Ele propôs a idéia da "seleção
natural" como um mecanismo dentro da ordem natural, análogo à
"seleção artificial" da indústria de criação animal.31 Essa analogia se
mostrou altamente eficiente, mas como a história da ciência demonstra,
há limites significativos para uma argumentação analógica deste
tipo.
Lembra-se do éter? Para muitos físicos do século XIX som e
luz pareciam análogos. Pareciam se comportar de modo muito semelhante.
Ambos eram conhecidos como formas de ondas, cuja
velocidade e comprimento podiam ser determinados com alto grau
de precisão. E como a propagação do som exigia um meio — como
ar ou água — então o mesmo tinha que ser igualmente verdade
para a luz. O termo "éter" foi usado para designar este meio misterioso
pelo qual a luz e outra radiação eletromagnética viajavam.
O experimento Michelson-Morley, de 1887, propôs explorar
as propriedades do "éter luminífero" — ou seja, o meio pelo qual
se acreditava que a luz viajava. Como resultado da experiência,
Michelson e Morley chegaram à notável conclusão que "o éter permanece
em repouso em relação à superfície da terra".32 Este resultado
enigmático teve várias implicações possíveis. Uma delas era que
não havia "éter luminífero", em primeiro lugar. A analogia com
som, simplesmente, fora forçada demais.
Por volta dos anos vinte, o mundo científico tinha finalmente
chegado à conclusão que a luz não era igual ao som. Havia semelhanças,
paralelos e convergências inquestionáveis — mas tinham
sido superinterpretados, e permitiram criar a impressão de que duas
entidades diferentes eram análogas. Ainda que luz e som de fato se
comportassem de maneiras bem parecidas em muitos contextos,
tratavam-se de coisas completamente diferentes. A luz não precisava
de nenhum meio; poderia viajar num vácuo.
É uma história bem conhecida, e sua moral é perfeitamente clara:
as analogias podem ser perigosamente enganadoras. O argumento a
partir da analogia se mostrou equivocado ali — como tinha sido
equivocado em tantos outros casos. A teoria do quantum é um excelente
exemplo de uma matéria científica complicada por problemas
surgidos do mau uso de analogias.33 Quando passamos do mundo
relativamente bem definido da física para o caos da cultura humana,
as analogias não raro adquirem vida própria, fora do controle das
rígidas exigências de argumentação baseada na evidência.
O primeiro caso de certo fator físico para a transmissão de
informação hereditária — hoje conhecido como "gene" — foi
baseado na demonstração mendeliana da precisão de tal transmissão,
e o fato patente de que não havia outro meio pelo qual essas
informações pudessem ser armazenadas, transmitidas e recuperadas.
O caso da evolução cultural é completamente diferente. Todas
as culturas humanas possuem meios pelos quais é possível transmitir
informações dentro das populações existentes e para as futuras
gerações — como livros, rituais, instituições e tradições orais.34 A
noção de um "meme" é funcionalmente desnecessária, forçando
seus defensores a criar um exemplo por analogia com o gene —
contudo, para subestimar os parâmetros biológicos, químicos e físicos
empiricamente determinados do gene, que são agora um aspecto
essencial da genética molecular. A plausibilidade do meme é assim
fundamentada num argumento analógico questionável, não
na evidência e observação contundentes.
Precisamos claramente do equivalente memético do experimento
Michelson-Morley — algo que determinará, através da investigação
empírica, em vez de uma argumentação analógica questionável,
se os memes existem. O estágio atual da pesquisa sugere categoricamente
que os memes são o novo éter — uma hipótese desnecessária
que simplesmente aguarda para ser eliminada.35 O "meme pelos
memes" pode ter uma grande capacidade de sobrevivência e transmissão
— mas nada significa no mundo real. Na realidade, em
ambos os casos, ele parece ser inconvenientemente semelhante ao
meme-Deus de Dawkins.
A redundância do meme
Talvez a crítica mais relevante do conceito de "meme" seja que
o estudo do desenvolvimento cultural e intelectual segue perfeitamente
bem sem ele. Os modelos econômicos e físicos — especialmente
transferência de informações — provaram seu valor nesse
contexto. O contraste entre meme e gene é, mais uma vez, penosamente
óbvio: o gene teve que ser postulado, quando simplesmente
não havia outro modo de explicar a evidência observacional relativa
aos padrões de transmissão das características herdadas. O meme é
explicativamente redundante.
Os modelos econômicos que trabalham com idéias como "informação
em cascatas" ou produtos duradouros são muito mais
persuasivos e úteis do que o duvidoso conceito de meme.36 Estes
modelos incorporam os temas da "competição" e "extinção" da teoria
de Darwin, sem necessariamente endossar suas teorias sobre as
origens das inovações. Por exemplo, uma teoria econômica "de
novidades" é consideravelmente mais convincente como explicação
de adoção e dispersão de padrões de pensamento, do que o meme
de Dawkins.37 A evolução cultural e o desenvolvimento intelectual
podem muitas vezes ser mais bem entendidos em termos de um
análogo físico, em vez de biológico — como a transmissão de informação
em redes fortuitas.38 No entanto, Dawkins desconsidera
essas importantes alternativas teóricas ao avaliar a sua hipótese de
meme.
O meme ainda não está completamente morto. As declarações
meméticas canônicas de Dawkins têm sido apoiadas em duas recentes
importantes publicações — O Darwins Dangerous Idea (A
idéia perigosa de Darwin) (1995), de Daniel Dennett, e a The Meme
Machine (A máquina de meme) (1999), de Susan Blackmore. Apesar
disso, o conceito do meme permanece tão vago e tão
empirica-mente indeterminado que não existe meio pelo qual
possa ser verificado ou refutado. Em todo caso, o que ele propõe
"explicar" pode ser exposto por outros modelos. Exatamente quais
outros fenômenos misteriosos são explicados através dos memes?
Dawkins é modesto sobre especificidades aqui, expondo ainda
mais o contraste evidente entre isso e a sua brilhante defesa baseada
na evidência do seu conceito do "gene egoísta".
Apesar de que até hoje, um quarto de século mais tarde, a "ciência"
memética ainda não conseguiu gerar um programa de pesquisa
produtivo na ciência cognitiva, sociologia ou história intelectual correntes.
Com base na evidência disponível, só posso concordar com a
demolidora crítica da noção, feita por Martin Gardner, publicada no
Los Angeles Times:
Um meme é tão amplamente definido por seus proponentes
como um conceito inútil, que cria mais confusão do que ilumina.
Predigo que o conceito logo será esquecido como uma
curiosa excentricidade lingüística sem valor. Para os críticos,
que no momento muito excedem em número os verdadeiros
crentes, a memética não passa de uma terminologia incômoda
para dizer o que todos já sabem e que pode ser dito de maneira
mais proveitosa na tediosa terminologia da transferência
de informação.39
Sem nenhuma surpresa, o próprio Dawkins tem progredido,
se distanciando de qualquer sugestão que tenha oferecido do conceito
de meme em geral como uma explicação da cultura humana.40
Conforme Daniel Dennett expõe, nos últimos tempos Dawkins "suavizou
um pouco".41 Ele recuou em seu otimismo inicial e deu a
entender que a hipótese do meme era simplesmente uma útil analogia.
Dennett sugere que Dawkins foi forçado a retroagir aqui porque
foi visto como tendo se tornado um sociobiólogo.42 Acredito que
isso se deva mais a uma crescente percepção da forte
subdetermi-naçao de evidências da tese. O conceito de meme era
redundante ou errado — e muito possivelmente ambos.
Deus como um vírus?
Persistente, Dawkins desenvolveu o seu conceito de meme em
outra direção — um vírus da mente. Os "memes", Dawkins nos
diz, podem ser transmitidos "como um vírus numa epidemia".43
Embora a conexão entre um "meme" e um "vírus da mente" não
seja explicada com a precisão que poderíamos esperar, está claro
que, para Dawkins, o tema fundamental em cada caso é replicação.
Pois um vírus para ser eficaz, tem que possuir duas qualidades: a
capacidade de reproduzir informação com precisão, e obedecer a
instruções que são codificadas na informação assim reproduzidas.44
Entretanto, também há uma prestidigitação verbal em ação
aqui, um dispositivo retórico que é apresentado aparentemente como
se fosse ciência boa. Como todos sabem, vírus são coisas ruins; são
contagiosos, entidades parasitárias que exploram seus hospedeiros.
O "argumento" retoricamente carregado de que Deus é um vírus
resume-se a pouco mais que uma insinuação velada, em vez de um
rigoroso raciocínio com base na evidência. A crença em Deus é proposta
como uma infecção maligna que contamina as mentes puras.
Entretanto, toda a idéia sucumbe diante da ausência de evidência
experimental, da subjetividade dos juízos de valores pessoais de
Dawkins, comprometido com a avaliação do que é "bom" e do
que é "ruim", e da circularidade da auto-referencialidade.
Então qual é exatamente a evidência experimental de que Deus
é ruim para você? Dawkins supõe que é publicamente aceito dentro
da comunidade científica que a religião debilita as pessoas, reduzindo
o seu potencial de sobrevivência e saúde. Mas, recentes pesquisas
empíricas apontam para uma interação em geral positiva entre
religião e saúde. E bem sabido que existem tipos patológicos de
crença e comportamento religioso; contudo, isso de modo algum
invalida a avaliação em geral positiva do impacto da religião na
saúde mental que surgem de estudos baseados em evidência.
Dawkins parece supor que seus leitores irão, de preferência de
modo acrítico, compartilhar seus próprios pontos de vista subjetivos
sobre a malignidade da religião, e assim aceitar suas conclusões
espetaculares sem objeção. Mas eles não são fundamentados na análise
rigorosamente baseada na evidência, na observação objetiva do
impacto da religião sobre os indivíduos, que é típico do espírito
científico que tanto Dawkins quanto eu admiramos. Quando,
pode-se perguntar, a ciência popular se encontrará com a pesquisa de
ponta nessa questão?
As implicações desse consenso emergente da hipótese de "Deus
como vírus" são inequívocas. Uma já frágil analogia se torna completamente
insustentável. Se a religião é descrita como tendo um
impacto positivo no bem-estar humano por 79% dos últimos estudos
nesse campo,45 como se pode conceber que seja considerada
análoga a um vírus? Os vírus significam um mal para você. Então
exatamente quantos vírus têm um impacto positivo nos seus hospedeiros?
Longe de ser algo que reduz a estimativa de sobrevivência
de seu hospedeiro, a crença em Deus é um recurso a mais que aumenta
a sobrevivência psíquica.46 Não tenho dúvida de que dentro
da visão de mundo baseada na fé que forma a explicação de Dawkins
da realidade — o ateísmo — Deus deve ter esse tipo de impacto
negativo, prejudicial sobre o bem-estar humano. Mas Deus não é
isso. A evidência simplesmente não se ajusta à teoria.
Além disso, qual é a verdadeira evidência experimental para
este hipotético "vírus da mente?" No mundo real, os vírus não são
conhecidos somente pelos sintomas que causam; eles podem ser
descobertos, sujeitados à rigorosa investigação empírica, e sua estrutura
genética pode ser descrita minuciosamente. Em comparação,
o "vírus da mente" é hipotético; postulado por um argumento
analógico questionável, não é diretamente observável; e é totalmente
injustificado, em termos conceituais, com base no comportamento
que Dawkins propõe para ele. Podemos observar estes vírus?
Qual é a sua estrutura? O seu "código genético"? A sua localização
dentro do corpo humano? E, o mais importante, dado o interesse
de Dawkins na sua expansão, qual é o seu modo de transmissão?
Não existe evidência experimental de que as idéias são vírus. As
idéias podem parecer se comportar "em alguns aspectos" como se
fossem vírus. Mas há uma distância muito grande entre analogia e
identidade — e, como a história da ciência ilustra de forma extremamente
árdua, a maioria dos falsos caminhos da ciência diz respeito a
analogias que foram assumidas de forma equivocada como identidades.
O slogan "Deus como vírus", se tivesse alguma validade científica,
poderia ser resumido a algo como "os padrões de difusão de
idéias religiosas parecem análogos àqueles da disseminação de certas
doenças".
Infelizmente, Dawkins não apresenta, com relação a isso, nenhum
argumento com base em evidência, preferindo conjeturar sobre o
impacto de tal vírus hipotético na mente humana. A ciência simplesmente
não existe. Em todo caso, cada e todo argumento que
Dawkins apresenta em favor de sua idéia de "Deus como vírus da
mente" pode ser contrariado pela proposição da sua contraparte: o
"ateísmo como um vírus da mente". Ambas as idéias são do mesmo
modo não confirmadas e sem sentido.
A metáfora do "contágio do pensamento" foi desenvolvida
completamente por Aaron Lynch,47 que faz a crucialmente importante
observação que o modo pelo qual as idéias se espalham não
tem nenhuma relação necessária com sua validade ou "bondade".
Como Lynch esclarece:
O termo "contágio do pensamento" é neutro com relação à
verdade ou falsidade, bem como bom ou mau. As falsas
crenças podem se espalhar como contágios de pensamento,
mas assim também o podem as verdadeiras crenças. De modo
similar, as idéias prejudiciais podem se espalhar como contágios
de pensamento, mas também o podem as idéias benéficas...
A análise do contágio do pensamento remonta a si mesma,
principalmente com o mecanismo pelo qual as idéias se
espalham numa população. Qualquer que seja essa idéia: verdadeira,
falsa, útil ou danosa, ela é considerada principalmente
pelo efeito que tem na transmissão de valores.48
Nem os conceitos de Dawkins do "meme" ou do "vírus da
mente" —qualquer que seja a sua relação — ajudam-nos de fato a
validar ou negar idéias, a compreender ou explicar padrões de desenvolvimento
cultural. Como a maioria dos trabalhos no campo
do desenvolvimento cultural concluiu, é perfeitamente possível postular
e estudar uma evolução cultural embora permanecendo agnóstico
a seu mecanismo. "Tudo o que precisamos fazer é reconhecer
que a herança cultural existe, e que seus caminhos são diferentes
dos caminhos genéticos".49
E o que isso tem a ver com a idéia de Deus? Bem, não muito,
na verdade. Esse enfoque geral à difusão de idéias pode levar a algumas
descobertas sobre como as crenças se espalham dentro de uma
cultura. Mas não pode nos dizer nada sobre se essa crença é em si
mesma certa ou errada, boa ou ruim. Isto não impedirá as pessoas
de chegar a tais conclusões —- mas essas não são conclusões válidas.
E, certamente, não são conclusões científicas.
1 Joseph Poulshock. "Universal Darwinism and the Potential of Memetics". Quarterly
Review ofBiology 77 (2002), p. 174-5.
2 DonaldT. Campbell, "Blind Variation and Selective Retention in Creative Thought
as in Other Knowledge Processes". PsychologicalReview 67 (1960), p. 380-400.
3 DonaldT. Campbell. "A General 'SelectionTheory as Implemented in Biological
Evolution and in Social Belief-Transmission-with-Modification in Science".
Biology andPhilosophy 3 (1988), p. 413-63.0 termo foi apresentado pela primeira
vez por Campbell, em 1974; esse artigo marca uma exposição posterior da noção.
4 Charles J. Lumsden & Edward O. Wilson. Genes, Mind, and Culture: The
Coevolutionary Process. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1981.
5 Ver, por exemplo, Susan J. Blackmore, The Meme Machine. Oxford: Oxford
University Press, 1999.
6A Devils Chaplain, p. 117.
7 William Lloyd Newell. The Secular Magi: Marx, Freud, and Nietzsche on Religion.
New York: Pilgrim Press, 1986.
sADevil's Chaplain, p. 117.
9 F. T. Cloak. "Is a Cultural Ethology Possible?" Human Ecology 3 (1975), p. 161-
81. Uma versão anterior desse artigo apareceu em Research Previews 15(1968),p.
37-47. Para uma outra perspectiva ver L. L. Cavalli-Sforza, "Cultural Evolution".
American Zoologist 26 (1986), p. 845-55.
10 The Selfish Gene, p. 192. De modo semelhante, foi cunhada a palavra "memética",
eqüivalendo à "genética"; mais uma vez, a intenção era destacar que tanto a
evolução biológica quanto a cultural poderiam responder pelas "unidades de
replicação" ou "unidades de transmissão".
11 The Selfish Gene, p. 192.
12 Todos eles são exemplos do que Cloak chamou de "m-cultura" — em outras
palavras, coisas que surgem pelo impacto de idéias no ambiente — onde se
esperaria que fosse "i-cultura" (mais uma vez, nos termos de Cloak).
13 TheExtendedPhenotype, p. 109-
14 Para uma excelente apresentação deste ponto, ver Gary Cziko, WithoutMiracles:
Universal Selection Theory and the Second Darwinian Revolution. Cambridge,
MA: MIT Press, 1995. ^ The Selfish Gene, p. 193. 16 A esse respeito, ver John
A. Bali, "Memes as Replicators." Ethology andSociology
5 (1984), p. 145-61.
17A Devils Chaplain, p. 145.
18 Simon Conway Morris. Lifes Solution: Inevitable Humans in a Lonely Universe.
Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 324.
19 Existe uma ampla literatura. Para um proveitoso estudo introdutório, ver Charles
G. Nauert, Humanism and the Culture of Renaissance Europe. Cambridge:
Cambridge University Press, 1995.
20 Ver, por exemplo, Norbert Huse, Wolfgang Wòlters & Edmund Jephcott. The
Art of Renaissance Venice: Architecture, Sculpture, and Painting, 1460 -1590.
Chicago: University of Chicago Press, 1990; James S. Ackerman, Distance Points:
Essays in Theory and Renaissance Art and Architecture. Cambridge, MA: MIT
Press, 1991.
21 Ver, por exemplo, Paul Oskar Kristeller, Renaissance Thought: The Classic, Scholastic,
and Humanistic Strains. Nova York: Harper & Row, 1961.
22 Sobre o assunto geral, ver Ronald G. Witt. In the Footsteps oftheAncients: The
Origins ofHumanismfrom Lovato to BrunL Leiden: Brill, 2000.
23 The ExtendedPhenotype, p. 112.
1 4 ADe v iVs Chaplain, p. 124.
25 Juan D. Delius. "The Nature of Culture". In The Tinbergen Legacy, editado por
M. S. Dawkins, T. R. Halliday & R. Dawkins, p. 75-99. Londres: Chapman &
Hall,1991.
26 ADevWs Chaplain, p. 145.
27 Alan Costall. "The 'Meme' Meme". Cultural Dynamics 4 (1991), p. 321-35.
28 Daniel Rothbart. "The Semantics of Metaphor and the Structure of Science".
Philosophy of Sci e nc e 5\ (1984), p. 595-615.
29 Mario Bunge. Method, Model, andMatter. Dordrecht: D. Reidel, 1973, p. 125-
6.
30 TheBlindWatchmaker, p. 195.
31 Ver Robert M. Young. "Darwins Metaphor and the Philosophy of Science",
Science as Culture 16 (1993), p. 375-403.
32 A. A. Michelson & E. W. Morley. "On the Relative Motion of the Earth and
Luminiferous Ether". American JournalofScience 34 (1887), p. 333-45.
33 Mario Bunge. "Analogy in Quantum Theory: From Insight to Nonsense". British
Journal for the Philosophy of Science 18 (1967), p. 265-86.
34 Há uma ampla literatura, obras como Niklas Luhmann. Love as Passion: The
Codification oflntimacy. Stanford, CA: Stanford University Press, 1998; Vera
Schwarcz, Bridge across Broken Time: Chinese andjewish Cultural Memory. New
Haven, CT: Yale University Press, 1998; John Lowney, The American Avant-
Garde Tradition: William Carlos Williams, Postmodern Poetry, and the Politics of
Cultural Memory. Lewisburg, PA: BucknellUniversity Press, 1997.
35 Há algumas propostas alternativas muito interessantes para a interação entre
genes e cultura estabelecidas em William H. Durham. Coevolution: Genes, Culture,
and Human Diversity. Stanford, CA: Stanford University Press, 1991.
36 Ver, por exemplo, S. Bikhchandani, D. Hirshleifer & I. Welch. "Learning from
the Behavior ofOthers: Conformity, Fads, and Informational Cascades".Journal
ofEconomic Perspectives 12 (1998), p. 151-70.
37 S. Bikhchandani, D. Hirshleifer & I. Welch. "ATheory of Fads, Fashion, Custom,
and Cultural Change as Informational Cascades". Journal of PoliticalEconomy
100 (1992), p. 992-1026. Dawkins não explora este tema em sua explicação
das "loucuras", que ele analisa usando de forma muito superficial um modelo
epidemiológico: A Devils Chaplain, p. 136-7.
38 Ver, por exemplo, D. J. Watts. "A Simple Model of Information Cascades on
Random Networks". Proceedings ofthe National Academy of Sciences 99 (2002),
p. 5766-71. As implicações disso como uma analogia para a transmissão de idéias
num sistema cultural ficarão óbvias.
39 Martin Gardner. "Kilroy Was Here." Los Angeles Times, 5 de março de 2000.
40 A Devils Chaplain, p. 127.
41 Daniel C. Dennett, Evolution and the Meaning of Life. New York: Simon &
Schuster, 1995, p. 361. Vale notar que a hipótese do meme ainda seja defendida
em Unweaving the Rainbow, p. 304-10.
42 Dennett, Darwins Dangerous Idea, p. 361-2.
43 A Devils Chaplain, p. 121. Para uma resposta religiosa sobre essa sugestão, ver
John W. Bowker, Is Goda Virus?: Genes, Culture, and Religion. Londres: SPCK,
1995.
44 A Devils Chaplain, p. 135.
45 Harold G. Koenig & Harvey J. Cohen. The Link between Religion and Health:
Psychoneuroimmunology and the Faith Factor. Oxford: Oxford University Press,
2002, p. 101.
4SKennethl. Pargament, The Psychology of Religion and Coping: Theory, Research,
Practice. Nova York: Guilford Press, 1997.
47 Aaron Lynch. Thought Contagion: How Belief Spreads Through Society. Nova
York: Basic Boob, 1996.
48 Aaron Lynch. "An Introduction to the Evolutionary Epidemiology of Ideas".
BiologicalPhysicist 3, no. 2 (2003), p. 7-14.
49 Stephen Shennan. Genes, Memes andHuman History: Darwinian Archaeology
and Cultural Evolution. Londres: Thames & Hudson, 2002, p. 63. Shennan
cita em seu apoio a obra de Luca Cavalli-Sforza & Marcus Feldman: Cultural
Transmission and Evolution: A Quantitative Approach. Princeton, NJ: Princeton
University Press, 1981.
Ciência e religião
Diálogo ou conciliação
intelectual?
Há um amplo consenso de que nos últimos anos tem havido
um crescente interesse no estudo da relação entre ciência e religião.
Muitos falam abertamente sobre "uma nova convergência" nas disciplinas,
abrindo caminho para novas descobertas e interpretações.1
Dawkins tem uma resposta admiravelmente consistente para isso:
"Para um juiz honesto" ele escreve — talvez tendo modestamente
ele próprio em mente? — "a alegada convergência entre religião e
ciência é uma impostura rasa, vazia, uma manobra de manipulação".2
E um ponto de vista interessante, mas pertence a outro século.
Nos últimos anos, a interpretação científica da relação histórica entre
ciência e religião passou por uma revolução intelectual não inferior
à ocasionada por As origens das espécies, de Darwin. Uma intensiva
pesquisa acadêmica histórica tem demonstrado que a noção popular
de uma prolongada guerra entre a igreja e a ciência, que continua
até nossos dias; é um resquício da propaganda vitoriana, completamente
em divergência com os fatos.3 Seguramente, havia conflitos
individuais, muitas vezes refletindo políticas institucionais e agendas
pessoais — como o caso de Galileu — ou simplesmente
mal-entendidos sobre um ou ambos os lados do debate. Mas
estes conflitos não são nem típicos nem explicados.
Dawkins adota uma visão fortemente positivista da ciência, e
associa isso com a idéia de que ciência e religião estão necessariamente
em guerra uma com a outra. Falar de uma aproximação ou
convergência entre elas é para ele, então, nada menos do que uma
"conciliação intelectual" pura e simples.4 É, portanto, importante
observar que essa crença está firmemente situada no mundo social
da Inglaterra do século XIX e que ambos se tornaram severamente,
até mesmo fatalmente, corroídos e desacreditados com o passar do
tempo. E compreensível que eles ainda persistam em algumas obras
científicas populares — afinal de contas, a pesquisa acadêmica histórica
leva muito tempo para se depurar. No entanto, uma análise séria
do mito popular da "guerra entre ciência e religião", tão vigorosamente
defendido por Dawkins, mostrará que isso foi, há muito
tempo, superado. Sua ciência popular tem muito a fazer para se
atualizar.
Para começar nossa análise de tais questões, podemos considerar
o mito da "guerra permanente" entre ciência e religião em detalhe.
A "guerra" entre ciência e religião
A história da ciência deixa claro neste ponto que, não raro, as
ciências naturais estão em conflito com o autoritarismo de algum
tipo. Como Freeman Dyson aponta em seu importante ensaio "The
Scientist as Rebel" ["O cientista como rebelde"], a ciência se encontra
muitas vezes em "rebelião contra as restrições impostas pela cultura
local prevalecente".5 A ciência é, assim, quase por definição,
uma atividade subversiva. Para o matemático e astrônomo árabe
Omar Khayyam, a ciência era uma rebelião contra as restrições intelectuais
do Islã; para os cientistas japoneses do século XIX, a ciência
era uma rebelião contra o persistente feudalismo de sua cultura.
Visto que o ocidente foi dominado pelo cristianismo, não surpreende,
portanto, que uma tensão geral entre ciência e cultura ocidental
pudesse ser vista especificamente como um confronto entre
ciência e cristianismo.
Já a maioria dos historiadores considera a religião como tendo
tido uma relação geralmente benigna e construtiva com as ciências
naturais no ocidente. As tensões e conflitos, como a controvérsia
de Galileu, muitas vezes se mostraram, num exame mais atento,
ter mais a ver com políticas papais, lutas pelo poder eclesiástico e
idiossincrasias; do que com qualquer tensão fundamental entre fé e
ciência.6 Os principais historiadores da ciência regularmente afirmam
que a interação da ciência e religião é determinada principalmente
pelas especificidades das circunstâncias históricas e só
secundariamente por seus respectivos temas. Não existe um paradigma
universal para a relação entre ciência e religião, seja teórica
ou historicamente. O caso das atitudes cristãs em relação à teoria
evolutiva no final do século XIX torna essa observação particularmente
clara. De acordo com o esclarecimento do geógrafo e historiador
intelectual irlandês David Livingstone, num estudo revolucionário
da recepção do darwinismo em dois contextos bastante diferentes —
Belfast e Princeton — questões locais e idiossincrasias foram muitas
vezes de importância crucial na determinação de resultados.7
No século XVIII, desenvolveu-se uma sinergia notável entre a
religião e as ciências na Inglaterra. A "mecânica celeste" de Newton
foi amplamente considerada como, na pior das hipóteses, consistente
com a visão cristã de Deus como criador de um universo
harmonioso e, na melhor das hipóteses, sua gloriosa confirmação.
Muitos membros da Royal Society of London — fundada para o
avanço do conhecimento e pesquisa científica — era fortemente
religiosa em sua visão de mundo, e via isso como aprimoramento
de seu compromisso para o avanço científico.
Mas tudo isso mudou na segunda metade do século XIX. O
tom geral do encontro entre religião (especialmente o cristianismo)
e as ciências naturais, no final do século XIX, foi estabelecido por
duas obras: History of the Conflict between Religion and Science [A
história do conflito entre religião e ciência], de William Draper
(1874) e The Warfare of Science with Theology in Christendom [A
guerra da ciência com a teologia na cristandade], de Andrew
Dick-son (1896). A cristalização da metáfora da "guerra" na mente
popular foi sem dúvida alguma catalisada de forma vigorosa por
esses tipos de textos polêmicos.
Conforme uma geração de historiadores tem agora demonstrado,
a noção de um conflito endêmico entre ciência e religião, tão
agressivamente defendido por White e Draper, é em si mesma socialmente
determinada, criada nas prolongadas sombras de hostilidade
em relação ao indivíduo do clero e às instituições da igreja. A interação
entre ciência e religião é influenciada mais por circunstâncias
sociais do que por idéias específicas, de ambos os lados.8 O próprio
período vitoriano deu origem às pressões e tensões sociais que geraram
o mito da guerra permanente entre ciência e religião.
Uma relevante mudança social pode ser percebida por trás do
surgimento deste modelo de "conflito". De uma perspectiva sociológica,
o conhecimento científico foi defendido por grupos sociais
particulares para levar adiante seus próprios objetivos e
interesses.. Havia uma crescente competição entre dois grupos específicos
dentro da sociedade inglesa no século XIX: o clero e os
profissionais da ciência. O clero era considerado em grande parte
uma elite no começo do século, sendo o "clérigo-cientista" um estereótipo
social bem definido. Com o surgimento do cientista
profissional, no entanto, teve início uma luta pela supremacia, com
o objetivo de determinar quem ficaria com o predomínio cultural
dentro da cultura britânica na segunda metade do século XIX. O
modelo de "conflito" tem suas origens nas condições específicas da
era vitoriana na qual um grupo intelectual profissional emergente
procurava destituir um grupo que até então ocupava o lugar de
honra.
O modelo de "conflito" entre ciência e religião ganhou relevância
quando os cientistas profissionais desejaram se distanciar de seus
colegas amadores, e quando os padrões variáveis na cultura acadêmica
necessitavam demonstrar sua independência da igreja e de outros
bastiões da elite dominante. A liberdade acadêmica exigia uma ruptura
com a igreja; daí foi só um passo para descrever a igreja como
inimiga do saber e do avanço científico no final do século XIX e as
ciências naturais como seus mais fortes defensores.
Hoje, o estereótipo da "guerra entre ciência e religião" persiste
nos limites da cultura Ocidental. No entanto, a idéia de que as
ciências naturais e a religião sempre estiveram em guerra uma com
a outra já não é mais tratada com seriedade por nenhum historiador
da ciência. Em geral se aceita que o modelo de "guerra" foi
desenvolvido por indivíduos religiosamente alienados no século
XIX para ajudar o grupo profissional de cientistas naturais a se livrar
do controle eclesiástico — uma questão importante na vida intelectual
da Inglaterra vitoriana.9
Um exame histórico detalhado das origens do modelo de "guerra"
demonstra que ele é historicamente localizado. Não reflete as naturezas
ou temas fundamentais, seja das ciências naturais ou da teologia
cristã; ele está relacionado especificamente com a situação social da
ciência e da religião na Inglaterra vitoriana. Com o transcurso daquele
conjunto específico de circunstâncias, tal conflito retrocedeu.
É certamente verdade que alguns adotam a visão de que a
relação entre ciência e teologia cristã está permanentemente
definida, pelo menos em seus aspectos fundamentais, pela natureza
essencial das duas disciplinas — e, na leitura insatisfatória de
Dawkins da história e da filosofia da ciência, que elas estão, portanto,
encerradas em combate mortal, do qual a ciência tem que emergir
como o vencedor derradeiro. Subjacente a esses relatos
"essencialistas" da interação entre ciência e religião está a suposição
pouco refletida de que cada um desses termos designa algo dado,
permanente e essencial, de forma que sua relação mútua é
determinada por alguma questão fundamental a cada uma das
disciplinas; não sendo afetada pelas especificidadés de tempo,
lugar ou cultura. Mas de modo algum é assim. A relação entre
ciência e religião é condicionada historicamente, circunscrita às
condições sociais e intelectuais da época.10 O que vemos no
momento é um interesse cada vez maior, de ambos os lados da
linha divisória, em perceber como as duas disciplinas podem
iluminar e até mesmo auxiliar nos esforços uma da outra.
O século XX testemunhou uma grande revisão das concepções
simplistas do século XIX, sobre a natureza e limites do método
científico e a relação entre fé e ciência. O amplo processo acadêmico
de sujeitar as concepções tradicionais a um exame minucioso
forjou uma nova consciência de possibilidades para o diálogo e comprornisso
positivo, além de construtivo, num momento em que a
história da cultura ocidental tem demonstrado um interesse renovado
pela espiritualidade em todos os níveis.
Realmente eu gostaria que Dawkins participasse deste diálogo,
em vez de atirar a esmo, ser freneticamente retórico e satirizar os
que discordam dele. Por quê? Uma das características definidoras
da cultura ocidental é a percepção de um crescimento — talvez
acelerado — da alienação entre as ciências humanas e as ciências
naturais, além de um crescente desconforto cultural sobre o fato de
para onde a ciência está nos levando. De volta a 1959, C. P. Snow
observou que o fosso entre as artes e as ciências tinha se tornado tão
pronunciado que era necessário falar de duas culturas distintas e
não-interativas na sociedade ocidental:
A vida intelectual de toda a sociedade ocidental está sendo
cada vez mais dividida em dois grupos polarizados [...] Intelectuais
literatos de um lado [...] e cientistas, do outro, e
como o mais representativo, os físicos. Entre os dois um fosso
de incompreensão mútua.11
As coisas podem até mesmo ter piorado desde então. O que antes
eram discordâncias relativamente civilizadas entre as ciências naturais
e as ciências humanas parecem ter dado espaço a alguma coisa que
beira uma guerra pungente. Obras recentes que lidam com o impacto
cultural da ciência mostram uma crescente polarização entre
as disciplinas. A possibilidade de reconciliação — ou até mesmo de
um diálogo construtivo — parece diminuir ano a ano. E Dawkins
é um dos que alguns acusam de tornar as coisas piores.12 Não precisa
ser assim.
A investigação ponderada e cuidadosa das questões tem sido
substituída pelo megafone da diplomacia das ideologias. Por um
lado, há os que insistem que a ciência é totalmente objetiva e neutra
em seus métodos e finalidades, criticando aqueles que demonstram
preocupação com esses métodos ou finalidades, chamando-os
"anticientíficos" ou "corruptores da ciência".13 Por outro lado, há
os que argumentam que as ciências falham ao avaliar a esfera de
ação para a qual são constituídas pelas forças sociais e culturais, e
condenam o que vêem como uma reivindicação pretensiosa de privilégio
— como a afirmação de que as ciências oferecem a melhor
explicação das coisas.14
Desvendando o arco-íris marca uma mudança significativa no
estilo de escrita de Dawkins. Em vez de apresentar uma exposição
popular da teoria da evolução de Darwin, junto com uma especulação
sobre suas implicações metafísicas e religiosas, vemos um
embate sistemático com uma agenda cultural. Parte do conteúdo
do livro — sem mencionar o seu título — deriva da palestra sobre
C. P. Snow que Dawkins fez em 1997 em Cambridge, na qual
analisou a hostilidade do poeta romântico inglês John Keats
(1795-1821) com relação à filosofia mecânica de Isaac Newton.15
Essa suspeita profunda em relação à análise científica é vista de
melhor forma no poema "Lamia", de Keats, de 1820, no qual ele
protesta contra reduzir os fenômenos belos e sublimes da natureza
aos fundamentos da teoria científica; deste modo, esvaziando
supostamente a natureza de sua beleza e mistério, reduzindo-a a algo
frio e clínico:
Todos os encantos não se esvaem
Ao mero toque da fria filosofia?
Havia um formidável arco-íris no céu de outrora:
Vimos a sua trama, textura; ele agora
Consta do catálogo das coisas vulgares.
Filosofia, a asa de um anjo vais cortar.
Desvendando o arco-íris é um manifesto triunfalista à independência
cultural das ciências. É uma defesa consistente dos valores
do Iluminismo, imperturbada pelos aspectos menos atraentes
do empreendimento científico — como as ligações entre pesquisa
científica e aplicações militares — o que para Dawkins são explosões
de irracionalidade na cultura ocidental. Dawkins também não se
incomoda em observar o lado mais sombrio do Iluminismo que
tanto incomodou a muitos pensadores do final do século XX —
como sua necessidade de coerção à uniformidade e sua intolerância
quanto à divergência daquilo que considerava "racional".
Desvendando o arco-íris também é uma obra de não menos
importância para o presente livro, o qual focaliza as visões religiosas
de Dawkins. Dois assuntos se destacam como de fundamental importância:
1. Dawkins afirma que as ciências conduzem a um modelo do
universo que "não é paroquial, supersticioso, mesquinho; com
espíritos e duendes, astrologia e magia, brilhando com falsos potes
de ouro no fim do arco-íris".16 Em comparação, a visão religiosa
da natureza é apresentada como de tal modo horrível que não
pode levar ninguém a conclusões esteticamente agradáveis. A re
ligião é considerada esteticamente deficiente, levando ao empo
brecimento da natureza, à diminuição do natural sentimento
humano de deslumbramento e mistério evocado pelo universo e
sua investigação científica.
2. Dawkins elimina qualquer dimensão transcendente à natureza
como esteticamente desnecessária e intelectualmente insustentá
vel. A ciência é tida como livre de noções sem sentido como
"desígnio", "Deus" e por aí afora. Nada se perde pela eliminação
dessas noções, exceto o desvio que mantém os físicos, os astrólogos
e outros desonestos charlatães em ação.
A primeira destas críticas da religião é a mais importante, e passamos
imediatamente a analisá-la com mais detalhes.
O pequeníssimo universo medieval da religião
Uma das persistentes reclamações de Dawkins sobre a religião
é que ela é esteticamente falha. Sua visão do universo é limitada,
empobrecida e desmerecedora da realidade maravilhosa conhecida
pelas ciências:
O universo é genuinamente misterioso, grandioso, belo e inspirador
de temor. Os tipos de visões do universo que os religiosos
tradicionalmente abraçam são fracas, patéticas e desprezíveis
quando comparadas com a forma como o universo
realmente é. O universo apresentado pelas religiões organizadas
é um pequeníssimo universo medieval, extremamente
limi-tado.17
A lógica dessa afirmação impertinente é bastante difícil de seguir,
e sua base efetiva incrivelmente frágil. A "visão medieval" do universo
pode de fato ter sido mais limitada e restrita do que as concepções
modernas. Entretanto, isso não tem nada a ver com a religião, seja
como causa ou efeito. Ela refletia a ciência da época, amplamente
baseada no tratado de caelo ("no céu"), de Aristóteles. Se o universo
dos religiosos na Idade Média realmente fosse "pequeníssimo", assim
ocorria porque eles confiavam nos melhores cosmólogos da
época para lhes dizer como o universo era. Estavam seguros de que
isso era uma verdade científica e a aceitavam. Eles a tomavam como
verdade. Eram ingênuos o bastante para supor que os livros-texto
de ciência tinham razão em tudo quanto lhes diziam. E precisamente
essa confiança na ciência e nos cientistas que Dawkins recomenda,
de forma tão pouco crítica, que o levou a fundamentar
sua teologia em torno da visão de universo de outrem. Eles não
sabiam a respeito de coisas como "a mudança radical de teoria na
ciência", que leva as pessoas do século XXI a serem cautelosas sobre
investir muito pesadamente nas mais recentes teorias científicas, e
muito mais críticas sobre aqueles que lhes propõem uma visão de
mundo.
As concepções medievais do universo eram em grande parte
baseadas num modelo ptolemaico do sistema planetário, que situava
a terra no centro de um vasto, ordenado mecanismo cósmico.
18 Isso está descrito vividamente na Nuremberg Chronicle [Crônica
de Nuremberg] (1493), de Hartmann Schedel, um dos livros impressos
mais populares e tecnologicamente avançados do final da
Idade Média. Nesta grande visão do universo, a terra estava no centro
de uma série de esferas concêntricas, cada qual girando em torno
da terra de acordo com seus próprios ritmos predeterminados.
Além deles encontra-se o "empíreo" — um vasto, eterno, infinito e
informe vazio. Os teólogos cristãos supunham que era onde o paraíso
estava localizado, freqüentemente com base em argumentos tradicionais
questionáveis.19 As representações populares desta visão do
universo, como a Nuremberg Chronicle [Crônica de Nuremberg],
descrevem Deus e os santos como habitando nesta região. Não é o
modelo de hoje do sistema solar e está errado em quase todos os
pontos. É certamente "medieval", mas dificilmente é um "pequeníssimo
universo". A maioria dos escritores medievais que já li,
e que tratam desse tema, considerava a idéia da imensidão cósmica
de fato bastante aterradora — mesmo num modelo ptolemaico
dos céus.
Lâmina 10: Uma visão medieval tardia do universo. A Nuremberg Chronicle [Crônica
de Nuremberg] (1493) de Hartmann Schedel descreve a terra como situada numa
posição fixa no centro do universo, cercada por uma série de esferas que definem as
órbitas da Lua, Mercúrio, Vênus, o Sol, Marte, Júpiter e Saturno. O "empíreo" se
encontra além das estrelas fixas. Foto AKB-Images.
A implicação da crítica infundada de Dawkins é que uma visão
religiosa da realidade é deficiente e empobrecida em comparação
com a sua própria. Não resta dúvida de que essa consideração é um
fator importante na geração e manutenção de seu ateísmo. Já a
análise dessa questão é decepcionantemente fraca e pouco
persuasi-va. Um dos temas comuns de muitos escritos religiosos
em língua inglesa de aproximadamente 1550al850é que a
investigação científica do esplendor e glória da natureza leva a uma
avaliação elevada da glória de Deus.20 Embora eu não veja
qualquer razão para atribuir um tema básico a esses escritores, era de
interesse deles exagerar a beleza e as maravilhas da ordem criada,
de forma que pudesse haver uma correspondente visão central de
Deus. A evidência histórica bastante frágil que Dawkins apresenta
em defesa de sua extravagante crítica pungente das visões
religiosas da realidade, seja em Desvendando o arco-íris seja em
outro lugar, eqüivale a pouco mais de uma observação sobre o
aumento da nossa compreensão da imensidão e complexidade do
universo nos últimos anos.
Uma abordagem cristã à natureza identifica três modos pelos
quais um sentimento de temor ocorre com relação ao que observamos.
1. Um sentimento imediato de maravilhamento frente à beleza da
natureza. Isso é evocado imediatamente. Um "sobressalto do
coração" que William Wordsworth descreveu como ocorrendo
quando se vê um arco-íris no céu; isso se dá antes de qualquer
reflexão teórica consciente sobre o que ele poderia significar. Para
usar categorias psicológicas, isso está ligado à percepção, não à cognição.
Não consigo ver uma boa razão para sugerir que crer em
Deus diminui de alguma forma este sentimento de maravilha
mento. O argumento de Dawkins nesta questão está tão longe
de ser determinado pela evidência e é tão completamente im
provável, que temo tê-lo entendido mal.
2. Um sentimento derivado de maravilhamento frente à represen
tação matemática ou teórica da realidade que surge dela. Dawkins
também conhece e aprova esta segunda fonte de "maravilhamento
apavorante", mas parece sugerir que os "religiosos sentem prazer
no mistério e sentem-se enganados quando ele é explicado".21
Nada disso; um sentimento novo de maravilhamento emerge, o
qual explicarei num instante.
3. Outro sentimento derivado de maravilhamento para o qual o
mundo natural aponta. Um dos temas centrais da teologia cristã é
que a criação dá testemunho de seu criador: "Os céus declaram a
glória de Deus!" (SI 19.1). Para os cristãos, experimentar a beleza
da criação é um sinal ou indicação da glória de Deus, e por isso
deve ser particularmente apreciado. Dawkins exclui qualquer referência
transcendente de dentro do mundo natural.
Dawkins sugere que um enfoque religioso ao mundo carece de
alguma coisa.22 Tendo lido Desvendando o arco-íris, ainda não conclui
o que seria isso. Uma leitura cristã do mundo não nega nada do
que as ciências naturais nos dizem, exceto o dogma naturalista de
que a realidade é limitada ao que pode ser conhecido pelas ciências
naturais. Seja como for, um compromisso cristão com o mundo
natural acrescenta uma riqueza que considero um tanto ausente da
explicação que Dawkins faz das coisas, oferecendo uma nova motivação
para o estudo da natureza. Afinal de contas, João Calvino
(1509-64) explicou como ele invejava aqueles que estudavam
fisi-ologia e astronomia, o que lhes permitiam ter um
comprometimento direto com as maravilhas da criação de Deus.
O Deus invisível e intangível, mostrou ele, poderia ser apreciado
pelo estudo das maravilhas da natureza. Talvez a maior diferença
entre ciência e religião não esteja, portanto, em como começam,
nem mesmo em como continuam, mas em como terminam.
Em breve, daremos uma idéia para a leitura cristã da natureza.
Mas antes, precisamos fazer uma pausa, para explorar esse sentimento
de "pavor" que tantas pessoas experimentam num encontro
com as maravilhas da natureza.
O conceito de temor
Nos últimos anos, tem surgido um novo interesse sobre o conceito
de "temor". Uma idéia caracterizada de forma proeminente na
teologia, sociologia e filosofia. Por exemplo, Rudolf Otto falou do
"numinous" — um mysterium tremendum et fascinam que inspirava
temor por parte daqueles que o experimentavam.23 Essa experiência
pode ser tanto profundamente positiva quanto terrivelmente
negativa, muitas vezes reduzindo o sujeito a um estado de silêncio
ou confusão. Mais recentemente, o conceito começou a chamar a
atenção dos psicólogos,24 ao observarem que uma gama de estímulos
leva a uma experiência de temor, incluindo "encontros religiosos,
líderes políticos carismáticos, objetos naturais e até mesmo
padrões de luz".
Em um recente estudo pioneiro, Dacher Keltner e Jonathan
Haidt desenvolveram um protótipo de abordagem à experiência de
temor, que traz em seu núcleo duas características distintivas: imensidão
e acomodação.25 Imensidão, afirmam, refere-se a "qualquer
coisa que seja experimentada como sendo muito maior que o eu,
ou o nível comum de experiência, ou quadro de referência do eu".
Pode se referir simplesmente ao tamanho físico, ou a marcadores
mais sutis de dimensão, como os sinais sociais, ou marcadores simbólicos.
A acomodação se refere ao processo identificado por Jean
Piaget (1896-1980), professor de psicologia genética e experimental
na Universidade de Genebra de 1940-71. Piaget a definiu como
o processo pelo qual as estruturas mentais humanas passam por um
ajuste diante do desafio imposto por novas experiências. Assim, seria
possível experimentar um sentimento de temor diante da percepção
da "amplitude e extensão de uma teoria importante" — como a
própria teoria da evolução.
Propomos que o temor prototípico envolve um desafio para
as estruturas mentais ou a negação delas quando falham em
encontrar o sentido de uma experiência de algo grandioso.
Essas experiências podem ser desorientadoras e até mesmo
aterrorizantes [...]. Elas também envolvem freqüentemente
sentimentos de iluminação e até mesmo de renascimento,
quando as estruturas mentais se expandem para acomodar
verdades nunca antes conhecidas. Enfatizamos que o temor
envolve uma necessidade de acomodação que pode ou não ser
satisfeita. O sucesso da tentativa de acomodação pode explicar,
em parte, por que o temor pode ser ao mesmo tempo
aterrorizante (quando a pessoa não compreende) e
ilumina-dor (quando a pessoa é bem sucedida).26
Com base nesta abordagem, o sentimento humano de temor
diante da imensidão do universo, ou da beleza dramática de uma
paisagem ou quadro (como um arco-íris), poderia ser aumentado
captando os fundamentos ou implicações teóricas do que estava
sendo observado. Isso faz ressonância com a crença de Dawkins —
que também é minha — de que as representações teóricas da realidade
são em si mesmas belas e capazes de evocar temor devido à
sua complexidade ou capacidade de invocar a visão de um "grande
quadro" das coisas. Este é sem dúvida o caso das teorias que propõem
uma visão maior das coisas — uma lista de teorias que inclui o
darwinismo, o marxismo e a teologia cristã, mas não se limita a
eles.
A mente de Deus
A teologia cristã de modo algum menospreza uma apreciação
natural da beleza e da maravilha do mundo; ao contrário, se junta a
ela. Conforme já demonstrei, existem três níveis nos quais o cristianismo
afirma um sentimento de maravilhamento sobre a natureza:
(1) pelo encontro imediato com sua vasta beleza; (2) pela
explicação teórica e representação da natureza; e (3) pela capacidade
da natureza em apontar Deus como o seu criador. Suponho que o
primeiro deles não é tema de controvérsia, e discutiremos os dois
restantes na seqüência.
A alegação infundada de que a teologia cristã sustenta que a
"explicação" de fenômenos naturais tira-lhes o significado divino é
uma completa tolice. O fato de podermos desenvolver essas teorias
em primeiro lugar, junto com a beleza matemática das teorias resultantes,
é solidamente fundamentado numa visão de mundo cristã.
O físico teórico John Polkinghorne explora as implicações deste
ponto, a saber:
Estamos tão familiarizados com o fato de que podemos compreender
o mundo que na maioria das vezes temos isso por
certo. É o que torna a ciência possível. Mas, poderia ter sido de
outro modo. O universo poderia ter sido um caos desordenado
em vez de um cosmo ordenado. Ou poderia ter tido uma
racionalidade que nos fosse inacessível [...]. Há uma congruência
entre nossas mentes e o universo, entre a racionalidade
experimentada dentro e a racionalidade observada fora.27
Não resta dúvida de que os seres humanos tiveram um notável
êxito em investigar e captar algo da estrutura e funcionamento do
mundo. Precisamente por que a racionalidade do mundo deveria
ser tão acessível ao seres humanos permanece certamente muito
enigmático. Polkinghorne é bastante claro sobre como o cristianismo
poderia oferecer uma explicação dessa observação:
Se a profunda congruência da racionalidade presente em nossa
mente com a racionalidade presente no mundo deve encontrar
uma verdadeira explicação, seguramente ela deve estar
numa razão mais profunda, que é a base de ambas. Essa razão
seria provida pela Racionalidade do Criador.28
Ao desenvolver este ponto, Polkinghorne se apóia em fontes
profundas na tradição cristã, as quais enfatizam que Deus dotou a
humanidade de inteligência e razão; ambas para investigar o mundo
e descobrir Deus. Precisamente a mesma observação foi feita
pelo astrônomo Johann Kepler, na aurora da Revolução Científica.
Uma vez que a geometria tinha suas origens na mente de Deus, só
se poderia esperar que a ordem criada se conformasse aos seus
padrões:
Com isso a geometria é parte da mente divina desde as origens
do tempo, até mesmo antes das origens do tempo, (pois o que
existe em Deus que também não é de Deus?) supriu Deus
com os padrões para a criação do mundo, e foi transferida para
a humanidade com a imagem de Deus.29
Nesta leitura de coisas, que é típica da tradição cristã, a representação
teórica da realidade pode ela mesma ser vista, como olhando
dentro da mente de Deus. Dawkins, não duvido, vai querer se opor
a essa interpretação da teoria. No entanto, sua sugestão de que o
cristianismo, necessária ou caracteristicamente, estabelece uma proibição
total sobre a representação teórica do mundo é simplesmente
insustentável, infundada pela evidência.
Mais digno de consideração, o cristianismo defende que a natureza
deve ser vista como uma "imagem das coisas divinas" —
algo que de alguma maneira aponta para o próprio Deus, nos permitindo
ver a natureza numa nova luz. Embora sem negar nada do
que Dawkins afirma sobre a beleza do mundo, essa perspectiva simplesmente
se junta a ela, vendo a natureza como um indicador na
direção da beleza maior de Deus. A maravilha do criador pode ser
conhecida pela ordem criada. Esta observação foi feita pelo teólogo
Boaventura, por volta do século XIII, um grande admirador de
Francisco de Assis e do seu amor por cada aspecto da natureza:
As criaturas do mundo guiam as almas do sábio e contemplativo
até o Deus eterno, visto que elas são as sombras, ecos e
retratos; são os vestígios, imagens e imagens visíveis do mais
poderoso, sábio e melhor primeiro princípio daquela origem
eterna, luz e plenitude; daquela arte produtiva, exemplar e
indutora da ordem. Elas são colocadas diante de nós para que
possamos conhecer Deus. Recebemos sinais de Deus, [...]
toda criatura é por sua própria natureza e espécie representação
e semelhança daquela sabedoria eterna.30
Esta idéia de que a natureza produz o louvor e o conhecimento de
Deus está na base do Romantismo, que procurava restabelecer uma
conexão entre a natureza e o transcendental. O Romantismo via o
desenvolvimento do modelo mecanicista do universo, que ele associava
a Newton, com grande angústia.31 Alguma coisa havia se
perdido — um sentido de mistério. Como Dawkins levanta essa
questão em Desvendando o arco-íris, podemos explorar isso com
mais detalhes.
Mistério, loucura e nonsense
Dawkins é um esplêndido representante do não-nonsense, "uma
racionalidade do tipo ajusta todas", na perspectiva do Iluminismo.
Talvez isso seja mais óbvio em sua discussão do "mistério" — uma
categoria que ele alegremente, mesmo que de forma um pouco prematura,
reduz para "simples loucura ou nonsense surrealista".32 Podemos
descobrir o sentido das coisas — ou, se não pudermos descobrir
o sentido das coisas neste momento, cedo ou tarde o avanço inexorável
da ciência tornará isso possível. No tempo certo, qualquer
coisa pode acontecer. Os religiosos que falam sobre o "mistério"
são apenas místicos irracionais, preguiçosos ou amedrontados demais
para usar sua mente de maneira correta.
É uma caricatura reconhecível da idéia de "mistério". Mas ainda
é uma caricatura. Eis o que um teólogo quer dizer quando usa a
palavra "mistério": algo que é verdadeiro e possui sua própria racionalidade
— ainda que a mente humana ache impossível
apreendê-lo completamente. Alguns anos atrás, eu comecei a
aprender japonês. Não fui muito longe. O idioma usava dois
silabários, tinha um vocabulário que guardava pouca relação com
quaisquer dos idiomas que eu conhecia, e uma sintaxe que parecia
completamente ilógica a meu modo ocidental de pensar. Em
resumo: para mim aquilo não fazia sentido. Mas meu fracasso para
aprender o idioma japonês representa um fracasso de minha parte.
Aqueles que sabem o idioma me asseguram que é racional e
inteligível; o fato é que não pude compreender.
Não há como o conceito de "mistério" significar "uma irracionalidade",
a não ser no sentido em que ele venha a ser contra-intuitivo.
Ele pode estar além da atual capacidade de compreensão da racionalidade
humana; o que não significa, conforme enfatizou Tomás de
Aquino, que seja contrário à razão. A mente humana é simplesmente
limitada demais para compreender a plenitude de tal realidade, e devemos,
portanto, fazer o que for possível, mesmo reconhecendo
nossos limites. Não somos Deus e, conseqüentemente, achamos difícil
arcar com aquilo que John Donne chamou de "o imenso peso da
glória divina". Não é somente uma questão no campo da teologia.
Qualquer tentativa de lidar com a imensidão da natureza — como a
aparentemente extensa escala temporal da evolução darwinista —
depara-se com os mesmos problemas, tornando o uso tanto da palavra
quanto da idéia de "mistério" completamente apropriado às ciências
naturais. O próprio Dawkins sabe disso, como está claro em seu
comentário derrisório sobre os críticos pós-modernos das ciências:
A física moderna nos ensina que existem mais verdades do
que os olhos podem ver; ou o que pode ver a limitadíssima
mente humana, desenvolvida para lidar com objetos de tamanho
médio que se movem a uma velocidade média por distâncias
médias na África. Diante desses mistérios profundos e sublimes,
o intelectual de baixo nível, carregado de afetações
pseudofilosóficas não parece merecedor de atenção adulta.33
É esse precisamente o meu ponto.
A mecânica quântica é um excelente exemplo de uma área da
ciência onde a categoria de "mistério" parece totalmente apropriada.
É algo que acreditamos ser verdade, e que traz em si uma profunda
racionalidade — mas que, muitas vezes, parece impossível
compreender. Certamente eu achava meu conhecimento de matemática
limitado ao me especializar nessa disciplina em Oxford nos anos
de 1972-3. Dawkins contribui, apontando em particular como suas
conclusões "podem ser terrivelmente contra-intuitivas".34
A questão aqui é que tanto a comunidade científica quanto a
religiosa pode ser pensada como tentando lutar com as ambigüidades
da experiência, oferecendo o que se aceita como as "melhores explicações
possíveis" para o que é observado, aceitando as dificuldades
intelectuais exigidas pela evidência que pede que pensemos dessa
maneira. A análise da experiência pode levar à geração de conceitos
que são muitas vezes bastante complexos e ocasionalmente bastante .
contra-intuitivos. Muito mais imponderados, os cientistas naturais
hostis à religião ridicularizam a complexidade de seus conceitos. A
ciência, afirmam eles, lida com idéias simples, e evita aventuras extravagantes
em tais campos. Outros, no entanto, que se debruçaram
mais cuidadosamente sobre a questão, não têm tanta certeza.
O filósofo da ciência, de Princeton, Bas van Fraassen duvida
profundamente daqueles que sugerem que a ciência é
justificada-mente simples enquanto a religião é injustificadamente
complexa; mais uma vez, a teoria quântica é citada como
exemplo:
Os conceitos de Trindade, alma, essência, universalidade,
substância primeira e potencialidade confundem você? Eles
parecem sem importância ao lado da alteridade inimaginável
do espaço-tempo fechado, horizontes de eventos, correlações
EPR e modelos bootstrapP
Fraassen claramente considera que as demandas conceituais e imaginativas
de algumas áreas da física moderna excedem aquelas tradicionalmente
associadas até mesmo com os mais labirínticos sistemas
teológicos e filosóficos da Idade Média. O ponto levantado por
ele, é que um compromisso empírico com o mundo da experiência
e de fenômenos lança conceitos teóricos que estão longe de ser simples,
mas que parecem inevitáveis para a preservação dos fenômenos.
Para um teólogo cristão ortodoxo, a doutrina da Trindade é o
resultado inevitável do compromisso intelectual com a experiência
cristã de Deus; conceitos abstratos e desconcertantes surgem do
mesmo modo para o físico na luta com o mundo dos fenômenos
quânticos. Mas ambos estão dispostos a sustentar um compromisso
intelectual com tais fenômenos, para produzir e desenvolver teorias
ou doutrinas que lhes façam justiça, preservando-os em vez de
reduzi-los.
A declaração mais ponderada de Dawkins sobre o "mistério" se
encontra em Desvendando o arco-íris, que explora o lugar da maravilha
numa compreensão das ciências. Embora mantendo sua
hostilidade central de Dawkins à religião, a obra reconhece a importância
de um sentimento de temor e maravilhamento na motivação
daqueles que desejam compreender a realidade. Dawkins
escolhe o poeta William Blake como um místico obscurantista que
exemplifica porque os enfoques religiosos ao mistério são insensatos
e improdutivos. Dawkins situa muitos defeitos de Blake num
compreensível — mas desviante — desejo de se enlevar num mistério:
Os impulsos ao temor, reverência e maravilha que levaram
Blake ao misticismo [...] são precisamente aqueles que levam
outros de nós à ciência. Nossa interpretação é diferente, mas
o que nos fascina é o mesmo. O místico se alegra em mostrar
a maravilha e revelar em um mistério aquilo que não "tínhamos
a intenção" de entender. O cientista sente a mesma maravilha,
mas é impaciente, sem conteúdo; reconhece o mistério
como profundo, então acrescenta: "Mas estamos trabalhando
nisto".36
Desse modo, não existe exatamente um problema com a palavra
ou a categoria de "mistério". A questão é se resolvemos lutar com
ela, ou adotar a visão preguiçosa e complacente de que isso está
convenientemente fora de questão.
Agora concordemos que William Blake era uma personagem
um pouco pitoresca, com idéias decididamente estranhas. Dificilmente
pode ser tomado como representante do cristianismo de
linha. Blake foi considerado por muitos de seus familiares e amigos
como sintomático de uma loucura incipiente, no mínimo por causa
de suas "visões". Quem poderia ler seu poema "Milton" — que
inclui, por acaso, o famoso hino "Jerusalém" — sem ser perturbado
pela descrição gráfica de Blake de como o espírito do poeta
John Milton caiu verticalmente do céu, antes de entrar nele pela
planta de seu pé esquerdo? Mas Blake não é um representante da
teologia crista—uma disciplina a qual ele se opôs por várias razões,
a propósito, no mínimo por sua tendência ao racionalismo.
Tradicionalmente, a teologia cristã tem estado bem ciente de
seus limites e evitado afirmações excessivamente confiantes diante
do mistério. Contudo, ao mesmo tempo, a teologia cristã jamais
se viu como totalmente reduzida ao silêncio diante dos mistérios
divinos. Tampouco proibiu o debate intelectual com os "mistérios"
como destrutivo ou prejudicial à fé. Como o teólogo anglicano do
século XIX Charles Gore insistia, com razão:
A linguagem humana jamais pode expressar de forma adequada
as realidades divinas. Uma tendência constante a se
desculpar pela fala humana, um grande elemento do
agnos-ticismo, um terrível sentimento de profundo
desconhecimento, além do pouco que é tornado público; isso
tudo está sempre presente à mente dos teólogos que sabem o
que eles são, ao conceber ou expressar Deus. "Nós vemos",
diz São Paulo, "num espelho, em termos de um enigma",
"nós sabemos em parte". "Nós somos compelidos", lamenta
São Hilário, "a tentar o que é inacessível, escalar onde não
podemos alcançar, falar o que não podemos proferir; em vez
da mera adoração da fé, somos compelidos a confiar as
coisas profundas da religião aos perigos da expressão
humana.37
Uma definição perfeitamente boa da teologia cristã é "considerar
um problema racional acima de um mistério" — reconhecendo
que pode haver limites ao que pode ser alcançado, mas acreditando
que este debate intelectual é válido e necessário. Significa justamente
ser confrontado com algo tão grandioso que não podemos compreender
completamente, e assim devemos fazer o melhor que podemos
com as ferramentas analíticas e descritivas à nossa disposição.
Pense nisso, é o que as ciências naturais pretendem fazer também.
Talvez não seja de se estranhar que haja um crescente interesse
no diálogo entre ciência e religião.
Conclusão
Este livro é apenas um modesto esforço de abordar uma série de
questões fascinantes levantadas pelos textos de Richard Dawkins.
Algumas delas são diretamente de natureza religiosa, outras indiretamente.
Estou consciente de que não tratei de nenhuma dessas
questões com o detalhamento que, com justiça, exigiria. Propus
algumas novas questões para mais discussão, sem chegar a qualquer
conclusão — a não ser que os assuntos tratados neste livro são importantes
e interessantes e que mais discussão a respeito desses tópicos
é necessária. Dawkins faz de fato perguntas pertinentes e oferece
algumas respostas interessantes. Estas não são respostas em particular
e reconhecidamente confiáveis, a menos que você acredite que
os religiosos são pessoas tolas, que odeiam a ciência, guiadas de
maneira geral, por uma "fé cega" e outras coisas impronunciáveis.
Este livro propõe mudar a discussão e estipular um limite para
a explicação muitas vezes incerta da relação entre ciência e religião
apresentada por Dawkins. Uma abordagem a essa questão, baseada
em evidências, é muito mais complexa e muito mais interessante
do que "o caminho da simplicidade e do pensamento convencional
de Dawkins". Existem, como Dawkins corretamente aponta, áreas
de tensão que devem ser reconhecidas e confrontadas; contudo, ao
lado delas, há um imenso potencial para a sinergia intelectual e a
descoberta de novas perspectivas da realidade.
Estou certo de que temos muito a aprender debatendo com
elegância e precisão. A questão da existência de Deus e de como ele
seria não terminou com Darwin — apesar da confiança exagerada
nas predições darwinistas — permanecendo de fundamental importância
pessoal e intelectual. Algumas mentes em ambos os lados
da discussão podem estar fechadas, porém a evidência e o debate
não estão. Cientistas e teólogos têm muito a aprender uns com os
outros. Se eles se ouvissem mutuamente, poderíamos ouvir o canto
das galáxias.38 Ou até mesmo os céus proclamando a glória de
Deus (SI 19.1).
1 Ver, por exemplo, Michael Ruse. Can a Darwinian Be a Christian? The Relationship
Between Science andReligion. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
2 A DeviVs Chaplain, p. 151.
3 Duas publicações foram especialmente importantes na efetivação dessa análise
radical do ponto de vista popular: David C. Lindberg and Ronald L. Numbers,
God and Nature: Histórica! Essays on the Encounter Between Christianity and
Science. Berkeley: University of Califórnia Press, 1986; Edward Grant, The
Foundations of Modem Science in the Middle Ages: Their Religious, Institutional,
andlntellectualContexts. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
AADevil's Chaplain, p. 149.
5 Freeman Dyson. "The Scientist as Rebel". In Natures Imagination: TheFrontiers
of Scientific Vision, editado por John Cornwell, p. 1-11. Oxford: Oxford
University Press, 1995.
6MarioBiagioli. Galileo, Courtier: The Practice of Science in the Culture ofAbsolutism.
Chicago: University of Chicago Press, 1993.
7 David N. Livingstone. "Darwinism and Calvinism: The Belfast-Princeton
Connection." Ms 83 (1992), p. 408-28.
8 Colin A. Russell. "The Conflict Metaphor and Its Social Origins." Science and
Christian Faith 1 (1989), p. 3-26.
9 Frank M. Turner, "The Victòrian Conflict Between Science and Religion: A
Professional Dimension." Isis 69 (1978), p. 356-76.
10 Para uma crítica aceita desta posição, ricamente exemplificada com estudos de
caso históricos, ver John Brooke and Geoffrey Cantor, ReconsíructingNature: The
Engagement of Science and Religion. Edinburgh:T. &T. Clarke, 1998.
11C. E Snow, The Two Cultures andthe Scientific Revolution. Cambridge: Cambridge
University Press, 1959, p.3. A análise de Snow é aberta ao desafio pontual,
especialmente o modo como ele compara Goethe e Newton: ver Hannelore
Schwedes, "Goethe contra Newton". Westermanns pãdagogische Beitrãge 27
(1975), p. 63-73.
l2VerHughAldersley-Wilhiams. "The Misappliance of Science". New Statesman,
13 de setembro de 1999.
13 Ver, por exemplo, Paul R. Gross & Norman Levitt. Higher Superstition: The
Academic Left andlts Quarrels with Science. Baltimore, MD: Johns Hopkins
University Press, 1998.
14 Ver as questões levantadas por Brian Martin. "Social Construction of an Attack
on Science'". SocialStudies ofScience26 (1999), p. 1610-73.
15 Unweavíng the Rainbow, p. xv.
1S Unweaving the Rainbow, p. 312.
17 Richard Dawkins. "ASurvival Machine", In The Third Culture, editado por John
Brockman, p. 75-95. Nova York: Simon & Schuster, 1996.
18 Até agora o melhor estudo é de Edward Grant. Planets, Stars and Orbs: The
Medieval Cosmos, 1200-1687. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
19 Grant, Planets, Stars and Orbs, p. 169-85, 371-89.
20 Sendo um excelente exemplo os primeiros trabalhos de John Ruskin; ver Michael
Wheeler. Ruskins God. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
21 Unweavingthe Rainbow, p. xiii. Ver também sua discussão mais ampla, variando
desde as religiões tradicionais até os movimentos New Age, p. 114-79.
22 Unweaving the Rainbow, p. xii.
23 Rudolf Otto. The Idea of the Holy: An Inquiry ínto the Non-RationalFactor in the
Idea oftheDivineandItsRelation to theRational, 2a ed. Oxford: Oxford University
Press, 1978.
24 Richard S. Lazarus. Emotion and Adaptation. Nova York: Oxford University
Press, 1991; Paul Ekman. "An Argument for Basic Emotions". Cognition and
Emotion 6 (1992), p. 169-200.
25 Dacher Keltner & Jonathan Haidt. "Approaching Awe, a Moral, Spiritual and
Aesthetic Emotion". Cognition and Emotion 17 (2003), p- 297-314.
26 Dacher Keltner & Jonathan Haidt, "Approaching Awe, a Moral, Spiritual and
Aesthetic Emotion." Cognition and Emotion 17 (2003), p. 297-314. A citação
pode ser encontrada na p. 304.
27 John Polkinghorne. Science and Creation: The Searchfor Understanding. Londres:
SPCK, 1988, p. 20-1.
28 Polkinghorne. Science and Creation, p. 22.
29Johann Kepler. GesammelteWerke, ed. MaxCaspar. Munich: C. H. Beck, 1937-
83, v. 6, p. 233. i0 Bonaventure, Itinerarium
Mantis in Deum, p. 2.
31 Sobre isso ver, R. H. Stephenson, Goethes Conception ofKnowledge and Science.
Edinburgh: Edinburgh University Press, 1995.
32 A DevWs Chaplain, p. 139.
53 A DevWs Chaplain, p. 19.
i4/4 DevWs Chaplain, p. 18-19. Ele cita em seu apoio o excelente estudo de Lewis
Wolpert: The UnnaturalNature of Science. Londres: Faber & Faber, 1992.
w Bas van Fraassen. "Empiricism in the Philosophy of Science". In Images of Science:
Essays on Realism and Empiricism, editado por P. Churchland & C. Hooker, p.
245-308. Chicago: University of Chicago Press, 1985. A citação pode ser
encontrada na p. 258.
16 Unweaving the Rainbow, p. 17.
17 Charles Gore. The Incarnation oftheSon of God. Londres: John Murray, 1922, p.
105-6.
!í! Unweaving the Rainbow, p. 313.
Agradecimentos
Este trabalho foi desenvolvido durante muitos anos e deve muito
a muitas pessoas. Tenho uma dívida particular com colegas da academia
que o leram ainda no rascunho e foram generosos em seus
comentários: Denis Alexander, R. J. Berry, Francis Collins, Simon
Conway Morris, David C. Livingstone, Alvin Plantinga, Michael
Ruse e, especialmente, Joanna McGrath. Sou o único responsável
por qualquer erro factual ou interpretativo que tenha sido mantido.
A Universidade de Oxford gentilmente forneceu esclarecimentos sobre
alguns pontos específicos. A JohnTempleton Foundation apoiou
a pesquisa em ciência e religião por vários anos e—junto com muitos
outros trabalhos nesse campo — sou lhe grato pelo auxílio e encorajamento.
Embora este trabalho tenha sido sugerido em primeiro
lugar, nos idos de 1978, por um editor da Oxford University Press,
decidi enfim confiá-lo a Blackwell Publishers, com cujos editores
tenho trabalhado de forma feliz há muitos anos. A Blackwell tem
sido tudo o que uma boa editora deveria ser, e agradeço especialmente
a Rebecca Harkin por seu encorajamento e orientação ao
longo deste projeto.

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