Esboço
de uma história da doutrina do
ideal e
do real
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Autor:
Arthur Schopenhauer
Tradução:
André Díspore Cancian
Fonte:
Parerga e Paralipomena
Plurimi
pertransibunt, et multiplex erit scientia.
[muitos
correrão de uma parte para outra, e a ciência se multiplicará. (Daniel 12:4)]
Descartes
é corretamente considerado o pai da filosofia moderna, principalmente porque
auxiliou
a
faculdade da razão a ficar sobre seus próprios pés ensinando aos homens como
usar seus cérebros onde
até
então se recorria à Bíblia ou Aristóteles. Mas é o pai em um sentido especial e
estreito, pois foi o
primeiro
a trazer à nossa consciência o problema sobre o qual a maior parte do filosofar
se voltou desde
então, a
saber, aquele do ideal e do real. Essa é a questão relativa àquilo que em nosso
conhecimento é
objetivo
e o que é subjetivo, e, portanto, àquilo que será atribuído por nós a coisas
diferentes de nós e ao
que será
atribuído a nós próprios. Assim, em nossas cabeças, imagens não surgem
arbitrariamente, como
se
viessem de dentro, tampouco surgem da associação de idéias; conseqüentemente,
surgem de uma
causa
exterior. Mas tais imagens são tudo que conhecemos imediatamente, que nos é
dado. Então que
relação
podem ter com coisas que existem de modo totalmente distinto e independente de
nós, e que, de
alguma
forma, tornam-se a causa dessas imagens? Estamos nós certos de que tais coisas
existem e,
neste
caso, as imagens que nos são dadas nos fornecem quaisquer informações a
respeito de sua
natureza?
Em conseqüência desse problema, o principal esforço dos filósofos pelos dois
últimos séculos
tem sido
delinear de modo claro o ideal – em outras palavras, o que pertence ao nosso
conhecimento e
tão-somente
– e o real – isto é, aquilo que existe independentemente de nosso conhecimento
–, e, deste
modo,
determinar a relação existente entre ambas as partes.
Nem os
filósofos da Antigüidade nem os escolásticos parecem ter tomado consciência
desse
problema
filosófico fundamental, apesar de encontrarmos traços deste na forma de
idealismo e até na
doutrina
da idealidade do tempo, em Plotino, e mesmo em As Enéadas, lib. VII, c. 10,
onde nos diz que o
espírito
fez o mundo emergindo da eternidade para o tempo. Diz, por exemplo, neque datur
alius hujus
universi
locus, quam anima [pois para este universo não há outro lugar senão a mente] e
também:
oportet
autem nequaquam extra animam tempus accipere, quemadmodum neque aeternitatem
ibi extra
id, quod
ens appellatur [mas não devemos aceitar o tempo fora da mente; e também não
devemos
aceitar
a eternidade do Além fora do Ser (i.e. o mundo de Idéia)]; aqui de fato está
expressa a idealidade
do tempo
de Kant. E no capítulo seguinte: haec vita nostra tempus gignit: quamobrem
dictum est,
tempus
simul cum hoc universo factum esse; quia anima tempus una cum hoc universo
progenuit [esta
vida
produz o tempo, o que também significa que o tempo surgiu simultaneamente com
este universo;
pois a
mente o produziu simultaneamente com este universo]. Ainda assim, o problema,
reconhecido e
exposto
claramente, continua a ser um tema característico da filosofia moderna, após a
reflexão
necessária
ter despertado inicialmente em Descartes. Este foi assaltado pela verdade de
que somos
limitados
principalmente à nossa própria consciência e que o mundo nos é dado apenas como
representação
ou imagem mental [Vorstellung]. Por meio de seu conhecido dubito, cogito, ergo
sum
[duvido,
penso, logo existo], tentou enfatizar a única coisa certa da consciência
subjetiva em contraste
com a
natureza problemática de todo o resto, e expressar a grande verdade de que a
autoconsciência é a
única
coisa dada real e incondicionalmente. Propriamente considerada, sua famosa
proposição é
equivalente
àquela da qual parti, a saber, “O mundo é minha representação”. A única
diferença é que sua
proposição
enfatiza o caráter imediato da questão, enquanto a minha enfatiza o caráter
mediato do
objeto.
Ambas as proposições expressam a mesma coisa de dois pontos de vista. Uma é o
reverso da
outra e,
portanto, estão na mesma relação das leis da inércia e causalidade de acordo
com a minha
discussão
no prefácio à minha ética [Os Dois Problemas Fundamentais da Ética. Frankfurt
am Main, 1841,
p. XXIV; 2nd edn., Leipzig, 1860, pp. XXIV]. Desde os dias de Descartes, sua
proposição tem sido
repetida
inúmeras vezes em função de um mero sentimento de importância e sem uma
compreensão
clara de
seu verdadeiro significado e conteúdo (Ver Meditationes, Med. II, p. 15). Foi
Descartes quem
descobriu
o hiato entre o subjetivo ou ideal, e o objetivo ou real. Este deu à sua idéia
uma roupagem de
dúvida
relativa à existência do mundo externo; todavia, com a inadequação de sua
solução para tal
dúvida –
a saber, que Deus Todo-Poderoso certamente não nos enganaria –, nos demonstrou
quão
profundo
é o problema e quão difícil é solucioná-lo. Por meio dele esse escrúpulo foi
legado à filosofia,
fadado a
perpetuar seu efeito inquietante, até que fosse meticulosamente resolvido. A
consciência de que,
sem um
profundo conhecimento e uma explicação da distinção que havia sido descoberta,
nenhum
sistema
verdadeiro e satisfatório era possível desde então se fez presente e a questão
não pôde mais ser
ignorada.
Para
resolvê-lo, Malebranche concebeu o sistema de causas ocasionais. Este apreendeu
o
problema
em toda a sua amplitude de modo mais claro, sério e profundo que Descartes
(Recherches de la
vérité,
Livre III, seconde partie.) Este último havia presumido a realidade do mundo
externo com base em
Deus;
naturalmente, parece estranho que, enquanto outros filósofos teístas se
esforçam para demonstrar
a
existência de Deus a partir da do mundo, Descartes, contrariamente, prova antes
a existência do mundo
a partir
da existência e credibilidade de Deus; é o argumento cosmológico às avessas.
Aqui Malebranche
também
vai um passo além e ensina que vemos todas as coisas imediatamente em Deus.
Isso certamente
equivale
a explicar uma coisa desconhecida através de outra ainda mais desconhecida.
Ademais, de
acordo
com este, não apenas vemos todas as coisas em Deus, mas Deus também é toda a
atividade que
nelas
existe, de modo que as causas físicas são apenas aparentes – meras causes
occasionnelles
(Recherches
de la vérité, Livre VI, seconde partie, chap. 3.). Assim, essencialmente, temos
o panteísmo
de
Espinosa, que parece ter aprendido mais de Malebranche que de Descartes.
No todo,
pode surpreender que, mesmo no século XVII, o panteísmo não tenha vencido o
teísmo
totalmente;
pois suas manifestações mais originais, refinadas e mais completamente
européias (nenhuma
delas,
naturalmente, suportaria comparação com os Upanishads dos Vedas) vieram à luz
todas nesse
período
– através de Bruno, Malebranche, Espinosa e Scoto Erígena. Depois de muitos
séculos esquecido,
Scoto
Erígena foi redescoberto em Oxford e, em 1681 – quatro anos depois da morte de
Espinosa –, sua
obra foi
publicada pela primeira vez. Isso parece provar que a compreensão dos
indivíduos não pode
fazer-se
sentida enquanto o espírito de sua época não estiver maduro para recebê-la. Por
outro lado, em
nossos
dias, o panteísmo – apesar de representado somente pelo resgate eclético e
confuso deste por
Schelling
– tornou-se o modo de pensar dominante de acadêmicos e mesmo de indivíduos
instruídos. Isso
porque
Kant o precedeu com sua demolição de dogmatismo teísta, limpando seu caminho –
e assim o
espírito
da época estava pronto, como a terra arada está pronta para a semente. No
século XVII, pelo
contrário,
a filosofia novamente se desviou desse caminho e, desse modo, chegou, por um
lado, em
Locke,
para o qual Bacon e Hobbes haviam preparado o terreno e, por outro, em
Christian Wolff, através
de
Leibniz. Esses dois eram, então, dominantes no século XVIII, especialmente na
Alemanha – apesar de,
no
fundo, o serem somente no grau em que foram iniciados no ecletismo sincrético.
Entretanto,
foram as profundas idéias de Malebranche que originaram o sistema de harmonia
praestabilita
de Leibniz, e a grande fama e alta reputação deste em seus dias provam o fato
de que, no
mundo, o
absurdo vence com a maior facilidade. Apesar de não poder me vangloriar de
possuir uma
noção
clara das mônadas de Leibniz – que são, ao mesmo tempo, pontos matemáticos,
átomos materiais
e almas
–, parece-me indiscutível que tal suposição, uma vez estabelecida, seria de
grande utilidade em
nos
poupar de hipóteses adicionais para explicar a conexão entre o ideal e o real e
dar cabo à questão por
meio do
fato de que ambos já são totalmente identificados nas mônadas. (Por essa razão
Schelling, em
nossos
dias, como o criador do sistema de identidade, novamente as acalentava.)
Todavia, empregá-las
com esse
propósito não agradou o famoso filósofo matemático, polímata e político que,
para esse fim,
formulou
a harmonia preestabelecida. Isso nos fornece dois mundos completamente
distintos, incapazes
de
interagir entre si (Principia philos., §84, e Examen du sentiment du P.
Malebranche, pp. 500 ff. de
Oeuvres
de Leibniz, publ. por Raspe), cada qual uma duplicata completamente supérflua
do outro. Não
obstante,
agora estes devem existir para além de qualquer dúvida – e correr um
paralelamente ao outro,
dançando
a compasso com os menores detalhes. Deste modo, desde o início, o criador de
ambas
estabeleceu
entre estas a harmonia mais precisa, na qual agora continuam lado a lado
graciosamente.
Talvez a
harmonia praestabilita se torne mais compreensível através da comparação com um
palco. Aqui,
em
geral, o influxus physicus [influência física, termo usado por Descartes] só
existe aparentemente,
visto
que causa e efeito estão conectados apenas por meio da harmonia preestabelecida
do diretor, por
exemplo,
quando um atira e o outro cai a tempo. Nos §§62, 63 de sua Théodicée, Leibniz
apresentou a
questão,
de modo grosseiro e sucinto, em sua monstruosa absurdidade. Ainda assim, todo o
seu dogma
não tem
sequer o mérito da originalidade, visto que Espinosa já havia apresentado a
harmonia
praestabilita
com bastante clareza na segunda parte de sua Ética, portanto, na sexta e sétima
proposições,
juntamente com seus corolários, e novamente na quinta parte, primeira
proposição, após
haver
expressado – de sua própria maneira na quinta proposição da segunda parte – a
doutrina muito
próxima
de Malebranche, de que vemos tudo em Deus. [1] Portanto, foi Malebranche o
verdadeiro criador
de toda
essa linha de pensamento, que tanto Espinosa como Leibniz utilizaram e
modificaram, cada qual
de sua
maneira. Leibniz poderia muito bem ter dispensado a coisa toda, pois já havia
desistido do fato
que
constituía o problema – isto é, que o mundo nos é dado imediatamente apenas em
nossa
representação
– para substituí-lo pelo dogma de um mundo corpóreo e de um mundo espiritual
entre os
quais
nenhuma ponte é possível. Este mistura a questão relativa à representação e
coisas-em-si com
aquela
relativa à possibilidade dos movimentos corpóreos por meio da vontade, e então
resolve ambas
por meio
de sua harmonia praestabilita. (Ver Système nouveau de la nature, em Obras de
Leibniz, ed.,
Erdmann, p. 125 – Brucker, Hist. Ph., Tom. IV, Pt. II, p. 425.) O absurdo
monstruoso de sua suposição foi
trazido
à luz por alguns de seus contemporâneos, especialmente por Bayle, que
demonstrou suas
conseqüências.
(Ver também nas obras breves de Leibniz, traduzidas por Huth, 1740, a nota na
página
79, onde
o próprio Leibniz é levado a apresentar as conseqüências revoltantes de sua
suposição.)
Contudo,
o próprio absurdo da suposição – ao qual uma mente pensante foi levada por este
problema –
nos
evidencia sua magnitude, dificuldade e perplexidade, e também a impossibilidade
de o colocarmos de
lado,
cortando o nó através do simples repúdio, como alguns ousaram em nossos dias.
Espinosa
também parte diretamente de Descartes; portanto, em sua capacidade como
cartesiano,
reteve
inicialmente mesmo o dualismo de seu professor e, assim, supôs uma substantia
cogitans
[substância
pensante] e uma substantia extensa [substância extensa], a primeira como
sujeito e a
segunda
como objeto do conhecimento. Posteriormente, quando estava sobre seus próprios
pés, concluiu
que
ambas eram a mesma substância, mas vista de perspectivas distintas e, assim,
por vezes a concebia
como
substantia extensa, por vezes como substantia cogitans. Isso de fato equivale a
dizer que a
distinção
entre o pensante e o extenso, ou entre mente e corpo, é infundada e, portanto,
inadmissível, de
modo que
nada mais deve ser dito a esse respeito. Todavia, este ainda retém a distinção,
visto que nunca
se cansa
de repetir que ambos são o mesmo. Em acréscimo, diz apenas modus extensionis et
idea illius
modi una
eademque est res [igualmente, a forma da extensão e a idéia dessa forma são
também o
mesmo]
(Ética, Pt. II, prop. 7, schol.), significando com isso que nossa representação
de corpos e os
próprios
corpos são o mesmo. Entretanto, o sic etiam [igualmente] é uma transição
insuficiente para isso,
pois
apesar de a distinção entre mente e corpo ou entre o que representa e o que é
extenso ser
infundada,
de forma alguma implica que a distinção entre nossa representação e algo
objetivo, algo real
que
existe independentemente disso tudo – o problema fundamental levantado por
Descartes –, também
seja
infundada. Aquilo que representa e aquilo que é representado pode ser
homogêneo, mas permanece
a
questão de ser possível inferir com segurança, a partir de representações em
minha cabeça, a
existência
de entidades que, em si mesmas, são diferentes de mim, isto é, independentes
dessas
representações.
A dificuldade não é aquela na qual Leibniz gostaria de distorcê-la (e.g.
Théodicée, Pt I,
§59),
isto é, aquela entre as supostas almas ou mentes e o mundo corpóreo, como entre
dois tipos de
substâncias
completamente heterogêneas em que nenhum tipo de ação e conexão pode existir,
razão pela
qual
negou a influência física. Essa dificuldade é somente uma conseqüência da
psicologia racional e,
portanto,
basta descartá-la como uma ficção, como fez Espinosa. Ademais, há – como o
argumentum ad
hominem
[apelo irrelevante ou malicioso a circunstâncias pessoais] contra os defensores
da psicologia
racional
– seu dogma de que Deus, que de fato é um espírito, criou o mundo corpóreo e
continua a
governá-lo;
logo, um espírito pode agir imediatamente sobre corpos. Pelo contrário, a
dificuldade é e
permanece
somente cartesiana – que o mundo que nos é dado imediatamente é apenas ideal,
ou seja,
consiste
somente de representações em nossa cabeça; apesar disso, ainda nos empenhamos
em
julgamentos
sobre um mundo real, isto é, que existe independentemente de nossas
representações.
Portanto,
suprimindo a distinção entre substantia cogitans e substantia extensa, Espinosa
ainda não
resolveu
o problema – no máximo tornou a influência física novamente admissível. Isso,
entretanto, não
basta
para resolver a dificuldade, pois a lei da causalidade é demonstravelmente de
origem subjetiva. Mas
mesmo se
essa lei de algum modo fosse proveniente da experiência externa, ainda
pertenceria a esse
mundo em
questão, que nos é dado apenas idealmente. Em conseqüência, a lei da
causalidade não pode
fornecer
uma ponte entre o absolutamente objetivo e o subjetivo; pelo contrário, é
somente o vínculo que
conecta
um fenômeno ao outro (ver O Mundo como Vontade e Representação, vol. II, cap.
I).
Mas,
para explicar de modo mais completo a mencionada identidade de extensão e a
representação
desta, Espinosa apresenta algo que ao mesmo tempo inclui os pontos de vista de
Malebranche
e Leibniz. Assim, em total conformidade com Malebranche, vemos todas as coisas
em Deus:
rerum
singularium ideae non ipsa ideata, sive res perceptas, pro causa agnoscunt, sed
ipsum Deum,
quatenus
est res cogitans [as idéias de coisas particulares não têm como sua causa os
objetos dessas
idéias,
ou seja, as coisas percebidas, mas o próprio Deus, na medida em que é um ser
pensante]. Ética,
Pt. II,
prop. 5; e esse Deus também é, ao mesmo tempo, seu princípio real e ativo,
assim como em
Malebranche.
Todavia, em última instância, nada é explicado pelo fato de Espinosa designar o
mundo com
o nome
Deus. Mas, ao mesmo tempo, há nele, assim como em Leibniz, um paralelismo exato
entre o
mundo
extenso e o mundo representado: ordo et connexio idearum idem est, ac ordo et
connexio rerum
[a ordem
e conexão de idéias são as mesmas que a ordem e conexão de coisas], Pt. II,
prop. 7 e muitas
passagens
similares. Essa é a harmonia praestabilita de Leibniz; porém aqui o mundo
representado e o
mundo
que existe objetivamente não permanecem completamente separados, como em
Leibniz,
correspondendo
um ao outro somente em virtude da harmonia pré-ajustada exteriormente, mas são
de
fato a
mesma coisa. Logo, o que temos aqui é um completo e absoluto realismo, na
medida em que a
existência
de coisas corresponde exatamente à sua representação em nós, visto que ambos
são o mesmo.
[2]
Conseqüentemente, conhecemos as coisas-em-si; são extensa em si mesmas, assim
como também se
manifestam
como extensa na medida em que aparecem como cogitata, isto é, em nossa
representação
dessas.
(Talvez esteja aqui a origem da identidade do real e do ideal de Schelling.)
Porém, estritamente,
isso
tudo são meras afirmações. A explicação é de difícil compreensão devido à
ambigüidade da palavra
Deus,
que é empregada de forma completamente inadequada; assim, perde-se na
obscuridade e, no fim,
resume-se
a dizer: nec impraesentiarum haec clarius possum explicare [e no momento não
posso explicálo
mais
claramente]. Todavia, a obscuridade na explicação sempre provém da obscuridade
do
entendimento
do próprio filósofo e do estudo de suas obras. Vauvenargues muito adequadamente
disse:
La clarté
est la bonne foi des philosophes [a lucidez é a boa-fé dos filósofos] (Ver
Revue des deux
mondes,
15 Agosto 1853, p. 635). Aquilo que na música é “pura frase ou movimento”, na
filosofia é
clareza
perfeita, na medida em que é a conditio sine qua non [condição indispensável],
cujo
descumprimento
implica a perda do valor de todo o resto, e assim teríamos de dizer: quodcunque
ostendis
mihi sic incredulus odi [tudo que você mostra me é incrível e repulsivo
(Horácio, Ars poética,
188)].
Se mesmo nas questões corriqueiras da vida prática precisamos da clareza para
nos proteger
contra
possíveis mal-entendidos, como podemos ousar nos expressar indefinidamente, ou
mesmo
ininteligivelmente,
no problema filosófico mais difícil, abstruso e quase impenetrável ao pensamento?
A
obscuridade
que censurei na doutrina de Espinosa surge de este não proceder imparcialmente
da natureza
das
coisas como as encontra, mas do cartesianismo e, conseqüentemente, de toda
espécie de conceitos
tradicionais
como Deus, substantia, perfectio e assim por diante, tentando de modo tortuoso
harmonizálos
com sua
noção de verdade. Freqüentemente este expressa as melhores coisas apenas
indiretamente,
especialmente
na segunda parte de sua Ética, visto que sempre fala per ambages [por meio de
circunlocuções]
e quase alegoricamente. Por outro lado, Espinosa novamente evidencia um
inconfundível
idealismo
transcendental, um conhecimento, apesar de genérico, das verdades apresentadas
por Locke e
particularmente
por Kant, daí uma distinção real entre o fenômeno e a coisa-em-si, e o
reconhecimento
de que
somente o fenômeno nos é acessível. Ver, por exemplo, Ética, Pt. II, prop. 16,
com o segundo
corolário;
prop. 17, schol.; prop. 18, schol; prop. 19; prop. 23, que o estende ao
autoconhecimento;
prop.
25, que o expressa claramente; e, finalmente, como um résumé, o corolário da
prop. 29, que afirma
claramente
que não conhecemos a nós próprios ou as coisas como são nelas mesmas, mas
somente como
aparecem.
A demonstração da Pt. III, prop. 27, expressa a questão com maior clareza desde
o início.
Sobre a
relação entre as doutrinas de Espinosa e Descartes, lembro aquilo que disse em
O Mundo como
Vontade
e Representação, vol. II, cap. 50. Por partir dos conceitos da filosofia
cartesiana, Espinosa, em
sua
explicação, não só gerou muita obscuridade e mal-entendidos, mas também foi
levado a muitos
paradoxos
flagrantes, falácias óbvias, absurdos e contradições. Assim, muito do que é
verdadeiro e
admirável
em seu ensinamento recebeu uma mistura extremamente indesejável de questões
positivamente
indigestas, e o leitor oscila entre admiração e aborrecimento. Mas, no aspecto
aqui
relevante,
o erro fundamental de Espinosa foi partir do lugar errado para traçar sua linha
intersecção
entre o
ideal e o real, ou entre os mundos subjetivo e objetivo. Em conseqüência,
extensão de forma
alguma
significa o oposto de representação, mas fica inteiramente contida nisso.
Representamos as coisas
como
extensas e, na medida em que são extensas, são nossa representação. Mas a
questão e problema
originais
são se, independentemente de nosso representar, algo é extenso, ou mesmo se
algo de fato
existe.
Posteriormente, esse problema foi solucionado por Kant – até o momento, com
precisão inegável –
através
da afirmação de que a extensão, ou espacialidade, jaz tão-somente na
representação, sendo,
portanto,
intimamente ligada e dependente desta, visto que o todo do espaço é apenas a
forma da
representação;
assim, independentemente de nosso representar, nada extenso pode existir – e
quase
certamente
nada existe. Logo, a linha de interseção de Espinosa foi inteiramente traçada
no lado ideal,
tendo
este parado no mundo representado. Indicado por sua forma de extensão, este
mundo é
considerado
por Espinosa como o real e, assim, com existência independente de sua
representação em
nossas
cabeças, ou seja, com existência em si. Espinosa, então, está correto em dizer
que o extenso e o
representado
– isto é, nossa representação de corpos e os próprios corpos – são a mesma
coisa (Pt. II,
prop. 7,
schol.). Pois, naturalmente, as coisas só possuem extensão enquanto
representadas e só são
extensas
se forem passíveis de representação; o mundo como representação e o mundo no
espaço são
una
eademque res [exatamente a mesma coisa]; isso podemos admitir sem precauções.
Mas se extensão
fosse
uma qualidade das coisas-em-si, então nossa percepção intuitiva seria um
conhecimento das coisasem-
si. Isso
é o que ele supõe, e nisto consiste seu realismo. Entretanto, visto que este
não demonstra o
realismo
e não prova que, em correspondência à nossa percepção intuitiva de um mundo
espacial, há um
mundo
espacial independente dessa percepção, o problema fundamental continua sem
solução. Isso
simplesmente
se deve ao fato de que a linha de interseção entre o real e o ideal, o objetivo
e o subjetivo,
a
coisa-em-si e o fenômeno não foi traçada corretamente. Pelo contrário, como
disse, este conduz a
interseção
através do lado ideal, subjetivo, fenomênico do mundo e, portanto, através do
mundo como
representação.
Separando este mundo em extenso ou espacial e nossa representação do extenso,
esforça-se
grandemente para demonstrar que ambos são idênticos, como de fato são. Como
Espinosa
permanece
completamente no lado ideal do mundo – pois pensou que encontraria o real
naquilo que é
extenso
e pertence ao mundo –, a conseqüência é que o mundo da percepção intuitiva é a
única realidade
fora de
nós, e aquilo que sabe (cogitans), a única realidade dentro de nós; por outro
lado, desloca a única
realidade
– a saber, a vontade – para o ideal, pois a representa como um mero modus
cogitandi; de fato,
a
identifica com o julgamento. Ver Ética, Pt. II, as provas das proposições 48 e
49, onde diz: per
VOLUNTATEM
intelligo affirmandi et negandi facultatem, e novamente: concipiamus singularem
aliquam
VOLITIONEM,
nempe modum eogitandi, quo mens affirmat, tres angulos trianguli aequales esse
duobus
rectis,
e seu corolário prossegue: Voluntas et intelleetus unum et idem sunt [por vontade
compreendo a
habilidade
de afirmar ou negar ... peguemos um ato da vontade específico, o modo de
pensamento por
meio do
qual a mente afirma que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois
ângulos retos ...
vontade
e intelecto são a mesma coisa]. Em geral, Espinosa tem o grande defeito de,
propositalmente,
utilizar
palavras de modo inadequado para expressar conceitos que no mundo inteiro
recebem outros
nomes e,
por outro lado, suprimir delas o significado que têm em todo lugar. Assim,
chama “Deus” aquilo
que
todos chamam “mundo”; “justiça” aquilo que todos chamam “poder”; e “vontade”
aquilo que todos
chamam
“julgamento”. Estamos justificados em nos lembrarmos do Hetman of the Cossacks
em Graf
Benjowsky
de Kotzebue [Kotzebue, A. F. F. V., (1761-1819). Essa antiga peça foi a muito
esquecida].
Apesar
de chegar depois e já com o conhecimento de Locke, Berkeley de fato avançou no
caminho
dos
cartesianos e, dessa forma, tornou-se o criador do verdadeiro idealismo, isto
é, o conhecimento de
que o
que é extenso e ocupa espaço – logo, o mundo da percepção intuitiva em geral –
só pode existir em
nossa
representação, e que é absurdo e mesmo contraditório atribuir a esta, como tal,
outra existência
externa
a toda representação e independente do sujeito do conhecimento, supondo, assim,
que a matéria
existe
em si. [3] Essa é uma compreensão bastante verdadeira e profunda, mas toda sua
filosofia consiste
somente
nisso. Este descobriu o ideal e o distinguiu claramente; mas não sabia como
encontrar o real,
uma
questão em que nunca se empenhou muito, sobre a qual se manifestava apenas
ocasionalmente, de
modo
fragmentado e incompleto. Para este, a vontade e onipotência de Deus são a
causa direta de todo
fenômeno
no mundo da percepção intuitiva, isto é, de todas as nossas representações. A
existência real
pertence
somente a seres que conhecem e desejam, como nós próprios: logo, esses,
juntamente com
Deus,
constituem o real. São espíritos, ou seja, somente seres que conhecem e
desejam; pois desejar e
conhecer
são considerados por este como absolutamente inseparáveis. Como seus
predecessores,
considerava
Deus melhor conhecido que o mundo diante de nós; portanto, via uma redução a
esse como
uma
explicação. De maneira geral, sua posição clerical e mesmo episcopal o tolheu,
restringindo-o a um
pequeno
círculo de idéias que nunca poderia transgredir. Assim, não poderia ir além; em
sua cabeça, o
verdadeiro
e o falso tiveram de aprender o melhor possível a ser compatíveis um com o
outro. Essas
observações
podem ser estendidas às obras de todos esses filósofos, salvo Espinosa. Todos
foram
corrompidos
por aquele teísmo judaico que é impenetrável a qualquer investigação, morto
para toda
pesquisa
e, dessa forma, se apresenta como uma idéia fixa. A cada passo, se planta no
caminho da
verdade,
de modo que o dano que causa na esfera teórica aparece como a contrapartida
daquilo que fez
na
esfera prática ao longo de mil anos – nas guerras religiosas, inquisições e
conversão de nações por
meio da
força.
A grande
afinidade entre Malebranche, Espinosa e Berkeley é inequívoca. Os vimos partir
de
Descartes,
no sentido de que abraçaram e tentaram solucionar o problema fundamental
apresentado por
este na
forma de uma dúvida referente à existência do mundo externo. Estão todos
preocupados em
investigar
a separação e conexão entre o mundo ideal subjetivo, que se dá somente em nossa
representação,
e o mundo real objetivo, que existe independentemente desta e, portanto, em si
mesmo.
Esse
problema constitui, como disse, o eixo de toda a filosofia moderna.
Mas
Locke difere desses filósofos – provavelmente pela sua influência de Hobbes e
Bacon – no
sentido
de que se liga o mais fortemente possível à experiência e ao bom senso,
evitando ao máximo
hipóteses
sobrenaturais. Para este, o real é a matéria e, sem qualquer consideração pelo
escrúpulo de
Leibniz
a respeito da impossibilidade de uma conexão causal entre a substância pensante
imaterial e a
substância
extensa material, supõe uma influência física entre matéria e sujeito do
conhecimento. Aqui,
entretanto,
com deliberação e honestidade raras, chega a confessar a possibilidade de
aquilo que conhece
e pensa
também ser matéria (Ensaio sobre o Entendimento Humano, lib. IV, c. 3, §6).
Posteriormente,
isso lhe
rendeu o repetido louvor do grande Voltaire; por outro lado, em seus dias, o
expôs aos maliciosos
ataques
do ardiloso sacerdote anglicano, o Bispo de Worcester. [4] Com ele o real, i.e.
matéria, é gerado
nas
representações do sujeito do conhecimento ou o ideal através do “impulso”, i.e.
pelo empurrar ou
pressão.
(Ibid., lib. I, c. 8, §II.) Dessa forma, temos um realismo completamente
massivo que, por sua
própria
exorbitância, culminou em contradição e deu origem ao idealismo de Berkeley. O
ponto de origem
particular
disso talvez seja o que Locke afirma no fim do §2 do capítulo 21 do segundo
livro
surpreendentemente
pouco reflexivo. Entre outras coisas, diz que “solidez, extensão, figura,
movimento e
repouso
realmente existiriam no mundo, como são, houvesse ou não algum ser sensível
para percebêlos”.
Assim
que refletimos sobre isso, somos levados a reconhecê-lo como falso; mas então
aí permanece
o
idealismo berkeliano, e é inegável. Todavia, nem mesmo Locke faz vista grossa a
esse problema
fundamental,
a saber, o abismo entre as representações dentro de nós e as coisas que existem
independentemente
de nós e, dessa forma, a distinção entre o ideal e o real. Mas, em geral, este
se
desfaz
do problema com argumentos válidos que, todavia, consistem num bom senso
grosseiro e na
referência
à adequação de nosso conhecimento das coisas para fins práticos (ibid., lib.
IV, c. 4 e 9), algo
que
obviamente nada tem a ver com o caso e apenas evidencia o quão inadequado ao
problema o
empirismo
permanece. Mas agora é somente seu realismo que o leva a restringir o que
corresponde ao
real em
nosso conhecimento a qualidades inerentes às coisas, como são em si mesmas, e
distinguir essas
qualidades
daquelas vinculadas somente ao nosso conhecimento delas e, portanto, somente ao
ideal.
Dessa
forma, denomina as últimas qualidades secundárias, mas, as outras, primárias.
Essa é a origem da
distinção
entre o ser-em-si e o fenômeno que, posteriormente, na filosofia kantiana
adquire uma grande
importância.
Temos, aqui, o verdadeiro ponto de contato genético entre o ensinamento
kantiano e a
filosofia
interior, especialmente a de Locke. O primeiro foi provocado e mais
imediatamente ocasionado
pelas
objeções céticas de Hume aos ensinamentos de Locke; por outro lado, tem apenas
uma relação
polêmica
com a filosofia de Leibniz e Wolff.
Essas
qualidades primárias, que são consideradas exclusivamente como determinações
das
coisas-em-si
e, conseqüentemente, pertencentes a estas mesmo fora e independentemente de
nossa
representação,
provam ser apenas algo que não pode ser despensado, a saber, extensão,
impenetrabilidade,
forma, movimento ou repouso, e número. Todas as restantes são consideradas
secundárias,
isto é, geradas pela ação das qualidades primárias em nossos órgãos do sentido,
conseqüentemente,
como meras sensações nestes; tais qualidades são cor, tom, sabor, cheiro,
dureza,
moleza,
suavidade, aspereza etc. Assim, estas não têm a menor semelhança com aquela
qualidade nos
seres-em-si
que os excita, mas são redutíveis àquelas qualidades primárias como suas
causas, e somente
estas
são puramente objetivas e de fato existem nas coisas. (Ibid., lib. I, c. 8, §§7
seqq.) Nossas
representações
destas são, portanto, cópias fiéis, as quais reproduzem exatamente as
qualidades
presentes
das coisas-em-si (loc. cit., §15. Desejo ao leitor a sorte de realmente
perceber aqui quão tolo o
realismo
se torna). Vemos que Locke remove da natureza das coisas-em-si, cujas
representações
recebemos
do exterior, aquilo que é uma ação dos nervos dos órgãos sensoriais, uma
observação
simples,
compreensível e indiscutível. Mas, neste caminho, Kant posteriormente deu um
passo
imensuravelmente
maior: também remover aquilo que é uma ação de nosso cérebro (essa massa de
nervos
incomparavelmente maior). Assim, todas aquelas qualidades aparentemente
primárias tornam-se
secundárias,
e aquilo presumido como coisas-em-si torna-se mero fenômeno. A verdadeira coisa-em-si,
agora
despida mesmo dessas qualidades, paira acima como uma quantidade completamente
desconhecida,
um mero x. E isso, obviamente, exigiu uma análise difícil e profunda que tardou
para ser
defendida
contra os ataques de incompreensão e da ânsia por compreensão.
Locke
não deduz suas qualidades primárias das coisas, nem sequer apresenta outras
razões por
que
apenas essas e não outras são puramente objetivas, exceto por alegar que são
inerradicáveis. Se nós
próprios
investigarmos por que declara como não objetivamente presentes estas qualidades
das coisas
que agem
imediatamente na sensação e que, conseqüentemente, vêm diretamente do exterior,
enquanto
concede
existência objetiva a essas qualidades (como desde então reconhecemos) que
surgem das
próprias
funções especiais do nosso intelecto, então a razão para isso é que a
consciência objetivamente
perceptiva
(a consciência de outras coisas) necessariamente requer um aparato complicado,
do qual se
apresenta
como uma função; logo, sua determinação mais essencial já está interiormente
fixada. Assim, a
forma
universal, i.e. o modo, da percepção intuitiva, a única da qual o a priori
conhecível pode resultar,
apresenta-se
como o tecido básico do mundo intuitivamente percebido e, de acordo, aparece
como o fator
absolutamente
necessário, que é sem exceção e não pode de qualquer forma ser removido, de
modo que,
antecipadamente,
permanece firme como a condição de todas as outras coisas e sua variedade
grandiosa.
Sabemos
que isso é, antes de tudo, tempo e espaço, e o que se segue destes é apenas
possível por meio
destes.
Em si mesmos, tempo e espaço são vazios; se algo há de surgir neles, deve
aparecer como
matéria,
isto é, como algo agindo e, conseqüentemente, como causalidade; pois matéria é
pura
causalidade,
de ponta a ponta. Seu ser consiste em seu agir e vice versa; é simplesmente a
forma
objetivamente
apreendida da compreensão para a própria causalidade. (Sobre a Quádrupla Raiz
do
Princípio
de Razão Suficiente, §21; e também O Mundo como Vontade e Representação, vol.
I, §4, e vol.
II, cap.
4.) Segue-se que as qualidades primárias de Locke são meramente aquilo que não
se pode
despensar;
e isso indica com clareza suficiente sua origem subjetiva, visto que podem
resultar
diretamente
da natureza e constituição do próprio aparato-perceptivo. Conseqüentemente,
implica que
considera
como absolutamente objetivo justamente aquilo que, como uma função cerebral, é
muito mais
subjetivo
que a sensação ocasionada diretamente do exterior, ou de qualquer modo é mais
completamente
determinado.
Entrementes,
é agradável ver como, por meio de todas essas diferentes concepções e
explicações,
o
problema, levantado por Descartes, da relação entre o ideal e o real é
crescentemente desenvolvido e
clarificado
e, assim, a verdade progride. Isso, obviamente, ocorreu sob as circunstâncias
favoráveis dos
tempos
ou mais precisamente da natureza que, num breve intervalo de dois séculos,
originou e permitiu,
na
Europa, o amadurecimento de meia dúzia de mentes pensantes. Ademais, como um
presente do
destino,
foi-lhes permitido, num mundo de mentalidade vulgar abandonado aos lucros e ao
prazer, seguir
sua
eminente e exaltada vocação, indiferentes aos uivos dos padres e aos disparates
ou atividades
prudentes
dos professores de filosofia contemporâneos.
Enquanto,
em concordância com seu empirismo estrito, Locke nos permitiu conhecer mesmo a
relação
de causalidade apenas através da experiência, Hume não defendeu essa suposição
falsa, o que
teria
sido o correto. Pelo contrário, foi além da questão – a realidade da relação de
causalidade em si – e,
de fato,
o fez por meio da observação, correta em si, de que a experiência nunca pode
fornecer,
sensivelmente
e diretamente, mais que uma mera sucessão de coisas, não um causar e acarretar
no
sentido
real, ou seja, uma conexão necessária. Todos sabemos como essa objeção cética
de Hume deu
origem
às investigações incomparavelmente mais profundas de Kant no assunto, levando-o
ao resultado
de que a
causalidade e também o espaço e o tempo são conhecidos por nós a priori, isto
é, existem em
nós
anteriormente a toda experiência e, deste modo, pertencem à parte subjetiva do
conhecimento. Disso
segue-se
também que todas aquelas qualidades primárias, i.e, absoluto, qualidades de
coisas, que foram
determinadas
por Locke, não podem ser peculiares às coisas-em-si, mas são inerentes ao nosso
modo de
conhecê-las,
pois todas essas qualidades são compostas de puras determinações de tempo,
espaço e
causalidade
e, conseqüentemente, devem ser consideradas como pertencentes não ao real, mas
ao ideal.
Finalmente,
segue disso que não conhecemos nada sobre como as coisas são em si mesmas, mas
tãosomente
em sua
aparência fenomênica. Assim, o real, a coisa-em-si, permanece algo
completamente
desconhecido,
um mero x, e todo o mundo da percepção intuitiva provém do ideal como uma
simples
representação,
um fenômeno, ao qual, entretanto, algo real – uma coisa-em-si – deve
corresponder.
Partindo
desse ponto, finalmente dei o passo que, acredito, será o último, pois resolvi
o problema
sobre o
qual todo o filosofar se debruçou desde Descartes. Reduzi todo o ser e conhecer
a dois elementos
de nossa
autoconsciência e, deste modo, a algo para além do qual não pode haver qualquer
princípio
explicativo,
visto que é o mais imediato e, portanto, derradeiro. Recordei, como procede das
investigações
de todos
os meus predecessores que foram aqui discutidos, que o absolutamente real, ou a
coisa-em-si,
nunca
pode nos ser dado diretamente do exterior pelo caminho da mera representação,
porque
inevitavelmente
está na natureza de tal representação sempre fornecer somente o ideal. Por
outro lado,
visto
que nós próprios somos indiscutivelmente reais, deve ser de alguma forma
possível esboçar um
conhecimento
do real a partir do interior de nossa própria natureza. E, de fato, este
aparece de uma
forma
imediata na consciência como vontade. Desse modo, comigo a linha de intersecção
cai entre o real
e o
ideal de tal modo que todo o mundo da percepção intuitiva, apresentando-se
objetivamente, incluindo
o
próprio corpo, juntamente com o espaço, tempo e causalidade, e,
conseqüentemente, com a extensão
de
Espinosa e a matéria de Locke, pertence, na forma de representação, ao ideal.
Nesse caso, apenas
resta a
vontade como o real, e todos os meus predecessores, impensadamente, lançaram-na
no ideal,
como um
mero resultado da representação e pensamento; Descartes e Espinosa até mesmo
identificaram-na
com o julgamento. [5] Assim, comigo, a ética está conectada à metafísica de
forma
incomparavelmente
mais direta e íntima que em qualquer outro sistema, de modo que a significância
moral do
mundo e da existência está mais firmemente estabelecida que nunca. Somente
vontade e
representação
são fundamentalmente diferentes na medida em que constituem o contraste básico
de
todas as
coisas no mundo sem deixar nada para trás. A coisa representada e a
representação desta são o
mesmo;
mas apenas a coisa representada, não a coisa-em-si. A última é sempre vontade,
qualquer seja a
forma na
qual aparece na representação.
Apêndice
Leitores
que estão familiarizados com o que se passou por filosofia na Alemanha no curso
deste
século
[XIX], talvez se perguntem por que não vêem menção, no intervalo entre mim e
Kant, ao
idealismo
de Fichte ou ao sistema de identidade absoluta do real e do ideal, visto que
parecem de fato
pertencer
ao nosso assunto. Não fui capaz de incluí-los porque Fichte, Schelling e Hegel,
em minha
opinião,
não são filósofos; carecem do primeiro requisito de um filósofo – a seriedade e
honestidade
investigativa.
Estes são somente sofistas que desejavam parecer em vez de ser algo. Buscavam
não a
verdade,
mas os seus próprios interesses e ascensão no mundo. Nomeações de governos,
honorários e
royalties
de estudantes e editores, e, como um meio para esse fim, a maior demonstração e
sensação
possível
em sua pretensa filosofia – tais foram as estrelas-guia e os gênios inspiradores
desses discípulos
da
sabedoria. Assim, não passaram na análise preliminar e não podem ser admitidos
na venerável
companhia
de pensadores para a humanidade.
Entretanto,
estes foram notáveis em uma coisa, na arte de seduzir o público e de se
passarem
pelo que
não são; e isso sem dúvida requer talento, porém não o filosófico. Por outro
lado, o fato de que
não
foram capazes de, na filosofia, atingir qualquer coisa substancial deve-se ao
fato de que seu intelecto
não
havia se tornado livre, mas permaneceu a serviço de sua vontade. Pois é verdade
que o intelecto
pode
realizar grandes façanhas pela vontade e seus objetivos, porém não pode fazer
pela filosofia mais
que pela
arte. Pois estas estabelecem, como condição primeira, que o intelecto age
apenas
espontaneamente
e em seus próprios termos e que, durante o tempo de sua atividade, cessa sua
submissão
à vontade, isto é, ter em vista as próprias metas pessoais. Mas quando o
intelecto está,
ativamente,
em seus próprios termos, por natureza não conhece qualquer objetivo senão a
verdade.
Logo,
para ser um filósofo, isto é, aquele que ama a sabedoria (pois a sabedoria não
é senão a verdade),
não
basta a um homem amar a verdade na medida em que esta é compatível com seu
próprio interesse,
com a
vontade de seus superiores, com os dogmas da Igreja ou com os preconceitos e
gostos dos
contemporâneos;
enquanto estiver satisfeito com tal posição, é apenas um amigo de seu próprio
ego, não
da
sabedoria. Pois esse título de honra é compreendido de forma correta e sábia
precisamente por sua
afirmação
de que se deve, acima de tudo, amar a verdade honestamente e de todo o coração,
portanto,
incondicionalmente
e sem reservas, e, se necessário, em detrimento de todo o mais. A razão para
isso é
haver
anteriormente afirmado que o intelecto se tornou livre, e nesse estado nem
mesmo sabe ou
compreende
qualquer outro interesse senão o da verdade. A conseqüência, todavia, é que
concebemos
um ódio
implacável a todo mentir e enganar, independentemente da roupagem com que se
apresentem.
Dessa
forma, naturalmente, talvez não estejamos em sintonia com o mundo, mas
estaremos com a
filosofia.
Por outro lado, os prognósticos para a filosofia são ruins se, com o pretexto
da busca pela
verdade,
começamos a nos distanciar de toda integridade, honestidade e sinceridade,
desejando somente
nos
passarmos pelo que não somos. Adotamos, então, como aqueles três sofistas,
primeiramente um
pathos
falso, depois uma seriedade afetada e pomposa, depois um ar de superioridade infinita,
a fim de
impor
aquilo que receamos nunca ser capazes de convencer. Escreve-se sem cuidado
porque, pensando
somente
com o intuito de escrever, economizou-se os pensamentos até o momento de
escrevê-los.
Tenta-se
passar sofismas palpáveis por provas, apresentando uma verborragia vazia e sem
sentido como
idéias
profundas. Faz-se referência à intuição intelectual ou ao pensamento absoluto e
ao automovimento
de
conceitos. Desafia-se explicitamente a postura de “reflexão”, ou seja, de
deliberação racional, de
consideração
imparcial e apresentação honesta, e dessa forma a utilização adequada e normal
da
faculdade
de raciocinar. Assim, se expressa um infinito desprezo pela “filosofia da
reflexão”, nome com o
qual
designam qualquer linha de pensamento que deduz conseqüências de razões, como
se constituiu
todo o
filosofar anterior. Se, portanto, alguém estiver imbuído de audácia suficiente
e for encorajado pelo
lamentável
espírito da época, proferirá algo como se segue: “Mas não é difícil perceber
que essa maneira
de
proceder – expor uma proposição, defendê-la com argumentos, refutar o seu
oposto com razões – não
é a
forma como a verdade pode manifestar-se. A verdade é seu próprio movimento
dentro de si mesma”
(Hegel,
Prefácio à Fenomenologia do Espírito, p. LVII, na edição completa, p.36.) Não
penso ser difícil ver
que
qualquer indivíduo que propaga algo desse gênero é um charlatão descarado que
deseja enganar
tolos e
observa que encontrou seu público entre os alemães do século XIX.
Assim,
se, enquanto pretensamente nos precipitamos ao templo da verdade, damos as
rédeas aos
nossos
próprios interesses pessoais, que se norteiam por estrelas-guia muito distintas
– por exemplo,
pelos
gostos e fracos dos contemporâneos, pela religião estabelecida, mas em
particular pelas insinuações
e
sugestões daqueles por dentro das intrigas –, então como poderemos alcançar o
elevado, íngreme,
rochoso
local onde jaz o templo da verdade? Podemos nos ligar, por meio do vínculo
certo do interesse, a
uma
porção de discípulos esperançosos, isto é, esperançosos de proteção e abrigo.
Estes constituem
aparentemente
uma seita, mas na verdade uma fração, e através de suas vozes estentóreas um
indivíduo
é
proclamado aos quatro ventos um sábio sem paralelo; o interesse do indivíduo é
satisfeito, o da
verdade,
traído.
Isso
explica as dolorosas impressões pelas quais somos tomados quando, após estudar
os
pensadores
genuínos mencionados acima, nos deparamos com os escritos de Fichte e
Schelling, ou
mesmo
com os presunçosos rabiscos de nonsense de Hegel, produzidos com uma
inabalável, apesar de
justificada,
confiança na estupidez alemã. [6] Com esses pensadores genuínos, sempre se
considera uma
investigação
honesta da verdade apenas uma honesta tentativa de comunicar suas idéias a
outrem.
Portanto,
todos que lêem Kant, Locke, Hume, Malebranche, Espinosa e Descartes sentem-se
elevados e
agradavelmente
impressionados. Isso é produzido através da comunhão com uma mente nobre que
tem e
desperta
idéias, que pensa e leva outrem a pensar. O inverso disso é o que sucede quando
lemos os três
sofistas
alemães mencionados acima. Um leitor imparcial, abrindo um de seus livros e
perguntando-se se
este é o
tom de um pensador que deseja instruir ou de um charlatão tentando impressionar,
não terá
qualquer
dúvida dentro de cinco minutos; aqui tudo respira muita desonestidade. O tom da
investigação
calma,
que caracterizou toda a filosofia anterior, é trocado por uma certeza
inabalável, como é peculiar ao
charlatanismo
de todo gênero e de todos os tempos. Aqui, todavia, tal certeza alega estar
respaldada na
intuição
intelectual imediata ou no pensamento absoluto, isto é, independente do sujeito
e, portanto, da
falibilidade
deste. Em cada página e cada linha, há a voz de um esforço em seduzir e enganar
o leitor,
primeiramente
produzindo um efeito para espantá-lo, depois estupefazê-lo e atordoá-lo através
de frases
incompreensíveis
e mesmo franco nonsense, e novamente embaraçá-lo através da audácia da
afirmação,
em suma,
lançar poeira em seus olhos e mistificá-lo tanto quanto possível. Assim, a
impressão sentida
por um
homem no caso da transição em questão no âmbito teórico pode ser comparada com
aquela que
talvez
tivesse no âmbito prático se se visse num antro de canalhas após sair de uma comunidade
de
homens
de honra. Que homem estimável é Christian Wolff em comparação com esses, um
homem tão
denegrido
e ridicularizado precisamente por esses três sofistas! Este tinha pensamentos
reais e os
sustentava;
aqueles, por outro lado, tinham apenas estruturas de palavras e frases cujo
objetivo era o
engano.
Dessa forma, o verdadeiro caráter distintivo da filosofia da chamada escola
pós-kantiana é a
desonestidade,
seu elemento é névoa e fumaça, e sua meta são objetivos pessoais. Seus
expoentes se
empenhavam
em parecer, não em ser; são, portanto, sofistas, não filósofos. O ridículo da
posteridade,
estendendo-se
até seus admiradores, e depois o esquecimento – eis o que os aguarda. Por
vezes,
associado
com a tendência mencionada desses homens, há um tom cambiante e abusivo, que
permeia
completamente
os escritos de Schelling como um acompanhamento obrigatório. Porém, se esse não
fosse
o caso,
e se Schelling tivesse trabalhado com honestidade em vez de pompa e impostura,
então, sendo
sem
dúvida o mais talentoso dos três, talvez tivesse ao menos ocupado na filosofia
uma posição
subordinada
como um eclético, sendo provisoriamente útil. O amálgama que preparou a partir
das
doutrinas
de Plotino, Espinosa, Jacob Boehme, Kant e as ciências naturais da modernidade
poderia, nesse
sentido,
ser útil para preencher a lacuna produzida pelos resultados negativos da
filosofia kantiana, até
que uma
filosofia realmente nova viesse e proporcionasse a compensação necessária.
Particularmente,
utilizou
a ciência natural de nosso século para reviver o panteísmo abstrato de
Espinosa. Sem qualquer
conhecimento
da natureza, Espinosa filosofou aleatoriamente a partir de conceitos meramente
abstratos
e, sem
conhecer as coisas propriamente, erigiu a estrutura de seu sistema. Ter revestido
este esqueleto
com
carne e sangue e, tanto quanto possível, ter-lhe concedido vida e movimento por
meio da aplicação
da
ciência natural que, neste meio tempo, havia se desenvolvido, apesar de esta
ter sido freqüentemente
aplicada
de modo errôneo, é o inegável mérito de Schelling em sua Naturphilosophie, que
também é o
melhor
de seus muitos esforços distintos e novas tendências.
Assim
como crianças brincam com armas projetadas para aplicações sérias ou com outros
instrumentos
destinados aos adultos, também os três sofistas que estamos considerando
lidaram com
este
assunto, de tal forma que forneceram um adorno grotesco aos dois séculos de
investigação laboriosa
da parte
dos filósofos pensativos e meditativos. Após Kant ter mais que nunca acentuado
o grande
problema
da relação entre o que existe em-si e nossas representações, trazendo-o muito
mais próximo de
uma
solução, Fichte avançou com a afirmação de que não há nada por detrás das
representações e que
estas
são simplesmente produto do sujeito do conhecimento, de ego. Através disso,
buscava superar
Kant,
mas produziu apenas uma caricatura do sistema deste filósofo, visto que,
através da aplicação do
método
desses três pseudofilósofos então já muito alardeados, aboliu completamente o
real, deixando
somente
o ideal. Então veio Schelling que, em seu sistema de identidade absoluta do
real e do ideal,
declarou
toda diferença irrelevante e sustentou que o ideal também é o real e que ambos
são idênticos.
Tentou,
assim, lançar novamente à confusão aquilo que havia sido tão cuidadosamente
separado por meio
de um
processo de reflexão lento e de evolução gradual, misturando tudo. (Schelling,
Vom Verhältniss der
Naturphilosophie
zur Fichte’schen, pp. 14-21.) A distinção do ideal e do real é fortemente
negada de
forma
semelhante aos erros já mencionados de Espinosa. Ao mesmo tempo, mesmo as
mônadas de
Leibniz,
essa monstruosa identificação de dois absurdos, dos átomos e do indivisível,
essencialmente
aquilo
que indivíduos instruídos denominaram almas, são novamente apresentadas,
solenemente
exaltadas
e empregadas. (Schelling, Ideen zur Naturphilosophie, 2nd edn., pp. 38 e 82.) A
filosofia
natural
de Schelling leva o mesmo nome da filosofia da identidade porque, seguindo os
passos de
Espinosa,
abole as três distinções que este também aboliu, a saber, aquelas entre Deus e
o mundo, entre
o corpo
e a alma e, finalmente, também entre o ideal e o real no mundo percebido
intuitivamente. Esta
última
distinção, todavia, como foi demonstrado quando consideramos Espinosa, de forma
alguma
depende
das outras duas. Pelo contrário, quanto mais foi trazida à luz, mais as outras
se mostraram
duvidosas;
pois as primeiras são baseadas em provas dogmáticas (derrubadas por Kant),
enquanto a
última
baseia-se num simples ato de reflexão. Em conformidade, Schelling identificou a
metafísica com a
física
e, assim, o pomposo título Von der Weltseele foi dado meramente a uma diatribe
físico-química.
Todos os
problemas realmente metafísicos que incansavelmente se insinuam à consciência
humana
seriam
silenciados por meio de uma negação direta baseada em afirmações categóricas. A
natureza está
presente
simplesmente porque esta é, fora de si mesma e através de si mesma; nós lhe
concedemos o
título de
Deus, e com isso é posta de lado; todos que perguntarem algo além são tolos. A
distinção entre
o
subjetivo e o objetivo é simplesmente um truque dos acadêmicos, como toda a
filosofia kantiana, e a
distinção
entre a priori e a posteriori desta filosofia não tem qualquer utilidade. Nossa
percepção intuitiva
empírica
muito adequadamente nos apresenta as coisas-em-si, e assim por diante. Vejamos
Ueber das
Verhältniss
der Naturphilosophie zur Fichte’schen, pp. 51 e 67 e também p. 61, onde são
expressamente
ridicularizados
“quem está realmente surpreso pelo nada não existir e quem se surpreende o
bastante por
algo
realmente existir”. Assim, para Herr von Schelling, tudo parece ser uma
obviedade. No fundo,
entretanto,
tal fala é um apelo oculto, em frases pomposas, ao que se denomina sólido –
i.e. vulgar –
bom
senso. De resto, lembro aqui o que foi dito no início do décimo sétimo capítulo
do segundo volume
de minha
obra capital. Significante para nossa questão, e muito ingênua, é a passagem na
página 69 da
obra de
Schelling citada acima: “Se o empirismo houvesse atingido completamente seu
objetivo, sua
oposição
à filosofia, e com isso a própria filosofia, desapareceria como uma esfera
particular ou uma
espécie
de ciência. Todas as abstrações se dissolveriam em percepções intuitivas
diretas e ‘amigáveis’; o
mais
elevado seria um esporte de prazer e inocência; o mais difícil seria fácil, o
mais imaterial, material, e
o homem
seria capaz de ler o livro da natureza com alegria e liberdade.” Isso,
obviamente, seria muito
agradável!
Mas, conosco, não é simples assim; o pensar não pode ser erradicado dessa
maneira. A velha
esfinge
séria com seus enigmas jaz lá, imóvel, e esta não despenca da rocha porque a
declaramos um
fantasma.
Dessa forma, quando o próprio Schelling posteriormente observou que problemas
metafísicos
não
podem ser rejeitados por meio de afirmações categóricas, este nos deu um ensaio
realmente
metafísico
em seu tratado sobre a liberdade. Isso, entretanto, é mera imaginação, um conte
bleu, um
conto de
fadas; de tal forma que, sempre que o estilo assume um tom de demonstração
(e.g. pp. 453
ff.),
seu efeito é sem dúvida cômico.
Por meio
de sua doutrina da identidade do real e do ideal, Schelling tentou resolver o
problema
que foi
apresentado por Descartes, analisado por todos os grandes pensadores e,
finalmente, levado
adiante
por Kant. Ele tentou resolver este problema cortando o nó, na medida em que
negou a antítese
entre o
real e o ideal. Com o que entrou em contradição direta com Kant, que foi seu
ponto de partida. No
processo,
conservou firmemente o significado original e apropriado do problema, que
concerne à relação
entre
nossa percepção intuitiva e o ser e essência-em-si das coisas que se apresentam
nesta percepção.
Mas,
visto que destilou sua doutrina principalmente de Espinosa, logo adotou deste
as expressões
pensante
e existente, que apresentam muito mal o problema que estamos discutindo, e
posteriormente
deu luz
às monstruosidades mais absurdas. Com sua doutrina de que substantia cogitans
et substantia
extensa
una eademque est substantia, quae am sub hoc jam sub illo attributo
comprehenditur (Ética, Pt.
II,
prop. 7, schol.); ou scilicet mens et corpus una eademque est res, quae jam sub
cogitationis, jam sub
extensionis
attributo concipitur (Ética, Pt, III, prop. 2, schol.) [a substância pensante e
a substância
extensa
são a mesma coisa, a qual é compreendida por vezes sob este atributo, por vezes
sob aquele ... a
saber,
que mente e corpo são a mesma coisa, a qual se concebe, num momento, sob o
atributo do
pensamento
e, noutro momento, sob o atributo da extensão], Espinosa tentou abolir a
antítese cartesiana
de corpo
e alma. Talvez também tenha reconhecido que o objeto empírico não é distinto de
nossa
representação
deste. Schelling, então, recebeu dele as expressões pensante e existente, as
quais
gradualmente
substituiu por aquelas de perceptivo, ou percebido e coisa-em-si. (Neue
Zeitschrift für
spekulative
Physik, vol. I, primeiro artigo: “Demonstrações adicionais” e em assim diante.)
Pois a relação
de nossa
percepção intuitiva das coisas e seu ser e essência-em-si é o grande problema
cuja história
estou
esboçando; todavia, não o da relação de nosso pensamento ou idéias, isto é, de
conceitos. Pois é
óbvio e
inegável que esses são apenas abstrações daquilo que é conhecido através da
percepção intuitiva,
e
surgiram do nosso descartar ou reter certas qualidades arbitrariamente. Duvidar
disso é algo que não
ocorre a
qualquer homem sensato. [7] Logo, esses conceitos e pensamentos, constituindo a
classe de
representações
não-perceptivas, nunca têm uma relação imediata com a essência e ser-em-si das
coisas.
Pelo
contrário, têm sempre apenas uma relação mediata, isto é, através da mediação
da percepção
intuitiva.
É isso que, por um lado, lhes proporciona o material e, por outro, permanece em
relação com as
coisas-em-si,
ou seja, com a desconhecida, real e verdadeira essência das coisas que se
objetiva na
percepção
intuitiva.
Então a
expressão imprecisa, que Schelling emprestou de Espinosa, foi posteriormente
utilizada
por
aquele charlatão insípido e vazio, Hegel, que neste sentido parece o bufão de
Schelling, e era tão
distorcida
que pensante, no sentido correto e, portanto, de conceitos, se identificaria
com a essência-emsi
das
coisas. Conseqüentemente, o que é pensado in abstracto, como tal, deveria ser
idêntico ao que é
objetivamente
presente em si, e, dessa forma, a lógica deveria ser a verdadeira metafísica.
Nesse caso,
somente
precisaríamos pensar, ou depositar nossa confiança em conceitos, a fim de
conhecer a
constituição
absoluta do mundo exterior. Segundo essa visão, tudo que atormenta um crânio
seria
verdadeiro
e real. Visto que “quanto mais maluco melhor” era o lema dos filosofastros
desse período, esse
absurdo
foi defendido por um segundo absurdo, a saber, que nós não pensamos, mas que os
conceitos,
por si
mesmos, completariam o processo de pensamento – isso foi denominado
automovimento dialético
do
conceito –, o que seria uma revelação de todas as coisas in et extra naturam.
Mas essa palhaçada era,
ainda,
alicerçada em outra que, igualmente, tinha por base uma distorção de palavras,
a qual nunca foi
expressa
claramente, mas sem dúvida está em seu fundo. Assim como Espinosa, Schelling
deu ao mundo
o título
de Deus. Hegel tomou isso literalmente. Então, como a palavra realmente
significa um ser pessoal
que,
juntamente com outras qualidades absolutamente incompatíveis com o mundo,
também tem a
onisciência,
esta também foi transferida ao mundo por Hegel. Naturalmente, não poderia estar
em outro
lugar
senão na mente do homem, que precisaria somente dar liberdade aos seus
pensamentos
(automovimento
dialético) para com isso revelar todos os mistérios do céu e da terra, isto é,
no absoluto
nonsense
da dialética hegeliana. Há uma arte que Hegel realmente compreendeu, a de levar
os alemães
pelo
nariz. Mas essa não é uma grande arte; de fato, vemos com que lixo e nonsense
foi capaz de, por
trinta
anos, manter sua posição dentro do mundo da Alemanha erudita. Os professores de
filosofia ainda
levam
esses três sofistas a sério e consideram importante reservar-lhes um lugar na
história da filosofia.
Mas
apenas porque isso faz parte do seu gagne-pain [ganha pão], visto que extraem
daqui material para
dissertações
elaboradas, verbais e escritas, sobre a história da filosofia pós-kantiana, na
qual os princípios
e dogmas
desses sofistas são explorados detalhadamente e levados a sério. Porém, de um
ponto de vista
racional,
não deveríamos nos incomodar com o que esses homens lançaram no mercado a fim
aparentar
ser
algo, a não ser que se considere os rabiscos de Hegel medicinais e que deveriam
estar disponíveis em
farmácias
como um eficiente vomitivo físico, pois a aversão que excitam é realmente muito
específica.
Mas
basta deles e seus autores, cuja veneração teremos de deixar para a Real
Academia Dinamarquesa
de
Ciências. Esta reconheceu nele um summus philosophus segundo seus termos e,
portanto, exige
deferência
a este no seu julgamento, o qual está anexado como um duradouro memorial em meu
Sobre o
Fundamento
da Moral. Esse julgamento mereceu ser protegido do esquecimento não somente
devido ao
discernimento
ou à notável honestidade desta, mas também porque fornece uma confirmação
impressionante
do belo dizer de La Bruyère: Du même fonds dont on néglige un homme de mérite,
l’on
sait
encore admirer un sot. [pelo mesmo motivo que desprezamos um homem de mérito,
somos capazes
de
admirar um tolo. (La Bruyère, Les Caracteres.)]
Notas
[1]
Ética, Pt. II, prop. 7: Ordo et connexio idearum idem est, ac ordo et connexio
rerum. – Pt. V, prop. I:
Prout
cogitationes rerumque ideae concatenantur in Mente, ita corporis affectiones,
seu rerum imagines
ad
amussim ordinantur et concatenantur in Corpore. – Pt. II, prop. 5: Esse formale
idearum Deum,
quatenus
tantum ut res cogitans consideratur pro causa agnoscit, et non quatenus alio
attributo
explicatur.
Hoc est tam Dei attributorum, quam rerum singularium ideae non ipsa ideata,
sive res
perceptas
pro causa efficiente agnoscunt: sed ipsum Deum, quatenus est res cogitans. [A
ordem e
conexão
de idéias são as mesmas que a ordem e conexão de coisas ... Assim como os
pensamentos e
idéias
de coisas são ligadas na mente, assim são os afetos do corpo ou as imagens de
coisas organizadas
e
ligadas no corpo. ... A existência formal de idéias tem Deus como sua causa na
medida em que é
considerado
um ser pensante e não na medida em que é desenvolvido por outro atributo. Isto
é: as idéias
dos
atributos de Deus, assim como das coisas individuais, têm como causa não os
objetos dessas idéias –
i.e.
coisas percebidas –, mas o próprio Deus, na medida em que é um ser pensante.]
[2] No
Tratado da Correção do Intelecto, pp. 414/25, este evidencia um realismo
decidido e de forma tal
que idea
vera est diversum quid a suo ideato; etc. [Uma idéia verdadeira é algo
diferente de seu objeto].
Todavia,
esse tratado sem dúvida é mais antigo que sua Ética.
[3]
Aqueles que não foram iniciados em filosofia, o que inclui muitos doutores
desta, deveriam ser
totalmente
privados da palavra Idealismo, pois não conhecem seu significado e, assim, são
capazes de
todo
tipo de estrago. Por idealismo, entendem, primeiramente, espiritualismo, depois
talvez o oposto de
filistinismo
– e, nessa perspectiva, são respaldados e confirmados por literatos vulgares.
As palavras
“idealismo”
e “realismo” não são sem dono e lugar, mas têm um significado filosófico
definido. Aqueles
que se
referem a algo diverso deveriam simplesmente usar outra palavra. O contraste
entre idealismo e
realismo
concerne aquilo que é conhecido, o objeto; por outro lado, o contraste entre
espiritualismo e
materialismo
concerne o conhecedor, o sujeito. (Os escrevinhadores ignorantes de hoje
confundem
idealismo
e espiritualismo).
[4] Não
há Igreja que sugue mais luz que a inglesa, pois nenhuma outra tem interesses
pecuniários tão
grandes
em jogo, com sua renda chegando a £5,000,000 esterlinas, £40,000 acima do que
se diz ser a
renda de
todo o restante do clero cristão em ambos os hemisférios. Por outro lado, em
nenhuma outra
nação é
tão doloroso ver a estupidificação metódica pela mais degradante fé cega como
na inglesa, que
supera
todas as outras em inteligência. A raiz do problema é que não há ministério de
instrução pública e,
deste
modo, até agora a função esteve completamente nas mãos dos padres. Esses
tomaram as
providências
para que dois terços na nação não sejam capazes de ler e escrever; de fato, de
tempos em
tempos,
até mesmo têm a audácia totalmente ridícula de latir para as ciências naturais.
É, portanto, um
dever
humano contrabandear para a Inglaterra, por meio de qualquer canal concebível,
luz, liberdade de
pensamento
e ciência, de modo que até o mais bem alimentado dos padres perca seu
empreendimento.
Quando
os ingleses educados exibem no Continente suas superstições judaicas sabáticas
e outros
fanatismos
estúpidos, deveriam ser tratados com franco escárnio, until they be shamed into
common
sense
[até que recuperem o bom senso]. Pois tais coisas são um escândalo para a
Europa e não devem
ser
ainda toleradas. No curso cotidiano da vida, não deveríamos fazer quaisquer
concessões à superstição
da
Igreja inglesa, mas sim nos colocar frente a esta da maneira mais cáustica e
mordaz sempre que esta
se fizer
presente. Pois nenhuma arrogância supera a dos padres anglicanos; no
Continente, portanto,
devem
sofrer humilhação bastante, de modo que uma porção desta seja levada para casa,
onde esta está
em
falta. Pois a audácia dos padres anglicanos e de seus seguidores abjetos é
realmente inacreditável,
mesmo no
presente; deveria, assim, ser confinada à sua ilha e, quando aventurar-se a se
mostrar no
Continente,
deveria ser obrigada a fazer, de dia, o papel de coruja.
[5]
Espinosa, loc. cit. – Descartes, Meditationes de prima philosophia, Med. IV, p.
28.
[6] A
pretensa filosofia hegeliana de fato é esta dor na cabeça do estudante em
Fausto. Se nossa intenção
é tornar
a juventude estúpida e completamente incapaz de pensar, não há meios mais
adequados que o
pormenorizado
estudo dos originais de Hegel. Pois essas monstruosas articulações de palavras
que
cancelam
e contradizem umas às outras – de modo que em vão a mente se atormenta
tentando, através
delas,
pensar em qualquer coisa, até que finalmente sucumbe à exaustão – gradualmente
destroem
completamente
a capacidade de pensar e, deste modo, frases e floreios vazios são considerados
como
reflexões.
Some-se a isto a presunção – confirmada aos jovens pela palavra e exemplo de
todas as
autoridades
– de que esta verborragia vazia é sabedoria grandiosa e verdadeira! Se um
guardião estiver
preocupado
com a possibilidade de aqueles sob a sua tutela se tornarem espertos demais
para seus
planos,
então tal desventura poderia ser evitada por um aplicado estudo da filosofia hegeliana.
[7]
Sobre a Quádrupla Raiz do Princípio de Razão Suficiente, 2nd edn., §26.
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