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In Bertrand Russell (1977): História da Filosofia Ocidental.
Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional.
Os conceitos da vida e do mundo que chamamos “filosóficos” são produto de dois
fatores: um, constituído de fatores religiosos e éticos herdados; o outro, pela espécie de
investigação que podemos denominar “científica”, empregando a palavra em seu sentido mais
amplo. Os filósofos, individualmente, têm diferido amplamente quanto às proporções em que
esses dois fatores entraram em seu sistema, mas é a presença de ambos que, em certo grau,
caracteriza a filosofia.
“Filosofia” é uma palavra que tem sido empregada de várias maneiras, umas mais
amplas, outras mais restritas. Pretendo empregá-la em seu sentido mais amplo, como procurarei
explicar adiante. A filosofia, conforme entendo a palavra, é algo intermediário entre a teologia e
a ciência. Como a teologia, consiste de especulações sobre assuntos a que o conhecimento exato
não conseguiu até agora chegar, mas, como ciência, apela mais à razão humana do que à
autoridade, seja esta a da tradição ou a da revelação. Todo conhecimento definido - eu o
afirmaria - pertence à ciência; e todo dogma quanto ao que ultrapassa o conhecimento definido,
pertence à teologia. Mas entre a teologia e a ciência existe uma Terra de Ninguém, exposta aos
ataques de ambos os campos: essa Terra de Ninguém é a filosofia. Quase todas as questões do
máximo interesse para os espíritos especulativos são de tal índole que a ciência não as pode
responder, e as respostas confiantes dos teólogos já não nos parecem tão convincentes como o
eram nos séculos passados. Acha-se o mundo dividido em espírito e matéria? E, supondo-se que
assim seja, que é espírito e que é matéria? Acha-se o espírito sujeito à matéria, ou é ele dotado
de forças independentes? Possui o universo alguma unidade ou propósito? Está ele evoluindo
rumo a alguma finalidade? Existem realmente leis da natureza, ou acreditamos nelas devido
unicamente ao nosso amor inato pela ordem? É o homem o que ele parece ser ao astrônomo,
isto é, um minúsculo conjunto de carbono e água a rastejar, impotentemente, sobre um pequeno
planeta sem importância? Ou é ele o que parece ser a Hamlet? Acaso é ele, ao mesmo tempo,
ambas as coisas? Existe uma maneira de viver que seja nobre e uma outra que seja baixa, ou
todas as maneiras de viver são simplesmente inúteis? Se há um modo de vida nobre, em que
consiste ele, e de que maneira realizá-lo? Deve o bem ser eterno, para merecer o valor que lhe
atribuímos, ou vale a pena procurá-lo, mesmo que o universo se mova, inexoravelmente, para a
morte? Existe a sabedoria, ou aquilo que nos parece tal não passa do último refinamento da
loucura. Tais questões não encontram resposta no laboratório. As teologias têm pretendido dar
respostas, todas elas demasiado concludentes, mas a sua própria segurança faz com que o
espírito moderno as encare com suspeita. 0 estudo de tais questões, mesmo que não se resolva
esses problemas, constitui o empenho da filosofia.
Mas por que, então, - poderíeis perguntar – perder tempo com problemas tão
insolúveis? A isto, poder-se-ia responder como historiador ou como indivíduo que enfrenta o
terror da solidão cósmica. A resposta do historiador, tanto quanto me é possível dá-la, aparecerá
no decurso desta obra. Desde que o homem se tornou capaz de livre especulação, suas ações,
em muitos aspectos importantes, têm dependido de teorias relativas ao mundo e á vida humana,
relativas ao bem e ao mal. Isto é tão verdadeiro em nossos dias como em qualquer época
anterior. Para compreender uma época ou uma nação, devemos compreender sua filosofia e,
para que compreendamos sua filosofia, temos de ser, até certo ponto, filósofos. Há uma relação
causal recíproca. As circunstâncias das vidas humanas contribuem muito para determinar a sua
filosofia, mas, inversamente, sua filosofia muito contribui para determinar tais circunstâncias.
Essa ação mútua, através dos séculos, será o tema das páginas seguintes.
Há, todavia, uma resposta mais pessoal. A ciência diz-nos o que podemos saber, mas
o que podemos saber é muito pouco e, se esquecemos quanto nos é impossível saber, tornamo-
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nos insensíveis a muitas coisas sumamente importantes. A teologia, por outro lado, nos induz a
crença dogmática de que temos conhecimento de coisas que, na realidade, ignoramos e, por
isso, gera uma espécie de insolência impertinente com respeito ao universo. A incerteza, na
presença de grandes esperanças e receios, é dolorosa, mas temos de suportá-la, se quisermos
viver sem o apoio de confortadores contos de fadas. Não devemos também esquecer as questões
suscitadas pela filosofia, ou persuadir-nos de que encontramos, para as mesmas, respostas
indubitáveis. Ensinar a viver sem essa segurança e sem que se fique, não obstante, paralisado
pela hesitação, é talvez a coisa principal que a filosofia, em nossa época, pode proporcionar
àqueles que a estudam.
A filosofia, ao contrário do que ocorreu com a teologia , surgiu, na Grécia, no século
VI antes de Cristo. Depois de seguir o seu curso na Antigüidade, foi de novo submersa pela
teologia quando surgiu o Cristianismo e Roma se desmoronou. Seu segundo período
importante, do século XI ao século XIV, foi dominado pela Igreja Católica, com exceção de
alguns poucos e grandes rebeldes, como, por exemplo, o imperador Frederico II (1195-1250).
Este período terminou com as perturbações que culminaram na Reforma. O terceiro período,
desde o século XVII até hoje, é dominado, mais do que os períodos que o precederam, pela
ciência. As crenças religiosas tradicionais mantêm sua importância, mas se sente a necessidade
de que sejam justificadas, sendo modificadas sempre que a ciência torna imperativo tal passo.
Poucos filósofos deste período são ortodoxos do ponto de vista católico, e o Estado secular
adquire mais importância em suas especulações do que a Igreja.
A coesão social e a liberdade individual, como a religião e a ciência, acham-se num
estado de conflito ou difícil compromisso durante todo este período. Na Grécia, a coesão social
era assegurada pela lealdade ao Estado-Cidade; o próprio Aristóteles, embora, em sua época,
Alexandre estivesse tornando obsoleto o Estado-Cidade, não conseguia ver mérito algum em
qualquer outro tipo de comunidade. Variava grandemente o grau em que a liberdade individual
cedia ante seus deveres para com a Cidade. Em Esparta, o indivíduo tinha tão pouca liberdade
como na Alemanha ou na Rússia modernas; em Atenas, apesar de perseguições ocasionais, os
cidadãos desfrutaram, em seu melhor período, de extraordinária liberdade quanto a restrições
impostas pelo Estado. O pensamento grego, até Aristóteles, é dominado por uma devoção
religiosa e patriótica á Cidade; seus sistemas éticos são adaptados às vidas dos cidadãos e
contêm grande elemento político. Quando os gregos se submeteram, primeiro aos macedônios
e, depois, aos romanos, as concepções válidas em seus dias de independência não eram mais
aplicáveis. Isto produziu, por um lado, uma perda de vigor, devido ao rompimento com as
tradições e, por outro lado, uma ética mais individual e menos social. Os estóicos consideravam
a vida virtuosa mais como uma relação da alma com Deus do que como uma relação do cidadão
com o Estado. Prepararam, dessa forma, o caminho para o Cristianismo, que, como o
estoicismo, era, originalmente, apolítico, já que, durante os seus três primeiros séculos, seus
adeptos não tinham influência no governo. A coesão social, durante os seis séculos e meio que
vão de Alexandre a Constantino, foi assegurada, não pela filosofia nem pelas antigas
fidelidades, mas pela força - primeiro a força dos exércitos e, depois, a da administração civil.
Os exércitos romanos, as estradas romanas, a lei romana e os funcionários romanos, primeiro
criaram e depois preservaram um poderoso Estado centralizado. Nada se pode atribuir à
filosofia romana, já que esta não existia.
Durante esse longo período, as idéias gregas herdadas da época da liberdade
sofreram um processo gradual de transformação. Algumas das velhas idéias, principalmente
aquelas que deveríamos encarar como especificamente religiosas, adquiriram uma importância
relativa; outras, mais racionalistas, foram abandonadas, pois não mais se ajustavam ao espírito
da época. Desse modo, os pagãos posteriores foram se adaptando á tradição grega, até esta
poder incorporar-se na doutrina cristã.
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O Cristianismo popularizou uma idéia importante, já implícita nos ensinamentos dos
estóicos, mas estranha ao espírito geral da Antigüidade, isto é, a idéia de que o dever do homem
para com Deus é mais imperativo do que o seu dever para com o Estado A opinião de que
“devemos obedecer mais a Deus que ao homem”, como Sócrates e os Apóstolos afirmavam,
sobreviveu à conversão de Constantino, porque os primeiros cristãos eram arianos ou se sentiam
inclinados para o arianismo. Quando os imperadores se tornaram ortodoxos, foi ela suspensa
temporariamente. Durante o Império Bizantino, permaneceu latente, bem como no Império
Russo subseqüente, o qual derivou do Cristianismo de Constantinopla Mas no Ocidente, onde
os imperadores católicos foram quase imediatamente substituídos ( exceto em certas partes da
Gália ) por conquistadores bárbaros heréticos, a superioridade da lealdade religiosa sobre a
lealdade política sobreviveu e, até certo ponto, persiste ainda hoje.
A invasão dos bárbaros pôs fim, por espaço de seis séculos, à civilização da Europa
Ocidental. Subsistiu, na Irlanda, até que os dinamarqueses a destruíram no século IX. Antes de
sua extinção produziu, lá, uma figura notável, Scotus Erigena. No Império Oriental, a
civilização grega sobreviveu, em forma dissecada, como num museu, até à queda de
Constantinopla, em 1453, mas nada que fosse de importância para o mundo saiu de
Constantinopla, exceto uma tradição artística e os Códigos de Direito Romano de Justiniano.
Durante o período de obscuridade, desde o fim do século V até a metade do século
XI, o mundo romano ocidental sofreu algumas transformações interessantes. O conflito entre o
dever para com Deus e o dever para com o Estado, introduzido pelo Cristianismo, adquiriu o
caráter de um conflito entre a Igreja e o rei. A jurisdição eclesiástica do Papa estendia-se sobre a
Itália, França, Espanha, Grã-Bretanha e Irlanda, Alemanha, Escandinávia e Polônia. A
princípio, fora da Itália e do sul da França foi muito leve o seu controle sobre bispos e abades,
mas, desde o tempo de Gregório VII (fins do século XI), tornou-se real e efetivo. Desde então o
clero, em toda a Europa Ocidental, formou uma única organização, dirigida por Roma, que
procurava o poder inteligente e incansavelmente e, em geral, vitoriosamente, até depois do ano
1300, em seus conflitos com os governantes seculares. O conflito entre a Igreja e o Estado não
foi apenas um conflito entre o clero e os leigos; foi, também, uma renovação da luta entre o
mundo mediterrâneo e os bárbaros do norte. A unidade da Igreja era um reflexo da unidade do
Império Romano; sua liturgia era latina, e os seus homens mais proeminentes eram, em sua
maior parte, italianos, espanhóis ou franceses do sul. Sua educação, quando esta renasceu, foi
clássica; suas concepções da lei e do governo teriam sido mais compreensíveis para Marco
Aurélio do que para os monarcas contemporâneos. A Igreja representava, ao mesmo tempo,
continuidade com o passado e com o que havia de mais civilizado no presente.
O poder secular, ao contrário, estava nas mãos de reis e barões de origem teutônica,
os quais procuravam preservar, o máximo possível, as instituições que haviam trazido as
florestas da Alemanha. O poder absoluto era alheio a essas instituições, como também era
estranho, a esses vigorosos conquistadores, tudo aquilo que tivesse aparência de uma legalidade
monótona e sem espírito. O rei tinha de compartilhar seu poder com a aristocracia feudal, mas
todos esperavam, do mesmo modo, que lhes fosse permitido, de vez em quando, uma explosão
ocasional de suas paixões em forma de guerra, assassínio, pilhagem ou rapto. É possível que os
monarcas se arrependessem, pois eram sinceramente piedosos e, afinal de contas, o
arrependimento era em si mesmo uma forma de paixão. A Igreja, porém, jamais conseguiu
produzir neles a tranqüila regularidade de uma boa conduta, como a que o empregador moderno
exige e, às vezes, consegue obter de seus empregados. De que lhes valia conquistar o mundo, se
não podiam beber, assassinar e amar como o espírito lhes exigia? E por que deveriam eles, com
seus exércitos de altivos, submeter-se ás ordens de homens letrados, dedicados ao celibato e
destituídos de forças armadas? Apesar da desaprovação eclesiástica, conservaram o duelo e a
decisão das disputas por meio das armas, e os torneios e o amor cortesão floresceram. Às vezes,
num acesso de raiva, chegavam a matar mesmo eclesiásticos eminentes.
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Toda a força armada estava do lado dos reis, mas, não obstante, a Igreja saiu
vitoriosa. A Igreja ganhou a batalha, em parte, porque tinha quase todo o monopólio do ensino
e, em parte, porque os reis viviam constantemente em guerra. uns com os outros; mas ganhou-a,
principalmente, porque, com muito poucas exceções, tanto os governantes como ó povo
acreditavam sinceramente que a Igreja possuía as chaves do céu. A Igreja podia decidir se um
rei devia passar a eternidade no céu ou no inferno; a Igreja podia absolver os súditos do dever
de fidelidade e, assim, estimular a rebelião. Além disso, a Igreja representava a ordem em lugar
da anarquia e, por conseguinte, conquistou o apoio da classe mercantil que surgia. Na Itália,
principalmente, esta última consideração foi decisiva.
A tentativa teutônica de preservar pelo menos uma independência parcial da Igreja
manifestou-se não apenas na política, mas, também, na arte, no romance, no cavalheirismo e na
guerra. Manifestou-se muito pouco no mundo intelectual, pois o ensino se achava quase
inteiramente nas mãos do clero. A filosofia explícita da Idade Média não é um espelho exato da
época, mas apenas do pensamento de um grupo. Entre os eclesiásticos, porém – principalmente
entre os frades franciscanos – havia alguns que, por várias razões, estavam em desacordo com o
Papa. Na Itália, ademais, a cultura estendeu-se aos leigos alguns séculos antes de se estender até
ao norte dos Alpes. Frederico II, que procurou fundar uma nova religião, representa o extremo
da cultura antipapista; Tomás de Aquino, que nasceu no reino de Nápoles, onde o poder de
Frederico era supremo, continua sendo até hoje o expoente clássico da filosofia papal. Dante,
cerca de cinqüenta anos mais tarde, conseguiu chegar a uma síntese, oferecendo a única
exposição equilibrada de todo o mundo ideológico medieval.
Depois de Dante, tanto por motivos políticos como intelectuais, a síntese filosófica
medieval se desmoronou. Teve ela, enquanto durou, uma qualidade de ordem e perfeição de
miniatura: qualquer coisa de que esse sistema se ocupasse, era colocada com precisão em
relação com o que constituía o seu cosmo bastante limitado. Mas o Grande Cisma, o movimento
dos Concílios e o papado da renascença produziram a Reforma, que destruiu a unidade do
Cristianismo e a teoria escolástica de governo que girava em torno do Papa. No período da
Renascença, o novo conhecimento, tanto da Antigüidade como da superfície da terra, fez com
que os homens se cansassem de sistemas, que passaram a ser considerados como prisões
mentais. A astronomia de Copérnico atribuiu á terra e ao homem uma posição mais humilde do
que aquela que haviam desfrutado na teoria de Ptolomeu. O prazer pelos fatos recentes tomou o
lugar, entre os homens inteligentes, do prazer de raciocinar, analisar e construir sistemas.
Embora a Renascença, na arte, conserve ainda uma determinada ordem, prefere, quanto ao que
diz respeito ao pensamento, uma ampla e fecunda desordem. Neste sentido, Montaigne é o mais
típico expoente da época.
Tanto na teoria política como em tudo o mais, exceto a arte, a ordem sofre um
colapso. A Idade Média, embora praticamente turbulenta, era dominada, em sua ideologia, pelo
amor da legalidade e por uma teoria muito precisa do poder político. Todo poder procede, em
última análise, de Deus; Ele delegou poder ao Papa nos assuntos sagrados, e ao Imperador nos
assuntos seculares. Mas tanto o Papa como o Imperador perderam sua importância durante o
século XV. O Papa tornou-se simplesmente um dos príncipes italianos, empenhado no jogo
incrivelmente complicado e inescrupuloso do poder político italiano. As novas monarquias
nacionais na França, Espanha e Inglaterra tinham, em seus próprios territórios, um poder no
qual nem o Papa nem o Imperador podiam interferir. O Estado nacional, devido, em grande
parte, à pólvora, adquiriu uma influência sobre o pensamento e o modo de sentir dos homens,
como jamais exercera antes - influência essa que, progressivamente, destruiu o que restava da
crença romana quanto à unidade da civilização.
Essa desordem política encontrou sua expressão no Príncipe, de Maquiavel. Na
ausência de qualquer princípio diretivo, a política se transformou em áspera luta pelo poder. O
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Príncipe dá conselhos astutos quanto à maneira de se participar com êxito desse jogo. O que já
havia acontecido na idade de ouro da Grécia, ocorreu de novo na Itália renascentista: os freios
morais tradicionais desapareceram, pois eram considerados como coisa ligada à superstição; a
libertação dos grilhões tornou os indivíduos enérgicos e criadores, produzindo um raro
florescimento do gênio mas a anarquia e a traição resultantes, inevitavelmente, da decadência
da moral, tornou os italianos coletivamente impotentes, e caíram, como os gregos, sob o
domínio de nações menos civilizadas do que eles, mas não tão destituídas - de coesão social.
Todavia, o resultado foi menos desastroso do que no caso da Grécia, pois as nações
que tinham acabado de chegar ao poder, com exceção da Espanha, se mostravam capazes de tão
grandes realizações como o havia sido a Itália.
Do século XVI em diante, a história do pensamento europeu é dominada pela
Reforma. Reforma foi um movimento complexo, multiforme, e seu êxito se deve a numerosas
causas. De um modo geral, foi uma revolta das nações do norte contra o renovado domínio de
Roma. A religião fora a força que subjugara o Norte, mas a religião, na Itália, decaíra: o papado
permanecia como uma instituição, extraindo grandes tributos da Alemanha e da Inglaterra, mas
estas nações, que eram ainda piedosas, não podiam sentir reverência alguma para com os
Bórgias e os Médicis, que pretendiam salvar as almas do purgatório em troca de dinheiro, que
esbanjavam no luxo e na imoralidade. Motivos nacionais motivos econômicos e motivos,
religiosos conjugaram-se para fortalecer a revolta contra Roma. Além disso, os príncipes logo
perceberam que, se a Igreja se tornasse, em seus territórios, simplesmente nacional, eles seriam
capazes de dominá-la, tornando-se, assim, muito mais poderosos, em seus países, do que jamais
o haviam sido compartilhando o seu domínio com o Papa. Por todas essas razões, as inovações
teológicas de Lutero foram bem recebidas, tanto pelos governantes como pelo povo, na maior
parte da Europa Setentrional.
A Igreja Católica procedia de três fontes. Sua história sagrada era judaica; sua
teologia, grega, e seu governo e leis canônicas, ao menos indiretamente, romanos. A Reforma
rejeitou os elementos romanos, atenuou os elementos gregos e fortaleceu grandemente os
elementos judaicos. Cooperou, assim, com as forças nacionalistas que estavam desfazendo a
obra de coesão nacional que tinha sido levada a cabo primeiro pelo Império Romano e, depois,
pela Igreja Romana. Na doutrina católica, a revelação divina não terminava na sagrada
escritura, mas continuava, de era em era, através da Igreja, à qual, pois, era dever do indivíduo
submeter suas opiniões pessoais. Os protestantes, ao contrário, rejeitaram a Igreja como veículo
da revelação divina; a verdade devia ser procurada unicamente na Bíblia, que cada qual podia
interpretar à sua maneira. Se os homens diferissem em sua interpretação, não havia nenhuma
autoridade designada pela divindade que resolvesse tais divergências. Na prática, o Estado
reivindicava o direito que pertencera antes à Igreja - mas isso era uma usurpação. Na teoria
protestante, não devia haver nenhum intermediário terreno entre a alma e Deus.
Os efeitos dessa mudança foram importantes. A verdade não mais era estabelecida
mediante consulta à autoridade, mas por meio da meditação íntima. Desenvolveu-se,
rapidamente, uma tendência para o anarquismo na política e misticismo na religião, o que
sempre fora difícil de se ajustar à estrutura da ortodoxia católica. Aconteceu que, em lugar de
um único Protestantismo, surgiram numerosas seitas; nenhuma filosofia se opunha à
escolástica, mas havia tantas filosofias quantos eram os filósofos. Não havia, no século XIII,
nenhum Imperador que se opusesse ao Papa, mas sim um grande número de reis heréticos. O
resultado disso, tanto no pensamento como na literatura, foi um subjetivismo cada vez mais
profundo, agindo primeiro como uma libertação saudável da escravidão espiritual, mas
caminhando, depois, constantemente, para um isolamento pessoal, contrário à solidez social.
A filosofia moderna começa com Descartes, cuja certeza fundamental é a existência
de si mesmo e de seus pensamentos, dos quais o mundo exterior deve ser inferido. Isso constitui
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apenas a primeira fase de um desenvolvimento que, passando por Berkeley e Kant, chega a
Fichte, para quem tudo era apenas uma emanação do eu. Isso era uma loucura, e, partindo desse
extremo, a filosofia tem procurado, desde então, evadir-se para o mundo do senso comum
cotidiano.
Com o subjetivismo na filosofia, o anarquismo anda de mãos dadas com a política. Já
no tempo de Lutero, discípulos inoportunos e não reconhecidos haviam desenvolvido a doutrina
do anabatismo, a qual, durante algum tempo, dominou a cidade de Wünster. Os anabatistas
repudiavam toda lei, pois afirmavam que o homem bom seria guiado, em todos os momentos,
pelo Espírito Santo, que não pode ser preso a fórmulas. Partindo dessas premissas, chegam ao
comunismo e à promiscuidade sexual. Foram, pois, exterminados, após uma resistência heróica.
Mas sua doutrina, em formas mais atenuadas, se estendem pela Holanda, Inglaterra e Estados
Unidos; historicamente, é a origem do “quakerismo”. Uma forma mais feroz de anarquismo,
não mais relacionada Com a religião, surgiu no século XIX. Na Rússia, Espanha e, em menor
grau, na Itália, obteve considerável êxito, constituindo, até hoje, um pesadelo para as
autoridades americanas de imigração. Esta versão moderna, embora anti-religiosa, encerra ainda
muito do espírito do protestantismo primitivo; difere principalmente dele devido ao fato de
dirigir contra os governos seculares a hostilidade que Lutero dirigia contra os Papas.
A subjetividade, uma vez desencadeada, já não podia circunscrevem-se aos seus
limites, até que tivesse seguido seu curso. Na moral, a atitude enfática dos protestantes, quanto
à consciência individual, era essencialmente anárquica. O hábito e o costume eram tão fortes
que, exceto em algumas manifestações ocasionais, como, por exemplo, a de Münster, os
discípulos do individualismo na ética continuaram a agir de maneira convencionalmente
virtuosa. Mas era um equilíbrio precário. O culto do século XVIII à “sensibilidade” começou a
romper esse equilíbrio: um ato era admirado não pelas suas boas conseqüências, ou porque
estivesse de acordo com um código moral, mas devido à emoção que o inspirava. Dessa atitude
nasceu o culto do herói, tal como foi manifestado por Carlyle e Nietzsche, bem como o culto
byroniano da paixão violenta, qualquer que esta seja.
O movimento romântico, na arte, na literatura e na política, está ligado a essa
maneira subjetiva de julgar-se os homens, não como membros de uma comunidade, mas como
objetos de contemplação esteticamente encantadores. Os tigres são mais belos do que as
ovelhas, mas preferimos que estejam atrás de grades. O romântico típico remove as grades e
delicia-se com os saltos magníficos com que o tigre aniquila as ovelhas. Incita os homens a
imaginar que são tigres e, quando o consegue, os resultados não são inteiramente agradáveis.
Contra as formas mais loucas do subjetivismo nos tempos modernos tem havido
várias reações. Primeiro, uma filosofia de semicompromisso, a doutrina do liberalismo, que
procurou delimitar as esferas relativas ao governo e ao indivíduo. Isso começa, em sua forma
moderna, com Locke, que é tão contrário ao “entusiasmo” - o individualismo dos anabatistas
como à autoridade absoluta e à cega subserviência à tradição. Uma rebelião mais extensa
conduz à doutrina do culto do Estado, que atribui ao Estado a posição que o Catolicismo
atribuía à Igreja, ou mesmo, às vezes, a Deus. Hobbes, Rousseau e Hegel representam fases
distintas desta teoria, e suas doutrinas se acham encarnadas, praticamente, em Cromwell,
Napoleão e na Alemanha moderna. O comunismo, na teoria, está muito longe dessas filosofias,
mas é conduzido, na prática, a um tipo de comunidade bastante semelhante àquela e que resulta
a adoração do Estado.
Durante todo o transcurso deste longo desenvolvimento, desde 600 anos antes de
Cristo até aos nossos dias, os filósofos têm-se dividido entre aqueles que querem estreitar os
laços sociais e aqueles que desejam afrouxá-los. A esta diferença, acham-se associadas outras.
Os partidários da disciplina advogaram este ou aquele sistema dogmático, velho ou novo,
chegando, portanto a ser, em menor ou maior grau, hostis à ciência, já que seus dogmas não
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podiam ser provados empiricamente. Ensinavam, quase invariavelmente, que a felicidade não
constitui o bem, mas que a “nobreza” ou o “heroísmo” devem ser a ela preferidos.
Demonstravam simpatia pelo que havia de irracional na natureza humana, pois acreditavam que
a razão é inimiga da coesão social. Os partidários da liberdade, por outro lado, com exceção dos
anarquistas extremados, procuravam ser científicos, utilitaristas, racionalistas, contrários à
paixão violenta, e inimigos de todas as formas mais profundas de religião. Este conflito existiu,
na Grécia, antes do aparecimento do que chamamos filosofia, revelando-se já, bastante
claramente, no mais antigo pensamento grego. Sob formas diversas, persistiu até aos nossos
dias, e continuará, sem dúvida, a existir durante muitas das eras vindouras.
É claro que cada um dos participantes desta disputa como em tudo que persiste
durante longo tempo - tem a sua parte de razão e a sua parte de equívoco. A coesão social é uma
necessidade, e a humanidade jamais conseguiu, até agora, impor a coesão mediante argumentos
meramente racionais. Toda comunidade está exposta a dois perigos opostos: por um lado, a
fossilização, devido a uma disciplina exagerada e um respeito excessivo pela tradição; por outro
lado, a dissolução, a submissão ante a conquista estrangeira, devido ao desenvolvimento da
independência pessoal e do individualismo, que tornam impossível a cooperação. Em geral, as
civilizações importantes começam por um sistema rígido e supersticioso que, aos poucos, vai
sendo afrouxado, e que conduz, em determinada fase, a um período de gênio brilhante,
enquanto perdura o que há de bom na tradição antiga, e não se desenvolveu ainda o mal inerente
à sua dissolução. Mas, quando o mal começa a manifestar-se, conduz à anarquia e, daí,
inevitavelmente, a uma nova tirania, produzindo uma nova síntese, baseada num novo sistema
dogmático. A doutrina do liberalismo é uma tentativa para evitar essa interminável oscilação. A
essência do liberalismo é uma tentativa no sentido de assegurar uma ordem social que não se
baseie no dogma irracional, e assegurar uma estabilidade sem acarretar mais restrições do que
as necessárias à preservação da comunidade. Se esta tentativa pode ser bem sucedida, somente o
futuro poderá demonstrá-lo.
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