sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Augusto Cury - Inteligência multifocal - Parte 2


OS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO MULTIFOCAL DOS PENSAMENTOS

A construção dos pensamentos envolve diversos pontos complexos que são dificílimos de ser observados e investigados e, conseqüentemente, de se produzir conhecimento sobre eles. A seguir farei uma recapitulação dos pontos que analisei e dos que ainda precisam ser examinados: 1. A natureza dos pensamentos. 2. Os três tipos básicos dos pensamentos produ­zidos na mente (o essencial, o dialético e o antidialético). 3. Os sistemas de relações existentes entre os tipos de pensamentos. 4. Os sistemas de rela­ções que os pensamentos mantêm com o mundo intrapsíquico e extrapsíquico. 5. A lógica dos pensamentos. 6. Os processos psicodinâmicos que os constroem e que ultrapassam os limites da lógica. 7. Os sistemas de códigos que reorganizam a construção dos pensamentos. 8. O processo de desorganização dos pensamentos. 9. Os limites e o alcance dos três tipos básicos de pensamentos. 10. A práxis ou materialização dos pensamentos. 11. Os sistemas de validação científica dos pensamentos. 12. O gerenciamento da construção dos pensamentos pelo eu. 13. A leitura da memória e a formação das matrizes de pensamentos essenciais históricos. 14. A construção de pensamentos gerada pelo fenômeno da autochecagem da memória. 15. O fluxo da construção vital e inevitável dos pensamentos produzidos pelo fenômeno do autofluxo. 16. A disponibilidade histórica da memória produzida pela âncora da memória, que gera e, ao mesmo tem­po, limita a construção dos pensamentos produzida pelo fenômeno da autochecagem da memória, fenômeno do autofluxo e consciência do eu. 17. O uso espontâneo, inevitável e instantâneo das RPSs (representações psicossemânticas das experiências psíquicas e das informações contidas na memória) nas "cadeias psicodinâmicas dos pensamentos". 18. A leitura da memória e o resgate inconsciente das RPSs, que constituirão as "cadeias psicodinâmicas dos pensamentos". 19. O processo seletivo e inconsciente de cada RPS em meio a bilhões de opções existentes na memória. 20. A conjugação tempo-espacial dos verbos e suas inserções nas "cadeias psicodinâmicas dos pensamentos", antes que elas tenham se tornado cons­cientes pelo homem. 21. A pista de decolagem virtual preparada pelas matrizes de pensamentos essenciais e suas relações com o processo de leitu­ra virtual que dá origem aos pensamentos dialéticos e antidialéticos. 22. Os pensamentos essenciais histórico-dependentes e histórico-independentes. 23. A influência do fenômeno da psicoadaptação nos processos de construção dos pensamentos. 24. A "psicolinguagem inconsciente" das matrizes dos pensamentos essenciais. 25. A "psicolinguagem consciente" dos pensamen­tos dialéticos. 26. A "antipsicolinguagem consciente" dos pensamentos antidialéticos. 27. A aplicabilidade do fenômeno da credibilidade autógena na produção dos pensamentos dialéticos e na produção dos pensamentos antidialéticos na esfera da virtualidade ou antiessencialidade. 28. A organi­zação da cadeia de idéias que constituem as análises, as sínteses, os siste­mas dos referenciais, enfim, os discursos teóricos dos pensamentos. 29. A desorganização psicótica da "cadeia psicodinâmica" dos pensamentos. 30. Os sistemas de encadeamentos distorcidos ocorridos na construção de pensamentos. 31. O resgate e utilização das experiências passadas no ciclo da construção dos pensamentos e no processo de formação da perso­nalidade etc.
A inteligência multifocal possui três grandes áreas: uma construção multifocal, através da construção de pensamentos; uma influência multifocal através das variáveis da interpretação; um desenvolvimento multifocal con­tínuo, através dos estímulos intrapsíquicos, socioeducacionais e da carga genética. Existem teorias respeitáveis que enfatizam a terceira grande área, ou seja, a área do desenvolvimento da inteligência, como a Teoria das Inteligências Múltiplas de Howard Gardner,6 que aborda a inteligência lin­güística, lógico-matemática, espacial, musical, interpessoal etc.
Na realidade, só existe uma psique, um campo de energia psíquica, uma mente, e, portanto, só existe uma inteligência. Neste livro ela é chama­da formalmente de inteligência multifocal apenas porque sofre uma cons­trução, uma influência e um desenvolvimento multifocal. Esse desenvolvi­mento se manifesta através de múltiplas possibilidades intelectuais, chama­da de inteligências múltiplas na teoria que há pouco citei.
Tenho uma visão particular da terceira grande área, a área do desen­volvimento da inteligência. Para mim, esse desenvolvimento precisa ser psicossocial e filosófico e envolve a formação do homem como democrata das idéias; como pensador que tem afinidade com a arte da dúvida, a arte da crítica, a arte de ouvir, a arte da contemplação do belo; como um enge­nheiro de idéias que aprende a pensar antes de reagir, que aprende a interiorizar-se, a repensar-se; como pensador humanista que desenvolve a cidadania, que aprende a colocar-se no lugar do outro, que valoriza os direitos humanos e conquista uma macrovisão da espécie humana, etc. Porém, a ênfase principal deste livro é a primeira área, ou seja, a área da construção da inteligência, encabeçada pela construção dos pensamentos. Essa construção, por abordar a leitura da memória, os fenômenos que ge­ram o nascedouro das idéias, os tipos fundamentais de pensamentos, a natureza dos pensamentos, a formação da consciência existencial etc, pode contribuir para expandir e revisar as outras teorias que abordam a terceira área do desenvolvimento da inteligência, tais como a Teoria da Inteligên­cia Múltipla e a Inteligência Emocional.
Há pouco listei mais de trinta pontos que se referem apenas à área da construção de pensamentos. Sé acrescentasse a influência das variáveis da interpretação na construção dos pensamentos, representada pelas variáveis intrapsíquicas (energia emocional, história intrapsíquica etc), intraorgânicas (carga genética, stress físico, distúrbios metabólicos etc.) e extrapsíquicas (meio ambiente intra-uterino, estímulos socioeducacionais, stress socio-profissional etc), muitos pontos ainda teriam que ser acrescentados a essa lista. Imagine a rica influência de cada uma dessas variáveis no momento específico da ação dos fenômenos que fazem a leitura da memória e cons­troem as cadeias de pensamentos. Quando uma pessoa, por exemplo, está sob efeito de uma droga psicotrópica ou de um stress socioprofissional, a leitura da memória e a construção das cadeias de pensamentos sofrem diversas interferências.
A investigação desses pontos exige um processo de observação e inter­pretação continuamente aberto, crítico e reorganizável para que possamos expandir as possibilidades de construção do conhecimento sobre eles. Ex­cetuando o ponto ligado à desorganização psicótica das "cadeias psicodinâmicas dos pensamentos", todos os outros pontos são universais, o que evi­dencia a complexidade e sofisticação de cada ser humano.
Pelo fato de esses pontos estarem na base universal da construção dos pensamentos, eles podem ser usados para auxiliar, fundamentar, criticar e abrir avenidas de pesquisas para outras teorias psicológicas, tais como as teorias da personalidade. Por exemplo, a estrutura da personalidade de Freud, expressa pelo id, pelo ego e pelo superego, poderia ser ainda mais desenvolvida. O "id" poderia ser mais bem elucidado a partir da influência da energia biofísica (instinto) na produção de matrizes de pensamentos essenciais inconscientes. O "ego" poderia ser mais bem elucidado a partir dos fenômenos que fazem a leitura da memória e que produzem a constru­ção das cadeias de pensamentos dialéticos e antidialéticos. Por sua vez, o "superego" poderia ser mais bem compreendido a partir dos complexos deslocamentos da âncora da memória e, conseqüentemente, das mudanças dos territórios de leitura da história intrapsíquica. Por outro lado, as teorias comportamentais e cognitivas, que têm uma linha psicoterapêutica e um embasamento teórico distintos da psicanálise de Freud, também poderiam ser mais elucidadas através dos processos de construção de pensamentos. Por exemplo, as técnicas comportamentais poderiam ser melhor desenvol­vidas e ter outras possibilidades de pesquisas se incorporassem, entre ou­tros pontos, o conhecimento sobre o fenômeno da autochecagem da me­mória, a construção das cadeias de pensamentos essenciais e o registro automático dessas cadeias na memória pelo fenômeno RAM (registro auto­mático da memória).
Não é objetivo deste livro aplicar a teoria da inteligência multifocal em outras teorias. Seria bom que essa tarefa pudesse ser realizada por outros pesquisadores. A construção dos pensamentos é extremamente abrangente e complexa.


Capítulo 4

Os Três Mordomos da Mente Educando e Formando Silenciosamente o "Eu"


O "EU" É PRODUZIDO PARADOXALMENTE POR PROCESSOS INCONSCIENTES

Como o "eu" é formado? Como ele lê a memória e resgata com extremo acerto, em milésimos de segundos e em meio a bilhões de opções, cada RPS que representa as experiências passadas? Como ele organiza essas RPSs, formando complexas cadeias psicodinâmicas das matrizes de pensamentos essenciais históricos, antes que essas matrizes so­fram um processo de leitura virtual? Como o processo de leitura virtual das matrizes de pensamentos essenciais gera os pensamentos dialéticos e antidialéticos? Como ele conjuga complexamente os verbos, antes que te­nhamos consciência dos tipos de verbos que serão utilizados nas cadeias de pensamentos? Como o "eu" gerencia "inconscientemente", e com extrema fineza, os processos de construção dos pensamentos nos bastidores da men­te para administrar a racionalidade humana? Essas perguntas estão no cerne da psicologia e não foram respondidas até hoje.
Se não estudarmos com detalhes a construção dos pensamentos e não questionarmos continuamente nossa produção de conhecimento, fatalmen­te caminharemos nas trajetórias do psicologismo e não progrediremos na compreensão dos fenômenos que nos torna uma espécie inteligente.
Um dos mais complexos paradoxos intelectuais é expresso pelo gerenciamento do "eu" sobre a construção de pensamentos. O "eu", embo­ra ocorra nos palcos conscientes da inteligência, vive um paradoxo intelec­tual indescritível, pois gerencia "inconscientemente" a construção de pen­samentos, a racionalidade humana; ele lê inconscientemente a memória, organiza inconscientemente as RPSs e produz inconscientemente as cadei­as de pensamentos conscientes.
A construtividade do mundo das idéias, que promove toda racionalidade dialética, toda ciência, toda produção de arte, toda comunicação social, enfim, toda "consciência existencial do eu" sobre o mundo que somos e em que estamos, é produzida por processos inconscientes que são operacionalizados nos bastidores da psique.

O HOMEM É UM ENGENHEIRO QUANTITATIVO E NÃO QUALITATIVO DE IDÉIAS

O homem, em detrimento de possuir uma inteligência complexa, ex­pressa pela construção de pensamentos, gerenciada ou não pelo eu, histori­camente pouco se interiorizou e se interessou em procurar conhecer os processos e fenômenos que estão envolvidos na construção dos pensamen­tos, em procurar conhecer os elementos mais íntimos que nos constituem como seres pensantes. É mais confortável se postular como um semideus do que ser alguém que se investiga, que se indaga, que duvida de si mes­mo, que questiona a validade, os limites e o alcance das suas idéias. Toda macro ou microditadura nasce da aversão à arte da formulação de pergun­tas, à arte da dúvida, à arte da crítica.
Ao longo da história humana, o homem viveu inevitavelmente sob o regime da revolução da construção das idéias. Ler a memória e resgatar informações, produzir cadeias de pensamentos, construir o mundo das idéias, ainda que não-qualitativas, sempre foi o destino histórico do Homo sapiens. Porém, a construção das idéias, que ocorre clandestinamente nos bastido­res da mente, nem sempre foi reorganizada, promovida e redirecionada, enfim, administrada pelo eu para a produção das artes, das relações sociais, das ciências, do humanismo, da cidadania.
O ser humano é um engenheiro que constrói uma grande quantidade de idéias, porém, freqüentemente, não é um engenheiro que constrói idéias com qualidade, que administra com coerência e humanismo sua constru­ção de pensamentos. Por isso, o espetáculo da construção dos pensamentos em muitos períodos da história foi conduzido para promover as mazelas humanas, fomentar a destrutividade social, as guerras, as dores biopsicossociais, a violação dos direitos humanos etc. A trajetória intelectual hu­mana espontânea não é o processo de interiorização, não é a expansão do humanismo, a maturidade intelecto-emocional, mas a síndrome da ex­teriorização existencial. Tal conclusão não tem nada a ver com uma postu­ra negativista, pessimista, diante da vida, mas é derivada da análise da construção de pensamentos.
O humanismo, a maturidade intelecto-emocional, a capacidade de tra­balhar dores, perdas e frustrações psicossociais, enfim, o processo de interiorização, tem de ser conquistado psicossocialmente no processo exis­tencial, através do gerenciamento dos processos de construção dos pensa­mentos. Sem tal conquista, não teremos parâmetros para compreender que a grandeza de um homem não está no quanto ele possui de poder e statns socioeconômico-político, mas no quanto ele se interioriza, se investiga, tem consciência da suas limitações e desenvolve o seu humanismo.
As sociedades humanas não precisam de homens que amem a estética social, que amem o poder sociopolítico, mas de homens que sejam grandes no humanismo, grandes como pensadores, grandes na percepção dos seus limites, grandes na capacidade de se colocar no lugar do outro e perceber suas dores e necessidades psicossociais.

OS LIMITES DA CONSCIÊNCIA COMO "REI-EU" DOS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DOS PENSAMENTOS

É difícil realizar a conquista psicossocial das funções mais nobres da inteligência. O gerenciamento do eu sobre os processos de construção dos pensamentos é difícil de ser conquistado, pois construir pensamentos não é apenas um atributo do eu, mas, pelo menos, de três outros fenômenos intrapsíquicos. Por isso o homem tem uma produção intelectual extrema­mente complexa, o que gera alguns entraves importantíssimos no gerenciamento do eu sobre a racionalidade humana.
O fenômeno da autochecagem da memória, o fenômeno do autofluxo e a âncora da memória funcionam como três mordomos psicodinâmicos que, associados a outras variáveis, organizam, nutrem e educam o "eu" como o grande gerenciador e redirecionador dos processos de construção da inteligência. Chamarei o "eu" pejorativamente, neste tópico, de "rei-eu". O exercício mais importante do "rei-eu" na mente é o de gerenciar e admi­nistrar, pelo menos parcialmente, os processos de construção da inteligên­cia, fazendo com que o homem não seja apenas vítima da revolução das idéias, vítima da sua carga genética, principalmente das propensões genéti­cas do humor, e vítima dos estímulos do ambiente socioeducacional, mas agente modificador de sua própria história psicossocial.
Uso pejorativamente o termo "rei-eu" para indicar que, ao contrário do que crê o senso comum científico e coloquial, o "eu", ou self não é de fato um grande "rei-eu", um senhor absoluto dos processos de construção da inteligência. Grande parte das idéias, pensamentos, emoções e motivações produzidos na mente, como temos visto, não são determinados logicamente e conscientemente pelo "rei-eu", mas pela operacionalização espontânea dos três outros fenômenos inconscientes que lêem a história intrapsíquica e produzem as matrizes de pensamentos essenciais desde a aurora da vida fetal.
Na vida extra-uterina, as matrizes de pensamentos essenciais históricos, produzidas pelos "mordomos" da mente, sofrem um processo de leitura virtual que gera uma riquíssima produção de pensamentos dialéticos e antidialéticos. Porém, a produção das matrizes de pensamentos essenciais históricos e, conseqüentemente, a produção dos pensamentos dialéticos e antidialéticos, derivados da operacionalidade dos "mordomos" da mente, não se submetem a uma administração histórico-crítica que questiona as informações da memória, como se submetem à produção das matrizes de pensamentos essenciais e à produção dos pensamentos dialéticos e antidialéticos produzidos pelo eu.
Nos sonhos, nos delírios e nas alucinações há uma rica construção de pensamentos produzida pelos mordomos da mente, principalmente pelo fenômeno do autofluxo. Porém, o gerenciamento da construção dos pensa­mentos exercida pelos mordomos da psique não é, como disse, histórico-crítica, pois a "cadeia psicodinâmica dos pensamentos", expressa pela iden­tidade dos personagens, pelas circunstâncias psicossociais, pela conjugação tempo-espacial dos verbos, enfim, pelos discursos teóricos e antidialéticos dos pensamentos, não se submeteu a uma análise e a uma reciclagem críti­ca construtiva que leva em consideração os parâmetros da história intrapsíquica e da realidade extrapsíquica. Portanto, apesar de os mordomos psicodinâmicos da psique produzirem uma rica construção de matrizes de pensamentos essenciais históricos e, conseqüentemente, uma rica constru­ção de pensamentos dialéticos e antidialéticos, somente o "eu" (do "rei-eu") tem a capacidade, ainda que parcial, de gerenciar, de reciclar, de reorganizar e de reorientar a construção de pensamentos e todos os demais processos de construção da inteligência a partir dos parâmetros histórico-críticos da memória e da realidade extrapsíquica.
Todos esses três mordomos contribuem para produzir o eu num deter­minado momento existencial. A exceção de uma parcela dos pensamentos essenciais que não chegam a sofrer um processo de leitura virtual, o eu se conscientiza de todos os pensamentos dialéticos e antidialéticos produzidos pelos mordomos psicodinâmicos, embora não determine consciente e logicamente a construtividade dos mesmos.
Cumpre à consciência do eu, ao "rei-eu", atuar no processo de constru­ção de pensamentos e administrá-lo, caso contrário, ela será sempre vítima da construtividade de pensamentos dos três outros fenômenos. Portanto, há diferença entre o "eu" e o gerenciamento do eu. O eu refere-se à consciência dos pensamentos dialéticos e antidialéricos de origem multifocal, que organizam a "consciência existencial" do mundo extrapsíquico e intrapsíquico. O gerenciamento é um passo além, ou seja, é a atuação do eu procurando não apenas se conscientizar da construção das cadeias de pensamentos conscientes, mas administrá-la. Compreenderemos melhor este assunto nos próximos capítulos.
Se o homem não aprende a gerenciar seus pensamentos e emoções, ele se torna marionete dos estímulos estressantes, vítima do meio em que vive e dos focos de tensão que ele mesmo cria no palco de sua mente, através de sua rigidez, sentimento de culpa, perfeccionismo, antecipação de situações futuras.
O eu, embora tenha limites para exercer a governabilidade psíquica, como "rei-eu", embora tenha limites para gerenciar todos os processos de construção dos pensamentos, pode e deve atuar nas cadeias psicodinâmicas dos pensamentos iniciadas pelos "mordomos" da mente. Pois somente as­sim ele deixa de ser vítima e passa a conquistar terrenos como agente modificador da sua história psicossocial.
A grande maioria das pessoas é vítima e não agente modificadora da sua personalidade. Diversas doenças psíquicas, tais como os transtornos obsessivo-compulsivos e a farmacodependência, tem suas origens nas sofis­ticadas relações entre o eu e os três fenômenos intrapsíquicos inconscientes que constroem multifocalmente as cadeias de pensamentos.

OS MORDOMOS DA MENTE EDUCANDO SILENCIOSAMENTE O EU

Não deveríamos considerar a rica construção de pensamentos produzi­dos pelos mordomos da psique humana como um problema; pelo contrá­rio, ela é de fundamental importância. Sem essa rica e inevitável constru­ção de pensamentos, a vida humana se tornaria um tédio insuportável, uma solidão indescritível, pois ela é a mais importante fonte de entreteni­mento humano. Além disso, sem a rica construção de pensamentos produ­zida pelos mordomos da mente, a história intrapsíquica e o eu não se de­senvolveriam.
Os mordomos da inteligência são fenômenos que lêem continuamente a memória e reorganizam o caos da energia psíquica. Portanto, são fenôme­nos que promovem os processos de construção da inteligência. Promovem também o desenvolvimento da história intrapsíquica desde a vida intra-uterina, preparando caminho para que o eu comece a se desenvolver nos primeiros anos de vida extra-uterina, através da produção das primeiras cadeias psicodinâmicas de pensamentos dialéticos e antidialéticos que ex­pressam as intenções, os desejos das crianças.
Os mordomos da mente exercem um trabalho psicodinâmico-educacional clandestino para com o eu, preparando-a como "rei-eu". Fiquei, como disse, anos e anos intrigado e me perguntando como o eu lê com extremo acerto, em frações de segundos e em meio a bilhões de opções, cada RPS que participará das cadeias psicodinâmicas dos pensamentos, e como ele organiza essas cadeias. Compreendi que os mordomos da mente realizam uma refinadíssima educação psicodinâmica do eu, conduzindo-a, paulati­namente, a ler "inconscientemente" a história intrapsíquica e a resgatar, com incrível acerto, as RPSs que participarão das matrizes dos pensamen­tos essenciais históricos.
A medida que esses mordomos ou "mestres-mordomos" lêem a memó­ria e produzem milhares de pensamentos diários, o eu aprende a traçar os mesmos caminhos psicodinâmicos e a realizar sua construção de pensa­mentos. A atuação dos mordomos da mente no processo de desenvolvi­mento do eu é psicodinâmica e psicossocialmente complexa e sofisticada.
Com o decorrer do tempo, o eu se desenvolve e se torna um "rei-eu" que adquire indescritível liberdade criativa e plasticidade construtiva para gerenciar os processos de construção dos pensamentos e produzir idéias no tempo que deseja, na freqüência que deseja e na cadeia psicodinâmica que deseja (conteúdo). O "rei eu" torna-se, assim, um exímio engenheiro de idéias, um exímio construtor de pensamentos dialéticos e antidialéticos.

A ATUAÇÃO DOS MORDOMOS DA MENTE NA FORMAÇÃO DA PERSONALIDADE

Toda a construção de pensamentos é produzida inconscientemente nos bastidores da mente. Dezenas de milhares de cientistas estão pesquisando e produzindo uma enormidade de pensamentos dialéticos e antidialéticos, embora não tenham consciência de que aprenderam com os fenômenos que estão contidos nos bastidores da inteligência os caminhos psicodinâmicos que permitem que eles leiam a memória em milésimos de segundos e res­gatem, com extrema fineza, cada RPS que constituirá suas idéias.
O desenvolvimento do "eu", o "rei-eu", deve muito mais aos mordomos da mente do que ao processo educacional. Se não houvesse a educação psicodinâmica e psicossocial dos mordomos da mente, poderíamos colocar as crianças nas melhores escolas e ensiná-las por décadas, mas elas não assimilariam nenhuma informação, pois não desenvolveriam a consciência existencial.
Sem a existência dos fenômenos intrapsíquicos, que constroem as ca­deias de pensamentos desde a vida intra-uterina, a história da personalida­de não se desenvolveria, o eu não conseguiria aprender os caminhos psicodinâmicos da memória, não conseguiria ler as RPSs da história intrapsíquica e construir e administrar as cadeias de pensamentos. Não haveria ciência, livros e qualquer comunicação consciente.
Fico encantado em observar o ser humano pensando e expressando suas idéias, independentemente de quem seja. Costumeiramente, contem­plo atenta e embevecidamente a produção intelectual das pessoas que me envolvem e fico impressionado com a sofisticação da construção das ca­deias de pensamentos. Freqüentemente, as pessoas não têm esse tipo de prazer, de deleite. Elas não conseguem contemplar a produção intelectual humana na perspectiva de espécie.
A grande maioria dos membros da nossa espécie desconhece a com­plexidade e a beleza ímpar dos processos de construção do mundo das idéias ocorridos em cada ser humano. Os laços genéticos nos acusam como espécie, mas a falta de contemplação do espetáculo dos pensamentos indi­ca que perdemos historicamente a perspectiva de espécie.
O espetáculo da construção de pensamentos é indescritivelmente sofis­ticado. Em frações de segundos, posso estar em Londres; nos momentos seguintes, estou em Paris e, segundos depois, estou pensando nas circuns­tâncias que vou enfrentar amanhã, ainda que o amanhã não exista essen­cialmente; momentos depois, me transporto para a minha infância, ainda que a recordação seja uma interpretação da história. Porém, não sabe­mos "onde", "quando" e "como" tivemos um sofisticado aprendizado "psicodinâmico e psicossocial" que nos habilitou a sermos engenheiros de idéias.
Na realidade, o "rei-eu" começa sua faculdade psicodinâmica e psicos­social no campo de energia psíquica desde a aurora da vida fetal, cujos mestres foram os mordomos inconscientes que lêem inevitavelmente a his­tória intrapsíquica e promovem os processos de construção dos pensamen­tos. Por isso, como afirmei, há nos bastidores da mente um mundo a ser descoberto, cujas raízes ocultas, mais íntimas, nos alimentam como seres pensantes, como seres que têm consciência existencial.
Assim como enumerei mais de três dezenas de pontos teóricos relativos aos processos de construção dos pensamentos que precisariam do espaço de outros livros para serem abordados, o assunto relativo aos três mordomos da mente, que estudaremos nos próximos textos, também é muito extenso; por isso, neste livro, farei apenas uma síntese deles. Há diversas conseqüên­cias psicológicas, filosóficas, sociológicas e educacionais que podem ser derivadas desses textos.


Capítulo 5

O Fenômeno da Autochecagem: O Gatilho da Memória


O FENÔMENO DA AUTOCHECAGEM DA MEMÓRIA E A HISTÓRIA INTRAPSÍQUICA

O fenômeno da autochecagem é o fenômeno que lê automatica­mente a memória. É o primeiro fenômeno que atua na inteligên­cia. Diante de um estímulo qualquer, seja um pensamento ou um estímulo físico, ele é acionado e em milésimos de segundos lê a memória, assimila seu conteúdo e, conseqüentemente, produz as primeiras reações no cerne da inteligência. Como temos contato com centenas de milhares de estímulos por dia, o fenômeno da autochecagem é acionado também centenas de milhares de vezes.
Cada vez que vemos um estímulo e o identificamos automaticamente como uma poltrona, uma mesa, um pássaro, uma pessoa, temos que ter consciência que essa identificação automática não foi produzida de manei­ra mágica e nem muito menos pelo desejo do eu em produzir esta identifi­cação, mas pela ação deste fenômeno.
Possuir uma história intrapsíquica, onde são arquivadas as experiências existenciais, é um privilégio da espécie humana. O registro da história intrapsíquica na memória é involuntário e automático, produzido, como disse, por um fenômeno que chamo de fenômeno RAM — registro automá­tico da memória. Do mesmo modo, a leitura da memória diante de um estímulo também não é opcional, mas inevitável. Entre os fenômenos que lêem inevitavelmente a memória, encontra-se o fenômeno da autochecagem da memória. O fenômeno da autochecagem inicia as primeiras leituras da memória, por isso ele também pode ser chamado de fenômeno do gatilho da memória.
A reação frente a um objeto fóbico não é produzida pelo eu, mas pelo fenômeno do gatilho da memória. Do mesmo modo grande parte dos movimentos musculares, inclusive aqueles que meneiam a cabeça, concor­dando ou discordando das palavras que ouvimos, são freqüentemente pro­duzidos pelo gatilho da memória, ou seja, são autochecados nos arquivos da memória e produzidos espontaneamente sem a autorização do eu. As reações impulsivas também são produzidas por este fenômeno. Toda vez que reagimos sem pensar somos dirigidos não pelo eu, mas pela autochecagem espontânea e automática da memória.
O eu pode administrar seletivamente determinadas leituras da memó­ria, mas grande parte dessa leitura é realizada involuntariamente. Quando essa leitura é produzida pelos "mordomos da mente", o eu tem grande dificuldade e, às vezes, até a impossibilidade de administrá-la.
Ao contemplar auditiva ou visualmente uma palavra pertinente a uma "língua" que dominamos, a definição da palavra torna-se um processo au­tomático e inevitável, pois foi checada automaticamente na memória. Ao contemplarmos uma criança, um veículo, uma residência, a cor das roupas, um barco pintado num quadro, enfim, qualquer estímulo extrapsíquico que tem RPSs (diretivas e associativas) na nossa história intrapsíquica, elas serão lidas automaticamente pelo fenômeno do gatilho da memória. Essa autochecagem da memória produz cadeias de pensamentos essenciais que, lidas virtualmente, geram os pensamentos antidialéticos e dialéticos, esta­belecendo, assim, a consciência existencial do estímulo.
Não é atributo do eu definir a maioria das imagens e sons que sensibi­lizam nossos sistemas sensoriais; eles simplesmente são autochecados na memória e compreendidos automaticamente. O eu só entra em ação numa fase posterior do processo de interpretação, segundos depois, para discor­rer, discursar, enfim, produzir cadeias de pensamentos mais complexas sobre os estímulos contemplados.
É impossível conter no estado de vigília a operação psicodinâmica do fenômeno da autochecagem da memória, a não ser que o processo de observação esteja comprometido pelo intenso efeito de alguma substância psicotrópica, ou se a energia emocional estiver submetida a um forte stress. Neste caso, poderia se comprometer qualitativamente a assimilação do con­teúdo do estímulo, mas não conter o processo de leitura automático da memória.
O fenômeno da autochecagem atua na etapa inicial do processo de interpretação. A primeira etapa do processo de interpretação é produzida pela sensibilidade do estímulo no sistema sensorial até ocorrer a autoche­cagem da memória do mesmo na memória. Através dela se inicia a defini­ção histórica do estímulo contemplado.
Pela definição histórica, desencadeamos a produção intelectual. Porém, apesar da importância fundamental da atuação psicodinâmica do fenômeno da autochecagem da memória, podemos colocar o estímulo observado em um cárcere, por submetê-lo exclusivamente às dimensões das informa­ções contidas na memória. Uma pessoa que tem preconceitos contra al­guém pode autochecar seus comportamentos e produzir reações que des­prezam completamente o conteúdo dos mesmos, sem submetê-los a uma análise posterior.
Uma pessoa que só gravita em torno dos pensamentos produzidos pelo gatilho da memória é incapaz de repensar suas reações e gerenciar suas idéias, portanto, vive debaixo da ditadura do preconceito. O gatilho autocheca o estímulo na memória e produz os primeiros pensamentos, mas cumpre ao eu refletir sobre eles e criticá-los depois de produzidos.
Ao observar uma pessoa tensa, ansiosa, irritada, desesperada, é fácil julgá-la superficialmente através das cadeias de pensamentos produzidas pelo fenômeno da autochecagem, sem considerarmos, através do gerenciamento do eu, as causas intrapsíquicas e psicossociais que geraram esses comportamentos.
Os estímulos extrapsíquicos, captados pelo sistema sensorial, são assi­milados pelo córtex cerebral, gerando sistemas de códigos físico-químicos. Esses sistemas de códigos são transmutados, através de sítios específicos do cérebro, no campo de energia psíquica, transformando-se nos sistemas de códigos dos pensamentos essenciais, que ainda são "a-históricos".
Estes sistemas de pensamentos essenciais "a-históricos" são autochecados na memória, em regiões específicas do córtex cerebral, conquistando historicidade. A atuação do fenômeno da autochecagem gera as mais di­versas formas de preconceito dos estímulos que interpretamos. Se o eu não gerenciar esses preconceitos, gera-se, então, a ditadura do preconceito e do preconceituosismo que comprometem a democracia das idéias.
Os sistemas de códigos dos pensamentos essenciais "a-históricos", advindos dos estímulos extrapsíquicos, são histórico-dependentes, ou seja, são autochecados automaticamente pela ação do fenômeno da auto­checagem na memória.
A autochecagem da memória é produzida através das leituras das RPSs diretivas (ligada diretamente ao estímulo extrapsíquico) e das RPSs associativas (relacionada com o mesmo). Nesse processo de leitura existe uma correspondência entre os sistemas de códigos físico-químicos recebi­dos pelo sistema sensorial, os sistemas de códigos dos pensamentos essen­ciais "a-históricos" e os sistemas de códigos físico-químicos (provavelmente eletrônicos) que representam psicossemanticamente as experiências psíqui­cas que foram registradas no arquivo existencial da memória, localizada no córtex cerebral.

O FENÔMENO DA AUTOCHECAGEM CONSTRÓI PENSAMENTOS E ESTIMULA A EMOÇÃO SEM A AUTORIZAÇÃO DO "EU"

Os estímulos extrapsíquicos, como disse, são histórico-dependentes, ou seja, precisam ser invariavelmente autochecados na memória intrapsíquica para serem compreendidos. Antes de serem compreendidos no palco cons­ciente da mente, eles são autochecados na memória, produzindo as matri­zes de pensamentos essenciais históricos. As matrizes de pensamentos es­senciais históricos têm de ter, por sua vez, um sistema de correspondência entre a leitura virtual dos pensamentos dialéticos e os sistemas de códigos fisico-químicos das RPSs.
Sem esses sofisticados sistemas de relação, não seria possível haver de­terminados níveis de "correspondência ou relação lógica" entre o pensa­mento dialético sobre uma determinada pessoa e a pessoa em si. Por isso, reitero que, embora a construção de pensamentos ultrapasse os limites da lógica, ela possui um sistema de relação lógica; caso contrário, não seria possível produzir ciência, não haveria verdade científica.
Entre os pensamentos dialéticos e antidialéticos, e a realidade dos obje­tos e pessoas que nos circundam, há uma distância infinita, insuperável, pois os pensamentos são virtuais, antiessenciais, e os objetos e as pessoas são reais, essenciais. Essa distância nunca é superada, na realidade; nós apenas temos a sensação, a impressão e a consciência dessa superação pelos níveis de "relação lógica" produzidos pelos sistemas de relações exis­tentes nos processos de construção dos pensamentos. Como disse, apesar da intransponibilidade entre a consciência da essência e a realidade intrín­seca da própria essência, é possível que a construção de pensamentos pos­sa gerar conseqüências científicas, tais como previsão de fenômenos, com­provação dos argumentos teóricos e aplicações científicas, através dos siste­mas de relação lógica e de materialização das matrizes dos pensamentos essenciais históricos que estão na base dos pensamentos dialéticos e antidialéticos.
As matrizes dos pensamentos essenciais, produzidas pelo fenômeno da autochecagem, não apenas sofrem um processo de leitura virtual e geram os pensamentos dialéticos e antidialéticos; elas também reorganizam o caos da energia como um todo. Elas atuam psicodinamicamente no processo de transformação da energia emocional e motivacional e, em pequenas fra­ções de segundos depois, sofrem um processo de leitura virtual que gera a construção dos pensamentos conscientes. Assim, as ofensas, os elogios, as situações fóbicas, as circunstâncias existenciais, etc. antes de serem conscientizadas pelo eu, são autochecadas na história intrapsíquica, tornam-se matrizes de pensamentos essenciais históricos, que transformam pri­meiramente a energia emocional e motivacional para, em fração de segun­dos, sofrerem uma leitura virtual que gerarão os pensamentos dialéticos e antidialéticos no palco da consciência intelectual.
Há vários exemplos que, se observados através de uma "pesquisa empírica aberta" disciplinada, e que reorienta continuamente o processo de observação, interpretação e produção de conhecimento, podem com­provar indiretamente que os estímulos extrapsíquicos são autochecados historicamente antes de ocorrer a assimilação ou compreensão intelectual do mesmo.
Uma pessoa que assiste a um filme de terror pode resolver não sofrer nenhuma sensação fóbica com as cenas de terror, devido à conscientização de que existe um diretor de cinema, um artista plástico, um câmera, um iluminador por detrás de cada cena bem como devido à conscientização de que o "monstro" do filme é meramente um ator, que repetidas vezes ensaiou seu comportamento e, provavelmente, ironizou os textos que inter­preta. Porém, se o espectador estiver sozinho na sua sala de TV e se ela estiver à meia-luz, quando a porta começa a ranger, sugerindo a iniciação da cena de terror, o espectador, ainda que esteja racionalizando os estímu­los e determinado a ficar indiferente a eles, sofrerá a ação inconsciente do fenômeno da autochecagem, que lerá automaticamente a sua memória. Nessa leitura, ele resgatará um grupo de RPSs ligadas às experiências fóbicas vividas na sua infância e que se relacionam ou se associam aos estímulos extrapsíquicos contidos nas cenas. Assim, ele sofrerá, ainda que não deseje, determinado grau de ansiedade fóbica, principalmente se seu passado for rico em fobias e superstições.
O exemplo acima evidencia um dos segredos do funcionamento da mente humana. O fenômeno da autochecagem lê a memória, constrói pen­samentos e transforma a energia psíquica sem a autorização do eu.

O GATILHO DOS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO MULTIFOCAL DOS PENSAMENTOS

O fenômeno da autochecagem desencadeia, em frações de segundos, o gatilho das primeiras reações da inteligência. Quando um observador con­templa os estímulos extrapsíquicos (ex., a arquitetura das casas, o compor­tamento humano, os sons musicais, um quadro etc.) ele produz, em última análise, nos bastidores da sua mente, as matrizes dos pensamentos essen­ciais "a-históricas", que autochecadas na memória produzem as matrizes dos pensamentos essenciais "históricos". Essas matrizes atuam psico-dinamicamente no processo de transformação da energia emocional. Fra­ções de segundos depois, elas sofrem o processo de leitura virtual que gerará a produção de pensamentos dialéticos e antidialéticos.
Quando os pensamentos dialéticos e antidialéticos são formados, o eu entra em cena e, dependendo de sua capacidade de gerenciamento, exer­ce uma revisão crítica das idéias e das reações emocionais desencadeadas e produzidas pelo fenômeno da autochecagem ou do gatilho da memória.
O desencadeamento da construção da inteligência ocorre freqüen­temente através dos mordomos psicodinâmicos da mente sem a participa­ção do eu. Porém, cumpre a ela ser o agente modificador da sua história psicossocial e exercer um redirecionamento desses processos de constru­ção que se desencadearam sem a sua determinação consciente e lógica.
A autochecagem dos estímulos extrapsíquicos começa na vida intra-uterina. Com o decorrer do tempo, se processa também a autochecagem dos estímulos intrapsíquicos, ou seja, das idéias, das análises, das emoções etc, que são geradas diariamente na mente humana. Ao longo do processo existencial, o fenômeno do gatilho da memória opera-se psicodinamicamente bilhões de vezes, expandindo a história da personalidade, pois cada expe­riência gerada por ele é registrada automaticamente pelo fenômeno RAM.
A leitura desta história, produzida pelo fenômeno da autochecagem, e as cadeias de pensamentos geradas por ele contribuem, paulatinamente, para educar o eu, "orientando-o" inconscientemente a utilizar a memória, estimulando-a a percorrer as mesmas trajetórias psicodinâmicas.
A seguir, será apresentado um quadro didático sobre o fenômeno da autochecagem da memória e sua atuação psicodinâmica na construção das cadeias de pensamentos e na formação da consciência existencial.

GRÁFICO 1

FENÔMENO DA AUTOCHECAGEM DA MEMÓRIA (GATILHO)

Produção automática de cadeias de pensamentos e de experiências emocionais pela autochecagem da memória diante dos estímulos extrapsíquicos e intrapsíquicos



 

Capítulo 6

O Fenômeno do Autofluxo da Energia Psíquica e a Ansiedade Vital


O CAMPO DE ENERGIA PSÍQUICA EXPERIMENTA UM CONTÍNUO ESTADO DE DESEQUILÍBRIO PSICODINÂMICO

O fenômeno do autofluxo é o fenômeno que lê continua e diaria­mente inúmeros territórios da memória produzindo uma "usina" de emoções e de pensamentos cotidianos.
Depois de todos estes anos de pesquisa em que vivi continuamente a tríade de arte intelectual e a reorganização do processo de observação, interpretação e produção de conhecimento, tenho a convicção de que o campo de energia psíquica nunca encontra o equilíbrio estático e nem o psicodinâmico. Os jargões da psicologia, tais como "equilíbrio emocional", "pessoa equilibrada", são superficiais; não procedem do ponto de vista científico.
O campo de energia psíquica nunca se "equilibra", mas vive continua­mente um "desequilíbrio psicodinâmico", que alavanca o processo de or­ganização dos microcampos de energia psíquica, expandindo, assim, conti­nuamente suas possibilidades de construção.
O conceito do "desequilíbrio psicodinâmico" é extremamente impor­tante e está ligado ao fluxo vital da energia psíquica. Chamo esse desequi­líbrio psicodinâmico de "ansiedade vital". O fluxo vital da energia psíquica possui intrinsecamente uma ansiedade vital ou desequilíbrio psicodinâmico contínuo em toda a trajetória da existência humana.

A ANSIEDADE VITAL

Todo ser humano vive continuamente, nos bastidores da sua mente, uma ansiedade vital. Ninguém pode se livrar da ansiedade vital. A ansieda­de vital é diferente da ansiedade patológica, da tensão emocional doentia, que normalmente é angustiante e, freqüentemente, é acompanhada de sin­tomas psicossomáticos. A ansiedade vital é fundamental no processo de leitura da história intrapsíquica e de construção da inteligência. A ansieda­de vital anima e provoca psicodinamicamente os processos de construção dos pensamentos, da consciência existencial e as transformações da ener­gia emocional e motivacional.
Embora todo ser humano tenha essa ansiedade vital, ela é qualitativa­mente diferente de pessoa para pessoa. As crianças hiperativas ou hiper-cinéticas têm uma ansiedade vital intensa; por isso, provocam inconsciente­mente e de maneira exacerbada os fenômenos que fazem a leitura da me­mória, gerando um hiperfluxo de transformações emocionais e motivacionais e uma hiperconstrutividade de pensamentos, que se expressa na hiperatívidade psicomotora. Algumas crianças autistas, ao contrário, têm sua ansiedade vital diminuída e, com isso, têm uma estimulação psicodinâmica reduzida dos fenômenos que fazem a leitura da memória, que se traduz numa redução da transformação da energia emocional, numa redução da construção quantitativa dos pensamentos e numa redução pela interação e interesse social. Por isso, elas criam um mundo particular den­tro de si mesmas. Nas crianças autistas o grande desafio psicoterapêutico é estimular os mordomos psicodinâmicos que constroem os pensamentos a contribuírem para formar o eu (a consciência de si mesmo e a consciência do mundo extrapsíquico).
A ansiedade vital está intimamente ligada aos níveis de desorganização e reorganização pelos quais as experiências psíquicas passam no campo da energia psíquica. A ansiedade vital é o estado de desequilíbrio psicodinâmico contínuo e irrefreável que anima o fluxo vital da energia psíquica, que, como disse, é o "princípio dos princípios" do processo de transformação da própria energia psíquica, do processo de formação da personalidade.
A ansiedade vital está ligada psicodinamicamente tanto à qualidade quanto à velocidade da leitura da memória e, conseqüentemente, à quali­dade e velocidade dos processos de construção da psique, e também, con­seqüentemente, à qualidade do processo de formação da personalidade. Diversas variáveis atuam psicodinamicamente na ansiedade vital determi­nando seus níveis qualitativos, tais como os microcampos de energia físico-química determinadas pelo metabolismo neuroendócrino (determinado geneticamente), o pool de experiências vivenciadas no meio ambiente intra-uterino, a qualidade da história intrapsíquica, a estimulação socioeducacional, a operacionalidade psicodinâmica do fenômeno da psicoadaptação, etc.
A ansiedade vital é, portanto, uma variável intrapsíquica influenciada psicodinamicamente por variáveis de origem genética, socioeducacional e intrapsíquica. Apesar da importância da ansiedade vital na construção da inteligência, eu me restringirei apenas a esta abordagem sintética sobre ela.

O FENÔMENO DO AUTOFLUXO E SUA RELAÇÃO COM A ANSIEDADE VITAL

O autofluxo é uma palavra conjugada que aqui significa um fluxo por si mesmo, um fluxo espontâneo e contínuo. Fenômeno do autofluxo é uma expressão que representa um conjunto de fenômenos que atua nos bastido­res da mente humana e que financia um fluxo espontâneo e inevitável da energia psíquica, gerando continuamente uma produção de pensamentos, idéias, motivações, emoções. A energia psíquica está continuamente fluin­do ou se transformando na forma de pensamentos e emoções. Cada pensa­mento e emoção produzida no campo da energia psíquica se desorganiza e se reorganiza continuamente em outros pensamentos e emoções.
Ninguém consegue interromper a transformação da energia psíquica. Ela sofre a ação contínua e inevitável do fenômeno do autofluxo. É impos­sível interromper a produção de pensamentos. Todos viajam nas avenidas dos pensamentos e se desligam, ainda que por instantes, do mundo concre­to. Os juízes viajam enquanto julgam os réus. Os psicoterapeutas, por mais atentos que sejam, viajam enquanto atendem seus pacientes. Os cientistas viajam enquanto pesquisam. As crianças viajam no mundo dos seus so­nhos. Os idosos, nas trajetórias do seu passado.
Alguns viajam muito, estão sempre flutuando nos seus pensamentos. Outros viajam menos, mas mesmo assim fazem constantes viagens intelec­tuais. Uns sofrem muito com seus pensamentos traumáticos, outros se ale­gram com suas idéias, pois elas estimulam seus projetos. Uns pensam e logo se concentram nas suas tarefas. Outros pensam tanto que se desligam do que estão fazendo, por isso têm grande déficit de concentração e, conse­qüentemente, se esquecem facilmente dos fatos cotidianos. Todavia, esse déficit de memória não é neurológico, mas psicodinâmico, portanto não é grave. Ele é fruto apenas da hiperprodução de pensamentos, situação que ocorre quando alguém vive intensamente o fenômeno do autofluxo. As pessoas hiperativas e as estressadas freqüentemente apresentam esse déficit de memória psicodinâmico.
Comentei que a psique humana é um campo de energia psíquica que sofre um fluxo vital contínuo de transformação essencial; por isso tenho falado que, da aurora da vida fetal até o último suspiro da existência, todos vivemos uma revolução da construção das idéias e uma usina psicodinâmica de emoções. O fenômeno do autofluxo contribui decisivamente para gerar o fluxo vital da energia psíquica.
A ansiedade vital é uma variável intrapsíquica que participa do fenô­meno do autofluxo. A ansiedade vital está ligada psicodinamicamente tam­bém a outras variáveis intrapsíquicas, tais como o fenômeno da auto-checagem da memória, a âncora da memória, o eu, etc.
O fenômeno do autofluxo é um fenômeno intrapsíquico que ocupa um lugar de destaque como mordomo da mente. Ele é responsável pela leitura da história intrapsíquica, pela reorganização do caos da energia psíquica, pela construção inconsciente das idéias e, conseqüentemente, pela educa­ção, orientação e organização do eu. Quem forma o "eu" não é a educação escolar e familiar, como até hoje pensávamos, mas principalmente o fenô­meno do autofluxo. A educação social apenas dá um pequeno empurrão num processo belo e inevitável.
Milhares de pensamentos são produzidos por dia no palco da mente de um bebê, através das leituras do fenômeno do autofluxo. Num ano são milhões. Cada pensamento é registrado automaticamente pelo fenômeno RAM, tornando-se um pequeno e precioso tijolo da arquitetura do "eu". Quando uma criança de três anos diz que tem medo de ficar num quarto fechado, esta pequena reação fóbica não é produzida apenas pela palavra medo, mas pela consciência do medo, uma consciência que é gerada pela leitura instantânea de milhares de informações contidas na sua memória, ligadas à ausência de sua mãe, insegurança, sentimento de solidão, vazio, angústia.
Os computadores jamais sentirão medo e solidão, mas o homem, por desenvolver a consciência de si mesmo, por possuir um "eu", sentirá e terá consciência dessas emoções. Os computadores são mais lógicos do que o homem, mas o homem é indescritivelmente mais complexo do que eles. Até a memória humana é mais complexa que a dos computadores. No homem ela não é lida por índice, mas por conteúdos seletivos.
O ciclo de construção do campo de energia psíquica, expresso pela organização, pelo caos e reorganização da construção dos pensamentos é, freqüentemente, muito mais rápido do que o ciclo fisico-químico da cons­trução. Uma casa de alvenaria demoraria décadas ou séculos para se sub­meter completamente ao caos fisico-químico e ser incorporada à terra e, a partir daí, participar de outras estruturas físicas. De outro lado, como vi­mos, as idéias, os pensamentos, as análises, a ansiedade, o prazer, as rea­ções fóbicas, etc, embora sejam construções psicodinâmicas extremamen­te complexas, vivem o caos em segundos ou frações de segundos para, em seguida, serem reorganizadas em novos microcampos de energia psíquica, que definimos como novas emoções, motivações e matrizes de pensamen­tos essenciais.
Se o campo de energia psíquica não passasse, milhares de vezes ao dia, por um "ciclo de construção psicodinâmico" extremamente rápido, não seria possível desorganizar a estrutura psicodinâmica intrínseca dos pensa­mentos, das emoções e das motivações e reorganizá-las novamente em ou­tras construções psicodinâmicas. Sem a sofisticação e rapidez do "ciclo de construção psicodinâmico" não seríamos o que somos. O homem, como vimos, não seria o complexo e sofisticado Homo intelligens, não desenvolve­ria sua personalidade nem construiria história e uma identidade psicossocial, pois sua mente não viveria sob o regime de uma construção inevitável de idéias e de transformações da energia emocional e, conseqüentemente, não experimentaria diariamente um conjunto de pensamentos antecipatórios, de análises, de sínteses, de resgates de experiências passadas, de prazer, de angústia, de ansiedade, de insegurança, de desejo, de impulso.
Reitero, o fenômeno do autofluxo participa decisivamente do "ciclo psicodinâmico da construção" da mente, participa decisivamente da cons­trução de pensamentos e de experiências emocionais. O fenômeno do autofluxo não apenas participa da leitura da memória, mas ele mesmo é multifocal, pois é composto de um conjunto de fenômenos ou de variáveis intrapsíquicas da mente. Entre as variáveis que participam da composição e ação psicodinâmica do fenômeno do autofluxo está a ansiedade vital, o fenômeno da psicoadaptação, a energia emocional.
A energia psíquica jamais pára de se transformar. Todos sabemos que produzimos milhares de pensamentos diariamente. Se nos interiorizarmos e fizermos uma análise desses pensamentos, verificaremos que apenas uma pequena parte desses pensamentos foi produzida debaixo do gerenciamento do eu. Quem, então, é responsável pela produção clandestina de pensa­mentos que ocorre na mente humana? Diversos fenômenos, dos quais o fenômeno do autofluxo é o mais importante. Ninguém consegue interrom­per a construção dos pensamentos e as transformações da energia emocio­nal, porque ninguém consegue interromper a atuação psicodinâmica do fenômeno do autofluxo. O homem (a psique) vive para pensar e pensa para viver. Pensar não é uma opção do homem; pensar é o seu destino inevitável. A opção do homem ocorre apenas no que tange ao gerenciamento da construção inevitável dos pensamentos.
O fenômeno do autofluxo lê multifocalmente a história intrapsíquica, produzindo em grande parte do processo existencial diário inúmeras matri­zes de pensamentos essenciais históricos. Essas matrizes atuarão no campo de energia emocional e motivacional, produzindo uma usina psicodinâmica de emoções e motivações. Além disso, elas sofrerão um processo de leitura virtual, produzindo a construção dos pensamentos dialéticos e antidialéticos.
A construção de pensamentos, gerada pelo fenômeno do autofluxo, ocorre freqüentemente, como comentei, sem a determinação consciente do eu, ou seja, através de mecanismos psicodinâmicos espontâneos que envolvem a ansiedade vital, a estimulação da energia motivacional, a leitu­ra da história intrapsíquica, a formação das matrizes dos pensamentos es­senciais, a leitura virtual dessas matrizes, a produção de pensamentos dialéticos e antidialéticos na esfera da virtualidade ou da perceptividade.
O mundo dos pensamentos e das emoções produzidos pelo fenômeno do autofluxo e pelos demais fenômenos intrapsiquicos que fazem a leitura da história intrapsíquica, é um dos maiores mistérios da mente humana, um mistério que está no âmago da inteligência.

A MAIOR FONTE DE ENTRETENIMENTO HUMANO

O fenômeno do autofluxo é acionado através dos estímulos extra-psíquicos, intraorgânicos e intrapsiquicos. Porém, independentemente des­ses estímulos ele é acionado pela atuação psicodinâmica da ansiedade vi­tal, gerando um fluxo por si mesmo, um fluxo vital e espontâneo da ener­gia psíquica. Na ausência de pensamentos essenciais, dialéticos, antidialéticos (estímulo intrapsíquico), de estímulos extrapsíquicos (ex., imagens e sons) e de estímulos intraorgânicos (ex., endorfinas, drogas psicotrópicas, mensa­gens dos neurotransmissores) o fenômeno do autofluxo é psicodinamica­mente ativado pela ansiedade vital que o constitui.
A ansiedade vital provoca um processo de leitura espontânea, sem motivação consciente da memória, gerando pensamentos essenciais que transformarão a energia emocional e motivacional e que servirão de base para a produção de pensamentos dialéticos e antidialéticos sem a autoriza­ção do eu, promovendo, assim, o autofluxo vital da energia psíquica.
Os estímulos extrapsíquicos provocam primeiramente a atuação do fe­nômeno da autochecagem da memória, que produz cadeias de pensamen­tos essenciais, dialéticas e antidialéticas e, depois, acionam o fenômeno do autofluxo. Ao observar o comportamento de uma pessoa (estímulo extrapsíquico), produzimos o primeiro grupo de pensamentos através do fenômeno da autochecagem da memória; porém, o segundo grupo de pen­samentos será fruto do gerenciamento do eu ou do fenômeno do autofluxo. Se o segundo grupo de pensamentos foi aleatório, sem uma agenda lógica e coerente, ele normalmente foi construído pelo fenômeno do autofluxo. O fenômeno do autofluxo produz aquelas viagens intelectuais em que nos distanciamos da situação real e divagamos por nossas idéias.
Os estímulos intra-orgânicos também acionam primeiramente o fenô­meno da autochecagem da memória. Se os estímulos intraorgânicos forem decorrentes de distúrbios metabólicos graves ou se forem drogas psicotrópicas alucinógenas, a autochecagem da memória será totalmente bizarra, incoerente, ilógica, gerando cadeias de pensamentos alucionatórios e deli­rantes, que não possuem um sistema de relação com a realidade extrapsíquica e intrapsíquica (memória). Após a atuação do fenômeno da auto­checagem da memória e, conseqüentemente, após a produção das primei­ras cadeias de pensamentos e das primeiras reações emocionais, o fenôme­no do autofluxo é acionado. Uma vez acionado, ele continuará a constru­ção das cadeias de pensamentos e das experiências emocionais. Porém, a qualquer momento, o eu pode se conscientizar de que não está gerenciando a construção de pensamentos e retomar esse gerenciamento, dando coe­rência a essa construção. Muitas vezes estamos fazendo viagens intelectuais absurdas em nossas mentes e, de repente, nos conscientizamos desse pro­cesso e, assim, interrompemos a produção das fantasias e das idéias incoe­rentes e redirecionamos a construção dos pensamentos.
Confesso que, na minha trajetória de pesquisa, fiquei pasmado em per­ceber a complexidade da construção dos pensamentos sem a autorização do eu. Eu pensava que todos os pensamentos produzidos na mente tinham algum tipo de ligação com o eu, que por sua vez, de alguma forma, atuaria administrando a sua construtividade. Porém, como explicar a rica constru­ção de pensamentos e das experiências emocionais ocorridas nos sonhos? Como explicar a multiplicidade de pensamentos e fantasias que diariamen­te são construídas em nossa mente e que, às vezes, nos causam intensa ansiedade e angústia existencial, tais como resgatar situações angustiantes do passado e antecipar situações traumáticas do futuro, e que são produzi­das à revelia da determinação consciente do "eu"? Como explicar as idéias fixas de conteúdo negativo, como ocorre nos transtornos obsessivos, liga­das a acidentes, a perdas, a doenças graves, a mortes etc, que geram forte tensão emocional e que são rejeitadas sem sucesso pelo eu?
Nos transtornos obsessivos há uma hiperconstrutividade de idéias de conteúdo negativo que não é explicada por nenhum princípio que rege o processo de formação da personalidade estabelecido pelos teóricos da per­sonalidade. O princípio do prazer de Sigmund Freud, o self criador de Carl Gustav Jung, a busca da superioridade de Adler, a busca do sentido existencial de Viktor Frankl etc, não explicam a hiperconstrutividade de idéias fixas de conteúdo negativo ocorrida nos transtornos obsessivo-compulsivos (TOC) e que não são administradas pelo eu. Porém, os transtornos obsessivos podem ser explicados pelo fluxo vital da energia psíquica, que é o princípio dos princípios da psique, pois evidencia que ocorre um proces­so vital e inevitável de autotransformações da energia psíquica.
O fluxo vital da energia psíquica é o princípio vital que anima e promo­ve o processo de formação da personalidade e o desenvolvimento da histó­ria psicossocial do homem. Os fenômenos psíquicos estão imersos no fluxo vital da energia psíquica; por isso lêem continuamente a história intrapsíquica, produzindo as cadeias de pensamentos. O fluxo vital da energia psíquica sofre um "ciclo psicodinâmico de construção", expresso por um processo contínuo e inevitável de organização, desorganização e reorganização.
Quando estudamos os processos de construção dos pensamentos, com­preendemos que ocorre uma riquíssima operacionalidade dos fenômenos que estão na base do funcionamento da mente, bem como uma riquíssima participação das variáveis intrapsíquicas que atuam nessa leitura. É impos­sível interromper o fluxo vital da energia psíquica; por isso, como disse, é impossível interromper a construção das idéias e as transformações emo­cionais.
Se fosse possível interromper o fluxo vital da energia psíquica, a vida humana seria um tédio insuportável, uma solidão angustiante, pois a cons­trução das idéias e a produção das emoções e motivações, geradas sem a autorização do eu, são a mais importante fonte de entretenimento humano.
Gastamos, diariamente, grande parte do nosso tempo mergulhados em nosso mundo intrapsíquico, envolvidos com a construção contínua e inevi­tável das idéias, emoções e desejos produzidos à revelia da determinação do eu. Até mesmo a vida dos autistas seria intensamente angustiante se não houvesse a operacionalização espontânea dos fenômenos que realizam a construção dos pensamentos.
Toda a indústria do turismo e todas as demais fontes de entretenimen­tos, tais como o cinema, a TV, as artes, a literatura etc, produzidas pelo homem são restritivas se comparadas à "fábrica" de idéias e de emoções produzidas espontaneamente no campo de energia psíquica. O fenômeno do autofluxo é uma variável que contribui significativamente para produzir o processo contínuo de transformação da energia psíquica, conduzindo o homem em toda a sua trajetória existencial, dormindo ou em estado de vigília, a viver sob o regime dos pensamentos e das emoções.
O fenômeno do autofluxo é o grande gerador inconsciente do fluxo vital da energia psíquica, independentemente das características doentias ou saudáveis dos pensamentos que produz. Quem é que teria coragem de chamar os amigos e os parentes para fazer uma conferência sobre o univer­so de pensamentos que produzimos no silêncio de nossas mentes? Pensa­mos tantas coisas bizarras, que provavelmente nem o mais puritano dos homens teria coragem de fazer uma exposição de todos os pensamentos construídos em sua mente.

O FENÔMENO DO AUTOFLUXO CONTRIBUINDO PARA A FORMAÇÃO DA HISTÓRIA INTRAPSÍQUICA E DO "EU"

A atuação psicodinâmica e construtiva do fenômeno do autofluxo, asso­ciada à atuação psicodinâmica e construtiva do fenômeno da autochecagem da memória, produz desde a aurora da vida do feto um grupo contínuo de experiências psíquicas que, registrado automaticamente pelo fenômeno RAM, enriquece a história intrapsíquica. A medida que a história intra­psíquica se enriquece, os fenômenos intensificam o ciclo psicodinâmico de construção de matrizes de pensamentos essenciais que, na vida extra-uterina, gerará a produção de pensamentos dialéticos e antidialéticos. Com a ex­pansão da produção de pensamentos dialéticos e antidialéticos, o eu come­ça a se organizar e a ler continuamente as informações pertinentes a histó­ria intrapsíquica para construir pensamentos e produzir emoções sob uma determinação consciente.
Na criança, em seus primeiros anos de vida, o eu constrói consciente­mente pensamentos simples, que expressam pequenos desejos, tais como tomar água, deslocar-se para determinado ambiente, querer determinado objeto etc, embora a leitura da história intrapsíquica e a produção incons­ciente das matrizes de pensamentos, que estão na base desses simples pen­samentos, sejam altamente complexas. Com o passar do tempo, à medida que o eu aprende com os mordomos da mente os caminhos psicodinâmicos da leitura e utilização da memória, ele começa a enriquecer a construção de pensamentos e o gerenciamento dessa construção. Penetrar nos arqui­vos da memória, utilizar os parâmetros e as informações neles contidos, processar a construção dos pensamentos e expandir cada vez mais o gerenciamento dessa construção, são os mais sofisticados trabalhos intelec­tuais do eu.
O processo de leitura da memória e da construção dos pensamentos pelos fenômenos intrapsíquicos, que gera uma aprendizagem psicodinâmica e psicossocial lenta e gradual do eu, é uma das áreas mais importantes e complexas da Psicologia. Sem compreendê-lo, haverá grandes lacunas teó­ricas não apenas na Psicologia, mas também nas demais ciências que estu­dam a psique e suas manifestações.
No ambiente clandestino e inconsciente dos bastidores da mente, o "eu" aprende um dos mais refinados, complexos e sofisticados paradoxos da inteligência, que é aprender silenciosamente os caminhos psicodinâmicos "inconscientes" da leitura da história intrapsíquica e do gerenciamento dos processos de construção dos pensamentos. O eu só pode se organizar e gerenciar o processo de construção dos pensamentos, e os demais proces­sos de construção da inteligência, se ele paradoxalmente aprender a ler "inconscientemente" a história intrapsíquica e produzir também, "incons­cientemente", as cadeias psicodinâmicas das matrizes de pensamentos. Os mais complexos trabalhos intelectuais da mente humana não são a constru­ção dos computadores, as grandes obras de engenharia, a produção da ciência, mas são a leitura da memória, a construção dos pensamentos e o gerenciamento dessa construção, pois esses trabalhos, além de serem sofisticadíssimos, são produzidos por processos totalmente inconscientes. A ciência, as artes e a tecnologia estão apenas na ponta do iceberg da inteligên­cia multifocal.
Ao observar as pessoas que nos circundam produzindo idéias e expressando-as, deveríamos ficar intrigados com o gerenciamento sobre fenôme­nos inconscientes que participam do espetáculo da construção dessas idéias, mesmo das mais ínfimas. Todos pensamos, mas não nos surpreendemos com os mistérios contidos no espetáculo da construção dos pensamentos, mesmo dos mais débeis. Quando observamos um cientista produzindo pensamentos complexos e uma pessoa deficiente mental produzindo uma pequena idéia, não temos a consciência de que as enormes diferenças des­ses pensamentos existe apenas na sua expressão consciente, exterior, pois interiormente ambos foram produzidos pela sofisticada operacionalidade dos mesmos fenômenos inconscientes. Se a pessoa deficiente mental não tivesse uma memória comprometida, e se tivesse um ambiente socio-educacional adequado, ela poderia desenvolver toda a agenda de forma­ção do eu e, assim, ter um gerenciamento e uma construção de pensamen­tos também complexa.
Inúmeras vezes, gastei horas e horas contemplando atenta e embeveci­damente as pessoas produzindo e expressando seus pensamentos, bem como a minha própria construção de pensamentos. Ao observar a construção de uma idéia, mesmo produzida por uma criança pequena, eu fazia a mim mesmo centenas de perguntas sobre ela, e exercia a arte da dúvida, da crítica para procurar entender os processos de construção que a envolviam. O uso desses procedimentos não me era confortável, pois me conduzia ao caos intelectual e revelava minha limitação intelectual.
O caos intelectual, por um lado, pode ser desconfortável, pois desorga­niza nossos paradigmas intelectuais, postulados, conceitos históricos e teóri­cos, mas, por outro lado, expande as possibilidades de compreensão e de construção do conhecimento. A luz que emerge do caos é reveladora. Após anos de caos intelectual, fui compreendendo paulatinamente a atuação clan­destina do fenômeno do autofluxo na construção da inteligência.
O processo socioeducacional apenas contribui com um pequeno "em­purrão extrapsíquico", um pequeno redirecionamento socioeducacional para a silenciosa e inevitável formação do eu a partir da operação psicodinâmica espontânea dos mordomos inconscientes da mente.
O eu, ao se conscientizar das cadeias de pensamentos produzidas in­conscientemente pelo fenômeno da autochecagem da memória e pelo fe­nômeno do autofluxo, interrompe ou continua essas cadeias. A continua­ção da construção dessas cadeias é também uma forma silenciosa e impor­tante de aprender a se organizar e desenvolver o gerenciamento dos pro­cessos de construção dos pensamentos. Nos adultos, é fácil verificar isso. O fenômeno do autofluxo faz uma leitura da memória e produz pensamentos referentes a uma situação ocorrida na infância, por exemplo, um atrito com algum colega de escola. Nesse exemplo, o fenômeno do autofluxo pode ter sido ou não desencadeado por algum pensamento anterior (ex., pensamen­to sobre a dificuldade nas relações interpessoais) ou por algum estímulo do meio ambiente (ex., imagem de duas crianças brigando) ou, então, pela leitura aleatória da memória estimulada pela ansiedade vital. Durante a produção de pensamentos dialéticos e antidialéticos produzidos pelo fenô­meno do autofluxo, o eu se conscientiza dessa produção e começa a gerenciá-la. Assim, ele penetra nos meandros da memória, utiliza informações e continua a construção de pensamentos iniciada pelo fenômeno do autofluxo. Nesse caso, é possível que o eu comece a questionar por que o atrito sur­giu, de que maneira ele poderia ser solucionado, como está o colega de­pois de tantos anos que esse fato ocorreu etc. Embora não percebamos, freqüentemente o eu continua a construção de pensamentos não iniciada por ele, mas pelo fenômeno do autofluxo ou pelo fenômeno da autochecagem da memória. Essa frase evidencia que a inteligência huma­na é multifocal, pois é formada sobre os alicerces da construção de pensa­mentos.
O eu se conscientiza de toda cadeia psicodinâmica virtual dos pensa­mentos dialéticos e antidialéticos produzida ou não por ele, embora nunca chegue a se conscientizar da cadeia psicodinâmica das matrizes dos pensa­mentos essenciais. Gastamos boa parte do nosso tempo pensando, produ­zindo idéias, antecipando situações do futuro, resgatando situações do pas­sado, construindo pensamentos sobre os problemas existenciais etc. Enfim, gastamos boa parte do nosso tempo voltados para o mundo das idéias e das emoções desencadeadas pelos fenômenos inconscientes da mente.
Uma pessoa dirigindo um veículo, uma pessoa assistindo a uma pales­tra, a um culto religioso, a uma peça teatral etc., faz com freqüência inserções dentro do seu próprio ser, produzindo ricas viagens intelectuais que o desconecta da realidade exterior, expressa por idéias e emoções que mui­tas vezes não têm relação com os estímulos que estão à sua volta. Uns viajam mais outros menos, mas no mundo intelectual todos são viajantes.
É impossível se concentrar ou se fixar plenamente no mundo extra-psíquico, a não ser por determinados períodos. Os psicoterapeutas viajam intelectualmente quando atendem a seus pacientes; os alunos viajam quan­do estão diante dos seus professores; os juízes viajam quando estão julgan­do os réus; os jornalistas viajam quando tentam organizar os fatos. Os filó­sofos e os cientistas estão sempre viajando e se entretendo intelectualmen­te. Claro que precisamos nos concentrar no mundo extrapsíquico, princi­palmente para ouvir atentamente o "outro"; mas quando o "outro" recla­mar que estamos distraídos, temos que pedir desculpas e assumir que so­mos viajantes no mundo das idéias. Viajar muito, às vezes, é um problema, pois dificulta a concentração nos estímulos externos, comprometendo as construções dos pensamentos, a materialização da produção intelectual, a práxis dos pensamentos; mas deixar de viajar é impossível, pois pensar é o destino do homem. Fazemos, diariamente, centenas ou milhares de viagens curtas ou longas no mundo das idéias. Porém, o problema freqüentemente não está na quantidade das viagens intelectuais que fazemos, mas na quali­dade dessas viagens, que pode refletir as dificuldades de gerenciamento da construção dos pensamentos pelo eu.
As pessoas portadoras de transtornos obsessivos sofrem, como vere­mos, pela quantidade exagerada e, principalmente, pela qualidade ruim das suas viagens intelectuais produzidas pelo fenômeno do autofluxo.

TRÊS POSTURAS DO EU DIANTE DA REVOLUÇÃO DAS IDÉIAS.

OS TRANSTORNOS OBSESSIVOS

O eu pode assumir três posturas diante da construção de pensamentos e das transformações emocionais: a) Ser um espectador passivo, que ape­nas se conscientiza das mesmas, b) Ser um agente psicodinâmico coadju­vante, que tem pequena participação na construção das mesmas, c) Ser um agente psicodinâmico principal, que tem grande controle qualitativo e quan­titativo das mesmas.
Na maior parte do tempo, o eu é um espectador passivo ou um agente coadjuvante da revolução das idéias ocorrida no palco de nossas mentes. Nos transtornos obsessivos, a passividade ou atuação psicodinâmica coad­juvante é evidente. Nesses transtornos, os mordomos da mente produzem uma espécie de "conspiração construtiva" contra o eu, produzindo idéias fixas, geralmente de conteúdo negativo, que não são autorizadas pelo eu. Imagine um jurista de alto nível cultural produzindo a idéia fixa de que tem um câncer na garganta, indo toda semana a médicos otorrinolaringologistas, durante anos, para tirar suas dúvidas com respeito a ter ou não essa doença. Imagine um cientista produzindo obsessivamente, durante vinte anos, centenas de vezes ao dia, imagens mentais (pensamentos antidialéticos) sobre um acidente de carro em que seu corpo está preso nos escombros. Imagine um engenheiro e professor de faculdade produzindo obsessiva­mente, centenas de vezes ao dia, pensamentos dialéticos e antidialéticos sobre uma faca penetrando no corpo dos filhos que ele ama. A análise minuciosa da intencionalidade do eu e das cadeias psicodinâmicas desses pensamentos evidencia claramente que esses pacientes rejeitam a idéia de câncer, de acidente e de morte dos filhos.
Precisamos compreender que não apenas o desejo consciente e incons­ciente de algo ou de alguma coisa privilegia o arquivo de uma experiência em áreas mais nobres ou disponíveis da memória, facilitando sua leitura e a construção obsessiva de determinadas idéias. Há teorias psicológicas in­gênuas e psicoiatrogênicas que, desconhecendo os processos de constru­ção dos pensamentos, sobrecarregam de culpa os pacientes obsessivos, afir­mando que o desejo inconsciente que possuem é a fonte que sustenta sua produção de idéias fixas. Ao contrário, freqüentemente, a aversão a algo ou a alguma coisa, tal como a aversão ao câncer, ao infarto, aos acidentes de carros, à morte dos filhos, etc, gera experiências tão angustiantes que estimula a ansiedade vital e a construção de idéias fixas pelo fenômeno do autofluxo. Essas idéias são registradas de maneira privilegiada na memória e, por isso, são lidas continuamente pelo fenômeno do autofluxo e inseridas em novas cadeias de pensamentos, gerando um "ciclo de construção de idéias obsessivas" que dificulta o gerenciamento dos processos de constru­ção dos pensamentos.
Há possibilidade de haver a participação da variável genético-rnetabólica na construção das obsessões através da ansiedade vital. Nesse caso, é possível inferir um postulado biológico dizendo que a alteração de determi­nados neurotransmissores cerebrais ou qualquer outra substância neuro-endócrina pode estimular a ansiedade vital e, conseqüentemente, estimular exageradamente o fenômeno do autofluxo, gerando uma propensão gené­tica para as obsessões. Porém, toda a agenda complexa e sofisticada da construção de pensamentos é estritamente psicológica; por isso é possível que os fatores psicodinâmicos e psicossociais possam produzir um eu, que é capaz de realizar um gerenciamento eficiente dessa construção e, assim, redirecionar a propensão genética para as obsessões e para outras doenças psíquicas.
A construção psicodinâmica do fenômeno do autofluxo, o registro das experiências psíquicas na memória, a leitura das mesmas e as cadeias psicodinâmicas dos pensamentos são mais complexas do que qualquer acha­do metabólico que, porventura, possa participar da gênese dos transtornos obsessivos ou de qualquer outra doença psíquica, psicossocial e psicossomática. Se as neurociências podem explicar pouco a gênese das doenças psíquicas, elas, por outro lado, podem ser mais eficientes na pro­dução de pesquisas para o tratamento das mesmas, pois a ação terapêutica das drogas psicotrópicas pode, em determinadas doenças, contribuir indi­retamente com o gerenciamento do eu, por reorganizar os humores e atuar nos níveis da ansiedade vital. Portanto, as neurociências não anulam a Psi­cologia e vice-versa, mas são coexistentes e complementares.
A aversão a uma experiência gera, como disse, à medida que ela se desorganiza caoticamente no campo de energia psíquica, um registro privi­legiado na memória, fazendo com que as RPSs que as representam estejam mais disponíveis para serem lidas e utilizadas na produção de idéias dialéticas e antidialéticas de conteúdo semelhante. Uma vez produzidas, essas idéias provocam uma experiência emocional angustiante e uma reação aversiva, que expande a ansiedade vital e facilita novamente o arquivo das mesmas, aumentando sua disponibilidade histórica, sua leitura e reinterpretação, o que gera novas cadeias semelhantes de pensamentos, que são expressas por idéias fixas de conteúdo angustiante. Assim se produzem psicodina­micamente e psicossocialmente os transtornos obsessivo-compulsivos (TOC).
Nos transtornos obsessivo-compulsivos, os fenômenos da mente, princi­palmente o fenômeno do autofluxo, lêem continuamente as RPSs de conteú­do negativo e reconstroem-nas interpretativamente gerando experiências angustiantes que o eu não consegue administrar. Com isso, formam-se na história intrapsíquica "tramas de RPS" doentias que alimentam a produção de idéias fixas, gerando, assim, o "ciclo de construção de idéias obsessivas".
O nascedouro das obsessões ocorre, em sua grande maioria, na infân­cia e se desenvolve ao longo do processo de formação da personalidade, principalmente se não aprendermos a exercer uma administração dos pen­samentos. Infelizmente ninguém nos ensina a intervir no nosso mundo e gerenciar nossos pensamentos e emoções.
Crescemos aprendendo a intervir no mundo de fora, mas ficamos iner­tes diante de nossas dores emocionais, pensamentos antecipatórios, ansie­dades. Um dia, depois de explanar a construção dos pensamentos para um executivo de uma grande empresa, ele concluiu que, apesar de ter atingido o topo da carreira, de estar acima de milhares de funcionários, não sabia atuar no seu medo, sintomas psicossomáticos, angústias. Era um líder no mundo de fora, mas um prisioneiro no mundo de dentro.
Todos os três exemplos de transtornos obsessivos que citei evidenciam que o fenômeno do autofluxo "conspirou construtivamente" contra o eu, porque este assumiu, ao longo do processo de formação da personalidade, um papel de espectador passivo ou pobremente atuante no gerenciamento da construção dos pensamentos.
O último exemplo que citei, o caso do pai produzindo idéias fixas so­bre uma faca que penetrava no peito do filho, perdurou por vinte anos e foi tratado por onze psiquiatras. Sua doença psiquiátrica era tão grave que houve psiquiatras que a tratavam como psicose esquizofrênica. Porém, essa pessoa, em detrimento do absurdo das suas idéias fixas, não era psicótica, porque o eu conservava os parâmetros da realidade, tinha consciência crí­tica de que essas imaginações obsessivas eram irreais, de que não passavam de fantasias, embora não conseguisse gerenciá-las e reciclá-las. Esse pacien­te tomou alguns tipos de neuroléticos e, praticamente, todos os tipos de antidepressivos disponíveis, principalmente os tricíclicos e em diversas dosagens, porém não obteve melhora. Nos últimos quatros anos, antes de se tratar comigo, ele se isolou do mundo, não desenvolvia mais nenhuma atividade socioprofissional, isolou-se, inclusive, dos seus próprios filhos. Quando chegou ao meu consultório, ele não olhava nos meus olhos. cabisbaixo e expressando intenso sofrimento, contou-me sua história.
Ao longo do tratamento, fui-lhe expondo os processos de construção da inteligência e os fenômenos que produzem idéias fixas sem o "aval" do eu. Além disso estimulei-o a desenvolver algumas importantes funções da inteligência, tais como a arte da crítica, para descaracterizar o conteúdo intrapsíquico das suas idéias fixas, a arte da contemplação do belo, para resgatar o prazer de viver, o gerenciamento dos processos de construção dos pensamentos, para resgatar a liderança do eu nos focos de tensão. Com isso, pouco a pouco, após um período de seis meses, esse paciente, que parecia ser um caso sem solução na Psiquiatria e Psicologia clínica, apren­deu a reorganizar e redirecionar a construção das idéias obsessivas e voltou a ter uma vida psíquica e socioprofissional normal, para espanto das pes­soas que com ele conviviam.
Os outros dois pacientes que citei também, felizmente, aprenderam a administrar a revolução das idéias obsessivas ocorridas em suas mentes, redirecionando-a para a construção de pensamentos, emoções e desejos saudáveis.

A PSICOTERAPIA É UM INTERCÂMBIO DE IDÉIAS PRODUZIDAS NO CLIMA DA DEMOCRACIA DAS IDÉIAS

A teoria da inteligência, aqui exposta, abrange múltiplas áreas da Psico­logia, da Filosofia, da Sociologia, da Educação, da Sociopolítica etc; por­tanto, sua utilidade vai muito além do que sua aplicação nas psicoterapias. Porém, apesar disso, eu gostaria de fazer um comentário sobre elas.
Durante grande parte do meu tempo, estou unindo a Psicologia, a Filo­sofia e outras ciências para produzir conhecimentos sobre a psique, mesmo quando estou no meu consultório. Pelo fato de pesquisar a psique na pers­pectiva dos fenômenos que constroem os pensamentos, tenho procurado ter uma visão abrangente da mente. Por isso, como citei no primeiro capí­tulo, na psicoterapia multifocal tenho usado os princípios derivados dos processos de construção dos pensamentos, da transformação da energia emocional, da formação do eu e da formação da história da existência.
Esses princípios podem ser úteis para qualquer psicoterapeuta de qual­quer corrente de psicoterapia. A maioria deles também pode ser usada para formar cientistas, pensadores, executivos, líderes sociais, ou por qual­quer pessoa que queira expandir sua qualidade de vida.
Quando compreendemos, ainda que com limitações, os processos de construção da inteligência, o projeto psicoterapêutico torna-se sofisticado, pois fundamenta-se na construção dos pensamentos, torna-se humanístico e democrático, pois é realizado no ambiente intelectual do humanismo e da democracia das idéias, e torna-se ambicioso, pois objetiva muito mais do que resolver doenças psíquicas, psicossociais (ex., farmacodependência) e psicossomáticas, mas produzir homens que brilham na arte de pensar, que saibam navegar no território da emoção e resgatar o sentido da vida.
A psicoterapia, para mim, é um intercâmbio de idéias em que o psicoterapeuta ajuda os pacientes com sua técnica e suas interpretações, mas no qual também os pacientes não deixam de contribuir com seus psicoterapeutas. A psicoterapia é uma escola da existência, um processo de aprendizado mútuo. Aprender a se colocar em contínuo processo de apren­dizagem expressa o humanismo e a sabedoria existencial do psicoterapeuta, bem como do médico, do jornalista, do cientista, do jurista, enfim de qual­quer ser humano.
A psicoterapia deve ser realizada no clima da democracia das idéias; caso contrário, as interpretações e os procedimentos dos psicoterapeutas tornam-se uma maquiagem intelectual em que se camufla o autoritarismo das idéias. O terapeuta deve expor e nunca impor suas idéias; deve estimu­lar a inteligência dos pacientes, deve honrar sua capacidade intelectual e respeitar seus direitos fundamentais. A democracia das idéias exige dos psicoterapeutas uma postura em que eles propiciam liberdade para que seus pacientes critiquem suas interpretações, suas técnicas e a teoria que utilizam como suporte da interpretação.
Os psicoterapeutas poderiam achar que, com a democracia das idéias, perderiam o controle do processo psicoterapêutico. Sim, o controle autori­tário é perdido; mas, por outro lado, eles estariam criando um clima inte­lectual que estimula a inteligência dos pacientes, que os estimulam a desen­volver a arte da dúvida, a arte da crítica, a capacidade de gerenciamento da construção dos pensamentos e sobre a transformação da energia emo­cional.
A busca da sabedoria existencial e o debate de idéias que são metas da Filosofia nunca foram adequadamente incorporadas na relação terapeuta-paciente pela Psicologia e pela Psiquiatria; por isso elas se tornaram exces­sivamente psicopatológicas, curativas e, ao mesmo tempo, pobres na pre­venção das doenças psíquicas, psicossociais e psicossomáticas, pobres na formação de pensadores.
A Psicologia e a Psiquiatria têm uma grande dívida com a Filosofia, pois ela foi, ao longo de muitos séculos, a fonte das idéias humanísticas. Elas são ciências jovens, têm muito o que aprender com a Filosofia, mas, infelizmente, a juventude e a prepotência delas a sufocaram. Muitos cursos de especialização de Psiquiatria nem estudam a Filosofia.
Nos cursos de Psicologia, ela é estudada nos anos básicos, mas diversos alunos de Psicologia me disseram que ela é estudada com grande desinte­resse, como se fosse um apêndice de pouco valor do conhecimento. Sem a Filosofia, o mundo das idéias psiquiátricas e psicológicas fica pequeno; o homem passa a ser tratado como um doente passivo que precisa, com o uso de medicamentos psicotrópicos e de técnicas psicoterapêuticas, resol­ver suas doenças e não como um ser humano complexo e sofisticado, que tem grande potencialidade psicossocial que precisa ser expandida.
Nos três pacientes portadores de transtornos obsessivos que citei e que retornaram a uma vida psicossocial saudável, embora eu tenha usado pro­cedimentos de investigação da mente e produção de conhecimentos sobre os processos de construção dos pensamentos, a melhora deles não depen­deu muito de mim. Eu sinto que não fiz muito; apenas funcionei como catalisador do gerenciamento do "eu", estimulando-os na arte de pensar e a gerenciar a construção das idéias obsessivas ocorrida dentro deles, produ­zida pelo fenômeno do autofluxo.
Nenhum psicoterapeuta ou psiquiatra pode se gabar de ter por si mes­mo sucesso no tratamento dos seus pacientes; somente o eu é que pode ter tal sucesso, pois somente ele pode penetrar, e com limites, no fluxo vital da energia psíquica, lugar que nenhum psiquiatra ou psicoterapeuta pode penetrar. Somente ele pode ler multifocalmente a história intrapsíquica, cons­truir as cadeias psicodinâmicas dos pensamentos e aprender a redirecionar os processos de construção dos pensamentos, da história intrapsíquica e da transformação da energia emocional.

UM EXCELENTE MORDOMO DA MENTE HUMANA

Aprendemos, com os mordomos da mente, a percorrer os caminhos psicodinâmicos que lêem a memória e que formam as matrizes dos pensa­mentos essenciais históricos. Porém, nem sempre assumimos uma adminis­tração da inteligência; por isso, tendemos a gravitar em torno da produção de pensamentos não autorizada por nós. Cumpre à nossa vontade cons­ciente, ao "eu", redirecionar a construção das idéias e das emoções para a produção das artes, da ciência, das relações interpessoais qualitativas, da tecnicidade, dos mecanismos de superação das intempéries existenciais e dos estímulos estressantes.
A qualidade do gerenciamento do eu sobre o mundo dos pensamentos e das emoções é que determinará a capacidade do homem como agente modificador da sua história intrapsíquica e social. A tendência natural do homem é ser vítima de suas misérias psíquicas.
Se o fluxo vital da energia psíquica não for conduzido para a produção de pensamentos e experiências emocionais saudáveis e enriquecedores, ele será conduzido inevitavelmente para a produção de experiências angus­tiantes, tensas, agressivas, autopunitivas.
O fenômeno do autofluxo lê as RPSs mais disponíveis da história intra­psíquica arquivada na memória, e embora não queira entrar em detalhes neste livro, digo que a ordem da disponibilidade dessas RPSs dependerá de vários fatores, tais como o período do registro (tempo em que foi vivenciada e registrada a experiência psíquica como RPSs no córtex cere­bral); da qualidade da experiência emocional original (angústia, ansiedade, raiva, ódio, amor, prazer, desejo de destrutividade, complacência etc); do "eco introspectivo" na mente da experiência original (o quanto gerou de autocrítica, reflexão, intolerância, indignação); da freqüência da leitura da mesma e da qualidade da reinterpretação desse resgate. Dependendo da disponibilidade das RPSs lidas, sem direção consciente e lógica, pelo fenô­meno do autofluxo teremos a qualidade da construção dos pensamentos e das reações da energia emocional e motivacional.
O fenômeno do autofluxo é um importantíssimo mordomo intrapsíquico que contribui para o processo de formação do "eu". Sem ele, que desde a aurora da vida fetal enriquece a história intrapsíquica, provavelmente na vida extra-uterina jamais chegaríamos a desenvolver a consciência existen­cial, o que faria de nós seres impensantes e inconscientes. Porém, apesar dele ser fundamental para o desenvolvimento do "eu", ele não deve, à medida que ele é formado, tomar a preponderância qualitativa da produ­ção dos pensamentos, pois essa é a tarefa intelectual do eu, embora inevita­velmente tome a preponderância quantitativa, pois ele é quem promove o fluxo vital da energia psíquica.
A seguir, será apresentado um quadro didático sobre a atuação psicodinâmica do fenômeno do autofluxo na construção dos pensamentos e na formação da consciência existencial.
 
* * *
 
Este e-book foi digitalizado pela equipe do Semeadores da Palavra e-books evangélicos.
Se não encontrou essa informação na 2ª página, então você o baixou de um site desonesto, que não respeita o trabalho dos outros, e retirou os créditos.
Venha se abastecer de literatura evangélica diretamente da fonte:
Fórum (para pedidos e trocas de idéias):

Mas o livro ainda não acabou.
Continue na página seguinte!
 
* * *

GRÁFICO 2
O FENÔMENO DO AUTOFLUXO DA ENERGIA PSÍQUICA E A ANSIEDADE VITAL
Produção espontânea e inevitável de cadeias de pensamentos e de transformações da energia emocional e motivacional



 

Capítulo 7

A Âncora da Memória


A ÂNCORA DA MEMÓRIA E OS TRÊS DESLOCAMENTOS QUE SOFRE

A âncora da memória é um fenômeno intrapsíquico inconsciente que desloca e é deslocada psicodinamicamente pelos três outros fenômenos que fazem a leitura da história intrapsíquica: fenômeno da autochecagem da memória, fenômeno do autofluxo e o eu. Nem toda memória está disponível para ser lida. A âncora da memória é difícil de ser definida, mas em síntese ela se refere a um foco ou "território" de leitura da memória num determinado momento da existência. A âncora da memória fornece um grupo de informações psicossociais que ficam disponíveis para serem utilizadas pelos fenômenos que lêem a memória e constroem pensa­mentos.
Como o próprio nome sugere, "âncora da memória" é a "fixação psicodinâmica" da leitura da história intrapsíquica em determinados terri­tórios da memória. Em cada ambiente em que nos encontramos, tais como em casa, no escritório, num hospital, num quarto escuro e fechado, em meio a um grupo de amigos, em meio a um grupo de pessoas estranhas etc, a âncora da memória dirige o território da leitura da memória para um grupo de informações básicas, que ficam mais disponíveis para serem usa­das. Por isso, temos freqüentemente uma construção de cadeias de pensa­mentos e de reações emocionais particulares em cada um desses ambientes e circunstâncias.
Todos temos liberdade para cantar no banheiro de nossas casas, mes­mo que sejamos desafinados. Nesse ambiente, é possível até falar com as "paredes" sobre nossas idéias e expressar nossas emoções sem nenhum constrangimento, pois a âncora da memória deslocou a leitura da história intrapsíquica para áreas da memória onde há uma plena liberdade para se produzir os processos de construção dos pensamentos. Porém, se estivéssemos num anfiteatro, diante de uma platéia, provavelmente não cantaría­mos nem expressaríamos nossas idéias com liberdade. Nesse ambiente, a liberdade de construção dos pensamentos seria reduzida e, em alguns ca­sos, interrompida, dando a sensação de que estamos sem condições de raciocinar, tendo um lapso de memória. Houve, nesse momento, um deslo­camento da âncora da memória para áreas da memória que contêm infor­mações ligadas a fobias, julgamentos, vexame social, preocupação com o que os outros pensam e falam de nós etc, gerando uma restrição na leitura da memória e, conseqüentemente, na construção de pensamentos dialéticos.
Muitos médicos e juízes de direito são sérios e sóbrios nas suas profis­sões. Porém, ao se reunirem com antigos colegas da faculdade, numa festa comemorativa de formatura, eles se soltam emocionalmente, brincam, con­tam piadas, elevam o tom da voz, dialogam sem policiamento. Nesses am­bientes e circunstâncias psicossociais, os estímulos extrapsíquicos (compor­tamentos dos colegas da faculdade) e intrapsíquicos (resgate de experiências dos tempos de faculdade) deslocam a âncora da memória para determina­das "regiões" da memória que, por sua vez, direcionam a leitura da história intrapsíquica e, conseqüentemente, produzem matrizes de pensamentos essenciais históricos que gerarão emoções, pensamentos dialéticos e antidialéticos mais tranqüilos, prazerosos, livres, socialmente despreocupados.
Os deslocamentos da âncora da memória direcionam a qualidade das idéias e reações emocionais que produzimos num determinado momento da existência. Parece que somos livres para pensar o que quisermos em cada momento de nossas vidas. Porém, esta é uma verdade parcial. A âncora da memória dirige mais do que imaginamos a qualidade de nossas idéias, e emoções.
Uma pessoa que sofre um ataque de pânico, ainda que possa ser sóbria e extremamente coerente na grande maioria de suas atividades socio-profissionais, aciona o gatilho da autochecagem que desloca a âncora para determinadas regiões da memória, restringindo o seu território de leitura. A partir desse território, se produz uma leitura da história intrapsíquica que, por sua vez, gerarão emoções intensamente ansiosas e pensamentos qualitativamente mórbidos que, canalizados para o córtex cerebral, gera­rão uma série de sintomas psicossomáticos. Os mecanismos de produção da síndrome do pânico à luz da construção multifocal de pensamentos são muito mais complexos do que a hipótese dos neurotransmissores na gênese dessa síndrome.
O deslocamento da âncora da memória nos ataques de pânico é rápido e dramático, gerando no paciente uma construção de idéias de que vai morrer ou desmaiar, e uma reação fóbica tão angustiante que as idéias do médico dizendo que ele não tem nada de grave não o conforta.
Há pessoas que, fora do ambiente familiar, são sorridentes, solícitas, pacientes e sóbrias (um "anjo social"); porém, quando entram dentro de suas casas, se transformam em "carrascos da família", pessoas agressivas, violentas, ansiosas, que dificilmente relaxam e sorriem. Alguns diriam que essa pessoa tem dupla personalidade. Porém, o termo dupla personalidade é dialeticamente pobre e cientificamente inverificável. Há apenas uma per­sonalidade porque há apenas uma mente, apenas um campo de energia psíquica. O que transformou os "anjos sociais" em "carrascos da família" foi o deslocamento da âncora da memória pelos estímulos extrapsíquicos. Nesse caso, se uma pessoa não expandir a âncora da memória, ela pode se tornar um escravo dos deslocamentos destrutivos que, às vezes, ela gera.
Há milhões de pessoas que cuidam com paciência e dedicação de seus pequenos cachorros. Esses pequenos animais não reclamam, não criticam, pouco expressam suas emoções e, por isso, pouco exigem de seus donos e deslocam pouco suas âncoras da memória, apesar de diversos deles se ligarem muito afetivamente aos donos. Em muitas metrópoles, como em Paris, é fácil observar essa relação homem-animal. Porém, cuidar dos filhos e educá-los é totalmente diferente, pois eles têm necessidades complexas, exigências complexas, expressam suas emoções e críticas que deslocam freqüentemente e com muita intensidade a âncora da memória dos pais. Por isso, os pais têm uma construção de pensamentos e um processo de transformação da energia emocional que é muito flutuante, alternados en­tre o prazer e o aborrecimento, entre a paciência e a irritabilidade etc.
Os pais devem aprender a administrar o deslocamento de suas âncoras da memória na educação dos filhos. Catalisar a revolução das idéias dos filhos e levá-los também a administrar os deslocamentos de suas âncoras da memória, para promover uma construção de pensamentos que promova o desenvolvimento do humanismo, da cidadania, da capacidade crítica de pensar, da capacidade de contemplação do belo diante dos pequenos even­tos da vida, da capacidade de superar as dores e perdas, é uma das mais importantes tarefas que os pais e professores devem realizar no processo socioeducacional.
Os estímulos intrapsíquicos (pensamentos, idéias, análises, reações fóbicas, ansiedade, etc), os estímulos extrapsíquicos (ambientes sociais, comportamentos das pessoas, elogios, ofensas, situações de discriminação, cobrança socioprofissional, provas escolares etc.) e os estímulos intraorgâ­nicos (substâncias produzidas adequadamente ou inadequadamente no metabolismo neuroendócrino, dores físicas, medicamentos psicotrópicos, cocaína, heroína, álcool etílico etc.) deslocam constantemente a âncora da memória, influenciando decisivamente na qualidade do processo de inter­pretação e, conseqüentemente, na qualidade da produção dos pensamentos dialéticos e antidialéticos e na qualidade das experiências emocionais e motivacionais que temos em cada momento existencial.

A LIBERDADE DE PENSAMENTO E SUA RELAÇÃO COM A ÂNCORA DA MEMÓRIA

Podemos ficar chocados ao constatar, diante dessa exposição, que a liberdade de pensamento tão sonhada na história humana, tão almejada na Filosofia, tão procurada pelos direitos humanos, não é tão fácil de ser alcançada, mesmo em condições sociais adequadas. A liberdade plena de pensamento nem sempre é conquistada pelo eu, mas dirigida inconsciente­mente pelos deslocamentos da âncora da memória, que restringe o territó­rio de leitura da memória.
Quando produzimos pensamentos, nós nem sempre temos uma livre escolha das informações, nem sempre temos a livre escolha das idéias, devido à restrição da "disponibilidade histórica" imposta pela âncora da memória. Grande parte dos pensamentos gerenciada e produzida pelo eu não foi, na realidade, gerenciada e produzida com plena liberdade de esco­lha, mas dentro dos limites da âncora da memória. Por isso, é necessário aprender a conquistar na ciência, bem como na vida cotidiana, o máximo de liberdade possível no processo de construção de pensamentos.
Na relação psicoterapeuta-paciente, pai-filho, professor-aluno, pesquisador-teoria-fenômeno, como disse, se não aprendermos a reciclar critica­mente a história intrapsíquica, principalmente os deslocamentos da âncora da memória, podemos nos contaminar excessivamente com a história intrapsíquica.
Muitas vezes achamos que somos livres na produção das idéias, mas somos prisioneiros da âncora da memória. A âncora da memória é um fenômeno fundamental na construção dos pensamentos e na produção das reações emocionais; porém, devemos aprender a gerenciá-la, reciclá-la cri­ticamente e deslocá-la com liberdade, principalmente quando a âncora se alojar em áreas da memória que promovem uma construção de pensamen­tos rígida, fechada, autoritária.
Todos os estímulos que geram tensões emocionais e prazeres intensos deslocam a âncora da memória e, conseqüentemente, contraem a liberda­de da produção de pensamentos. Uma pessoa excessivamente alegre, num determinado momento, também pode ser excessivamente tolerante e ex­cessivamente permissiva. Uma pessoa muito tensa, num determinado mo­mento, pode ser muito intolerante, rígida e agressiva.
Quando alguém nos ofende, os estímulos extrapsíquicos ligados ao con­teúdo da ofensa, à pessoa do ofensor e ao ambiente em que ele expressou a ofensa (ambiente público ou particular) deslocam a âncora para determi­nadas regiões da memória, restringindo a "disponibilidade histórica" das RPSs, que, por sua vez, produzirá uma construção de pensamentos com liberdade reduzida. Por isso, passado o momento de tensão, nós achamos que deveríamos ter tido outro tipo de reação diante daquela circunstância.
Todo e qualquer estímulo extrapsíquico e intrapsíquico, que aciona o fenômeno da autochecagem da memória e produz cadeias psicodinâmicas dos pensamentos que geram significativas tensões emocionais, é capaz de deslocar a âncora para determinados territórios da memória, restringindo sua leitura em um determinado momento existencial. Inicialmente, o fenô­meno da autochecagem da memória desloca a âncora da memória e, pos­teriormente, o próprio fenômeno da autochecagem da memória, bem como os demais fenômenos que lêem a memória, tornam-se vítimas desse deslo­camento, pois restringem a leitura da memória e, conseqüentemente, a construtividade das cadeias psicodinâmicas dos pensamentos e as transfor­mações da energia emocional aos limites da sua ancoragem.
Uma pessoa que se embriaga com bebidas alcoólicas transmuta microcampos de energia físico-química no campo de energia psíquica que reduz o gerenciamento dos processos de construção dos pensamentos e, ao mesmo tempo, desloca a âncora da memória para determinadas regiões da memória, fazendo com que ele produza pensamentos e atitudes que jamais produziria em condições normais.

OS DESLOCAMENTOS DA ÂNCORA DA MEMÓRIA NOS TERRITÓRIOS DA MEMÓRIA

A âncora da memória sobrepõe-se a determinados territórios da memó­ria colocando em disponibilidade um grupo de RPSs diretivas (diretamen­te ligadas ao estímulo) e associativas (relacionadas com o estímulo) que serão lidas pelos fenômenos que lêem a história intrapsíquica. Essas RPSs serão usadas como matéria-prima na produção das cadeias psicodinâmicas dos pensamentos essenciais históricos, que atuarão psicodinamicamente no processo de transformação da energia emocional e motivacional e, ao mes­mo tempo, sofrerão um processo de leitura para gerar as cadeias psicodinâmicas virtuais dos pensamentos dialéticos e antidialéticos.
A âncora da memória facilita o processo de seleção e disponibilidade das informações que servirão de matéria-prima para a produção das ca­deias psicodinâmicas dos pensamentos essenciais históricos e, conseqüen­temente, dos pensamentos dialéticos e antidialéticos.
O eu tanto dirige os deslocamentos da âncora da memória como é dirigido por esses deslocamentos, através do resgate da disponibilidade das RPSs produzidas por eles. Nos momentos de tensão, de stress psicossocial, da angústia existencial, de ofensas e de perdas a tendência do eu é ser controlado pela âncora da memória e submeter a sua construção de pensa­mentos nos limites da memória em que ela está ancorada. Se ele não tiver êxito em abrir a âncora e alargar os territórios de leitura da memória a produção de pensamentos e reações emocionais pode ser insegura, fóbica, agressiva e acima de tudo restrita.
Se a âncora da memória se fechar muito diante dos estímulos estressantes, a inteligência se "trava", ou seja, o eu fica totalmente restrito na sua capaci­dade de pensar. Quem determina o cárcere intelectual é a âncora da me­mória. Nos focos de tensão, podemos ter reações totalmente contrárias às que teríamos se estivéssemos tranqüilos.
As pessoas normalmente acreditam que são livres porque vivem em sociedades democráticas, mas são escravas dos deslocamentos da âncora da memória. Crêem que pensam o que querem pensar, mas na realidade sua liberdade é parcial; pois não percebem que constroem seus pensamen­tos dentro dos limites da disponibilidade histórica das EPSs produzida pela âncora da memória nos vários momentos existenciais.
Se aprendermos a fazer um "stop introspectivo", ou seja, aprendermos a pensar antes de reagir, então teremos condições de gerenciar a construção de pensamentos nos focos de tensão, o que nos prepara o caminho para a liberdade. Assim, não nos submeteremos ao jugo da âncora da memória; pelo contrário, a expandiremos, o que nos permitirá realizar uma constru­ção de pensamentos sóbria e coerente, capaz de dar respostas maduras e inteligentes. Aqueles que reagem antes de pensar são apenas livres por fora.

TODOS POSSUÍMOS O MESMO ESPETÁCULO PSICODINÂMICO NOS BASTIDORES DA MENTE

Compreender os processos de construção dos pensamentos, ligados aos deslocamentos da âncora da memória e à leitura da memória, nos remete a fazer considerações humanistas a favor dos direitos humanos e contra toda e qualquer forma de discriminação humana.
Tanto a intelligentsia, ou seja, a classe dos intelectuais, como a classe das pessoas que nunca sentou nos bancos de uma universidade, possui a mesma operacionalidade dos mordomos da mente e os mesmos processos que formam o eu. Todo ser humano lê a história intrapsíquica e resgata com extremo acerto, em pequenas frações de segundo e em meio a bilhões de opções, cada RPS diretiva e associativa que constituirá as cadeias psico-dinâmicas das matrizes dos pensamentos essenciais históricos e as cadeias psicodinâmicas virtuais que constituirão suas idéias, análises, conceitos, dis­cursos teóricos, etc.
A construção dos pensamentos, das idéias, dos raciocínios analíticos, dos discursos teóricos, é produzida por fenômenos alheios à consciência humana, tanto da pessoa considerada intelectual como da pessoa conside­rada inculta. Não deveria haver uma intelligentsia como classe, ou qual­quer outra forma de classificação intelectual que distinga os seres humanos, pois toda forma de classificação é discriminatória, anti-humanística e desinteligente, já que não leva em consideração o Homo interpres, ou seja, a construção dos pensamentos nos bastidores da mente humana, mas apenas o Homo intelligens, ou seja, as manifestações dos pensamentos conscientes, que estão na ponta do iceberg da inteligência. Se o uso de determinadas classificações é inevitável na estrutura social e socioacadêmica que temos, elas deveriam ser consideradas um apêndice de pouquíssimo valor.
Todas as premiações sociais, honras sociopolíticas e condições socioeconômicas são apenas apêndices de pouco valor se comparadas à condição humana, à complexidade, sofisticação, liberdade criativa e plasticidade construtiva dos processos de construção da inteligência. Os seres humanos gostam de se classificar, amam estar em degraus mais altos que seus pares. Se eles aprenderem a ser caminhantes nas trajetórias de seus próprios se­res, compreenderão que nada pode tornar o curriculum tão digno de um homem do que ele ser um ser humano com uma humanidade elevada. As sociedades humanas necessitam de homens que tenham sede de ser ho­mens, e não supra-humanos.
O mais profundo humanismo, como disse, não decorre da compaixão do homem pelo homem, pois esta é circunstancial, psicossocialmente instá­vel e nem sempre valoriza as dimensões daqueles que sofrem, mas da com­preensão psicológica e filosófica da complexidade, sofisticação, liberdade criativa e plasticidade construtiva da inteligência. O humanismo que decor­re da compreensão dos processos de construção dos pensamentos tem raízes mais profundas, gera uma macrovisão psicossocial da espécie humana, nos faz considerar o outro na sua complexidade psicossocial.
Todos somos privilegiados pela atuação psicodinâmica e psicossocial dos fenômenos que financiam nossa construção de pensamentos e nossa consciência existencial. Por isso, do ponto de vista da gratuidade, comple­xidade e espontaneidade dos fenômenos que constroem a inteligência, o valor de cada ser humano é igualmente inseparável e indistinguível em toda a nossa espécie. Todos somos beneficiários gratuitos da operacionalidade espontânea desses fenômenos que se iniciam, no mínimo, des­de a aurora da vida fetal e perduram até o último suspiro da existência. Todos temos uma produção inevitável de pensamentos, que alimenta os arquivos da memória, promove o desenvolvimento de nossas personalida­des e contribui para sermos seres que têm consciência de si e do mundo.
Temos diferenças culturais, intelectuais, sociais, econômicas, genéticas, raciais, de idade, de nacionalidade, de sexo, etc, mas no que tange aos processos de construção dos pensamentos, somos uma espécie mais homo­gênea do que temos imaginado.
Seria importante que as ciências da cultura incorporassem o conheci­mento relativo à leitura da história intrapsíquica, às matrizes dos pensa­mentos essenciais históricos, o caos da energia psíquica, os sistemas de co-interferências das variáveis intrapsíquicas, o processo de construção dos pensamentos, o processo de construção da consciência existencial, o pro­cesso de construção da história intrapsíquica, o processo de transformação da energia emocional e motívacional, a revolução das idéias, a atuação psicodinâmica do fenômeno da autochecagem da memória, do fenômeno do autofluxo, do eu e da âncora da memória, etc. Se essas ciências incorpo­rassem esse conhecimento, elas poderiam mergulhar nas trajetórias do humanismo e da democracia das idéias, o que as tornariam agentes sociopolíticas mais eficientes no desenvolvimento da arte de pensar e na prevenção das doenças psicossociais, tais como a síndrome da exteriorização existencial, o mal do logos estéril, as discriminações raciais, a farma­codependência etc.


Capítulo 8

O Gerenciamento do Eu e a Práxis dos Pensamentos


O "EU" É O ÚNICO FENÔMENO CONSCIENTE QUE PRODUZ E GERENCIA OS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DA INTELIGÊNCIA

Se o leitor se interiorizar e observar sua construção de pensamentos, terá consciência do fluxo vital da energia psíquica, pois verificará que diariamente são produzidas milhares de construções psicodi­nâmicas em sua mente: idéias antecipatórias, recordações, análises, praze­res, angústias, ansiedades, desejos etc. Essas "construções psicodinâmicas", ao contrário do que na ciência e na coloquialidade tem-se pensado até hoje, nem sempre são autorizadas e determinadas logicamente e conscien­temente pelo "eu".
O "eu", como disse, não é um termo vago conceitualmente, mas se refere à "consciência de si mesmo", a consciência de que existimos, de que pensamos e nos emocionamos e de que podemos administrar a inte­ligência.
O "eu" ou o self, por incrível que pareça, além de normalmente ter pouca consciência da complexidade dos processos de construção dos pen­samentos, não é o grande líder dos mesmos; pelo contrário, muitas idéias, resgates de experiências passadas, fantasias, escapam ao seu controle.
Muitos psicólogos, sociólogos, filósofos e cientistas podem ficar choca­dos com essa afirmação e, por não conhecer os processos de construção dos pensamentos, podem considerá-la uma heresia científica, pois acredi­tam que o controle do "eu" (em inglês: self-control) é o único responsável pelos processos de construção dos pensamentos. Porém, como temos visto, possuímos o fenômeno da autochecagem, a âncora da memória e o fenô­meno do autofluxo produzindo continuamente cadeias de pensamentos. Eles produzem continuamente a maior fonte de entretenimento humano, reescrevem a memória e, conseqüentemente, alargam os horizontes do pró­prio "eu".
Tenho a convicção teórica de que, cientificamente, é improcedente considerar que a vontade consciente do homem é o único centro produtor do mundo das idéias.
Na realidade, os processos de construção dos pensamentos são multi­focais. Eles são gerados através do fluxo vital de dezenas de variáveis, das quais o "eu" é apenas uma, embora ela devesse ser a variável ou o fenôme­no que tomasse a liderança, ainda que parcial, dos processos de construção dos pensamentos.
Na mente há cinco grandes etapas da interpretação, que se processam em frações de segundos, das quais as três primeiras são inconscientes. O eu é formado na quinta etapa da interpretação, quando já foi desencadeada toda uma rica construção de pensamentos nas etapas anteriores. Por isso, o homem, que é um grande líder do mundo extrapsíquico, tem grande difi­culdade em liderar seu próprio mundo intrapsíquico.
Todos sabemos que não é fácil controlar os pensamentos e emoções construídos no palco de nossa mente. Quantos pensamentos de cadeias simples ou complexas produzimos ontem? Talvez milhares. Mas, quantos pensamentos nós decidimos logicamente produzir? Talvez dezenas ou cen­tenas. Fiz essa pergunta a muitas pessoas, inclusive a psicólogos e cientistas, e as respostas foram sempre parecidas. Todos disseram que produzem inú­meros pensamentos diariamente, e que apenas uns poucos foram determi­nados lógica e conscientemente. Quando respondem a essa pergunta, não percebem a seriedade científica da afirmação de que o controle do eu sobre o processo de construção de pensamentos é parcial. Só quando o eu é gerado na quinta etapa é que ele, retroativamente, pode exercer um gerenciamento da construção de pensamentos e tornar-se agente controlador dos pensamentos e das emoções.
Se fosse procedente cientificamente que o "eu" é o único organizador e o líder absoluto dos processos da inteligência, só vivenciaríamos as idéias e as emoções produzidas por ele, o que talvez não fosse nem dez por cento das idéias e emoções produzidas pelos fenômenos inconscientes que lêem a memória. Nesse caso, a vida humana seria um tédio contínuo, uma soli­dão insuportável, um vazio existencial angustiante, pois não teríamos uma riquíssima construtividade de idéias, pensamentos antecipatórios, pensa­mentos existenciais, recordações, fantasias etc, produzidos pelos demais fenômenos e que são capazes de entreter o homem e provocar-lhe clandes­tinamente uma rica experiência de prazer, expectativa, inspiração, busca, ansiedade, em toda a sua trajetória existencial.
Qual é a maior fonte de entretenimento humano? Não é o cinema, a TV, as artes plásticas, as artes cênicas, o esporte, a literatura etc, mas, sim, a rica produção de pensamentos que diariamente produzimos na mente. Provavelmente, mais da metade de nosso tempo de vigília é gasto com os pensamentos que são produzidos em nossa mente e que não chegam a ser expressos. Uma das mais importantes causas que explicam por que muitas crianças de colo são quantitativamente mais agitadas, ansiosas e inquietas que os adultos, é que elas não têm uma rica fonte de pensamentos dialéticos como eles. Muitas crianças autistas também são agitadas, ansiosas, não só porque têm vínculos contraídos com o mundo extrapsíquico, mas também porque não têm uma rica produção dialética de pensamentos como fonte de entretenimento.
A ansiedade e agitação psicomotora não é característica de todas as crianças autistas. As crianças autistas, que possuem uma memória que se enriquece no processo existencial e que sofre um processo de leitura, capaz de resultar numa rica construtividade de cadeia de pensamentos (idéias e fantasias) em sua mente, são emocionalmente mais tranqüilas, pois têm uma fonte clandestina de entretenimento.
As crianças hiperativas são mais inquietas porque o fluxo vital da ener­gia psíquica está mais exacerbado. Nelas, o processo de organização, caos e reorganização da energia psíquica está intensificado, o que produz uma construtividade de pensamentos psicodinamicamente movimentada, que, embora rica, não se torna uma fonte intrapsíquica capaz de remeter à introspecção, à autocontemplação, o que dificulta a assimilação das expe­riências. Por isso, quando corrigidas, elas tendem a repetir freqüentemente os mesmos erros. As crianças hiperativas necessitam de uma abordagem socioeducacional que leve em consideração as particularidades psicossociais dos seus processos de construção do pensamento.
A construtividade diária de pensamentos ultrapassa os limites do con­trole do "eu". Ela é gerada pelo fluxo vital dos fenômenos que produzem os processos de construção da inteligência. Além disso, se o "eu" fosse o organizador ou líder absoluto dos processos intelectuais, como é que pode­ria ocorrer, então, o desenvolvimento da personalidade, do período corres­pondente desde a vida fetal até o estágio extra-uterino, período em que a criança começa a produzir pensamentos conscientes e ter consciência de que pode administrá-los? Se os processos de construção dos pensamentos fossem produzidos apenas pelo "eu", e não também pelos fenômenos que estão nos bastidores da mente, esse período fundamental do desenvolvi­mento da personalidade não ocorreria. Assim, todas as etapas do processo de formação da personalidade não ocorreriam, pois o eu jamais atingiria por si próprio o mínimo de maturidade para se auto-organizar, produzir pensamentos conscientes e administrá-los.
Muitos adultos, incluindo muitas pessoas idosas, nem chegam a desen­volver a maturidade de gerenciamento do eu, a maturidade intelecto-emocional; por isso, dificilmente intervém com consciência crítica na sua pro­dução clandestina de pensamentos, raramente revisam suas idéias e pa­drões de comportamentos e, assim, freqüentemente trabalham mal suas dores, perdas e contrariedades. Essas pessoas, como todo ser humano, têm na rica produção de pensamentos sua maior fonte de entretenimento; po­rém, como não amadurecem o gerenciamento do "eu" eles transformam esta fonte numa fonte de ansiedade. Por não conseguir gerenciar minima­mente sua produção de pensamentos, elas se angustiam muito quando essa produção é constituída de pensamentos de conteúdo negativo, angustiante, antecipatório. A gênese de muitas doenças psíquicas está neste processo.

A CONSTRUÇÃO DE PENSAMENTOS GERA UMA INTELIGÊNCIA MULTIFOCAL DIFÍCIL DE SER GERENCIADA

O eu é o fenômeno que expressa a vontade consciente do homem. Sem esta, o homem é um ser que vaga irracionalmente como os demais seres da natureza. Se fôssemos capazes de destruir o eu, estaríamos encer­rados na mais terrível solidão, existiríamos sem ter consciência de que exis­timos. As psicoses esquizofrênicas comprometem a estrutura e a lógica do eu, por isso elas são graves. Todavia, quando ajudamos os pacientes em surto psicótico a desacelerar seus pensamentos, eles organizam o processo de leitura da memória, constroem pensamentos dentro dos parâmetros da realidade e rompem com seus delírios e alucinações. Desacelerar o fluxo dos pensamentos e alargar os territórios de leitura da memória (âncora) é fundamental para que o eu possa administrar a produção dos pensamentos com lógica.
Os medicamentos antipsicóticos não atuam diretamente nas psicoses, como pensa a grande maioria dos psiquiatras. Eles não fazem nenhum milagre na reorganização da inteligência, apenas provocam uma tranqüili­dade artificial, química, que diminui o ritmo de produção dos pensamen­tos, propiciando condições para uma leitura organizada e multifocal da memória, tanto do eu como do fenômeno do autofluxo.
O eu deveria administrar a leitura e a disponibilidade das informações produzidas pela âncora da memória. Assim, conseqüentemente, ele revisa­ria os paradigmas socioculturais, os estereótipos sociais, as reações ansiosas, as reações fóbicas, o raciocínio analítico superficial, as influências gené­ticas do humor. Porém, o eu jamais consegue exercer plenamente esse gerenciamento, pois a inteligência não é unifocal, mas possui fenômenos difíceis de controlar.
É particularmente complexo e difícil o gerenciamento do eu nos deslo­camentos da âncora da memória e na construção de pensamentos produzi­da pelo fenômeno da autochecagem da memória e pelo fenômeno do autofluxo. Esse gerenciamento se torna difícil também devido ao fato de a psique ser um campo de energia psíquica que se encontra num fluxo vital contínuo. O gerenciamento do eu tem limitações, mas, como estudaremos, essas limitações não só geram transtornos psicossociais, mas também gran­de proteção intelectual.
Eu me lembro que, quando cursava a faculdade de Medicina, um pro­fessor, que era psiquiatra e psicanalista, fez um comentário sincero na sala de aula, dizendo que não entendia por que a mente humana era um campo de batalha, por que havia pensamentos que ele, o professor, controlava e outros que escapavam do seu controle. Ele também disse que percebia esse tumulto intelectual até no comportamento das crianças. Esse conflito inte­lectual, que acompanha a trajetória de todo ser humano, é devido ao fato de a construção de pensamentos ser multifocal.
Gerenciar a inteligência é um trabalho intelectual complexo e difícil, pois grande parte dos pensamentos é produzida sem a determinação e a elaboração do eu. Todos podemos afirmar que é impossível submeter to­talmente o mundo dos pensamentos ao nosso controle consciente. Porém, se a inteligência não contasse com os três mordomos da mente nas quatro primeiras etapas da interpretação, o eu, que é o grande gerenciador da inteligência, não chegaria a se formar.
O processo socioeducacional, produzido pelos pais e professores, é apenas um ator coadjuvante da complexa e sofisticada tarefa de produzir pensamentos. É claro que, quanto mais eficiente e profundo for o processo socioeducacional, quanto mais levar em consideração o desenvolvimento da inteligência e o processo de interiorização, mais chances tem o homem de expandir e aprimorar sua racionalidade, sua produção de pensamentos.
Produzimos diariamente, no silêncio da psique, milhares de pensamen­tos, tanto de cadeias simples quanto de cadeias complexas, que nunca che­gam a ser verbalizados nem expressos. Uma parte significativa desses pen­samentos é produzida pelos três mordomos intrapsíquicos. Na infância, os mordomos intrapsíquicos ensinaram em silêncio o eu a penetrar nos mean­dros da memória e utilizar as informações para construir cadeias de pensa­mentos. Nos adultos, eles continuam ativos, porém perderam essa função intra-educacional. Nos adultos, sua função é produzir a mais importante fonte de entretenimento humano. Porém, dependendo da qualidade dos pensamentos, essa fonte se torna uma fonte de terror. Esse é o caso dos pacientes portadores de obsessão, depressão, síndrome do pânico e fobias.

O GERENCIAMENTO DOS PENSAMENTOS DIALÉTICOS: A NECESSIDADE DE EXPANDIR A LIDERANÇA DO EU

Administrar a construção dos pensamentos, a transformação da energia emocional e a formação da memória não quer dizer ter pleno domínio sobre esses processos ou sobre as variáveis que os produzem. Mas significa realizar um gerenciamento com consciência crítica e maturidade, embora tendo limites.
Na ciência, gerenciar a inteligência é, antes de tudo, vivenciar a arte da dúvida e da crítica no processo de observação dos fenômenos psíquicos; é aprender a ter uma postura aberta, crítica e reciclável do processo de inter­pretação; é aprender a se "esvaziar", tanto quanto possível, das contamina­ções decorrentes da história intrapsíquica; é ter consciência da construção dos pensamentos, da consciência existencial, da história intrapsíquica e da transformação da energia emocional, e aprimorar qualitativamente essa construção, através de exercícios de um domínio administrativo "parcial" das variáveis que dela participam. Porém, nós jamais atingiremos o pleno controle de nossa mente, seja na pesquisa científica, seja no processo exis­tencial diário.
Nenhum ser humano, seja ele um intelectual, um líder religioso, um filósofo ou um psicoterapeuta, consegue ter total domínio do funcionamen­to da mente. Na realidade, em grande parte do processo existencial diário somos controlados pelo mundo das idéias que são produzidas no cerne da alma.
Não podemos nos esquecer que o eu é formado dentro do campo de energia psíquica, é fruto desse campo de energia, uma parte dele, embora, ao usarmos coloquialmente a palavra "eu", estejamos querendo identificar a totalidade da psique. O eu não é a totalidade da psique; mas, pelo fato de ser a totalidade da consciência da psique, ele assume para si toda a identi­dade da psique e de tudo o que nela é produzido. O eu não deveria assu­mir as idéias de conteúdo negativo que não foram autorizadas por ele, mas, por não termos consciência da produção dessas idéias pelos fenômenos inconscientes, nós ingenuamente as assumimos.
Quantas pessoas têm a sensação de que vão-se ferir ou matar alguém ao ver uma faca ou uma arma? Elas não são perigosas, pelo contrário, às vezes são pessoas dóceis, mas o medo de ferir alguém retroalimenta continuamente a memória com essas idéias negativas. Como elas são registradas de maneira privilegiada, ficam disponíveis para ser lidas pelo fenômeno do autofluxo. Uma vez lidas, produzem idéias angustiantes ligadas a ferimento e morte. O eu jamais deveria assumir tais idéias, pois não foram produzidas por ele. Ele deveria ser livre, mas como ninguém nunca nos ensinou a não assumi-las nem gerenciá-las, transformamos a maior fonte de prazer na maior fonte de terror.
O "eu" consegue, com significativo êxito, gerenciar a produção de pen­samentos dialéticos, que é o mais consciente, bem formatado, lógico e psicolingüisticamente organizado grupo de pensamentos. Porém, ele não consegue realizar um amplo e eficiente gerenciamento dos pensamentos antidialéticos.
Todos pensamos o que queremos, quando queremos e na velocidade e freqüência que queremos. Se levarmos em consideração o gerenciamento dos pensamentos dialéticos, no entanto, poderemos incorrer no erro de considerar o homem um grande líder dos processos de construção da inte­ligência, o que não é verdade. Quem domina completamente a emoção, quem seleciona todos os registros da memória? A própria rejeição de uma experiência angustiante facilita o seu registro! Quem é que, ao ser ofendi­do, rejeitado, contrariado, injustiçado, consegue conter a hiperconstrução de pensamentos e as reações tensas e, ao mesmo tempo, evitar que essas mazelas psíquicas sejam fixadas nos porões de nossa memória?
Na psicose, o "eu" está tão desorganizado, que perde os parâmetros da realidade e não consegue gerenciar, com coerência e lógica, a leitura da história intrapsíquica. Como a construção das idéias não pode ser estancada, essa construção fica por conta apenas dos fenômenos que lêem a memória, principalmente do fenômeno do autofluxo. Nas psicoses, a história intrapsíquica é retroalimentada continuamente pela produção de delírios e alucinações, expandindo a disponibilidade histórica das RPSs ilógicas. Nesses casos, à medida que o fenômeno do autofluxo lê a memória, produz novas cadeias psicodinâmicas de pensamentos delirantes e alucinatórias.
Até hoje não se sabe como os medicamentos psicotrópicos efetivamen­te atuam nas psicoses e em outras doenças psíquicas. Só há hipóteses e postulados. Eles certamente não estruturam o eu nem reorganizam por si mesmos a construção de pensamentos. Todavia, como disse anteriormen­te, creio que eles, no caso das psicoses, atuam no metabolismo dos neurotransmissores e provavelmente criam microcampos de energia físico-química que interferem no campo de energia psíquica, abrindo a âncora da memória, diminuindo os níveis de tensão e desacelerando os pensamen­tos desorganizados. Tais situações propiciam um caminho para que o eu realize o maior de todos os espetáculos, a organização da inteligência, prin­cipalmente da identidade da personalidade: quem somos e onde estamos.

O GERENCIAMENTO DOS PENSAMENTOS ANTIDÍALÉTICOS

O gerenciamento dos pensamentos antidialéticos é mais difícil de ser processado do que o dos pensamentos dialéticos, pois eles são menos cons­cientes, formatados, lógicos; além disso, são psicolingüisticamente desorga­nizados. A produção intelectual que usa os pensamentos antidialéticos tem menos referenciais lógicos, tais como as fantasias, as construções tempo-espaciais e a construção das circunstâncias psicossociais.
Em diversas doenças psíquicas, o eu tem grande dificuldade em gerenciar a construção dos pensamentos antidialéticos, assim como nas fobias e nas síndromes do pânico. Através da psicoterapia, porém, e mesmo nessas doenças, é possível que o eu produza um gerenciamento eficiente. É possí­vel, com uma técnica psicoterapêutíca adequada, que o eu funcione como ator principal no tratamento e os medicamentos psicotrópicos, quando uti­lizados, como atores coadjuvantes. Porém, há casos em que a desorganiza­ção dos pensamentos em determinadas doenças psíquicas é tão grave, como nas psicoses e na fase eufórica dos transtornos bipolares, que os agentes medicamentosos se tornam atores principais do tratamento.
Com respeito ao gerenciamento do processo de transformação da ener­gia emocional, o eu tem bem menos eficiência do que em relação ao gerenciamento da construção dos pensamentos conscientes.

A TERAPIA MULTIFOCAL E O GERENCIAMENTO DO EU

Por que o eu tem tanta dificuldade em gerenciar o campo de energia psíquica? Esse assunto nunca foi estudado na psicologia, embora ele seja o centro da própria psicologia e da ação de todos os psicólogos. Por que tratar de um paciente deprimido, com síndrome do pânico ou transtorno obsessivo, é um processo lento e complicado? Se o mundo das idéias e das emoções é tão criativo, por que temos dificuldade em subjugá-lo?
Os cirurgiões fazem um "milagre no corpo". Em horas, são capazes de extrair um tumor ou uma úlcera, mas os terapeutas demoram semanas, meses ou, às vezes, anos, para levar um paciente à resolução de uma doen­ça psíquica. Há muitas causas que explicam os entraves do gerenciamento do funcionamento da mente, e uma delas é que a produção de pensamentos é multifocal, ou seja, produzida por múltiplos fenômenos. Todavia, a principal causa é que o instrumento usado pelo eu para intervir no mundo psíquico é virtual: trata-se do pensamento dialético.
O eu usa tanto os pensamentos dialéticos como os essenciais para atuar na mente, porém se utiliza mais dos dialéticos. O eu tem como produzir pensamentos essenciais, que são de natureza "real", e fazê-los intervir no território da emoção, transformando a ansiedade em serenidade, o humor deprimido em prazer. Se temos essa capacidade, por que, então, não con­seguimos dominar totalmente o mundo dos pensamentos e das emoções? Porque o instrumento que o eu usa para intervir no território da emoção e nos fenômenos que produzem as cadeias de pensamentos não é apenas o pensamento essencial, mas, principalmente, o pensamento dialético, que é de natureza virtual. O que é virtual tem condições de se conscientizar do que é real, mas não tem como modificá-lo.
Um exemplo. Você pode assistir na TV a uma pessoa presa nos destro­ços de um carro acidentado. Contudo, apesar de ter consciência do seu sofrimento, esta é virtual. Entre você e a pessoa acidentada existe um mun­do intransponível. Por isso, apesar de estar consciente da dor da pessoa, você não tem condições de ajudá-la. Do mesmo modo, os pensamentos dialéticos servem para nos tornar conscientes das nossas angústias, dores e ansiedades, mas eles não têm como intervir e transformar essas emoções.
Os pensamentos dialéticos são o principal instrumento do gerenciamento do eu; por isso, apesar de o eu estar consciente dos conflitos psíquicos e das causas que geraram esses conflitos, ele, por si só, não tem capacidade de resolvê-los. Um dos maiores erros da psicanálise é acreditar que, pelo fato de o paciente compreender as causas inconscientes dos seus conflitos, ele conseguirá resolvê-los. Freud não estudou a construção multifocal de pen­samentos e, portanto, não teve oportunidade de conhecer o fenômeno da autochecagem, do autofluxo, da âncora, do registro automático da memó­ria, nem a natureza dos pensamentos e os limites do gerenciamento do eu sobre o universo psíquico.
Compreender as causas de uma doença é importante, mas insuficiente para superá-la. Um paciente pode ficar dez anos deitado num divã, conhe­cer toda a formação de sua personalidade, mas, ainda assim, não saber reescrever o seu passado, pois tem um eu inerte, passivo, que não consegue ser um agente modificador do funcionamento doentio de sua mente. A dificuldade da psicanálise em atuar na psique também ocorre nas demais terapias.
As terapias cognitivas e comportamentaís procuram desprezar os aspectos inconscientes mais profundos da personalidade e levar o paciente a intervir diretamente nos conflitos, no humor deprimido, nas reações fóbicas. Todavia, essas terapias também enfrentam as limitações do eu, mas sem dúvida são mais eficientes do que a psicanálise nos transtornos depressivos e ansi­osos. Por que a terapia cognitiva, que tem uma teoria mais simples e esti­mula menos a capacidade de pensar do que a psicanálise, é mais eficiente em alguns transtornos psíquicos? Essa é uma questão importante, ignorada talvez até mesmo pelos adeptos dessas correntes terapêuticas.
A resposta é que os terapeutas cognitivos estimulam os pacientes a usar mais os pensamentos essenciais do que os dialéticos no sentido de intervir no mundo psíquico. A psicanálise, sem o saber, usa mais os pensamentos dialéticos, através da técnica da livre-associação, do que os essenciais no processo terapêutico.
É paradoxal, mas a psicanálise, que objetiva reorganizar o inconsciente, usa, mais do que imagina, os pensamentos conscientes (dialético e antidialético) como instrumento terapêutico. Eles são de natureza virtual e, portanto, não têm força para atuar no campo de energia emocional e nem nos fenômenos que constroem as cadeias de pensamentos essenciais. De outro lado, a terapia cognitiva, que dá pouco valor ao inconsciente, usa, mais do que supõe, o pensamento inconsciente (essencial) como instru­mento terapêutico. Por isso, esta corrente terapêutica, sem ter consciência, estimula o fenômeno RAM a reeditar várias áreas da memória, onde estão arquivadas experiências existenciais doentias.
A psicanálise almeja dar um novo significado à história do paciente, reciclar os seus traumas, o que são objetivos nobres, mas, para isso, usa excessivamente o pensamento consciente. Quando o paciente fala de sua história, deitado no divã, ele produz uma série de pensamentos essenciais que geram os pensamentos conscientes. Estes, por sua vez, vão criando um ambiente para que o "eu" leia com mais eficiência a memória e, conse­qüentemente, produza mais pensamentos essenciais que gerarão mais pen­samentos conscientes, expandindo, assim, a capacidade de pensar. Toda­via, quem é registrado na memória são os pensamentos essenciais e não os pensamentos conscientes. Uma vez registrados, os pensamentos essenciais reescrevem a memória. Deste modo, ocorre espontaneamente a melhora do paciente.
Como os pensamentos essenciais, na técnica psicanalítica, nem sempre têm uma carga emocional intensa e freqüentemente não são direcionados para atingir diretamente os conflitos dos pacientes, como ocorre nas tera­pias cognitivas, o registro desses pensamentos não é privilegiado nas re­giões inconscientes da memória, por isso a psicanálise, em muitos casos, se torna um processo terapêutico prolongado.
A terapia multifocal usa intensamente os pensamentos conscientes e os essenciais. Usa o pensamento dialético para fazer dos pacientes pensadores conscientes da sua história, e usa os pensamentos essenciais, através das técnicas do resgate da liderança do eu nos focos de tensão, para torná-los agentes modificadores de sua história. A terapia multifocal não entra em conflito com a psicanálise nem com a terapia cognitiva, mas as completa e abre para elas "avenidas" de pesquisa e de compreensão do homem total.
Há pouco tempo atendi um paciente com grave transtorno obsessivo. Há vinte anos ele é perturbado continuamente por idéias fixas relacionadas a acidentes, doenças e morte de pessoas íntimas. Perdeu completamente o controle sobre a produção dessas idéias obsessivas e desenvolveu estranhos gestos compulsivos para tentar aliviar-se. Quando pensa com fixação que sua filha ou sua esposa vai sofrer um acidente, ele se desespera tanto, que se comporta de modo compulsivo e repetitivo para desviar ou descaracterizar o pensamento: bate continuamente no peito ou na cabeça. Tal é seu des­controle que ele faz estes gestos em público. Ultimamente, entrava no ba­nheiro de sua empresa e batia a cabeça na parede, por isso todos se assus­tavam com seus hematomas.
Esse paciente passou por diversos psiquiatras e psicoterapeutas. Fez psicanálise, terapia cognitiva e muitos outros tipos de terapia. Porém, não teve sucesso nos tratamentos. Tomou todos os tipos de antidepressivo, mas nenhum devolveu-lhe o prazer de viver e lhe trouxe a saúde para seu mun­do psíquico. Era um empresário, mas vivia uma vida angustiante. Alguns o consideravam "louco", outros um ser socialmente estranho, bizarro.
Seus pais viram aquele jovem, a partir da adolescência, crescer com esse transtorno, e sofriam muito. Por fim, recomendaram-lhe o "melhor" psiquiatra do país, que não sei quem é. Chegando lá, o psiquiatra o desani­mou, dizendo-lhe que não tinha mais nada a fazer, pois ele já havia feito diversos tratamentos psicoterapêuticos e tomou os mais diversos medica­mentos. Segundo esse psiquiatra, o paciente teria que conviver com sua miséria psíquica.
Há alguns meses, esse paciente me procurou. Como estou acostumado a tratar de casos resistentes, sabia que o meu maior problema não era a sua doença, mas o fato de ele não acreditar que poderia melhorar, que poderia administrar seus pensamentos e se tornar uma pessoa saudável. Perguntei-lhe com toda a honestidade se ele queria que eu fosse mais um psiquiatra e psicoterapeuta que passaria pela sua vida ou se queria que fosse o último. Procurei aguçar-lhe a inteligência, romper com a adaptação à sua miséria. Desejava instigar sua produção de pensamentos essenciais e estimulá-lo a fazer uma revolução no seu mundo psíquico, estimulá-lo a romper seu cár­cere intelectual.
Durante o tratamento, levei-o a compreender como a mente funciona, como produzimos os transtornos obsessivos, como retroalimentamos os conflitos na memória, como atuam o fenômeno RAM, o gatilho da memó­ria e o autofluxo. Também o levei a compreender, à luz desses fenômenos multifocais, as causas inconscientes do seu conflito e a resgatar a liderança do eu nos focos de tensão. Para tanto, estimulei-o a atuar no seu universo psíquico dia após dia, durante seis meses, construindo idéias inteligentes e críticas contra cada idéia obsessiva. Queria que ele reconstruísse a sua his­tória, pois ela alimentava suas idéias fixas através das leituras contínuas produzidas pelo fenômeno do autofluxo.
O resultado foi brilhante. Já no primeiro mês de tratamento ninguém acreditava que aquela pessoa tão doente melhorara tanto. Esse paciente foi mais um dos que fizeram a terapia multifocal, compreenderam o funciona­mento básico do processo de construção dos pensamentos e venceram seu drama, mais um dos que se tornaram agentes modificadores da sua história e se tornaram líderes do seu próprio mundo.

O AMBIENTE DA PSICOTERAPIA MULTIFOCAL

O psicoterapeuta multifocal é um estudioso dos fenômenos que partici­pam da construção do pensamento, da transformação da energia emocio­nal, da formação da história intrapsiquica e da consciência existencial do "eu". Compreende que o funcionamento da mente humana é complexo e sabe que um dos maiores desafios da inteligência humana é transformar o "eu" num agente modificador da sua própria história.
A postura do terapeuta multifocal é importante para se criar um am­biente terapêutico inteligente, livre, aberto e que estimula a arte de pensar. Ele não se coloca como um gigante no território da emoção. Mas como alguém que, apesar de treinado para conhecer o processo de formação da personalidade e tratar das doenças psíquicas, é um ser humano que tam­bém possui dificuldades existenciais e limitações no processo de gerenciamento das emoções e dos pensamentos. Portanto, o psicoterapeuta não deve assumir a postura de semideus, de dono da verdade nem o pa­ciente deve encará-lo como uma pessoa inatingível, distante de suas fragili­dades e angústias.
Um bom psicoterapeuta é antes de tudo um excelente ser humano. Alguém que é sociável, alegre, seguro, bem resolvido, que não tem medo de reconhecer suas dificuldades, que se coloca como aprendiz diante da vida e que tem a capacidade de aprender lições existenciais com seus pa­cientes. Não se comporta como um "extraterrestre", mas como um ser humano que interage com seu paciente, que honra a sua inteligência, que o elogia e estimula sua auto-estima a cada passo que dá para desenvolver a arte de pensar e superar a sua doença psíquica.
Um psicoterapeuta experiente é capaz de suscitar empatia em seus pa­cientes e transmitir-lhes confiança e segurança. É capaz de mostrar que está muito interessado na sua história, na sua dor e de expressar que ele não é só mais um paciente, mas um ser único e insubstituível, que merece todo o respeito e que tem direito de viver uma vida livre e saudável.
O terapeuta multifocal tem consciência das distorções que ocorrem no processo de interpretação. Sabe que é impossível não envolver a sua pró­pria história na interpretação dos seus pacientes, mas questiona continua­mente esse envolvimento. Tem consciência da atuação do fenômeno do gatilho da memória (autochecagem) na análise do comportamento dos pa­cientes, mas gerencia os pensamentos e as emoções decorrentes desse gati­lho. Está sempre mostrando ao paciente que suas reações fóbicas, de ansie­dade e impulsivas também são iniciadas por esse fenômeno. Leva-o a com­preender que ele desloca a âncora da memória, direcionando e restringin­do o seu campo de leitura da própria memória.
O terapeuta multifocal enfatiza no processo psicoterapêutico os papéis fundamentais da memória: o registro automático pelo fenômeno RAM, o registro privilegiado no inconsciente das experiências que têm "carga" emo­cional intensa, a impossibilidade de deletar a memória consciente e in­consciente, a necessidade de reescrevê-la para mudar a estrutura da perso­nalidade.
O terapeuta experiente, apesar de investigar o passado do paciente, não o leva a gravitar em torno dele, pois tem consciência de que o "eu" não tem as ferramentas para descobrir o lócus das experiências doentias no córtex cerebral e nem, como disse, para apagar essas experiências. A história da personalidade arquivada na memória só pode ser reeditada, reescrita.
O risco de produzir um paciente dependente do terapeuta tem de ser considerado por qualquer corrente psicoterapêutica e deve ser evitado com o máximo de empenho. O paciente tem direitos fundamentais que deve­riam ser assegurados por qualquer tipo de psicoterapia, mas, infelizmente, eles nem sempre são respeitados. Entre estes direitos, está o de questionar seu terapeuta.
Por estar fragilizado pela sua doença, o paciente está numa relação desigual com o terapeuta, está desprotegido diante dele, por isso este pode tanto ajudá-lo como anulá-lo, prejudicá-lo e embotar sua capacidade de pensar. É necessário que o terapeuta dê plena liberdade para o paciente questionar suas interpretações, bem como a teoria e os procedimentos que utiliza. Ele deve estimular a arte da pergunta, da dúvida e da crítica do paciente. Aquele que não se deixa ser questionado pelo paciente deveria assumir o lugar dele, deveria ser tratado.
Quando o paciente tiver condições de andar sozinho, de gerenciar seus pensamentos, de proteger sua emoção nos focos de tensão, de trabalhar seus transtornos psíquicos, ele deve ter alta supervisionada, ou seja, voltar somente quando necessário.
Independentemente de ser um psicólogo, um psiquiatra ou um agente de saúde, o terapeuta que transmite suas interpretações como se fossem verdades absolutas, que se comporta como um semideus com relação aos pacientes, pode estar apto a exercer qualquer profissão, menos a de psicoterapeuta.
O objetivo da terapia multifocal não é só resolver doenças, mas estimu­lar os pacientes a desenvolver os amplos aspectos da liderança do eu sobre os pensamentos, bem como as funções mais importantes da inteligência: a arte de pensar, a arte da crítica, a capacidade de superação das suas intem­péries, a capacidade de pensar antes de reagir, de expor e não de impor as idéias, de se colocar no lugar do outro, de contemplar o belo. Não basta ajudar o paciente a resolver sua doença. É preciso torná-lo um ser comple­to, que brilha na sua inteligência, que saiba navegar no território da emo­ção, que seja especial por dentro, ainda que comum por fora. Por isso, a terapia multifocal vai além dos limites das doenças, procura expandir as potencialidades intelectuais do paciente.
Para atingir esses objetivos, o terapeuta deve estimular o paciente, du­rante o tratamento, a continuar sua terapia no ambiente que exerce suas atividades sociais e profissionais, através das técnicas do resgate da lideran­ça do eu, bem como do gerenciamento do gatilho da memória, da âncora da memória, do fenômeno do autofluxo. Além disso, deve estimulá-lo tam­bém a utilizar o fenômeno RAM para reescrever a sua história e se tornar um agente modificador dela, reorganizando, assim, os transtornos depressivos, a síndrome do pânico e os transtornos obsessivos. A terapia multifocal, portanto, tem prosseguimento nos territórios sinuosos da vida, fora do ambiente do consultório. Caso contrário, criamos a crença ilusória de que só as diretrizes dadas nas sessões terapêuticas sejam suficientes para o paciente estruturar e reorganizar sua personalidade.
O clima na sessão psicoterapêutica deve ser inteligente e participativo. A terapia deve transcorrer num ambiente da democracia das idéias, numa via de mão dupla. Ambos, terapeuta e paciente, discutem os problemas multifocalmente. Analisam os momentos da história do paciente, investi­gando o seu passado, os elementos que foram registrados de maneira superdimensionada pelo fenômeno RAM, as experiências retroalimentadas pelo fenômeno do autofluxo, a dificuldade de gerenciamento do eu, as dificuldades de descaracterizar as imagens inconscientes que estruturam os conflitos, a necessidade de intervenção nos pensamentos essenciais que geram não apenas os pensamentos conscientes (dialéticos e antidialéticos), mas também a ansiedade, o humor deprimido, os conflitos existenciais.
Na terapia multifocal o comum é o paciente apresentar melhoras signi­ficativas em semanas e ter alta em meses, embora haja exceções. Lembre-se de que o grande problema não é a doença do doente, mas o doente da doença, ou seja, a disposição do eu em penetrar no seu mundo, revisar a sua história e reorganizar a sua maneira de reagir à sua doença e ao am­biente social.

UM RESUMO DOS PRINCIPAIS PRINCÍPIOS PSICOTERAPÊUTICOS

Reitero, a psicoterapia multifocal objetiva muito mais do que resolver doenças; ela visa fazer com que o paciente desenvolva a arte de pensar e as funções mais importantes da inteligência.
1. Atuar no processo de construção dos pensamentos, na transforma­ção da energia emocional, na formação da história intrapsíquica e na formação do eu.
2. Estimular a capacidade de pensar do paciente para que ele não apenas seja capaz de criticar o mundo que o envolve, mas também de criticar a interpretação do psicoterapeuta, suas técnicas e seus procedimentos.
3. Estimular sua capacidade de análise multifocal para que possa su­perar as contradições e as contrariedades da vida.
4. Levá-los a proteger sua emoção diante dos estímulos estressantes e trabalhar suas perdas e frustrações.
5. Estimulá-los a desenvolverem a arte da contemplação do belo, o prazer pela vida e o sentido existencial.
6. Conduzi-los a compreender os papéis da memória e a reescrever a história consciente e inconsciente nela arquivada.
7. Estimulá-los a ter como meta não apenas a resolução de sua doença depressiva, ansiosa ou qualquer outra, mas a procurar a sabedoria como meta de vida.
8. Levá-los a resgatar a liderança do eu nos focos de tensão.
9. Levá-los a expandir o território de leitura da memória (âncora da memória).
10. Conduzi-los a gerenciar a construção dos pensamentos e a transfor­mação da energia emocional produzidos pelo fenômeno do autofluxo e pelo gatilho da memória.
Como comentei, a terapia multifocal não conflita ou anula as demais correntes psicoterapêuticas, ao contrário, explica-as e complementa-as, pois estuda e trabalha com os fenômenos universais que estão presentes na base do funcionamento da mente e da construção de pensamentos.

AS DIFICULDADES DO GERENCIAMENTO DO EU

Vamos continuar a investigar com mais detalhes os entraves da atuação do homem no seu próprio mundo e compreender por que os procedimentos psicoterapêuticos, sejam eles quais forem, possuem limitações significativas.
O eu usa mais os pensamentos dialéticos e antidialéticos, que são de natureza virtual, para gerenciar a inteligência do que os pensamentos es­senciais, que são de natureza real. Não podemos nos esquecer que são os pensamentos dialéticos que formam a consciência humana. Precisamos compreender as limitações do eu para entender as suas potencialidades.
Como o que é virtual pode atuar no que é real? Como a consciência virtual pode atuar na realidade essencial intrínseca dos processos de cons­trução da inteligência, por exemplo, do processo de transformação da energia emocional? Como os pensamentos dialéticos e antidialéticos podem trans­formar as emoções? Essas perguntas são importantíssimas.
Os pensamentos conscientes (dialéticos e antidialéticos) têm "em si mesmos" uma dificuldade intransponível de materializar intrapsiquicamente sua intencionalidade. Na realidade, os pensamentos conscientes, ao contrá­rio do que pensamos, não atuam por si mesmos na essência da energia psíquica; eles apenas criam um "ambiente consciente", um "ambiente dialeticamente e antidialeticamente iluminador", para que o eu administre "inconscientemente" o processo de leitura da história intrapsíquica e as matrizes de pensamentos essenciais inconscientes. Esse mecanismo é um dos mais complexos e importantes da inteligência humana.
É paradoxal e difícil de se entender, mas usamos os pensamentos dialéticos, que são conscientes e virtuais, para administrar os pensamentos essenciais, que são inconscientes e essenciais, e que estão na base da cons­trução dos próprios pensamentos dialéticos. Quando entro numa sala e realizo algumas tarefas, a luz do ambiente me permite locomover-me e realizar essas tarefas. A luz não foi a responsável pela realização das tarefas, mas criou um ambiente propício para que elas fossem realizadas. Esse exem­plo, embora deficiente, pode demonstrar o trabalho do eu. Os pensamen­tos dialéticos e antidialéticos, embora não se materializem na realização das tarefas psicodinâmicas, criam um ambiente consciente para que o eu leia a memória e realize suas tarefas psicodinâmicas inconscientes.
 A "dificuldade intransponível" da materialização intrapsíquica dos pen­samentos dialéticos faz com que o eu não exerça uma grande liderança administrativa sobre os processos de construção do mundo intrapsíquico, como exerce sobre os processos de construção do mundo extrapsíquico. Quem se "materializa" psicodinamicamente não são os pensamentos cons­cientes, mas os pensamentos essenciais inconscientes.
Os pensamentos essenciais se materializam e atuam psicodinamicamente com mais eficiência no córtex cerebral e, conseqüentemente, no sistema motor, do que no próprio campo de energia psíquica. Podemos coordenar cada movimento muscular, que tem milhões de detalhes metabólicos, por causa da eficiente materialização das matrizes dos pensamentos essenciais no córtex cerebral, mas não temos a mesma eficiência para materializar os pensamentos essenciais a fim de administrar nossas emoções e modificar nossa angústia, nossa dor, nossa ansiedade etc. O resultado é que o homem sempre foi um grande líder do mundo extrapsíquico, mas nunca o foi do mundo intrapsíquico.
O eu não consegue determinar que o processo de transformação da energia emocional, bem como os outros processos de construção da inteli­gência, submeta-se diretamente à sua liderança. Se houvesse uma liderança plena sobre o processo de transformação da energia emocional, os proble­mas concernentes ao sofrimento psíquico (angústias, humor deprimido, ten­são, desespero, solidão, farmacodependência etc.) e psicossocial (sofrimen­to decorrente de discriminação, perda, ofensa pública, exclusão social etc.) estariam resolvidos, pois todo ser humano conseguiria viver num oásis de prazer, em detrimento de suas misérias extrapsíquicas.
O eu também não é muito eficiente ao atuar na história intrapsíquica, arquivada na memória. A história intrapsíquica guarda os segredos incons­cientes e conscientes do processo existencial. A impotência em gerenciar o registro e a leitura automática da história intrapsíquica traz importante pro­teção contra a destruição socioeducacional e a autodestruição da história intrapsíquica.
O eu não pode apagar nem destruir as RPSs registradas na memória. No máximo, e esse é o seu papel fundamental no gerenciamento da histó­ria intrapsíquica, ele poderá reciclar criticamente essas RPSs, produzindo idéias críticas sobre o processo de interpretação e uma análise dos estímu­los que geraram essas RPSs. O gerenciamento das RPSs iniciais redunda­rão em novas RPSs, que alterarão, por sua vez, a qualidade da história intrapsíquica que, lida pelos fenômenos que fazem a leitura da mesma, gerará novas cadeias psicodinâmicas das matrizes de pensamentos essen­ciais, novas transformações da energia emocional e novas cadeias psicodinâmicas virtuais dos pensamentos dialéticos e antidialéticos. Embora não seja oportuno neste livro, há muito o que dizer sobre esse assunto, pois podemos extrair dele importante conhecimento psicológico e filosófico.
O homem que é senhor do mundo em que ele está, é pouco senhor do mundo que é ele. Se fôssemos senhores do mundo que somos, certamente faríamos uma grande faxina intelectual em nossa mente; até mesmo os psicopatas fariam isso. Quantos pensamentos, idéias, recordações, fanta­sias, angústias, humores deprimidos, sentimentos de solidão, etc. não iría­mos querer deixar de produzir; mas eles são produzidos independente­mente da determinação do "eu". A revolução das idéias independe do eu; ela é financiada, principalmente, pelo fenômeno do autofluxo e pela ânco­ra da memória. Quantos de nós não gostaríamos de deixar de sofrer por antecipar situações futuras ou ruminar situações passadas ou, ainda, produ­zir pensamentos sobre o que os outros pensam e falam de nós, sobre pro­blemas sociais e profissionais; mas, freqüentemente, nos sentimos incapa­zes de controlar plenamente o universo psíquico.
Temos que começar a revisar os paradigmas intelectuais contidos nas teorias da personalidade e compreender que a inteligência não é unifocal e unidirecional, mas multívariável; que a construção de pensamentos se dá através de diversos fenômenos e que está sujeita a riquíssimos processos de co-interferências das variáveis, que são difíceis de serem administrados. O nosso gerenciamento da capacidade de pensar é micro ou macrodistinto a cada momento da existência.
Temos que usar procedimentos de investigação, tais como os derivados da busca do caos intelectual, para investigar e compreender a leitura e construtividade dos pensamentos. Não adianta usar jargões psicológicos simplistas para explicar o porquê de o homem não ter pleno controle sobre a produção de pensamentos. É superficial e genérico dizer que isso se deve ao fato de ele sofrer de neuroses, de conflitos psíquicos, de transtornos obsessivo-compulsivos, de stress.
Os diagnósticos na psiquiatria podem ser úteis para traçar algumas "ave­nidas" farmacoterapêuticas e psicoterapêuticas, mas também podem fun­cionar como "véus" que cobrem nossa inteligência, nossa dificuldade de compreender os segredos da mente humana. Como eu já disse, mesmo que houvesse um homem dotado da mais plena sanidade intelectual, ele não exerceria pleno controle sobre sua mente, sobre a construção dos seus pensamentos, sobre a transformação da sua energia emocional.
Se não compreendermos, ainda que parcialmente, o complexo proces­so de construção de pensamentos e da formação da consciência existen­cial, não chegaremos a entender nem mesmo como ocorrem o autoritarismo das idéias e a ditadura dos discursos teóricos que controlam não só os ditadores políticos, as pessoas preconceituosas, as pessoas que respiram discriminação, mas também nossa própria atitude anti-humanística nas rela­ções interpessoais.
Quando abordo as limitações do eu, não estou dizendo que ele não seja responsável pelas atitudes anti-humanísticas, destrutivas, autodestrutivas. Se ele consegue estabelecer, ainda que parcialmente, os parâmetros da realidade extrapsíquica e intrapsíquica, ele se torna responsável pelos atos humanos, pois toma consciência da construção de pensamentos iniciada pelo fenômeno da autochecagem da memória ou pelo fenômeno do autofluxo. Nesse caso, ele adquire condições para gerenciar os processos de construção de pensamentos e o comportamento humano.
O comportamento humano, que é a manifestação dos pensamentos, é mais fácil de ser controlado do que os próprios pensamentos. Com respeito ao gerenciamento dos pensamentos, o mais importante não é querer fazer uma faxina intelectual pura e completa, ou seja, querer eliminar todos os pensamentos débeis que temos, mas ter consciência crítica deles, reciclá-los, desorganizá-los e descaracterizá-los intelectualmente.
É mais fácil o homem explorar o espaço físico do universo do que seguir a trajetória do seu próprio ser. Por isso, o humanismo, a cidadania, a democracia das idéias, a análise multifocal, a arte da contemplação do belo etc, embora sejam funções intelectuais nobres da inteligência, não são fá­ceis de ser conquistados, a não ser, como tenho dito, através de um proces­so educacional interiorizante, que estimula o homem a pensar, a desenvol­ver a consciência crítica, a expandir o mundo das idéias, a se tornar um pensador humanista.
Não podemos compreender a violação histórica dos direitos humanos e, conseqüentemente, produzir "vacinas" psicossociais humanísticas, se não levarmos em consideração a construção dos pensamentos e os limites do "gerenciamento do eu". Porém, nas sociedades modernas essas "vacinas" são uma utopia, pois, até o momento, temos vivido um intrigante paradoxo intelectual, expresso por explorarmos e conhecermos intensamente o imenso espaço e o pequeno átomo e, ao mesmo tempo, explorarmos e conhecer­mos pouco o nosso próprio mundo intrapsíquico, o nascedouro das idéias, as origens de nossa inteligência.

GERENCIANDO A INTELIGÊNCIA A PARTIR DA QUINTA ETAPA DE INTERPRETAÇÃO

O eu não tem o poder de controlar as quatro primeiras etapas da inter­pretação e a atuação do fenômeno da psicoadaptação que ocorrem antes da sua formação e envolvem a leitura da história intrapsíquica pelo fenô­meno da autochecagem da memória e pelo fenômeno do autofluxo (primeira etapa), a formação das matrizes dos pensamentos essenciais históricos (segunda etapa), a atuação psicodinâmica dessas matrizes no campo de energia emocional e motivacional (terceira etapa) e o processo de leitura virtual que essas matrizes sofrem para gerar os pensamentos dialéticos e antidialéticos (quarta etapa). O eu é formado na quinta etapa da interpretação, logo após a formação dos pensamentos dialéticos e antidialéticos, como estudaremos com detalhes no próximo capítulo.
Os processos espontâneos de construção dos pensamentos dialéticos e antidialéticos, financiados pelos três "mordomos" intrapsíquicos, dão-nos a impressão de que o eu se desenvolve continuamente no estado de vigília. Na realidade, a âncora da memória produz um grupo de informações ins­tantâneas, que fornece subsídios para financiar um quadro básico da cons­ciência de nossas identidades num determinado momento existencial.
Quando estamos num determinado ambiente, numa escola, numa em­presa, num ambiente freqüentado por pessoas estranhas ou por pessoas de nossa intimidade, a âncora da memória se desloca na memória financiando um grupo de informações que nos identificam e identificam o ambiente. Assim, ainda que não fiquemos preocupados em controlar o tipo de res­postas e reações que devemos ter em determinado ambiente, mudamos o nosso comportamento espontaneamente, devido ao deslocamento da ân­cora da memória e, conseqüentemente, do grupo de informações que fi­nanciam a "consciência instantânea". Assim, a "consciência instantânea" é um acessório valioso do "eu".
Apesar de a "consciência instantânea" ser um acessório fundamental do eu, paradoxalmente ela não é produzida nem administrada pelo pró­prio eu, pelo menos no primeiro momento, mas pelo deslocamento da âncora da memória propiciado pelo fenômeno da autochecagem ou do gatilho da memória. Ficamos inibidos num ambiente público, mas somos espontâneos num ambiente familiar; somos brincalhões entre amigos e sé­rios nas reuniões de trabalho. Essas mudanças de postura intelectual nem sempre ocorrem porque programamos nossa inteligência, mas devido a uma construção espontânea de cadeias de pensamentos dialéticos e antidialéticos que financiam a consciência instantânea. Só quando temos uma sensação de "vazio intelectual", de "ausência de memória", devido a uma situação estressante ou ao uso de substâncias psicotrópicas, é que so­fremos um deslocamento brusco da âncora da memória, o que nos causa uma perda da consciência instantânea de quem somos, de onde estamos, do que fazemos no ambiente em que nos encontramos.
O deslocamento brusco da âncora da memória tira-nos da órbita da consciência instantânea, desorganiza a nossa identidade, comprometendo, assim, todo o processo de interpretação num determinado momento exis­tencial.
Reitero: o eu não tem, portanto, o poder de gerenciar os processos de construção da inteligência gerados nas quatro primeiras etapas da interpre­tação. Porém, depois que é formado na quinta etapa, através da produção dos pensamentos dialéticos e antidialéticos, ele adquire condições para in­tervir nos fenômenos da inteligência, inclusive na consciência instantânea gerada pelo gatilho da memória e nos conseqüentes deslocamentos da ân­cora da memória. Esses mecanismos estão entre os segredos mais impor­tantes da inteligência humana.
A liberdade criativa e a plasticidade construtiva dos pensamentos, gerenciadas pelo "eu", são sofisticadas e importantíssimas e têm de ser conquistadas individualmente nos territórios sinuosos da própria psique. Muitos são exteriormente livres nas democracias políticas, mas são intrinsecamente prisioneiros dentro de si mesmos. Muitos têm sucesso social, econô­mico e profissional, mas não têm sucesso em desenvolver as funções mais nobres da inteligência, em expandir o mundo das idéias, em trabalhar seus focos de tensão, em administrar sua ansiedade, seu stress, suas frus­trações.
A seguir, será apresentado um quadro didático sobre a construção de pensamentos e o gerenciamento do eu.

GRÁFICO 3 GERENCIAMENTO DO "EU" (SELF-CONTROL)
Administração dos processos de construção da inteligência



 

Capítulo 9

A Comunicação Social Mediada, as Etapas do Processo de Interpretação e o Fenômeno da Psicoadaptação


A COMUNICAÇÃO SOCIAL MEDIADA E A RECONSTRUÇÃO DO "OUTRO" PELO PROCESSO DE INTERPRETAÇÃO

Não comunicamos a essência do que pensamos e sentimos e nem incorporamos as emoções das pessoas que nos circundam. Vive­mos ilhados nas sociedades, ainda que nos consideremos seres so­ciais. Quando a energia psíquica de uma pessoa, contida nas idéias, angús­tias, humores deprimidos, reações fóbicas, inseguranças, sentimentos de tolerância, de prazer etc, é assimilada pelo seu córtex cerebral e transmiti­da como pool de estímulos físico-químicos ao longo dos nervos, ela se descaracteriza essencialmente.
Os sistemas de códigos físico-químicos são expressões restritivas das idéias, das inseguranças e das emoções que estão contidas no campo de energia psíquica. Quando as experiências psíquicas se tornam sistemas de códigos que excitam a musculatura esquelético-facial e as cordas vocais, produzindo gesticulações e sons que são captados pelo sistema sensorial auditivo e visual do observador e assimilados pelo seu córtex cerebral, ocorre uma acentuação da descaracterização da experiência psíquica da pessoa que a emana.
Após atingir o córtex cerebral e serem assimilados, os sistemas de códi­gos passam por um processo de transmutação, através das janelas TC (jane­las de transmutação codificada) existentes em determinados sítios do cére­bro, que excitam o campo de energia psíquica do observador. Diante dis­so, fica patente que a experiência psíquica de uma pessoa, à medida que ela se torna uma cadeia de códigos, que por fim será assimilada e transmutada no campo de energia psíquica do observador, afasta-se cada vez mais de sua realidade essencial. Assim, quando uma pessoa expressa que está de­primida ou angustiada, o observador jamais capta a realidade essencial do seu humor deprimido, mas um sistema de códigos pobre com relação às dimensões de sua experiência emocional. O observador terá de interpretar os sistemas de códigos para reconstruir a experiência do "outro".
O observador, ao captar sensorialmente o grupo de códigos físico-quí­micos que representa pobremente as riquíssimas experiências do "outro", reconstruirá interpretativamente, nos bastidores da sua mente, essas expe­riências. Porém, essa reconstrução não ocorrerá de maneira pura, mas com inúmeras distorções, que incluem "cores" e "formas" próprias de interpre­tação. O observador reconstrói interpretativamente a experiência psíquica do "outro" não só através dos códigos que a representam, mas também por meio da leitura da sua história intrapsíquica e dos sistemas de co-interferên­cias das variáveis que atuam nos bastidores da sua mente. A grande ques­tão na comunicação social mediada é que a "interpretação do outro" deixa de ser a realidade essencial da energia psíquica do "outro", ou seja, deixa de ser sua experiência psíquica, seu prazer, sua angústia existencial, sua insegurança, sua idéia etc, e passa a ser a própria experiência do observa­dor, que pode ter pouquíssima relação com a experiência real do "outro".
Não comunicamos a essência da energia psíquica a ninguém. Os am­bientes também não nos comunicam outros tipos de "energia" que não seja a energia físico-química captada pelo sistema sensorial. Diante de determi­nadas personalidades ou de determinados ambientes, algumas pessoas, com tendências, místicas ou supersticiosas, acham, que captaram, uma energia estranha, diferente, proveniente deles. Porém, na realidade, reconstruíram interpretativamente, nos labirintos da mente, a partir de sistemas de códi­gos físico-químicos sensorialmente captados, as "sensações", "vibrações", emoções e percepções que crêem ser provenientes de fora.
Nas relações interpessoais, comunicamos estímulos sensoriais e inter­pretamos estímulos sensoriais. A comunicação extra-sensorial, tão comen­tada nos meios coloquiais, é especulação, achismo empírico e superstição. Se há algum tipo de comunicação extra-sensorial, ela é cientificamente pouco evidente e quase indistinguível da produzida pelo processo de interpreta­ção. Estamos ilhados no mundo intrapsíquico; por isso temos a enorme responsabilidade de realizar um processo de interpretação maduro. As sen­sações que as pessoas têm nos ambientes e nas relações humanas são re­construções, realizadas pela interpretação, produzidas pelo fenômeno da autochecagem, autochecagem que lê a memória e produz cadeias de pensamentos essenciais, que, por sua vez, excita inconscientemente a energia emocional.
Embora todos tenhamos um complexo campo de energia psíquica em que construímos constantemente pensamentos, reflexões, recordações, pen­samentos antecjpatórios, angústias, prazeres, sentimentos de tolerância etc, vivemos uma profunda solidão paradoxal, a solidão da consciência existen­cial, que é muito mais profunda que a solidão emocional, representada pela consciência e a angústia de estarmos sós. A solidão paradoxal da cons­ciência tem um conceito muito sofisticado, e só podemos compreendê-lo adequadamente quando unimos a Psicologia com a Filosofia. Estamos sós, ilhados em nosso universo intrapsíquico, não porque temos a consciência de estarmos sós, a consciência da solidão, mas porque a consciência exis­tencial, por ser virtual, nunca incorpora a realidade essencial do mundo tornado consciente por ela.
Neste livro, comentarei sinteticamente a solidão paradoxal da consciên­cia existencial, embora tenha produzido diversos textos sobre ela. Estamos fisicamente próximos das pessoas e dos ambientes, mas, ao mesmo tempo, estamos infinitamente distantes deles. A consciência existencial é virtual; por isso, possui um antiespaço com a realidade essencial contida no mun­do extrapsíquico. A solidão paradoxal da consciência existencial é uma das grandes promoções inconscientes que motiva o homem a desenvolver a comunicação social e a criatividade intelectual.
O homem produz uma rica construção de pensamentos dialéticos e antidialéticos, que fica seqüestrada dentro de si mesma ou que é expressa nas relações interpessoais, porque ele está continuamente tentando superar a solidão paradoxal da consciência existencial. Comentei que o destino do homem é pensar, pois a mente é um campo de energia psíquica que possui fenômenos que lêem a memória e constroem pensamentos voluntária e involuntariamente. Esse é o conceito psicológico da construção de pensa­mentos. Agora, o conceito filosófico é que o homem necessita pensar não só devido ao fluxo vital dos fenômenos que atuam nos bastidores da mente humana, mas também porque ele sofre uma indescritível solidão da cons­ciência existencial, ou seja, porque o eu está próximo e infinitamente dis­tante da realidade essencial do mundo extrapsíquico e até do seu próprio mundo intrapsíquico, pois a consciência de si mesmo não é a essência de si mesmo, mas um sistema de intenções dialéticas e antidialéticas.
O homem pensa continuamente, numa tentativa inconsciente de supe­rar a solidão da consciência existencial. A solidão da consciência existen­cial é inconsciente; mas quando essa superação falha, ele sofre a solidão emocional, que é percebida conscientemente. Produzimos diariamente milhares de pensamentos, embora grande parte deíes nunca sejam expressos nas relações sociais, como tentativa de superar a solidão paradoxal. Por isso eu disse que a maior fonte de entretenimento humano é a construção de pensamentos, as viagens intelectuais que fazemos continuamente pelo mundo das idéias.
A produção poética, a pintura, o teatro, o estabelecimento de relações sociais, a produção contínua de diálogos, a produção de idéias e todos os tipos de criatividade intelectual são expressões vivas e marcantes do fluxo vital da energia psíquica canalizada pela tentativa de superação da solidão paradoxal.
A consciência existencial é extremamente complexa e é até mesmo indescritível na sua plenitude. Através dela, temos consciência do mundo que somos e do mundo em que estamos, discriminamos os parâmetros tempo-espaciais, discriminamos entre o ter e o ser e acusamos os objetos e todos os seres vivos que contemplamos, porém, sem a necessidade de in­corporar suas realidades essenciais. A espécie humana conquistou o privi­légio de ser uma espécie pensante e que possui uma consciência existencial de si mesma e do mundo. Porém, a consciência existencial gerou uma dramática, insolúvel e importante solidão paradoxal, que nos impele cons­tantemente, da meninice à velhice, consciente ou inconscientemente, a pro­curar superá-la através da produção das artes, dos entretenimentos, da co­municação interpessoal, dos diálogos produzidos no silêncio de nossa men­te. Até mesmo a ciência é uma tentativa inconsciente de superação da solidão paradoxal do cientista.
Toda a rica construção gerada pela busca de superação da solidão pa­radoxal da consciência existencial se processa, e tem "relativo sucesso", porque ela atua no fluxo psicodinâmico vital da energia psíquica, em que as variáveis co-interferem mútua e continuamente.
A construção das relações humanas e a comunicação social não são produtos do sistema educacional, embora este possa estimulá-las, mas são construções inevitáveis do Homo interpres que procura superar continua­mente a solidão da consciência existencial do Homo intelligens. Mesmo os anacoretas, que se enclausuram por motivos místicos, se comunicam consi­go mesmos, produzem uma riqueza de idéias e reflexões como tentativa espetacular de superação da solidão paradoxal de suas consciências exis­tenciais. Os autistas, apesar de possuírem relações limitadas com o mundo extrapsíquico, possuem uma criatividade intelectual e uma rica auto-comunicação no seu mundo intrapsíquico. E isso é tão mais real quanto mais preservada estiver sua construção de pensamentos.
O nascedouro psicolingüístico dos pensamentos dialéticos, ou seja, das idéias, das análises, das sínteses etc, e antipsicolingüísticos dos pensamen­tos antidialéticos, ou seja, da imaginação, da consciência da insegurança, da consciência das expectativas, da consciência das fobias etc, tem muitas vertentes na psique, das quais o fluxo vital da energia psíquica é preponde­rante; mas temos que perceber que ele é enriquecido pela necessidade de comunicação social e de autocomunicação intrapsíquica (o homem pensando consigo mesmo) como tentativa contínua de superação da solidão parado­xal da consciência existencial.
Apesar de o Homo intelligens ter uma necessidade vital de comunicação social, ela não transcorre no campo da realidade essencial da energia psí­quica, mas da mediação dos códigos físico-químicos.
Compreendemos o "outro", não através da realidade essencial do ou­tro, mas através da interpretação dos sistemas de códigos que ele expressa pobremente no seu comportamento. Parece que vivemos num mundo de trocas reais, onde nos ofendemos, nos alegramos, nos inspiramos e nos encorajamos mutuamente, mas, na realidade, vivemos no mundo da inter­pretação, onde estamos próximos fisicamente do "outro" mas, ao mesmo tempo, infinitamente distantes dele. Da qualidade de nossas interpretações dependerá os níveis de distorção e de aproximação na reconstrução das experiências psíquicas do "outro".
Conhecemos as pessoas a partir de nós mesmos, a partir dos processos de construção da interpretação que fazemos delas. Milhares de pessoas estão chorando, sofrendo e tendo seus direitos violados neste momento, mas não captamos essencialmente suas misérias. E mesmo que queiramos ter contato com as mesmas, através da mídia ou pessoalmente, nós, freqüentemente, devido aos entraves da comunicação mediada e às dificul­dades da reconstrução do "outro", compreendemos suas dores e necessida­des psicossociais de maneira reduzida.
Essa abordagem psicossocial e filosófica da interpretação do outro ex­plica por que tantos governantes são omissos sociopoliticamente. Não há urgência nas intervenções sociopolíticas para aliviar as dores e necessida­des psicossociais do "outro" (como indivíduo e grupo social), pois vivemos no mundo da interpretação. Nessas condições sociopolíticas, a miséria hu­mana vira um mero detalhe estatístico.
Somente uma interpretação mais humanística, cidadã e profunda pode aprimorar a compreensão das necessidades psicossociais do "outro" e, ain­da assim, com injustiça em relação às suas dimensões.

AS CINCO ETAPAS DO PROCESSO DE INTERPRETAÇÃO E O GERENCIAMENTO DO EU

Não apenas a reconstrução do "outro" evidencia a complexidade dos processos de construção dos pensamentos, mas também as cinco etapas do processo de interpretação, pois é através dessas etapas que as cadeias psicodinâmicas dos pensamentos são formadas e a interpretação do "ou­tro" se processa.
As cinco etapas do processo de interpretação nos possibilita não ape­nas compreender de maneira mais global os processos de construção dos pensamentos, da consciência existencial e da transformação da energia emocional, mas também abre uma grande janela psicossocial e filosófica para compreendermos algumas causas fundamentais que levam a espécie humana a violar continuamente, ao longo da sua história, os direitos hu­manos.
O fenômeno da psicoadaptação, atua na terceira etapa do processo de interpretação. Ele é grande responsável pelas transformações ocorridas nos movimentos literários, na pintura, na arquitetura, na estética dos objetos, nos costumes e até na tecnologia. A atuação deste fenômeno é inconsciente.
O processo de interpretação é constituído de pelo menos cinco grandes etapas. As primeiras três etapas são inconscientes e as duas últimas, cons­cientes. Comentar as etapas do processo de interpretação, pertinentes aos meandros da psique humana, me faz sentir um pequeno aprendiz diante de tanta complexidade, pois o mesmo conhecimento que expressa a di­mensão das minhas idéias revela também as fronteiras da minha compre­ensão e a dimensão da minha ignorância. Quem utiliza os "marcos do conhecimento" para exaltar a extensão da sua cultura, aborta a produção de novas idéias. Porém, quem os utiliza para revelar seus limites, se coloca como eterno aprendiz na trajetória existencial; por isso enriquece conti­nuamente sua produção de idéias. Em ciência, a auto-exaltação e a auto-suficiência são sinais clínicos de esterilidade científica. A dúvida e a crítica são sinais da fertilidade das idéias.
A primeira etapa da interpretação ocorre pela captação dos estímulos extrapsíquicos através do sistema sensorial, assimilação no córtex cerebral e autochecagem na história intrapsíquica. Quando um estímulo extrapsíquico (por ex., os sons e as imagens do "outro", que representam suas experiên­cias psíquicas) excita o sistema sensorial ele é conduzido até o córtex cere­bral e é assimilado em determinados sítios do cérebro correspondentes ao órgão sensorial estimulado.
Falar da assimilação dos estímulos no córtex cerebral, que é a camada mais evoluída do cérebro, é muito simplista, pois não remete a uma com­preensão mais profunda sobre o processo de construtividade de pensamen­tos e de formação da consciência existencial. Durante vários anos, eu pen­sava que a construção de pensamentos transcorria nos meandros fisico-químicos do metabolismo cerebral. Porém, ao longo das pesquisas, percebi que, em detrimento da complexidade fisico-química do cérebro, não há como produzir teorias biológicas profundas, alicerçadas nas leis físico-quí­micas do metabolismo cerebral, que sejam capazes de explicar como se produz o nascedouro das idéias, as origens da consciência existencial.
Precisamos incorporar o postulado de que a psique humana é um sofis­ticado e complexo campo de energia psíquica e que esse campo de energia coexiste e co-interfere com o campo de energia fisico-química do cérebro. Caso contrário, teremos grandes dificuldades para compreender a constru­ção dos pensamentos, a formação da inteligência. Ambos os campos de energia co-interferem mutuamente pelo processo de transmutação. A ener­gia psíquica transmuta-se ou transforma-se em energia fisico-química, e vice-versa. O campo de energia fisico-química está preso a um sistema de leis lineares, previsíveis e lógicas, enquanto o campo de energia psíquica ultra­passa os limites dessas leis. Como eu já disse, esse assunto é a tese das teses na ciência, pois revela os segredos da psique humana e da própria ciência, pois ela é um conjunto organizado de pensamentos. Embora reconheça os enormes limites intelectuais que temos para pesquisar esse assunto, tenho procurado investigá-lo com dedicação através da pesquisa empírica aberta. O comentário que farei a seguir, que será útil para elucidar a primeira grande etapa do processo de interpretação, é apenas uma pequena síntese dos textos que produzi sobre esse assunto.
Os processos de construção dos pensamentos, da consciência existen­cial, da história intrapsíquica e da transformação da energia psíquica estão inseridos dentro do campo de energia psíquica, porém recebem a influên­cia dos microcampos de energia fisico-química transmutadas pelo metabo­lismo cerebral. Os microcampos de energia fisico-química que ocorrem em determinados sítios do cérebro transmutam-se no campo de energia psíqui­ca, interferindo em todos os seus processos de construção, na leitura da memória, na formação das cadeias de pensamentos, no gerenciamento do eu, etc. Os microcampos de energia fisico-química são provenientes da assimilação dos estímulos extrapsiquicos (sensoriais) no córtex cerebral, da ação das drogas psicotrópicas, do metabolismo de substâncias intraneuronais (células nervosas) e do metabolismo de substâncias contidas nas sinapses nervosas, principalmente os neurotransmissores.
O campo de energia psíquica também transmuta microcampos de ener­gias no córtex cerebral. Uma parte significativa da coordenação motora revela essa transmutação refinada da psique no cérebro. A psique também transmuta tensões emocionais no campo de energia cerebral gerando pos­síveis microalterações metabólicas psicossomáticas (MMP) e sintomas psicossomáticos, às vezes clinicamente detectáveis. A própria memória con­tida no córtex cerebral, que é continuamente lida pelos fenômenos do cam­po de energia psíquica, é um testemunho da fineza do processo de co-interferência transmutativa entre os fenômenos contidos no campo de ener­gia psíquica e o cérebro.
A cadeia psicodinâmica dos pensamentos produzida a partir dos estí­mulos extrapsíquicos se inicia após se processar a assimilação dos mesmos, em determinadas áreas do córtex cerebral, e posterior transmutação no campo de energia psíquica, através das janelas de transmutação que exis­tem em determinados sítios do cérebro. Quando os estímulos são assimila­dos no córtex cerebral, formam-se, provavelmente, microcampos de ener­gia físico-química com "comprimentos de ondas" específicos que se transmutam no campo de energia psíquica, gerando sofisticadas matrizes dos pensamentos essenciais "a-históricos".
As matrizes dos pensamentos essenciais "a-históricos" são inconscientes e fugazes, com vida média de milésimos de segundos. Nesse momento, como já abordei, entra em operação o fenômeno da autochecagem da memória, um fenômeno inconsciente que atua psicodinamicamente nas matrizes de pensamentos essenciais "a-históricos", autochecando-as na me­mória, dando um significado "histórico" a essas matrizes. O fenômeno da autochecagem da memória operacionaliza uma autochecagem das matri­zes dos pensamentos essenciais "a-históricos" na memória do córtex cere­bral, numa operação de retorno transmutativo.
A memória do córtex cerebral contém os segredos da história intrapsíquica produzidos ao longo do processo existencial. Existe um sistema lógi­co entre estímulo sensorial, as matrizes de pensamentos essenciais "a-históricos" e os registros das experiências psíquicas (incluindo os símbolos lingüísticos) na memória do córtex cerebral. Se não houvesse esse sistema de relação lógica, não haveria como se processas a compreensão do mais simples pensamento expressado pelo "outro".
Compreender um pensamento, uma idéia, um sentimento expresso pelo outro, não quer dizer, em hipótese alguma, que se resgatou a essência das experiências do "outro", mas que se reconstruiu interpretativamente as mesmas, com dimensões qualitativamente e quantitativamente distintas. Assim, reconstruir interpretativamente uma idéia transmitida pelo outro e compreendê-la não quer dizer compreender todas as dimensões psicossociais que elas encerram.
O sistema de relação lógica entre as matrizes de pensamentos essen­ciais e os estímulos extrapsíquicos não define a complexa reconstrução da interpretação das experiências do "outro", mas serve para estabelecer uma ponte de relação histórica (autochecagem da memória) entre os estímulos extrapsíquicos, os pensamentos essenciais "a-históricos" e a história intra-psíquica arquivada na memória do observador, completando a primeira etapa da interpretação. Com isso, podemos compreender a rica comunicação dialética expressa nas relações interpessoais. A primeira etapa da inter­pretação sobrevive através do sistema de relação lógica, mas as outras eta­pas têm variáveis flutuantes (tais como a energia emocional, a energia motivacional, a âncora da memória) e evolutivas (como o fenômeno da psicoadaptação, da história intrapsíquica), que fazem com que o processo de construção de pensamentos, de formação da consciência existencial e de transformação da energia psíquica não obedeçam a uma linearidade lógica e previsível.
Diante desta sucinta exposição, digo que a grande questão psicossocial e filosófica não é questionar qual é a essência em si do objeto observado, pois esta não é incorporada na consciência intelectual, como está expresso na fase inicial da primeira etapa da interpretação. A fase inicial dessa pri­meira etapa revela que o observador não incorpora a realidade essencial do objeto contemplado, mas um sistema de códigos, que ele terá que autochecar na sua memória, que é a fase posterior desta primeira etapa.
Depois de ter produzido a teoria da inteligência multifocal, descobri que algumas teorias filosóficas, como o existencialismo de Jean-Paul Sartre, também incorporavam conhecimentos sobre a fase inicial da primeira eta­pa da interpretação. Sartre 7 comenta que o ser-em-si (realidade essencial do objeto ou do "outro") não é incorporado pela consciência. A consciência vive o ser-para-si (objeto interpretado). O ser-para-si não é a essência-em-si do objeto ou fenômeno observado. Apesar de esse conhecimento ser im­portante, ele se relaciona apenas com a fase inicial da primeira etapa da interpretação, que expressa que a realidade do objeto ou do "outro" não é incorporada em sua essência, mas interpretada, a partir do sistema de códi­gos sensoriais que os constituem, pela consciência humana. Porém, a gran­de questão psicossocial e filosófica não está apenas na compreensão da fase inicial da primeira etapa da interpretação, mas, principalmente, na com­preensão do que ocorre na fase posterior da primeira etapa da interpreta­ção e nas etapas posteriores, pois é através delas que ocorre a leitura da memória, a construção dos pensamentos e a formação da consciência exis­tencial.
Na fase inicial da primeira etapa da interpretação, o estímulo observa­do é "a-histórico", mas na fase final dessa etapa ele conquista um significa­do histórico. O fenômeno da autochecagem da memória, como o próprio nome revela, é responsável por fazer uma ponte de relação histórica entre um estímulo extrapsíquico (ex., a imagem de uma flor, uma atitude agres­siva, as palavras contidas numa frase etc.) e a história intrapsíquica arquiva­da na memória. Quando o fenômeno da autochecagem lê a memória, a partir das matrizes dos pensamentos essenciais "a-históricos", se completa, como eu disse, a primeira grande etapa da interpretação.
A segunda etapa da interpretação ocorre através da operacionalização em si da leitura da história intrapsíquica, gerando a qualidade das cadeias psicodinâmicas das "matrizes dos pensamentos essenciais históricos". A autochecagem da memória é rapidíssima, pois se processa em milésimos de segundos, e com extremo acerto, pois tem de encontrar as informações específicas em meio a bilhões de opções. Ela gera os pensamentos essen­ciais históricos. Estes se distanciam dos pensamentos essenciais "a-históricos", produzidos antes da autochecagem da memória e, conseqüentemen­te, da realidade essencial do "outro", pois acrescenta as "cores" e "formas" históricas do observador, do interpretador.
A história intrapsíquica é formada de bilhões de matrizes físico-químicas (RPSs), que representam psicossemanticamente o universo das expe­riências existenciais vivenciadas em toda a trajetória de vida, da aurora da vida do feto até o último suspiro da existência. Como já comentei, chamo as matrizes físico-químicas arquivadas em áreas específicas do córtex cere­bral de RPS, representações psicossemânticas, pois representam, ainda que pobre e restritivamente, o significado, a semântica das complexas experiên­cias psíquicas, tais como insegurança, reações fóbicas, prazer, idéias, análi­ses, pensamentos antecipatórios, preocupação existencial, etc.
Didaticamente as RPS podem ser divididas em dois grupos: as RPS diretivas (RPSd) e as associativas (RPSa). As RPSd representam as expe­riências psíquicas semelhantes, ou seja, as idéias, sentimentos de prazer, de raiva, de insegurança etc, que têm uma identidade próxima em conteúdo das que vivenciamos no presente ou contemplamos no "outro". As RPSa representam as experiências associativas que, embora não sejam produzi­das pelos mesmos estímulos e pela mesma fonte emanadora (a mesma pessoa) e, conseqüentemente, não gerem experiências psíquicas com iden­tidades próximas (mesmas inseguranças, fobias, prazeres, idéias), guardam uma relacionalidade associativa com os pensamentos essenciais "a-históricos".
Quando alguém nos ofende, não apenas autochecamos (primeira eta­pa) na memória as RPSs diretivas, com identidades próximas, ou seja, rela­tivas ao tipo exato de ofensa emanado pelo tipo exato de ofensor, mas autochecamos também um grupo de RPSs associativas, ligadas a outros tipos de ofensas produzidas por outros tipos de pessoas e em outros tipos de ambiente. Tudo ocorre em frações de segundos, gerando, em última análise, as matrizes dos pensamentos essenciais históricos (segunda etapa), que atuarão psicodinamicamente no campo de energia emocional (terceira etapa).
Por exemplo, se soubéssemos que seremos ofendidos em público por determinada pessoa, poderíamos nos preparar para ficar indiferentes à natureza da ofensa e às repercussões sociais da mesma. Porém, dificilmente teríamos êxito completo na postura de indiferença intelecto-emocional diante desse estímulo. Se tivéssemos arquivado em nossas histórias intrapsíquicas um grupo de RPSs diretivas (semelhantes ao conteúdo da ofensa) e associativas (ligadas à aversão a críticas, a inseguranças em relação ao que os outros pensam e falam de nós, a preocupações com nossas imagens sociais etc), elas seriam lidas automaticamente pelo fenômeno da autochecagem da memória (primeira etapa da interpretação), gerando ri­cas cadeias psicodinâmicas das matrizes de pensamentos essenciais históri­cos (segunda etapa da interpretação), que excitariam e transformariam a energia emocional (terceira etapa da interpretação), gerando experiências ansiosas e angustiantes, antes da assimilação consciente do estímulo extrapsíquico (ofensa). Paralelamente à transformação da energia emocio­nal, as matrizes de pensamentos essenciais históricos sofreriam uma leitura virtual (quarta etapa da interpretação), produzindo os pensamentos dialéticos e antidialéticos. Segundos ou frações de segundos depois de serem produ­zidos, os pensamentos dialéticos e antidialéticos financiariam a produção do "eu" (quinta etapa da interpretação).
Após ter sido formado na quinta etapa da interpretação, o eu poderia, no exemplo citado, gerenciar a construção de pensamentos e a transforma­ção da energia emocional já iniciada pelos fenômenos inconscientes. Ele poderia ler a história intrapsíquica e questionar a natureza da ofensa e as repercussões sociais da mesma, e gerenciar a angústia e a construção de pensamentos negativos. O homem só tem condições de gerenciar a inteli­gência, e sair da condição de vítima psicossocial, na quinta etapa da inter­pretação. Por isso, é mais fácil ele ser vítima do que agente modificador da sua história.
As matrizes de pensamentos essenciais históricos produzidas (na segun­da etapa da interpretação) a partir da atuação do fenômeno da autochecagem da memória (primeira etapa) são inconscientes e seguem dois caminhos psicodinâmicos concomitantes no campo de energia psíquica.
Primeiro, excita a energia emocional, causando as primeiras experiên­cias emocionais, as primeiras impressões e reações (terceira etapa), que são produzidas sem a consciência e controle do "eu". A transformação da ener­gia emocional pelas cadeias de pensamentos essenciais representa a tercei­ra etapa do processo de interpretação. Segundo, funciona como pista de decolagem virtual (leitura virtual) para a produção das cadeias psico­dinâmicas dos pensamentos dialéticos e antidialéticos.
A leitura virtual das cadeias de pensamentos essenciais e a conseqüente formação dos pensamentos dialéticos e antidialéticos representam a quarta etapa do processo de interpretação. A quinta etapa, como disse, é produzida pela formação do "eu" a partir da produção inicial dos pensamentos dialéticos e antidialéticos. O eu é mais sofisticado do que simplesmente pensar, é a consciência de que pensa e que pode administrar ou gerenciar a construção de pensamentos.
O eu é a consciência dos parâmetros intra-históricos (contidos na me­mória) e extrapsíquicos. Sem o eu não teríamos a consciência dos parâmetros espaço-temporais e da realidade do mundo que somos (intrapsíquico) e em que estamos (extrapsíquico); sem o eu um segundo e a eternidade não teriam a menor diferença.
Os pensamentos dialéticos e antidialéticos produzem um "ambiente consciente" que propicia ao "eu" ler a história intrapsíquica e produzir pensamentos debaixo dos critérios da maturidade da inteligência.

TORNANDO-SE AGENTE NA QUINTA ETAPA DO HOMEM COMO VÍTIMA E AGENTE MODIFICADOR DA SUA HISTÓRIA

Há muito o que falar sobre essas cinco etapas da interpretação e sobre o conjunto de variáveis que co-interferem nelas e que geram os processos de construção dos pensamentos, da formação da consciência existencial, da formação da história intrapsíquica e da transformação da energia emo­cional. As etapas da interpretação e os quatros processos de construção da inteligência são temas para vários livros.
As quatros primeiras etapas ocorrem em frações de segundos. Nessas etapas, o homem é vítima do processo de co-interferência das variáveis e dos fenômenos espetaculares que atuam nos bastidores da mente [Homo interpres) e que constroem os pensamentos dialéticos e antidialéticos. Po­rém, na quinta etapa, os pensamentos conscientes formam o eu [Homo intelligens). Ela tem uma durabilidade de segundos ou minutos. Nessa eta­pa, o homem tem condições de se tornar um agente histórico de mudanças psicossociais, administrando sua construção de pensamentos, suas reações emocionais e, conseqüentemente, seu comportamento.
Nas quatro primeiras etapas, podemos dizer que ele é também vítima da sua carga genética e das circunstâncias intrapsíquicas e psicossociais que atuam nos sistemas de variáveis da interpretação. Porém, como disse, a partir da produção de pensamentos dialéticos e antidialéticos ocorre um espetáculo intelectual indescritível, ou seja, a formação do "eu", que tem a liberdade criativa de operacionalizar a leitura da história intrapsíquica, pro­duzir (ainda que inconscientemente) os pensamentos essenciais históricos, fazer a leitura virtual dos mesmos, produzir pensamentos dialéticos e antidialéticos e transformar o homem da condição de vítima histórica em agente modificador de sua história psicossocial.
Dependendo da capacidade de liderança do eu, ele poderá superar sua solidão paradoxal, produzir pensamentos coerentes, produzir arte, racio­nalizar estímulos estressantes, ou, então, viver às raias da destrutividade social, da insensibilidade emocional, da insociabilidade, das doenças psí­quicas.

O FENÔMENO DA PSICOADAPTAÇÃO E SUA ATUAÇÃO PSICODINÂMICA NO PROCESSO DE INTERPRETAÇÃO

O fenômeno da psicoadaptação atua na terceira etapa do processo de interpretação e afeta a quarta e a quinta etapa. O fenômeno da psicoadap­tação é uma "incapacidade" da energia emocional e motivacional de se submeter aos mesmos processos de transformações essenciais, diante da exposição das matrizes idênticas ou semelhantes de pensamentos essen­ciais históricos e, conseqüentemente, dos mesmos estímulos extrapsíquicos.
O fenômeno da psicoadaptação talvez seja um fenômeno intrapsíquico de difícil entendimento, se levarmos em conta sua atuação psicodinâmica na terceira etapa da interpretação e sua influência no processo de constru­ção dos pensamentos dialéticos, antidialéticos e na formação da consciên­cia existencial. Porém, possui exemplos fáceis de serem observados no cotidiano.
Uma pessoa, quando compra um carro novo, tem prazer em observá-lo e dirigi-lo. Porém, após um mês da compra, ela contemplou inúmeras ima­gens desse carro e produziu milhares de matrizes de pensamentos essen­ciais históricos, através da atuação do fenômeno da autochecagem da me­mória. A freqüente exposição das mesmas imagens e, conseqüentemente, das mesmas matrizes de pensamentos essenciais, faz com que a atuação dessas matrizes no campo de energia emocional (terceira etapa) não tenha a mesma eficiência psicodinâmica em produzir as mesmas emoções, dimi­nuindo o encanto emocional e o apreço intelectual pelo objeto. Depois de um determinado período, o proprietário do veículo é capaz de entrar den­tro dele como entra no banheiro da sua casa, sem nenhuma emoção, pois adaptou psiquicamente sua energia emocional a ele.
Uma mulher compra uma roupa e, depois de usá-la algumas vezes, se adapta psiquicamente a ela e não sente o mesmo nível de prazer como das primeiras vezes em que a usou. Os objetos prazerosos, à medida que são interpretados ao longo do tempo, diminuem sua capacidade de provocar o prazer no ser humano.
A atuação do fenômeno da psicoadaptação é um processo inevitável. Todos os estímulos que interpretamos, sejam dolorosos ou prazerosos, com o passar do tempo não provocam a mesma emoção. O fenômeno da psicoadaptação atua em toda trajetória psicossocial do homem.
Uma mãe, ao perder um filho, depois de meses que ocorreu a perda, ainda que essa perda seja dramática, com o passar do tempo não sente a mesma intensidade da dor como a ocorrida nos primeiros momentos da perda. A saudade permanecerá e nunca será resolvida, mas essa mãe dimi­nui fatalmente a intensidade da sua dor. A dor só permanecerá em níveis altos se essa mãe, ou qualquer pessoa que perde alguém que ama, vivenciar uma contínua produção de cadeias de pensamentos que resgate múltiplas experiências passadas ligadas à pessoa que faleceu. Nesse caso, a mul­tiplicidade das experiências psíquicas, expressas por uma multiplicidade de pensamentos essenciais, dificulta a operacionalização espontânea psicodinâmica do fenômeno da psicoadaptação, estabelecendo uma per­petuação da dor, um luto crônico.
O fenômeno da psicoadaptação, por atuar em todos os estímulos dolo­rosos e prazerosos, compromete a previsibilidade lógica das reações emo­cionais. A transformação da energia emocional ultrapassa os limites da lógi­ca, revelando a complexidade do campo de energia psíquica.
O fenômeno da psicoadaptação se processa quando há exposição aos mesmos estímulos, ou a estímulos semelhantes, que geram conseqüente­mente matrizes de pensamentos essenciais históricos também semelhantes, acarretando uma redução involuntária e inconsciente da transformação da energia emocional e uma restrição no processo de gerenciamento do "eu" dessa transformação, que comprometem a. arte da contemplação do belo e a expansão do prazer, da motivação.
O fenômeno da psicoadaptação alivia as dores, mas também reduz os prazeres, insensibiliza a emoção, retrai a indignação e refreia as reações. O homem não é um grande líder de sua emoção, e isso se deve tanto ao fluxo vital da energia psíquica quanto à atuação do fenômeno da psicoadaptação.
Lembro-me de que, no meu primeiro ano de Medicina, ao terem con­tato com dezesseis cadáveres na aula inicial de anatomia algumas estudan­tes ficaram chocadas, saindo imediatamente da sala. Realmente, o impacto daquelas imagens provocava um turbilhão de tensões e nos fazia entrar em contato com a fragilidade humana. Porém, com o passar do tempo, com a freqüente exposição às mesmas cenas, produzia-se um grupo de matrizes de pensamentos essenciais que atuava psicodinamicamente no campo de energia emocional, diminuindo paulatinamente o constrangimento emo­cional e as reflexões existenciais. O fenômeno da psicoadaptação atuara naquelas colegas que não conseguiram participar da primeira aula, e, assim, com o passar do tempo, elas até brincavam com os outros colegas movimentando os braços dos cadáveres como se eles estivessem vivos.
No campo da produção intelectual, o fenômeno da psicoadaptação contribui com o processo de superação da "solidão paradoxal da consciên­cia existencial", estimulando a expansão da criatividade artística, literária, científica etc. A arquitetura, a música, a literatura, a moda, o estilo dos aparelhos eletroeletrônicos, o design dos carros etc, estão continuamente modificando-se, e isso não apenas pela necessidade do mercado e pelo desejo consciente do consumidor, mas pela atuação secreta, oculta, do fe­nômeno da psicoadaptação nos bastidores da mente, tanto dos produtores como dos consumidores. Os profissionais de marketing desconhecem que um dos maiores segredos do seu sucesso, tão ou mais importante do que sua criatividade, é a atuação do fenômeno da psicoadaptação, que leva o homem a reduzir inevitavelmente sua capacidade de sentir prazer diante da exposição aos mesmos estímulos.
A procura contínua daquilo que é novo, diferente, que rompe a mesmice, que extrapola a rotina, é devida, em grande parte, à atuação inconsciente do fenômeno da psicoadaptação. Sem ele, a rotina e a mesmice não seriam um tédio, não gerariam insatisfação e solidão. As palavras solidão, mesmice, rotina, tédio, e outras com semântica semelhante, existem nos dicionários das mais diversas línguas porque o fenômeno da psicoadaptação atua no processo de interpretação.
As artes se desenvolvem porque o fenômeno da psicoadaptação é, clan­destinamente, o seu grande companheiro, pois esse fenômeno conduz a uma redução inconsciente da contemplação do belo dos artistas, estimulando-os a expandir sua criatividade, e até reciclando seus estilos. Do mesmo modo, as correntes literárias, a arquitetura, os estilos musicais, a investiga­ção científica, estão em contínuo processo de transformação, de evolução, porque na clandestinidade da inteligência existe, não apenas uma rica pro­dução de matrizes de pensamentos essenciais históricos e que sofrem uma leitura virtual e se tornam os pensamentos dialéticos e antídialéticos, mas também uma atuação oculta do fenômeno da psicoadaptação, que reduz a energia emocional e motivacional e estimula novas experiências de prazer, de aventuras, de desafios, de crítica, rompendo a mesmice vigente. Essa frase sintetiza alguns processos de construção fundamentais da psique hu­mana.
O fenômeno da psicoadaptação é, portanto, estimulador da arte, da criatividade, da investigação científica, bem como um aliviador das emo­ções angustiantes diante das perdas, frustrações, estresses psicossociais, etc. Sem a operacionalidade do fenômeno da psicoadaptação, haveria uma perpetuação das dores psicossociais e uma retração da criatividade intelectual. Porém, sua atuação nem sempre é aliviadora e construtiva, mas pode ser extremamente destrutiva. Como a comunicação é mediada, as expe­riências psicossociais do "outro" têm de ser reconstruídas interpretativamente.
A interpretação do observador, além de reproduzir superficialmente a experiência do "outro", tem a agravante da operacionalidade do fenômeno da psicoadaptação, que gera uma insensibilidade emocional na terceira etapa do processo de interpretação, que o leva a se adaptar psiquicamente às misérias psicossociais desse "outro", fazendo com que o "eu", na quinta etapa da interpretação, se torne passivo diante das dores e necessidades do mesmo, gerando as omissões sociopolíticas históricas dos indivíduos e dos governos diante da violação dos direitos humanos.
A comunicação interpessoal mediada e o fenômeno da psicoadaptação podem, diante do superficialismo intelectual do eu, reduzir o desenvolvi­mento do humanismo, da cidadania e do desenvolvimento da capacidade de pensar criticamente, fazendo com que o homem seja vítima de sua his­tória psicossocial, e não um agente modificador da mesma. Isso pode tam­bém fazê-lo como disse, ser omisso sociopoliticamente diante da miséria do "outro" (o outro como indivíduo, como grupo social e como povo) ou ser um agente da destruição.
A maioria de nós somos vítimas de nossas histórias psicossociais ou omissos diante da miséria do outro. Uma minoria é agente modificador da sua história, agente expansor do humanismo, da cidadania e dos direitos humanos derivados da democracia das idéias.
Temos de nos perguntar em que situação psicossocial estamos. Temos de nos perguntar se somos meros passantes (transeuntes) existenciais, que passam pela vida sem criar raízes mais profundas dentro de si mesmos, ou se estamos nos interiorizando e expandindo nossa maturidade intelecto-emocional e aprimorando nosso humanismo e cidadania.
O conhecimento superficial da mente, bem como o empobrecimento do humanismo e da cidadania, não superam as barreiras da interpretação geradas pela comunicação mediada pelo fenômeno da psicoadaptação e pela co-interferência de um conjunto de outras variáveis. Não é incomum que os governantes das nações mais ricas se adaptem psiquicamente diante da miséria das nações mais pobres e se tornem omissos sociopoliticamente, desculpando e camuflando suas omissões através da preocupação com seus problemas domésticos.
Se acharmos que o problema do outro é de responsabilidade apenas da sociedade e das instituições sociais em que ele está inserido, estamos ne­gando o fantástico salto da memória instintivo-genética para a memória histórico-existencial que financia a construção de pensamentos e a forma­ção da consciência existencial, capazes de nos levar a compreender que, independentemente das distâncias geográficas, culturais, raciais, políticas, somos uma única espécie.
O processo socioeducacional superficialista impede-nos de ter uma macrovisão psicossocial e filosófica da espécie humana. Quem é que ouviu dos seus professores, na sua trajetória escolar, uma defesa "contínua" e "apaixonada" pela unidade da espécie humana, capaz de provocar uma conscientização sobre a perda do sentido psicossocial da espécie e sobre a necessidade vital de cooperação social intra-espécie; capaz de proclamar o espetáculo da construção dos pensamentos na mente da cada ser humano e de evidenciar a desinteligência e o desumanismo das discriminações? Provavelmente, nem ao menos ouvimos, ou pouco ouvimos, sobre a neces­sidade de aprender a nos colocarmos no lugar do outro e o analisarmos, para reconstruir interpretativamente, com menos distorções e mais adequa­ção, suas dores e necessidades psicossociais. Provavelmente, até mesmo uma parte significativa dos estudantes de Psicologia e de especialização em Psiquiatria desconhecem as complexas distorções passíveis de ocorrer no processo de interpretação e, por isso, não são treinados psicossocio-filosoficamente para aprender a reconstruir interpretativamente o "outro" e perceber suas dores e necessidades psicossociais, seus conflitos histórico-existenciais, a construção multifocal de seus pensamentos, sua dificuldade no gerenciamento dessa construção etc.
Se temos graves falhas socioeducacionais na compreensão do "outro", que dimensões não terão as falhas socioeducacionais que nos impedem de conquistar uma macrovisão intelectual da espécie humana? Nem ao menos percebemos que perdemos o sentido psicossocial de espécie. Temos um conhecimento superficial de que somos uma mesma espécie, mas "respira­mos idéias" e "sentimos emoções" como se não fôssemos. Até entre vizi­nhos freqüentemente há muito mais do que um pequeno espaço físico que os separam; há também enormes barreiras psicossociais. Mesmo nas rela­ções familiares, pais e filhos gastam horas e horas diariamente assistindo à TV ou navegando pela Internet, mas não gastam minutos sequer dialogan­do uns com os outros, explorando o mundo das idéias e das experiências.
O problema do homem deveria ser um problema da espécie humana, e o problema da espécie humana deveria ser um problema do homem. Não deveria haver intromissão na soberania sociopolítica, na cultura e nos direitos sociopolíticos de um cidadão em uma sociedade, mas deveria ha­ver, na plenitude, uma cooperação humanística "intersociedades", "intra-espécie", na solução dos problemas biopsicossociais de cada sociedade. Porém, infelizmente, apesar de conservarmos os laços genéticos, perdemos o sentido psicossocial de espécie, pois não compreendemos que o humanismo e a teoria da igualdade são decorrentes dos fenômenos que financiam a nossa capacidade de pensar e a nossa consciência existencial. Parafraseando Abraham Lincoln, devemos nos perguntar o que podemos fazer pela nossa espécie e não o que a nossa espécie pode fazer por nós.
Devido à síndrome da exteriorização existencial, à interpretação inade­quada do "outro" e à adaptação psíquica as misérias humanas, há uma tendência histórica de ocorrer violações dos direitos humanos irrigada com omissões sociopolíticas, o que compromete a viabilidade humanística da nossa espécie. Infelizmente, tem que haver nas sociedades modernas ex­pressivas pressões sociopolíticas por parte da imprensa ou das ONGs (orga­nizações não-governamentais) para que determinadas atitudes governamen­tais sejam tomadas, para que possa haver cooperação "intersociedade". Parece que, sem a pressão sociopolítica, as sociedades, principalmente as mais ricas, perdem a macrovisão da espécie humana e se tornam insensí­veis, adaptadas psiquicamente às misérias das nações mais pobres.
Como tenho dito, as sociedades humanas têm uma necessidade vital de políticos, empresários e líderes institucionais que tenham fome e sede de ser apenas homens. Homens que não ambicionem ser supra-humanos, semideuses, que o mundo gravite em torno deles, homens que elevem o padrão de sua humanidade. Homens que tenham uma macrovisão psicossocial e filosófica da espécie humana e a valorize mais do que seu grupo social de interesse. Homens que valorizem mais o mundo das idéias do que a estética social. Homens que se preocupem menos em inscrever seus nomes nos anais da história e mais com a práxis da cidadania, do humanismo e da democracia das idéias; homens que não apenas percebam suas necessidades psicossociais, mas também que aprendam a perceber as necessidades de sua sociedade.
Cientificamente falando, a cadeia de distorções ligadas à interpretação do "outro", impostas pela comunicação social mediada, pela insensibilida­de intelecto-emocional decorrente do fenômeno da psicoadaptação, pelo sistema de co-interferências das variáveis da interpretação ocorrida nos pro­cessos de construção dos pensamentos, só pode ser superada e, ainda as­sim, parcialmente, se o homem compreender esses mecanismos distorcidos, se compreender determinados limites e o alcance dos pensamentos dialéticos; se aprender a se interiorizar, a desenvolver a arte da dúvida e da crítica, e a gerenciar a construção de pensamentos com consciência crítica. A educa­ção tradicional, por ser exteriorizante e "a-histórico-crítico-existencial", é incapaz de desenvolver coletivamente essas funções nobres da inteligência, de formar engenheiros de idéias humanistas e pensadores que apreciem a democracia das idéias e tenham uma macrovisão da espécie humana. A educação que forma pensadores e engenheiros de idéias é aquela que esti­mula o processo de interiorização, o exercício da arte de pensar, a compreensão da formação da inteligência, a revisão da história intrapsíquica, a compreensão dos alicerces básicos do processo de interpretação, a arte de ouvir, o apreço pelo humanismo e pela democracia das idéias etc.
Na vida social coloquial, ter a sensibilidade de aprender a se colocar no lugar do outro e perceber suas dores e necessidades psicossociais já é um grande avanço humanístico. Mas, infelizmente, acredito que a maioria das pessoas só tem sensibilidade para perceber suas próprias angústias, desejos e necessidades. O mundo do outro é quase imperceptível a elas; por isso, quando ouvem o outro elas compreendem apenas a semântica "seca" das palavras que ele profere, mas não os segredos que essas palavras expres­sam nas entrelinhas, nem o que a expressão facial e o silêncio traduzem.
O mutismo social, expresso por falarmos muito do "mundo em que estamos", mas falarmos pouco sobre o "mundo que somos", revela o superficialismo das relações sociais que construímos. Podemos conviver durante décadas com pessoas e não conhecê-las intimamente, não penetrar em seus mundos intrapsíquicos e nem permitir que elas penetrem em nos­sos mundos. Numa sociedade mutista, a ditadura do preconceito satura as idéias e provoca um grande receio de se falar sobre o mundo que somos. Vivemos em sociedade, mas ilhados dentro de nós mesmos, como parcei­ros da solidão. Por isso, muitas pessoas se sentem sós, mesmo estando no meio de uma multidão.
Lembro-me de um paciente que se adaptou à miséria psíquica. Havia vinte anos era portador de depressão e síndrome do pânico. Passou por diversos psiquiatras e tomou todo tipo de antidepressivos disponíveis no mercado farmacêutico, todavia, continuava doente. Perdeu o encanto pela vida e esperança de ser saudável. Viver era um tédio para ele. Trabalhar era angustiante, pois tinha fobia social, ou seja, detestava freqüentar lugares públicos: festas, bancos. Embora fosse um industrial, não tinha prazer de conviver com seus funcionários. Dizia-me que perder ou ganhar dinheiro era a mesma coisa. Na realidade, esse paciente não apenas estava profun­damente doente, mas também havia se psicoadaptado a sua doença. O maior problema não é a "doença do doente", mas o "doente da doença", ou seja, a disposição do eu em atuar no mundo psíquico e de não aceitar ser um doente.
Se o terapeuta provoca a inteligência do seu paciente, se o estimula a resgatar a liderança do eu do seu mundo psíquico, este rompe a psicoadaptação à doença e pouco a pouco aprende a gerenciar as cadeias de pensamentos e suas emoções angustiantes. O resultado? A liberdade no território da emoção e do intelecto. O paciente em questão foi mais um dos que saíram da condição de vítima da sua história para ser um agente modificador dela.
O psicoterapeuta, ao interpretar seus pacientes, pode-se adaptar psiqui­camente às suas misérias, ficando insensível a elas, e produzir interpreta­ções totalmente distorcidas, que dizem mais a respeito de si mesmo do que à personalidade dos seus pacientes.
Do mesmo modo, os pais podem-se adaptar psiquicamente às necessi­dades psicossociais dos seus filhos e não saber doar-se e trocar experiências com eles. Pais e filhos se tornam, assim, um grupo de estranhos vivendo dentro de uma mesma casa. Os professores podem também se adaptar aos comportamentos dos seus alunos e não perceber que, atrás de cada reação de agressividade, timidez ou alienação, há um mundo a ser descoberto, um ser sofisticado que produz complexas cadeias de pensamentos e tem com­plexas necessidades psicossociais.



* * *
Este e-book foi digitalizado pela equipe do Semeadores da Palavra e-books evangélicos.
Se não encontrou essa informação na 2ª página, então você o baixou de um site desonesto, que não respeita o trabalho dos outros, e retirou os créditos.
Venha se abastecer de literatura evangélica diretamente da fonte:
Fórum (para pedidos e trocas de idéias):

Mas o livro ainda não acabou.
Continue na página seguinte!

* * *


Capítulo 10

A Crise da Psicologia e da Psiquiatria


AS RAÍZES DAS DISCRIMINAÇÕES INTELECTUAIS

Vivemos num mundo saturado de informações prontas, acabadas, mas que não estimula o homem a pensar e desenvolver a consciên­cia crítica. Os livros de auto-ajuda, que saturam as sociedades modernas, têm sua utilidade, mas freqüentemente pensam pelo leitor, pro­duzem respostas prontas, o que pouco estimula a arte de pensar e o desen­volvimento da inteligência. Por isso, insistirei continuamente, ao longo des­tes textos, na necessidade vital de conhecermos as origens da inteligência, os limites e alcance dos pensamentos, o conceito do humanismo e da de­mocracia das idéias e de expandirmos a arte da pergunta, a arte da dúvida, a arte da crítica, o processo de interiorização, que são alguns dos pilares fundamentais do desenvolvimento da inteligência e, conseqüentemente, da formação do homem como pensador e engenheiro de idéias.
As origens da inteligência são produzidas por fenômenos que constro­em multifocalmente os pensamentos. A atuação psicodinâmica desses fe­nômenos é inerente ao homem, ou seja, não depende do controle humano nem da condição social; por isso ela está presente tanto nos seres humanos que vivem em miséria absoluta e no anonimato social como naqueles que vivem gravitando em torno da riqueza e do estrelato social. Assim, inde­pendentemente das gritantes desigualdades humanas, todo ser humano possui o privilégio de ter uma inteligência multifocal. Porém, possuí-la não quer dizer ter uma inteligência qualitativamente desenvolvida.
O desenvolvimento qualitativo da inteligência é conquistado por um conjunto sofisticado de procedimentos intrapsíquicos e socioeducacionais. Esses procedimentos, como veremos, nem sempre são produzidos num ambiente de cultura e escolaridade. Há muitas pessoas que têm elevada escolaridade e abastada cultura, mas sua inteligência não se expandiu; por isso seu mundo das idéias é pequeno, por isso elas não conseguem pensar além da esfera dos seus problemas e dificuldades.
Aparentemente o homem é muito informado e inteligente, mas é emo­cionalmente frágil, e sua inteligência geralmente é unifocal, pois não sabe caminhar dentro de si mesmo, pensar criticamente e analisar multifocalmente as causas históricas e as circunstâncias psicossociais que envolvem suas relações, conflitos, angústias existenciais, estímulos estressantes.
A crise de interiorização e a carência de compreensão mais profunda dos processos de construção da inteligência atingem, também, uma parte significativa da assim chamada casta dos intelectuais ou intelligentsia. Pro­vavelmente, uma parte significativa dos psicoterapeutas, psiquiatras, soció­logos, psicopedagogos, juristas, professores universitários, cientistas etc, desconhece a operacionalidade e a co-interferência dos fenômenos que atuam nos bastidores da mente e que geram, em fração de segundo, as complexas cadeias psicodinâmicas dos pensamentos dialéticos e antidialéticos que financiam a consciência existencial do mundo em que estamos e que somos.
Provavelmente, essas pessoas desconhecem também a natureza, os li­mites e o alcance do conhecimento, usado como instrumento educacional, social e científico, e o sistema de encadeamento distorcido, que ultrapassa os limites da lógica, ocorrido nos processos de construção do conhecimen­to dialético e que nos faz, conseqüentemente, incorporar a "democracia das idéias" como uma necessidade vital no processo de organização das relações sociais.
Talvez poucos conheçam sobre a leitura multifocal da história intra-psíquica arquivada na memória e sobre o complexo sistema de variáveis que co-interferem nos bastidores inconscientes da inteligência para gerar o processo de interpretação e, conseqüentemente, os processos de construção dos pensamentos, a formação da consciência existencial e o processo de transformação da energia emocional. Por isso, provavelmente, elas também desconhecem quais os sistemas de relações que existem entre a verdade científica e a verdade essencial (real), e quais os riscos e benefícios que exis­tem na utilização de uma teoria psicológica, psiquiátrica, sociológica, edu­cacional, etc, usada como suporte da interpretação no processo de observa­ção, interpretação e produção do conhecimento científico.
O status de ser um "intelectual" é um jargão social inadequado e preconceituosista, pois discrimina a grande massa de seres humanos que, embora não possuam cultura acadêmica e não tenham títulos de pós-graduação, têm igualmente os mesmos complexos e sofisticados processos de construção dos pensamentos. Tanto a idéia sofisticada de um intelectual quanto a idéia simplista de uma pessoa iletrada são construídas a partir de uma indescritível leitura multifocal inconsciente da memória. Essa lei­tura, como estudaremos, é conduzida por um conjunto de fenômenos intrapsíquicos que atuam, em milésimos de segundo, nos bastidores da mente.
Esses fenômenos lêem, com incrível precisão, as informações na me­mória e, em meio a bilhões de opções, utilizam-nas para construir psico-dinamicamente tanto as cadeias das idéias "sofisticadas", ou seja, as inte­lectualmente brilhantes, como as consideradas "simplistas". Sem esses fenômenos, inerentes à mente humana, não apenas não existiriam os ho­mens intelectualmente simples, mas também os intelectuais, os pensado­res, os cientistas; não existiria o Homo sapiens. Não seríamos uma espécie pensante.
Todos somos devedores à gratuidade e à operacionalidade espontânea dos fenômenos que lêem a memória e constroem as cadeias psicodinâmicas dos pensamentos. Não se sabe como lemos e utilizamos as informações constituintes das cadeias dos pensamentos, pois elas são utilizadas e organi­zadas em fração de segundo, antes de termos consciência existencial dos próprios pensamentos. Portanto, não há intelectuais e/ou iletrados; somos todos ignorantes em relação aos fenômenos que nos constituem como seres pensantes. Somos apenas, intelectualmente, mais ou menos ignorantes uns do que os outros...
Os títulos acadêmicos não são grandes referenciais que evidenciam a qualidade do processo de exploração da mente e desenvolvimento das funções mais nobres da inteligência. É possível ter excelente cultura e títu­los acadêmicos de graduação e pós-graduação, mas nunca ter aprendido a se interiorizar e conhecer, ainda que minimamente, os processos de cons­trução dos pensamentos, da consciência existencial e da história intrapsíquica, que são produzidos num fluxo vital espontâneo e inevitável no âmago da mente.
A grandeza de um homem não é dada pelo seu status social, sucessos sociointelectuais, condição financeira, títulos acadêmicos (ex. doutorado, Ph.D.), mas pelo quanto ele é um caminhante nas avenidas do seu próprio ser, pelo quanto ele é inteligente multifocalmente, pelo quanto ele é um pensador e um engenheiro qualitativo de idéias, que expande e aprimora as funções mais nobres da mente. Ainda que haja inúmeras diferenças de personalidade e diversas diferenças sociais na construção das sociedades, a postura de considerar uma minoria como portadora do status de intelectu­al, porque possui cultura e títulos socioacadêmicos, tem de ser revista, pois é discriminatória e desinteligente. Todos os seres humanos possuem igual­mente os mesmos fenômenos psicodinâmicos que financiam a construção dos pensamentos e da consciência existencial, enfim, da inteligência multifocal.
A grandeza de um homem está na grandeza do seu ser, e não na sua notoriedade social. As funções mais nobres e humanísticas da mente se iniciam à medida que alguém começa a se interiorizar, a se colocar como um aprendiz no seu processo existencial e a perceber suas limitações inte­lectuais diante da inesgotabilidade dos processos de construção da inteli­gência.
Todos somos limitados na compreensão das complexas "tramas de energia psíquica", que nos constituem psicodinamicamente como seres humanos que pensam, têm consciência de que pensam e podem adminis­trar os processos de construção dos pensamentos.
O nascedouro e o desenvolvimento de pensamentos ocorrem na esfera inconsciente da psique humana. Diante da uma visão macrocientífica so­bre os processos de construção dos pensamentos, compreenderemos que, ainda que tenhamos diferenças genéticas e socioculturais e diferenças qua­litativas no processo de gerenciamento da construção dos pensamentos, somos mais iguais do que podemos imaginar. Este livro, ao desenvolver um corpo teórico sobre os processos de construção ocorridos na mente, evi­dencia que cada ser humano é extremamente complexo e digno da mais alta respeitabilidade; até mesmo as crianças deficientes mentais o são. Por isso, tanto as discriminações humanas como a supervalorização de algumas minorias de intelectuais, líderes políticos, líderes místicos, artistas, etc, são atitudes desinteligentes e desumanísticas.

A CRISE DA PSICOLOGIA E DA PSIQUIATRIA, A DISCRIMINAÇÃO PELA FILOSOFIA E A NECESSIDADE DE TEORIAS MULTIFOCAL

A Psicologia e a Psiquiatria ainda se encontram nos estágios iniciais do desenvolvimento teórico. Quem tem o mínimo de compreensão sobre o que é uma teoria, como ela se organiza, se fundamenta e é usada como suporte da interpretação, assim como sobre o que é o conhecimento, seus limites, alcance, lógica, validade e práxis, sabe que a Psicologia e a Psiquia­tria, em detrimento de possuírem inúmeras teorias, avançaram apenas al­guns degraus na escala inesgotável de conhecimento sobre a psique humana.
Um dos grandes obstáculos ao desenvolvimento teórico na Psiquiatria e na Psicologia é que elas possuem um objeto de estudo — a psique, alma, ou mente — intangível sensorialmente e inacessível essencialmente. Tal dificul­dade investigatória tem propiciado a produção de diversas teorias psicoló­gicas e psiquiátricas com postulados, definições, sistemas de conceitos, hi­póteses e variáveis intrapsíquicas distintas. Por isso, não se intercomunicam nem se expandem mutuamente.
O cientista da medicina, por exemplo, um cirurgião, rebate a pele e a musculatura e penetra na intimidade do órgão que estuda. Além disso, ele pode extrair tecidos desses órgãos e analisá-los em laboratório. Assim, seu objeto de estudo se torna tangível ao seu sistema sensorial. O cientista da química promove reações, utiliza instrumentos de medição e verificação, podendo, assim, observar fenômenos, selecionar dados, interpretá-los e produzir conhecimento sobre eles. Porém, o cientista da Psicologia e da Psiquiatria não tem a mesma facilidade para observar, interpretar e produ­zir conhecimento sobre a psique humana: os fenômenos intrapsíquicos, o processo de construção dos pensamentos, de formação da consciência exis­tencial, de transformação da energia emocional.
Como os cientistas da Psicologia e da Psiquiatria podem discursar teori­camente sobre a intimidade da psique humana, se ela é inacessível essen­cialmente e intangível sensorialmente? Como poderão investigar os com­plexos processos de construção dos pensamentos, se não se sabe do que se constitui a natureza intrínseca da energia psíquica, como se organizam os pensamentos e se descaracterizam na mente? Como se organiza a energia emocional em fobias, angústias, prazeres e humores deprimidos? As per­guntas são amantes das dúvidas. Elas evidenciam nossas limitações intelec­tuais e investigatórias. Temos, até mesmo, limitações para explicar o que é a essência intrínseca de uma dor emocional e o que é a consciência dessa dor. O discurso teórico é contracionista até para explicar quais são os limi­tes e as relações entre a consciência existencial da dor e a natureza essen­cial dessa dor.
A Psicologia e a Psiquiatria discursam sobre um mundo inacessível e intangível. Além da complexidade do processo de investigação dos fenô­menos psíquicos, há, como estudaremos, toda uma cadeia de distorções da interpretação que um teórico pode produzir durante o processo de obser­vação, aplicação metodológica e análise de dados, que macula sua produ­ção intelectual e contrai a compreensão de variáveis universais que pode­riam financiar uma intercomunicação da sua teoria com outras teorias. Pro­duzir ciência teórica sobre a psique é mais complexo do que imaginamos, ainda que possamos ser criteriosos.
O grande problema da Psicologia e da Psiquiatria, bem como de outras ciências, não é produzir teorias, mas romper seus apriscos teóricos, intercomunicar suas idéias, mesclar seus postulados, conjugar seus conceitos, afinar suas definições, organizar suas derivações e criar avenidas co­muns de pesquisa sob o prisma de variáveis universais.
Ainda hoje existem dúvidas fundamentais sobre a psique que não fo­ram minimamente resolvidas pelas teorias psicológicas e psiquiátricas. Às vezes, evita-se discutir essas dúvidas, devido à ansiedade e polêmica que geram. O homem possui uma mente ou psique que está além dos limites do cérebro ou ela é intrinsecamente o próprio cérebro, ou seja, fruto do espetáculo do metabolismo cerebral? Esta pergunta nunca foi respondida pela ciência, a não ser no campo da especulação. Porém, sem respondê-la, as ciências que norteiam a psique sempre terão um grande obstáculo em sua expansão qualitativa.
Apesar do conhecimento sobre a natureza da energia psíquica ser a tese das teses na ciência, por referir-se à essência intrínseca que nos consti­tuem como seres que pensam e sentem, e, portanto, ser de fundamental importância para o homem e para os destinos da própria ciência, esta pró­pria foi omissa e tímida em pesquisá-la. Devido à complexidade e polêmi­cas que envolvem a natureza intrínseca da psique humana, a ciência, com exceção da Filosofia, preferiu abandoná-la e deixá-la para ser discutida apenas no campo da religiosidade. Essa atitude omissa e tímida gerou um caos teórico na Psiquiatria, na Psicologia e nas demais ciências psicossociais. Depois de desenvolver neste livro o corpo teórico sobre os processos de construção dos pensamentos e da formação da consciência existencial, de­fenderei em outra publicação uma tese sobre este assunto, que poderá trazer diversas implicações e conseqüências nestas ciências.
Somos seres pensantes, produzimos ciência, arte, construímos relações humanas, mas não sabemos, o que somos intrapsiquicamente, como se trans­forma, se organiza, se desorganiza e se reorganiza a energia psíquica. A ciência é o mundo das idéias mas, como se processa o nascedouro das idéias, como se organizam as cadeias de pensamentos? O que ocorre com a energia psíquica no pré-pensamento, ou seja, milésimos de segundo antes de se transformarem em idéias, pensamentos?
As ciências que investigam direta e indiretamente a psique humana talvez nem saibam precisar em que estágio de desenvolvimento estejam. Misticismos, psicologismos e "achismos", que expressam produções de conhecimentos sem embasamento científico, têm saturado as sociedades e contaminado essas ciências, trazendo grande confusão teórica.
Precisamos de teorias multifocais capazes de explicar os processos de construção dos pensamentos, a formação da consciência existencial, a trans­formação da energia psíquica, enfim, o funcionamento psicodinâmico e histórico-existencial da mente humana. Porém, tenho a impressão de que a produção de teóricos na Psicologia se reduziu a partir das últimas décadas do século XX. A grande maioria dos pensadores e cientistas que investi­gam a psique inibiu-se na produção de novas teorias. É mais fácil e confor­tável intelectualmente produzir conhecimento dentro dos limites de uma teoria do que reciclá-la criticamente, reorganizá-la e expandi-la ou, então, partir para um motim teórico e produzir uma nova teoria. Minha produção de conhecimento, como comentarei, foi produzida durante vários anos nos trilhos do motim teórico e, depois, se converteu nos trilhos da democracia das idéias.
Apesar do número reduzido de teóricos da Psicologia, expandiu-se a produção destes nas neurociências. É inegável que a Psicologia perdeu e tem perdido cada vez mais espaço acadêmico-científico para as neurociên­cias, que incluem a Psiquiatria biológica, a Neurologia, a Psicofarmacologia, a Fisiologia cerebral, a Bioquímica cerebral.
Com a expansão das neurociências, surgiram os postulados sobre a desorganização metabólica dos neurotransmissores cerebrais, dos quais a serotonina atualmente tem figurado como estrela na gênese das depres­sões, e também sobre as escalas de comportamentos, as técnicas do tipo estímulo-respostas, as técnicas de avaliação de diagnóstico e desempenhos clínicos, o mapeamento do cérebro, a cintilografia computadorizada, os exames laboratoriais, etc. Porém, ainda que a produção de conhecimento e as técnicas das neurociências sejam respeitáveis e relevantes, as questões fundamentais da psique humana permanecem abertas, irresolúveis. Por exemplo, o postulado sobre os neurotransmissores pode explicar alguma influência genético-metabólica na gênese das depressões, porém nada ex­plica sobre a natureza intrínseca, a organização e desorganização da ener­gia emocional depressiva, nem sobre a complexa leitura da memória e muito menos sobre a sofisticada construtividade das cadeias de pensamen­tos de conteúdo angustiante, que acompanha muitos tipos de depressão.
Um dos grandes problemas da ciência não é produzir respostas, mas formular perguntas. Perguntas abrem as avenidas das respostas. Perguntas mal formuladas geram respostas redutoras, inadequadas e/ou superficiais. A dimensão das perguntas determina a dimensão das respostas, embora as respostas tenham invariavelmente uma dívida filosófica com as perguntas. Cada resposta não é um fim em si mesma, mas é o começo de novas perguntas. Por isso, a arte da formulação de perguntas é fundamental à expansão da ciência.
As teorias das neurociências precisam se expandir e se intercomunicar com as teorias psicológicas; se isso não ocorrer, o desenvolvimento científi­co será seriamente comprometido. Teremos de um lado os pensadores organicistas que supervalorizam o cérebro e acreditam que a alma é pura­mente química, o que é um absurdo. E de outro, pensadores da psicologia que desvalorizam qualquer influência do metabolismo cerebral na constru­ção dos pensamentos e das reações emocionais, o que também é igualmen­te um absurdo. O maior mistério da ciência não está no espaço, está na mente humana. Está na convivência de um campo de energia que coabita, coexiste e cointerfere continuamente com o metabolismo cerebral. Não creio que haja um postulado mais complexo e importante do que este.
A redução do desenvolvimento teórico na Psicologia não se deve ape­nas à diminuição atual da safra de grandes teóricos. Freud, Jung, Adler, Sullivan, Erich Fromm, Roger, Viktor Frankl, Lewin, Allport, Kurt Goldstein, Piaget, Lacan etc, são exemplos da safra de pensadores da Psicologia. As causas desse entrave teórico são, como disse, multifocais. São elas: 1. As dificuldades intransponíveis de promover uma composição dos elementos que constituem as teorias, tais como os postulados, as definições, os concei­tos, as derivações teóricas; 2. A ausência de variáveis universais, capazes de produzir avenidas conjuntas de pesquisa e intercomunicação teórica; 3. A intangibilidade sensorial e inacessibilidade essencial dos fenômenos intrapsíquicos, que geram grandes dificuldades no processo de observação e interpretação; 4. Os sistemas de encadeamentos distorcidos ocorridos nos bastidores da construção dos pensamentos do cientista teórico; 5. A produ­ção de teorias com linguagens dialéticas distintas. Além disso, há também outras causas, como comentarei, ligadas às limitações dos procedimentos de pesquisa utilizados na produção de conhecimento.
Apesar de todas as dificuldades para explorar e produzir conhecimen­to sobre a psique humana, precisamos avançar, utilizar procedimentos de pesquisas capazes de reorganizar continuamente o processo de observação e interpretação das variáveis psíquicas nos processos de construção dos pensamentos.
Creio que necessitamos de teorias multifocais e multivariáveis para ex­plicar, ainda que parcialmente, a psique humana. Creio que a Psicologia e a Psiquiatria deveriam procurar produzir pesquisas conjuntas, se unirem teoricamente e, além disso, se associarem com a Sociologia e a Filosofia para produzir teorias psicossociais e filosóficas multifocais e multivariáveis sobre a psique humana.
A Filosofia sempre foi, ao longo dos séculos, fonte das grandes idéias na ciência, sempre foi expansora das possibilidades de construção do co­nhecimento, o tempero da sabedoria. Porém, ela foi esquecida, desconside­rada e até desprezada pela Psicologia e pela Psiquiatria. Um dos maiores erros da Psiquiatria e da Psicologia foi excluir a Filosofia das suas teorias, desde seu nascedouro até seu desenvolvimento teórico.
O divórcio da Psiquiatria e da Psicologia clínica com a Filosofia reduziu a síntese da sabedoria, a expansão das idéias psicossociais, a macrovisão do homem total: o Homo interpres (inconsciente) somado ao Homo intelligens (consciente). Por isso, elas se tornaram excessivamente clínicas, psico-patológicas, contribuindo pouco para expandir o processo de interiorização, a capacidade crítica de pensar, a inteligência multifocal. A Psiquiatria e a Psicologia clínica se tornaram pobres na produção de vacinas educacionais eficientes contra as doenças psíquicas, psicossomáticas e psicossociais.
A Psiquiatria e a Psicologia clínica atuam com relativa eficiência em determinadas doenças psíquicas, mas não atuam na sanidade do homem total. Elas não promovem e não sabem como promover a qualidade de vida psicossocial dos consócios das sociedades. Atuam na dor, mas não sabem como expandir o prazer. Atuam na miséria psicossocial, mas não sabem como promover a solidariedade, o humanismo, a sabedoria existen­cial. Elas, que trabalham com os parâmetros entre a doença e a sanidade psíquica e psicossocial do homem total, deixaram essa enorme responsabi­lidade para outras áreas da Psicologia, tais como a Psicologia social e edu­cacional e para a educação familiar e escolar.
A escola ficou sobrecarregada, com uma responsabilidade psicossocial que ela não consegue desempenhar com adequação. Os jovens ficam por longos anos na escola, debaixo de um processo socioeducacional exteriorizante, unifocal e "a-histórico-crítico-existencial", como se isso fosse sufici­ente para promover as avenidas da sanidade psicossocial, para transformá-los em pensadores humanísticos, para enriquecer suas capacidades de tra­balhar os conflitos e para expandir neles a sabedoria existencial.
Precisamos de teorias que agreguem as diversas ciências. Teorias que não apenas compreendam as misérias psicossociais humanas, mas que com­preendam as potencialidades intelectuais do homem; que compreendam, ainda que com limitações, os processos de construção dos pensamentos e da consciência existencial e que sejam capazes de abrir avenidas de pesqui­sas para promover a qualidade de vida psicossocial humana.
Devido a abordagem psicossocial e filosófica do homem abordada nes­te livro, quando eu atuo nos textos como um pensador da Psicologia procu­ro ser específico ao comentar os fenômenos psíquicos, mas quando atuo como um pensador da filosofia, faço críticas e generalizações com liberda­de, o que é próprio dos filósofos. Entretanto, não quero que as palavras traiam minhas intenções e nem a democracia das idéias que tanto aprecio. Por isso, afirmo que todas as minhas generalizações têm exceções, mesmo quando eu não as citar.


Além de abordar a teoria da inteligência, também abordo a teoria da interpretação, a teoria da transformação da energia psíquica e a teoria da formação e utilização da história intrapsíquica arquivada na memória e algumas áreas da teoria crítica do conhecimento (epistemologia), pois elas são úteis para compreendermos melhor o processo de construção do pen­samento e, conseqüentemente, da própria construção da inteligência.
A inteligência envolve toda produção intelectual, histórica, cultural, emocional e social produzida na trajetória existencial humana. O desenvol­vimento da inteligência também está na base da formação da personalida­de e na produção das doenças psíquicas, psicossomáticas e psicossociais.
Durante toda a exposição destes textos, as idéias psicológicas mesclam-se com o mundo das idéias filosóficas. É uma viagem intelectual interessan­te expor a construção das cadeias de pensamentos e suas implicações na Psicologia, Psiquiatria, Filosofia, Neurociências, Direito, humanismo, de­mocracia das idéias, pesquisa científica etc.
A construção do pensamento é, provavelmente, a área mais complexa de toda a ciência, pois envolve a origem, natureza, alcance e limites da própria ciência, já que ela é um corpo organizado de pensamentos, de idéias. Os processos de construção dos pensamentos envolvem temas com­plexos e dificílimos de serem investigados. Esses procedimentos podem ser usados no desenvolvimento da inteligência e no processo de formação de pensadores.

A CONSTRUÇÃO DA INTELIGÊNCIA MULTIFOCAL (I.M.) ULTRAPASSANDO A ABORDAGEM UNIFOCAL DA INTELIGÊNCIA EMOCIONAL

Há alguns anos, foi lançado o livro Inteligência Emocional,8 do dr. Daniel Goleman, que teve grande repercussão mundial e influenciou as áreas socio-educacionais e de recursos humanos das empresas. O autor, embora não tenha produzido uma teoria sobre a construção da inteligência, não tenha estudado os fenômenos que atuam nos bastidores da mente e que constro­em multífocalmente as cadeias de pensamentos, comentou acertadamente que a variável emocional influencia a inteligência (quociente emocional -QE) e que não podemos nos submeter aos restritos padrões do quociente de inteligência (QI). Porém, a inteligência não é emocional, pois a variável emocional é apenas uma das múltiplas variáveis intrapsíquicas que exer­cem uma influência multifocal nos processos de construção da inteligência.
Além da variável da energia emocional, há dezenas de outras variáveis que participam dos processos de construção dos pensamentos e da cons­ciência existencial, enfim, que participam da construção da inteligência.
O livro Inteligência Emocional não produz uma teoria sobre a construção da inteligência; por isso não produz conhecimento, como o faz o livro Inte­ligência Multifocal, sobre: o nascedouro das idéias; a construção das cadeias de pensamentos; a formação da história intrapsíquica arquivada na memó­ria; a leitura da memória pelos fenômenos intrapsíquicos; os tipos funda­mentais de pensamentos construídos na psique humana; a natureza, limites, alcance e práxis dos pensamentos; os fenômenos e processos que partici­pam da construção do eu; as etapas do processo de interpretação na constru­ção dos pensamentos. Reitero: o livro Inteligência Emocional é um livro que fala inteligentemente sobre a emoção, mas não é um livro sobre a teoria da inteligência.
Inteligência Emocional tem uma abordagem científica, mas seu enfoque principal é ser um livro de auto-ajuda, aliás é um belo livro nesse sentido. Porém, aqui, neste livro, faço uma exposição de uma nova teoria da inteli­gência. Meu desejo é que ela se torne uma fonte de novas pesquisas na Psicologia, Filosofia, Sociologia e demais ciências; uma fonte de aplicação psicossocial no processo psicoterapêutico, nas relações humanas e no pro­cesso educacional, principalmente na formação de pensadores.
Este livro foi escrito com a despreocupação completa de se tornar um best-seller, pois ele não procura apenas homens que lêem livros, mas leito­res que sejam garimpeiros de idéias, homens que tenham consciência da complexidade da arte de viver, que tenham consciência de que a sabedo­ria se conquista muito mais nos invernos do que nas primaveras existen­ciais, que apreciam o mundo das idéias, que julgam de inestimável valor a arte de pensar e o desenvolvimento da consciência crítica.
As sociedades modernas, como disse, estão saturadas de livros de auto-ajuda que pensam pelo leitor. Este livro, apesar de todas as suas limitações, procura respeitar a inteligência do leitor e, ao mesmo tempo, provocar e estimular a arte de pensar, a arte da dúvida, a arte da crítica.
Não escrevi este livro sobre a inteligência como um escritor que, na esteira do sucesso do livro sobre a inteligência emocional, procura também fazer sucesso. Pelo menos dez anos antes do livro Inteligência Emocional ser lançado nos EUA, eu já desenvolvia a teoria multifocal do conhecimento, da qual a Inteligência Multifocal faz parte. Faço esses comentários por res­peito à inteligência do leitor, para fornecei subsídios para o seu julgamento crítico.
Por que a inteligência é chamada aqui de inteligência multifocal? Por­que todos os processos de construção da inteligência são multifocais: a leitura da memória, a construção das cadeias de pensamentos, as variáveis da interpretação e os fenômenos intrapsíquicos e socioeducacionais. Todos esses processos co-interferem para construir o espetáculo indescritível da inteligência do homem, espetáculo este que faz com que a humanidade seja uma espécie ímpar.
A construção dos pensamentos faz o homem sair da indescritível soli­dão da inconsciência existencial, em que o tudo e o nada são a mesma coisa, e se tornar um ser pensante, um ser inteligente, um ser que tem consciência existencial de si mesmo e do mundo que o circunda.
A inteligência incorpora não apenas o Homo intelligens, ou seja, as ma­nifestações conscientes da inteligência humana, que se traduzem como arte, comunicação, relações sociais, ciência, mas também o Homo interpres, ou seja, o nascedouro da inteligência, as origens inconscientes da construção das cadeias psicodinâmicas dos pensamentos.
Podemos dizer didaticamente que a inteligência multifocal (LM.) possui três grandes áreas: 1. Uma construção multifocal: através de um conjunto de processos e fenômenos psicodinâmicos; 2. Uma influência multifocal dessa construção: através das variáveis da interpretação intrapsíquicas, intraorgâ­nicas e extrapsíquicas; 3. Um desenvolvimento qualitativo: através de fato­res intrapsíquicos e socioeducacionais.
Cada uma dessas três grandes áreas da inteligência possui um conjunto de fenômenos que interagem entre si. A seguir, farei um relato didático e sintético de alguns dos principais fenômenos, segundo os grupos em que estão inseridos. Peço ao leitor despreocupar-se com a grande quantidade de informações que eles contêm. Ao longo de todos os textos, os processos e fenômenos mais importantes, para o momento, estão sendo expostos.

1. A construção psicodinâmica da inteligência multifocal. Fenômenos participantes:
a. Formação e leitura multifocal da memória.
b. Fenômeno da autochecagem da memória: leitura automática do estímulo na memória.
c. Ancora da memória: deslocamento do território de leitura da memória.
d. Fenômeno do autofluxo da energia psíquica: representa um con­junto de fenômenos que financia a multiplicidade de idéias e emoções produzidas diariamente e sem a autorização do eu.
e. Consciência do eu: representa a consciência da existência do eu e do mundo extrapsíquico.
f. Três tipos fundamentais de pensamentos da mente humana, pro­duzidos pelos quatro fenômenos descritos acima: pensamentos essenciais, dialéticos e antidialéticos.
g. Leitura virtual das matrizes dos pensamentos essenciais gerando os pensamentos dialéticos e antidialéticos.
h. A construção das cadeias psicodinâmicas dos pensamentos, segun­do os parâmetros contidos na realidade extrapsíquica e segundo os referenciais histórico-críticos contidos na história intrapsíquica (memória).
i. A liberdade criativa e a plasticidade construtiva na produção dos pensamentos produzidos pelo eu.
j. Fluxo vital da transformação da energia psíquica: organização, desorganização e reorganização.
k. Etapas do processo de interpretação, em que os fenômenos intra-psíquicos atuam para construir as cadeias dos pensamentos.

Todos esses fenômenos estão presentes nos bastidores da psique de qualquer ser humano e são responsáveis pela construção da capacidade de pensar, ou seja, pela construção da inteligência, independentemente da qualidade dessa construção. Cada um desses fenômenos possui, na realida­de, uma série de outros fenômenos subjacentes que não citarei aqui. Esses fenômenos se inter-relacionam para formar os intrincados processos de construção de pensamentos. Os fenômenos responsáveis pelo desenvolvi­mento qualitativo da inteligência serão descritos a seguir no segundo e terceiro grupos.

2. A influência das variáveis da interpretação na construção da inteli­gência multifocal. Fenômenos ou variáveis participantes:
a) variáveis intrapsíquicas presentes no momento da interpretação de cada estímulo:
- qualidade da energia emocional [stress, ansiedade, humor de­primido, reação fóbica, prazer etc).
- qualidade da energia motivacional (motivação, ímpeto, desejo, desmotivação etc).
- atuação psicodinâmica do fenômeno da psicoadaptação.
- qualidade do conteúdo da história intrapsíquica (memória).
b) Variáveis intraorgânicas:
- carga genética.
- drogas psicotrópicas.
- stress físico.
- distúrbios metabólicos.
- doenças orgânicas.
c) Variáveis extrapsíquicas:
- causas históricas.
- stress psicossocial.
- ambiente intra-uterino.
- ambiente sociofamiliar.
- estímulos socioeducacionais.
- perdas, frustrações existenciais, adversidades, contrariedades, apoio, segurança, rejeição etc.

As variáveis intrapsíquicas, intraorgânicas e extrapsíquicas co-interfe­rem nos bastidores da mente, ao longo de toda a trajetória existencial hu­mana, influenciando a leitura da memória, a construção das cadeias de pensamentos e o desenvolvimento da inteligência.

3. Desenvolvimento intrapsíquico e socioeducacional da inteligência multifocal Fenômenos intrapsíquicos e socioeducacionais participantes:
a. Desenvolvimento da análise global, expressa por uma análise con­tínua do processo de interpretação e do processo de construção dos pensamentos e por uma postura intelectual continuamente crítica, aberta e reciclável diante dos fenômenos (físicos, psicoló­gicos, sociais, profissionais) observados.
b. Resgate da liderança do eu: desenvolvimento da capacidade de gerenciamento do eu sobre os processos de construção da inteli­gência.
c. Desenvolvimento do "stop introspectivo", ou seja, aprender a pen­sar antes de reagir, comprometer-se em ser fiel ao pensamento mais do que com a necessidade imediata da resposta.
d. Aprender a expor e não impor as idéias.
e. Aprender a ouvir: aprender a ouvir o que o outro tem para falar e não o que queremos ouvir; ouvir sem distorções conscientes.
f. Desenvolvimento da arte da formulação de perguntas, da arte da dúvida e da arte da crítica.
g. Utilização da história intrapsíquica e da história social como leme intelectual do futuro.
h. A busca do caos intelectual para descontaminar as distorções do processo de interpretação e para expandir as possibilidades de construção do conhecimento na produção de conhecimento ci­entífico, socioprofissional e coloquial.
i. Desenvolvimento da capacidade de trabalhar os estímulos estres-santes, as dores emocionais, perdas e frustrações psicossociais e de usá-las como alicerces da maturidade da inteligência.
j. Desenvolvimento da arte da contemplação do belo: expandir o prazer, não apenas diante dos grandes eventos psicossociais, mas principalmente diante dos pequenos eventos da rotina diária.
k. Desenvolvimento da capacidade de interpretação do "outro": aprender a se colocar no lugar do outro e perceber suas necessi­dades psicossociais.
l. Desenvolvimento dos amplos aspectos da cidadania social. Desenvolvimento do humanismo como alicerce da teoria da igual­dade e como fator de prevenção das múltiplas formas de viola­ção dos direitos humanos.
m. Desenvolvimento da democracia das idéias como fator regulador do processo de interpretação em todas as esferas políticas, so­ciais, culturais e educacionais.
n. Prevenção contra a síndrome psicossocial da exteriorização exis­tencial.
o. Prevenção contra a síndrome intelectual do mal do logos estéril;
p. Prevenção contra a síndrome psicossocial tri-hiper: hiperconstrução de pensamentos, hipersensibilidade emocional e hiperpreocupação com o que os outros pensam e falam de si (imagem social) etc.

Neste livro, a ênfase é dada à exposição do primeiro grupo de fenô­menos, ou seja, ao grupo de fenômenos responsáveis pela construção dos pensamentos e, conseqüentemente, da inteligência. Também abordo a teoria da interpretação e algumas variáveis do segundo grupo, tais como a qualidade da história intrapsíquica, a atuação do fenômeno da psico-adaptação e a transformação da energia emocional, e alguns fenômenos do terceiro grupo, tais como o gerenciamento do eu, a arte da dúvida, a arte da crítica, a busca do caos intelectual, a prevenção do mal do logos estéril, que são responsáveis pelo desenvolvimento qualitativo da inteli­gência. Em textos posteriores, farei uma conceituação de cidadania, do humanismo e da democracia das idéias. Porém, devido à abrangência de todos os fenômenos responsáveis pela construção, influência e desenvolvi­mento multifocais da inteligência, outras publicações serão necessárias para abordá-los.
A construção da inteligência incorpora não apenas o Homo intelligens, que representa as idéias, os raciocínios analíticos, as inferências, a lógica, as soluções emocionais e os fatores psicossociais contidos na produção inte­lectual consciente, mas também o Homo interpres, que representa os proces­sos de construção da própria produção intelectual ocorridos clandestina­mente nos bastidores inconscientes da inteligência.
O maior espetáculo que o homem pode produzir não está no cinema, no teatro, nos museus ou nas feiras de informática, mas está na construção dos pensamentos ocorrida espontaneamente na mente de qualquer ser humano, mesmo das crianças famintas na África ou abandonadas nas ruas das grandes cidades. Sem a inteligência não haveria a consciência existenci­al; sem a consciência existencial estaríamos condenados à dramática condi­ção de existir sem ter a consciência da existência.
Nos bastidores da mente, como veremos, há um Homo interpres micro e macro distinto a cada momento da interpretação, cujo campo da energia psíquica está num fluxo contínuo de autotransformações essenciais, que faz com que o homem seja um produtor de experiências psíquicas, que por sua vez vão sendo registradas continuamente na sua memória e que se tornam os tijolos para a construção da inteligência multifocal. A inteligên­cia pode ser redirecionada para que o homem não apenas seja um ser pensante, mas alguém que brilha na arte de pensar.
Uma das maiores críticas que faço contra o processo socioeducacional, independentemente da teoria que utiliza como suporte da interpretação, é que ele pouco contribui para expandir os fenômenos que desenvolvem a inteligência em seus amplos aspectos psicossociais. Por isso, ele gera freqüentemente retransmissores do conhecimento, estudantes que são aco­metidos com a síndrome do mal do logos estéril, que expressa uma cultura estéril, que não o torna lúcido, seguro, livre, empreendedor.

A CIDADANIA DA CIÊNCIA. A NECESSIDADE DA FORMAÇÃO DE PENSADORES

Existe um termo, que chamo de "cidadania da ciência", que reflete a preocupação que todo pensador ou cientista deveria ter em relação à sua produção de conhecimentos, que é a de procurar socializá-la, humanizá-la. "Cidadania da ciência" é, portanto, a humanização da teoria que se ex­pressa através de procurar torná-la assimilável, aplicável e, portanto, psicos-socialmente útil.
Neste livro, procurei exercer a cidadania da ciência. Em determinados momentos, a partir da teoria sobre os processos de construção dos pensa­mentos, derivei implicações e aplicações nas ciências. Além disso, ao longo da exposição dos textos, produzi críticas multifocais às ciências, à sociopolítica, à socioeducação, tais como: crítica à produção e validação do conhecimento científico; crítica à omissão e à timidez da ciência em pesquisar a natureza psíquica e os sistemas de relações que ela mantém com o cére­bro; crítica ao contracionismo da democracia das idéias nas sociedades politicamente democráticas; crítica à postura psicoterapêutica autoritária, que posiciona o paciente como espectador passivo das interpretações e procedimentos psicoterapêuticos; crítica ao autoritarismo das idéias e à ditadura dos discursos teóricos existente nas ciências, principalmente pelo uso inadequado de uma teoria como suporte da interpretação; crítica à unifocalidade da "inteligência emocional" em relação à multifocalidade da "inteligência"; crítica à unifocalidade das neurociências e à excessiva culpa­bilidade dos neurotransmissores na complexa e sofisticada gênese das doen­ças psíquicas etc.
Se incorporasse todos os textos que produzi sobre as críticas, implica­ções e propostas psicossociais derivadas dos processos de construção dos pensamentos, este livro ficaria excessivamente extenso. Por isso, em sua grande maioria, elas apenas serão abordadas sinteticamente.
Penso que os cientistas e os pensadores são servos da humanidade, não precisam do brilhantismo da notoriedade social, embora devam ser, tanto quanto possível, agentes sociopolíticos. Os cientistas e pensadores são poe­tas existenciais, cuja capacidade de observação dos fenômenos, de inter­pretação, de análise e de produção de conhecimento é inspirada na cidada­nia da ciência, ou seja, na necessidade de ser útil à sociedade, à sua espécie e ao ambiente ecossocial. Por isso, creio que a grandeza das idéias na Psico­logia, Filosofia, Sociologia e em outras ciências não está somente na quali­dade dos discursos teóricos e do brilhantismo literário que as expressam, mas, principalmente, na sua aplicabilidade psicossocial.
As universidades têm seus méritos relevantes, têm professores e cientis­tas que são amantes do conhecimento. Porém, apesar disso, o sistema aca­dêmico desrespeita freqüentemente os princípios psicossociais e filosófi­cos derivados da democracia das idéias e do humanismo, por isso ele forma, com as devidas exceções, profissionais com baixo nível de cidada­nia; profissionais que apenas retransmitem o conhecimento e pouco ex­pandem as idéias; que incorporam o conhecimento acadêmico quase que exclusivamente para benefícios próprios; que possuem minimamente a preocupação humanística de atuar psicossocialmente nos vasos sangüíneos da sociedade.
A transmissibilidade unifocal do conhecimento, conduzida pela relação professor-aluno, associada ao baixo desenvolvimento da arte da dúvida e da crítica e às enormes deficiências de conhecimento sobre a natureza, limi­tes, alcance e lógica do próprio conhecimento (pensamento dialético), redu­zem o debate, a expansão das idéias e, conseqüentemente, a formação de teóricos, de cientistas, de pensadores e profissionais humanistas. A grande maioria dos profissionais que se formam nas universidades talvez nem sai­bam dizer minimamente o que é a verdade científica (dialética) e a verdade essencial (real), e quais são as suas relações. Utilizam o conhecimento teóri­co (a verdade científica) como se ele tivesse o "status" da verdade essencial. Não compreendem que grande parte do conhecimento, julgado como verdade científica hoje, será descaracterizado como "verdade" nas próximas décadas.
Os sistemas educacionais, à luz dos processos de construção dos pensa­mentos, precisam ser repensados como centro da produção e validação de conhecimento e como centro da formação de intelectuais.
Vivemos numa sociedade saturada de informações, mas que carece da formação de pensadores. No passado, quando a informação era escassa e sua veiculação reduzida, surgiram grandes pensadores nas ciências. Na Fi­losofia, houve grandes pensadores que produziram teorias complexas, ori­ginais e inteligentes, tais como Sócrates, Platão, Aristóteles, Agostinho, Hume, Bacon, Bruno, Descartes, Spinoza, Kant, Montesquieu, Voltaire, Rousseau, Locke, Hegel, Comte, Marx, Nietzsche, Kierkegaard, Husserl e tantos outros.
Atualmente, com a multiplicação do conhecimento, a expansão quanti­tativa das universidades e o acesso facilitado às informações, deveríamos ter multiplicado a cadeia de pensadores nas ciências, mas provavelmente não é isso que tem acontecido. Há, sem dúvida, ilustres pensadores na atualidade; porém, creio que muitos deles concordam que a grande maio­ria dos que cursam uma universidade e fazem uma pós-graduação, se tor­nam espectadores passivos do conhecimento, retransmissores do conheci­mento, e não pensadores capazes de criticar e expandir o conhecimento que incorporam ou produzir novas teorias.
A ciência, embora fundamental, nunca incorpora a realidade essencial dos fenômenos que estuda. A verdade científica é um sistema de intenções intelectuais produzidas criteriosamente pela construtividade de pensamen­tos, capaz de gerar uma consciência existencial científica sobre a verdade essencial, ou seja, sobre os fenômenos psíquicos (ansiedade, fobia, humor deprimido, pensamento) e fenômenos biofísico-químicos (energia eletro­magnética, substâncias químicas, células) etc. Porém, a consciência existen­cial científica (ciência) jamais alcança a realidade essencial dos fenômenos.
A ciência define e conceitua o mundo que somos e em que estamos; porém, nunca os incorpora essencialmente, pois o conhecimento científico é construído através do processo de leitura virtual das matrizes de pensa­mentos essenciais decorrentes da leitura da memória.
A ciência tem limites intransponíveis, pois é produzida na esfera da virtualidade intelectual. Um milhão de idéias sobre um objeto de madeira, ainda que discurse com fineza intelectual sobre tal objeto, não é a essência em si da celulose que o constitui. Porém, apesar de seus limites intrans­poníveis, a ciência é também paradoxalmente infinita, inesgotável.
A ciência, por ser inesgotável, faz com que toda teoria, todo conheci­mento, toda verdade científica, sejam deficientes e restritivas em relação à verdade essencial. As teorias científicas são importantes, mas todas elas são passíveis de inúmeras expansões ao longo dos séculos e das gerações. Morrem os cientistas e os pensadores, mas a ciência e as idéias continuam evoluindo na geração seguinte.
A ciência, como consciência da essência, é um sistema de intenções que acusa e discursa, através da plasticidade construtiva dos pensamentos dialéticos, sobre a essência em si dos objetos e fenômenos, mas, como disse, jamais a incorpora. Tudo o que eu e o leitor pensamos, racionaliza­mos, analisamos, discursamos sobre nós mesmos e sobre o mundo que nos circunda, são sistemas de intenções conscientes que discursam sobre os fenômenos intrapsíquicos e extrapsíquicos, mas nunca incorporam a reali­dade intrínseca deles. Precisamos compreender os processos de construção dos pensamentos para podermos compreender os limites e alcance da pró­pria ciência, ou seja, compreender a construção das relações humanas, a gênese das doenças psíquicas e psicossomáticas, os procedimentos socio-políticos, psicoterapêuticos, socioeducacionais etc.
Construir pensamentos parece uma tarefa intelectual simples; mas até a mais débil das idéias tem uma construção psicodinâmica extremamente complexa. Compreender os bastidores da construção dos pensamentos, interessa não apenas a cientistas, psicólogos, psiquiatras, filósofos, sociólo­gos, juristas, jornalistas, mas a todos aqueles que realizam qualquer tipo de trabalho intelectual. Porém, como vimos a trajetória de investigação dos processos de construção dos pensamentos é extremamente complexa e saturada de entraves.
Quando a ciência resolve investigar a si mesma (sua natureza, origens, limites, alcance, lógica, práxis etc.), quando passamos a usar os pensamen­tos para investigar os próprios processos de construção dos pensamentos, quando usamos a ferramenta do conhecimento para explorar o nascedouro do conhecimento, quando usamos as idéias para esquadrinhar o próprio mundo das idéias, quando procuramos investigar a energia psíquica que nos constitui intimamente, nunca mais somos os mesmos, pois começamos a enxergar o homem total numa nova perspectiva, numa perspectiva psicossocial e filosófica. Quando isso acontece, nos vacinamos contra o superficialismo intelectual e passamos a ser caminhantes nas avenidas do nosso próprio ser, o que não nos arrebata para o pedestal intelectual; ao contrário, nos faz imergir num estado de caos intelectual e deparar com nossas limitações no processo de investigação e compreensão do mundo que somos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário