OS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO MULTIFOCAL DOS PENSAMENTOS
A construção dos pensamentos
envolve diversos pontos complexos que são dificílimos de ser observados e
investigados e, conseqüentemente, de se produzir conhecimento sobre eles. A
seguir farei uma recapitulação dos pontos que analisei e dos que ainda precisam
ser examinados: 1. A natureza dos pensamentos. 2. Os três tipos básicos dos
pensamentos produzidos na mente (o essencial, o dialético e o antidialético).
3. Os sistemas de relações existentes entre os tipos de pensamentos. 4. Os
sistemas de relações que os pensamentos mantêm com o mundo intrapsíquico e
extrapsíquico. 5. A lógica dos pensamentos. 6. Os processos psicodinâmicos que
os constroem e que ultrapassam os limites da lógica. 7. Os sistemas de códigos
que reorganizam a construção dos pensamentos. 8. O processo de desorganização
dos pensamentos. 9. Os limites e o alcance dos três tipos básicos de
pensamentos. 10. A práxis ou materialização dos pensamentos. 11. Os sistemas de
validação científica dos pensamentos. 12. O gerenciamento da construção dos
pensamentos pelo eu. 13. A leitura da memória e a formação das matrizes de
pensamentos essenciais históricos. 14. A construção de pensamentos gerada pelo
fenômeno da autochecagem da memória. 15. O fluxo da construção vital e inevitável
dos pensamentos produzidos pelo fenômeno do autofluxo. 16. A disponibilidade
histórica da memória produzida pela âncora da memória, que gera e, ao mesmo tempo,
limita a construção dos pensamentos produzida pelo fenômeno da autochecagem da
memória, fenômeno do autofluxo e consciência do eu. 17. O uso espontâneo,
inevitável e instantâneo das RPSs (representações psicossemânticas das
experiências psíquicas e das informações contidas na memória) nas "cadeias
psicodinâmicas dos pensamentos". 18. A leitura da memória e o resgate
inconsciente das RPSs, que constituirão as "cadeias psicodinâmicas dos
pensamentos". 19. O processo seletivo e inconsciente de cada RPS em meio a
bilhões de opções existentes na memória. 20. A conjugação tempo-espacial dos
verbos e suas inserções nas "cadeias psicodinâmicas dos pensamentos",
antes que elas tenham se tornado conscientes pelo homem. 21. A pista de
decolagem virtual preparada pelas matrizes de pensamentos essenciais e suas
relações com o processo de leitura virtual que dá origem aos pensamentos
dialéticos e antidialéticos. 22. Os pensamentos essenciais
histórico-dependentes e histórico-independentes. 23. A influência do fenômeno
da psicoadaptação nos processos de construção dos pensamentos. 24. A
"psicolinguagem inconsciente" das matrizes dos pensamentos
essenciais. 25. A "psicolinguagem consciente" dos pensamentos
dialéticos. 26. A "antipsicolinguagem consciente" dos pensamentos
antidialéticos. 27. A aplicabilidade do fenômeno da credibilidade autógena na
produção dos pensamentos dialéticos e na produção dos pensamentos
antidialéticos na esfera da virtualidade ou antiessencialidade. 28. A organização
da cadeia de idéias que constituem as análises, as sínteses, os sistemas dos
referenciais, enfim, os discursos teóricos dos pensamentos. 29. A
desorganização psicótica da "cadeia psicodinâmica" dos pensamentos.
30. Os sistemas de encadeamentos distorcidos ocorridos na construção de
pensamentos. 31. O resgate e utilização das experiências passadas no ciclo da construção
dos pensamentos e no processo de formação da personalidade etc.
A inteligência multifocal
possui três grandes áreas: uma construção multifocal, através da construção de
pensamentos; uma influência multifocal através das variáveis da interpretação;
um desenvolvimento multifocal contínuo, através dos estímulos intrapsíquicos,
socioeducacionais e da carga genética. Existem teorias respeitáveis que
enfatizam a terceira grande área, ou seja, a área do desenvolvimento da
inteligência, como a Teoria das Inteligências Múltiplas de Howard Gardner,6
que aborda a inteligência lingüística, lógico-matemática, espacial, musical,
interpessoal etc.
Na realidade, só existe uma
psique, um campo de energia psíquica, uma mente, e, portanto, só existe uma
inteligência. Neste livro ela é chamada formalmente de inteligência multifocal
apenas porque sofre uma construção, uma influência e um desenvolvimento
multifocal. Esse desenvolvimento se manifesta através de múltiplas
possibilidades intelectuais, chamada de inteligências múltiplas na teoria que
há pouco citei.
Tenho uma visão particular da
terceira grande área, a área do desenvolvimento da inteligência. Para mim,
esse desenvolvimento precisa ser psicossocial e filosófico e envolve a formação
do homem como democrata das idéias; como pensador que tem afinidade com a arte
da dúvida, a arte da crítica, a arte de ouvir, a arte da contemplação do belo;
como um engenheiro de idéias que aprende a pensar antes de reagir, que aprende
a interiorizar-se, a repensar-se; como pensador humanista que desenvolve a
cidadania, que aprende a colocar-se no lugar do outro, que valoriza os direitos
humanos e conquista uma macrovisão da espécie humana, etc. Porém, a ênfase
principal deste livro é a primeira área, ou seja, a área da construção da inteligência,
encabeçada pela construção dos pensamentos. Essa construção, por abordar a
leitura da memória, os fenômenos que geram o nascedouro das idéias, os tipos
fundamentais de pensamentos, a natureza dos pensamentos, a formação da
consciência existencial etc, pode contribuir para expandir e revisar as outras
teorias que abordam a terceira área do desenvolvimento da inteligência, tais
como a Teoria da Inteligência Múltipla e a Inteligência Emocional.
Há pouco listei mais de
trinta pontos que se referem apenas à área da construção de pensamentos. Sé
acrescentasse a influência das variáveis da interpretação na construção dos
pensamentos, representada pelas variáveis intrapsíquicas (energia emocional,
história intrapsíquica etc), intraorgânicas (carga genética, stress físico,
distúrbios metabólicos etc.) e extrapsíquicas (meio ambiente intra-uterino,
estímulos socioeducacionais, stress socio-profissional etc), muitos
pontos ainda teriam que ser acrescentados a essa lista. Imagine a rica
influência de cada uma dessas variáveis no momento específico da ação dos
fenômenos que fazem a leitura da memória e constroem as cadeias de
pensamentos. Quando uma pessoa, por exemplo, está sob efeito de uma droga
psicotrópica ou de um stress socioprofissional, a leitura da memória e a
construção das cadeias de pensamentos sofrem diversas interferências.
A investigação desses pontos
exige um processo de observação e interpretação continuamente aberto, crítico
e reorganizável para que possamos expandir as possibilidades de construção do
conhecimento sobre eles. Excetuando o ponto ligado à desorganização psicótica
das "cadeias psicodinâmicas dos pensamentos", todos os outros pontos
são universais, o que evidencia a complexidade e sofisticação de cada ser
humano.
Pelo fato de esses pontos
estarem na base universal da construção dos pensamentos, eles podem ser usados
para auxiliar, fundamentar, criticar e abrir avenidas de pesquisas para outras
teorias psicológicas, tais como as teorias da personalidade. Por exemplo, a
estrutura da personalidade de Freud, expressa pelo id, pelo ego e pelo
superego, poderia ser ainda mais desenvolvida. O "id" poderia ser
mais bem elucidado a partir da influência da energia biofísica (instinto) na
produção de matrizes de pensamentos essenciais inconscientes. O "ego"
poderia ser mais bem elucidado a partir dos fenômenos que fazem a leitura da
memória e que produzem a construção das cadeias de pensamentos dialéticos e
antidialéticos. Por sua vez, o "superego" poderia ser mais bem
compreendido a partir dos complexos deslocamentos da âncora da memória e,
conseqüentemente, das mudanças dos territórios de leitura da história
intrapsíquica. Por outro lado, as teorias comportamentais e cognitivas, que têm
uma linha psicoterapêutica e um embasamento teórico distintos da psicanálise de
Freud, também poderiam ser mais elucidadas através dos processos de construção
de pensamentos. Por exemplo, as técnicas comportamentais poderiam ser melhor
desenvolvidas e ter outras possibilidades de pesquisas se incorporassem, entre
outros pontos, o conhecimento sobre o fenômeno da autochecagem da memória, a
construção das cadeias de pensamentos essenciais e o registro automático dessas
cadeias na memória pelo fenômeno RAM (registro automático da memória).
Não é objetivo deste livro
aplicar a teoria da inteligência multifocal em outras teorias. Seria bom
que essa tarefa pudesse ser realizada por outros pesquisadores. A construção
dos pensamentos é extremamente abrangente e complexa.
Capítulo 4
Os Três Mordomos da Mente Educando e Formando Silenciosamente o "Eu"
O "EU" É PRODUZIDO PARADOXALMENTE POR PROCESSOS INCONSCIENTES
Como o "eu" é
formado? Como ele lê a memória e resgata com extremo acerto, em milésimos de
segundos e em meio a bilhões de opções, cada RPS que representa as experiências
passadas? Como ele organiza essas RPSs, formando complexas cadeias
psicodinâmicas das matrizes de pensamentos essenciais históricos, antes que
essas matrizes sofram um processo de leitura virtual? Como o processo de
leitura virtual das matrizes de pensamentos essenciais gera os pensamentos
dialéticos e antidialéticos? Como ele conjuga complexamente os verbos, antes
que tenhamos consciência dos tipos de verbos que serão utilizados nas cadeias
de pensamentos? Como o "eu" gerencia "inconscientemente", e
com extrema fineza, os processos de construção dos pensamentos nos bastidores
da mente para administrar a racionalidade humana? Essas perguntas estão no
cerne da psicologia e não foram respondidas até hoje.
Se não estudarmos com
detalhes a construção dos pensamentos e não questionarmos continuamente nossa
produção de conhecimento, fatalmente caminharemos nas trajetórias do
psicologismo e não progrediremos na compreensão dos fenômenos que nos torna uma
espécie inteligente.
Um dos mais complexos
paradoxos intelectuais é expresso pelo gerenciamento do "eu" sobre a
construção de pensamentos. O "eu", embora ocorra nos palcos
conscientes da inteligência, vive um paradoxo intelectual indescritível, pois
gerencia "inconscientemente" a construção de pensamentos, a
racionalidade humana; ele lê inconscientemente a memória, organiza
inconscientemente as RPSs e produz inconscientemente as cadeias de pensamentos
conscientes.
A construtividade do mundo
das idéias, que promove toda racionalidade dialética, toda ciência, toda
produção de arte, toda comunicação social, enfim, toda "consciência
existencial do eu" sobre o mundo que somos e em que estamos, é produzida
por processos inconscientes que são operacionalizados nos bastidores da psique.
O HOMEM É UM ENGENHEIRO QUANTITATIVO E NÃO QUALITATIVO DE IDÉIAS
O homem, em detrimento de
possuir uma inteligência complexa, expressa pela construção de pensamentos,
gerenciada ou não pelo eu, historicamente pouco se interiorizou e se
interessou em procurar conhecer os processos e fenômenos que estão envolvidos
na construção dos pensamentos, em procurar conhecer os elementos mais íntimos
que nos constituem como seres pensantes. É mais confortável se postular como um
semideus do que ser alguém que se investiga, que se indaga, que duvida de si
mesmo, que questiona a validade, os limites e o alcance das suas idéias. Toda
macro ou microditadura nasce da aversão à arte da formulação de perguntas, à
arte da dúvida, à arte da crítica.
Ao longo da história humana,
o homem viveu inevitavelmente sob o regime da revolução da construção das
idéias. Ler a memória e resgatar informações, produzir cadeias de pensamentos,
construir o mundo das idéias, ainda que não-qualitativas, sempre foi o destino
histórico do Homo sapiens. Porém, a construção das idéias, que ocorre
clandestinamente nos bastidores da mente, nem sempre foi reorganizada,
promovida e redirecionada, enfim, administrada pelo eu para a produção das
artes, das relações sociais, das ciências, do humanismo, da cidadania.
O ser humano é um engenheiro
que constrói uma grande quantidade de idéias, porém, freqüentemente, não é um
engenheiro que constrói idéias com qualidade, que administra com coerência e
humanismo sua construção de pensamentos. Por isso, o espetáculo da construção
dos pensamentos em muitos períodos da história foi conduzido para promover as
mazelas humanas, fomentar a destrutividade social, as guerras, as dores
biopsicossociais, a violação dos direitos humanos etc. A trajetória intelectual
humana espontânea não é o processo de interiorização, não é a expansão do
humanismo, a maturidade intelecto-emocional, mas a síndrome da exteriorização
existencial. Tal conclusão não tem nada a ver com uma postura negativista,
pessimista, diante da vida, mas é derivada da análise da construção de
pensamentos.
O humanismo, a maturidade
intelecto-emocional, a capacidade de trabalhar dores, perdas e frustrações
psicossociais, enfim, o processo de interiorização, tem de ser conquistado
psicossocialmente no processo existencial, através do gerenciamento dos
processos de construção dos pensamentos. Sem tal conquista, não teremos
parâmetros para compreender que a grandeza de um homem não está no quanto ele
possui de poder e statns socioeconômico-político, mas no quanto ele se interioriza,
se investiga, tem consciência da suas limitações e desenvolve o seu humanismo.
As sociedades humanas não
precisam de homens que amem a estética social, que amem o poder sociopolítico,
mas de homens que sejam grandes no humanismo, grandes como pensadores, grandes
na percepção dos seus limites, grandes na capacidade de se colocar no lugar do
outro e perceber suas dores e necessidades psicossociais.
OS LIMITES DA CONSCIÊNCIA COMO "REI-EU" DOS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DOS PENSAMENTOS
É difícil realizar a
conquista psicossocial das funções mais nobres da inteligência. O gerenciamento
do eu sobre os processos de construção dos pensamentos é difícil de ser
conquistado, pois construir pensamentos não é apenas um atributo do eu, mas,
pelo menos, de três outros fenômenos intrapsíquicos. Por isso o homem tem uma
produção intelectual extremamente complexa, o que gera alguns entraves
importantíssimos no gerenciamento do eu sobre a racionalidade humana.
O fenômeno da autochecagem da
memória, o fenômeno do autofluxo e a âncora da memória funcionam como três
mordomos psicodinâmicos que, associados a outras variáveis, organizam, nutrem e
educam o "eu" como o grande gerenciador e redirecionador dos
processos de construção da inteligência. Chamarei o "eu" pejorativamente,
neste tópico, de "rei-eu". O exercício mais importante do
"rei-eu" na mente é o de gerenciar e administrar, pelo menos
parcialmente, os processos de construção da inteligência, fazendo com que o
homem não seja apenas vítima da revolução das idéias, vítima da sua carga
genética, principalmente das propensões genéticas do humor, e vítima dos
estímulos do ambiente socioeducacional, mas agente modificador de sua própria
história psicossocial.
Uso pejorativamente o termo
"rei-eu" para indicar que, ao contrário do que crê o senso comum
científico e coloquial, o "eu", ou self não é de fato um
grande "rei-eu", um senhor absoluto dos processos de construção da
inteligência. Grande parte das idéias, pensamentos, emoções e motivações
produzidos na mente, como temos visto, não são determinados logicamente e
conscientemente pelo "rei-eu", mas pela operacionalização espontânea
dos três outros fenômenos inconscientes que lêem a história intrapsíquica e
produzem as matrizes de pensamentos essenciais desde a aurora da vida fetal.
Na vida extra-uterina, as
matrizes de pensamentos essenciais históricos, produzidas pelos
"mordomos" da mente, sofrem um processo de leitura virtual que gera
uma riquíssima produção de pensamentos dialéticos e antidialéticos. Porém, a
produção das matrizes de pensamentos essenciais históricos e, conseqüentemente,
a produção dos pensamentos dialéticos e antidialéticos, derivados da
operacionalidade dos "mordomos" da mente, não se submetem a uma
administração histórico-crítica que questiona as informações da memória, como
se submetem à produção das matrizes de pensamentos essenciais e à produção dos
pensamentos dialéticos e antidialéticos produzidos pelo eu.
Nos sonhos, nos delírios e
nas alucinações há uma rica construção de pensamentos produzida pelos mordomos
da mente, principalmente pelo fenômeno do autofluxo. Porém, o gerenciamento da
construção dos pensamentos exercida pelos mordomos da psique não é, como
disse, histórico-crítica, pois a "cadeia psicodinâmica dos
pensamentos", expressa pela identidade dos personagens, pelas
circunstâncias psicossociais, pela conjugação tempo-espacial dos verbos, enfim,
pelos discursos teóricos e antidialéticos dos pensamentos, não se submeteu a
uma análise e a uma reciclagem crítica construtiva que leva em consideração os
parâmetros da história intrapsíquica e da realidade extrapsíquica. Portanto,
apesar de os mordomos psicodinâmicos da psique produzirem uma rica construção
de matrizes de pensamentos essenciais históricos e, conseqüentemente, uma rica
construção de pensamentos dialéticos e antidialéticos, somente o
"eu" (do "rei-eu") tem a capacidade, ainda que parcial, de
gerenciar, de reciclar, de reorganizar e de reorientar a construção de
pensamentos e todos os demais processos de construção da inteligência a partir
dos parâmetros histórico-críticos da memória e da realidade extrapsíquica.
Todos esses três mordomos
contribuem para produzir o eu num determinado momento existencial. A exceção
de uma parcela dos pensamentos essenciais que não chegam a sofrer um processo
de leitura virtual, o eu se conscientiza de todos os pensamentos dialéticos e
antidialéticos produzidos pelos mordomos psicodinâmicos, embora não determine
consciente e logicamente a construtividade dos mesmos.
Cumpre à consciência do eu, ao
"rei-eu", atuar no processo de construção de pensamentos e
administrá-lo, caso contrário, ela será sempre vítima da construtividade de
pensamentos dos três outros fenômenos. Portanto, há diferença entre o
"eu" e o gerenciamento do eu. O eu refere-se à consciência dos
pensamentos dialéticos e antidialéricos de origem multifocal, que organizam a
"consciência existencial" do mundo extrapsíquico e intrapsíquico. O
gerenciamento é um passo além, ou seja, é a atuação do eu procurando não apenas
se conscientizar da construção das cadeias de pensamentos conscientes, mas
administrá-la. Compreenderemos melhor este assunto nos próximos capítulos.
Se o homem não aprende a
gerenciar seus pensamentos e emoções, ele se torna marionete dos estímulos
estressantes, vítima do meio em que vive e dos focos de tensão que ele mesmo
cria no palco de sua mente, através de sua rigidez, sentimento de culpa,
perfeccionismo, antecipação de situações futuras.
O eu, embora tenha limites
para exercer a governabilidade psíquica, como "rei-eu", embora tenha
limites para gerenciar todos os processos de construção dos pensamentos, pode e
deve atuar nas cadeias psicodinâmicas dos pensamentos iniciadas pelos
"mordomos" da mente. Pois somente assim ele deixa de ser vítima e
passa a conquistar terrenos como agente modificador da sua história
psicossocial.
A grande maioria das pessoas
é vítima e não agente modificadora da sua personalidade. Diversas doenças
psíquicas, tais como os transtornos obsessivo-compulsivos e a
farmacodependência, tem suas origens nas sofisticadas relações entre o eu e os
três fenômenos intrapsíquicos inconscientes que constroem multifocalmente as
cadeias de pensamentos.
OS MORDOMOS DA MENTE EDUCANDO SILENCIOSAMENTE O EU
Não deveríamos considerar a
rica construção de pensamentos produzidos pelos mordomos da psique humana como
um problema; pelo contrário, ela é de fundamental importância. Sem essa rica e
inevitável construção de pensamentos, a vida humana se tornaria um tédio
insuportável, uma solidão indescritível, pois ela é a mais importante fonte de
entretenimento humano. Além disso, sem a rica construção de pensamentos produzida
pelos mordomos da mente, a história intrapsíquica e o eu não se desenvolveriam.
Os mordomos da inteligência
são fenômenos que lêem continuamente a memória e reorganizam o caos da energia
psíquica. Portanto, são fenômenos que promovem os processos de construção da
inteligência. Promovem também o desenvolvimento da história intrapsíquica desde
a vida intra-uterina, preparando caminho para que o eu comece a se desenvolver
nos primeiros anos de vida extra-uterina, através da produção das primeiras
cadeias psicodinâmicas de pensamentos dialéticos e antidialéticos que expressam
as intenções, os desejos das crianças.
Os mordomos da mente exercem um
trabalho psicodinâmico-educacional clandestino para com o eu, preparando-a como
"rei-eu". Fiquei, como disse, anos e anos intrigado e me perguntando
como o eu lê com extremo acerto, em frações de segundos e em meio a bilhões de
opções, cada RPS que participará das cadeias psicodinâmicas dos pensamentos, e
como ele organiza essas cadeias. Compreendi que os mordomos da mente realizam
uma refinadíssima educação psicodinâmica do eu, conduzindo-a, paulatinamente,
a ler "inconscientemente" a história intrapsíquica e a resgatar, com
incrível acerto, as RPSs que participarão das matrizes dos pensamentos
essenciais históricos.
A medida que esses mordomos
ou "mestres-mordomos" lêem a memória e produzem milhares de
pensamentos diários, o eu aprende a traçar os mesmos caminhos psicodinâmicos e
a realizar sua construção de pensamentos. A atuação dos mordomos da mente no
processo de desenvolvimento do eu é psicodinâmica e psicossocialmente complexa
e sofisticada.
Com o decorrer do tempo, o eu
se desenvolve e se torna um "rei-eu" que adquire indescritível
liberdade criativa e plasticidade construtiva para gerenciar os processos de
construção dos pensamentos e produzir idéias no tempo que deseja, na freqüência
que deseja e na cadeia psicodinâmica que deseja (conteúdo). O "rei
eu" torna-se, assim, um exímio engenheiro de idéias, um exímio construtor
de pensamentos dialéticos e antidialéticos.
A ATUAÇÃO DOS MORDOMOS DA MENTE NA FORMAÇÃO DA PERSONALIDADE
Toda a construção de
pensamentos é produzida inconscientemente nos bastidores da mente. Dezenas de
milhares de cientistas estão pesquisando e produzindo uma enormidade de
pensamentos dialéticos e antidialéticos, embora não tenham consciência de que
aprenderam com os fenômenos que estão contidos nos bastidores da inteligência
os caminhos psicodinâmicos que permitem que eles leiam a memória em milésimos
de segundos e resgatem, com extrema fineza, cada RPS que constituirá suas
idéias.
O desenvolvimento do
"eu", o "rei-eu", deve muito mais aos mordomos da mente do
que ao processo educacional. Se não houvesse a educação psicodinâmica e
psicossocial dos mordomos da mente, poderíamos colocar as crianças nas melhores
escolas e ensiná-las por décadas, mas elas não assimilariam nenhuma informação,
pois não desenvolveriam a consciência existencial.
Sem a existência dos
fenômenos intrapsíquicos, que constroem as cadeias de pensamentos desde a vida
intra-uterina, a história da personalidade não se desenvolveria, o eu não
conseguiria aprender os caminhos psicodinâmicos da memória, não conseguiria ler
as RPSs da história intrapsíquica e construir e administrar as cadeias de
pensamentos. Não haveria ciência, livros e qualquer comunicação consciente.
Fico encantado em observar o
ser humano pensando e expressando suas idéias, independentemente de quem seja.
Costumeiramente, contemplo atenta e embevecidamente a produção intelectual das
pessoas que me envolvem e fico impressionado com a sofisticação da construção
das cadeias de pensamentos. Freqüentemente, as pessoas não têm esse tipo de
prazer, de deleite. Elas não conseguem contemplar a produção intelectual humana
na perspectiva de espécie.
A grande maioria dos membros
da nossa espécie desconhece a complexidade e a beleza ímpar dos processos de
construção do mundo das idéias ocorridos em cada ser humano. Os laços genéticos
nos acusam como espécie, mas a falta de contemplação do espetáculo dos
pensamentos indica que perdemos historicamente a perspectiva de espécie.
O espetáculo da construção de
pensamentos é indescritivelmente sofisticado. Em frações de segundos, posso
estar em Londres; nos momentos seguintes, estou em Paris e, segundos depois,
estou pensando nas circunstâncias que vou enfrentar amanhã, ainda que o amanhã
não exista essencialmente; momentos depois, me transporto para a minha
infância, ainda que a recordação seja uma interpretação da história. Porém, não
sabemos "onde", "quando" e "como" tivemos um
sofisticado aprendizado "psicodinâmico e psicossocial" que nos
habilitou a sermos engenheiros de idéias.
Na realidade, o "rei-eu"
começa sua faculdade psicodinâmica e psicossocial no campo de energia psíquica
desde a aurora da vida fetal, cujos mestres foram os mordomos inconscientes que
lêem inevitavelmente a história intrapsíquica e promovem os processos de
construção dos pensamentos. Por isso, como afirmei, há nos bastidores da mente
um mundo a ser descoberto, cujas raízes ocultas, mais íntimas, nos alimentam
como seres pensantes, como seres que têm consciência existencial.
Assim como enumerei mais de
três dezenas de pontos teóricos relativos aos processos de construção dos
pensamentos que precisariam do espaço de outros livros para serem abordados, o
assunto relativo aos três mordomos da mente, que estudaremos nos próximos
textos, também é muito extenso; por isso, neste livro, farei apenas uma síntese
deles. Há diversas conseqüências psicológicas, filosóficas, sociológicas e
educacionais que podem ser derivadas desses textos.
Capítulo 5
O Fenômeno da Autochecagem: O Gatilho da Memória
O FENÔMENO DA AUTOCHECAGEM DA MEMÓRIA E A HISTÓRIA INTRAPSÍQUICA
O fenômeno da autochecagem é
o fenômeno que lê automaticamente a memória. É o primeiro fenômeno que atua na
inteligência. Diante de um estímulo qualquer, seja um pensamento ou um
estímulo físico, ele é acionado e em milésimos de segundos lê a memória,
assimila seu conteúdo e, conseqüentemente, produz as primeiras reações no cerne
da inteligência. Como temos contato com centenas de milhares de estímulos por
dia, o fenômeno da autochecagem é acionado também centenas de milhares de
vezes.
Cada vez que vemos um
estímulo e o identificamos automaticamente como uma poltrona, uma mesa, um
pássaro, uma pessoa, temos que ter consciência que essa identificação
automática não foi produzida de maneira mágica e nem muito menos pelo desejo
do eu em produzir esta identificação, mas pela ação deste fenômeno.
Possuir uma história
intrapsíquica, onde são arquivadas as experiências existenciais, é um
privilégio da espécie humana. O registro da história intrapsíquica na memória é
involuntário e automático, produzido, como disse, por um fenômeno que chamo de
fenômeno RAM — registro automático da memória. Do mesmo modo, a leitura da
memória diante de um estímulo também não é opcional, mas inevitável. Entre os
fenômenos que lêem inevitavelmente a memória, encontra-se o fenômeno da
autochecagem da memória. O fenômeno da autochecagem inicia as primeiras
leituras da memória, por isso ele também pode ser chamado de fenômeno do
gatilho da memória.
A reação frente a um objeto
fóbico não é produzida pelo eu, mas pelo fenômeno do gatilho da memória. Do
mesmo modo grande parte dos movimentos musculares, inclusive aqueles que
meneiam a cabeça, concordando ou discordando das palavras que ouvimos, são
freqüentemente produzidos pelo gatilho da memória, ou seja, são autochecados
nos arquivos da memória e produzidos espontaneamente sem a autorização do eu.
As reações impulsivas também são produzidas por este fenômeno. Toda vez que
reagimos sem pensar somos dirigidos não pelo eu, mas pela autochecagem
espontânea e automática da memória.
O eu pode administrar
seletivamente determinadas leituras da memória, mas grande parte dessa leitura
é realizada involuntariamente. Quando essa leitura é produzida pelos
"mordomos da mente", o eu tem grande dificuldade e, às vezes, até a
impossibilidade de administrá-la.
Ao contemplar auditiva ou
visualmente uma palavra pertinente a uma "língua" que dominamos, a
definição da palavra torna-se um processo automático e inevitável, pois foi
checada automaticamente na memória. Ao contemplarmos uma criança, um veículo,
uma residência, a cor das roupas, um barco pintado num quadro, enfim, qualquer
estímulo extrapsíquico que tem RPSs (diretivas e associativas) na nossa
história intrapsíquica, elas serão lidas automaticamente pelo fenômeno do gatilho
da memória. Essa autochecagem da memória produz cadeias de pensamentos
essenciais que, lidas virtualmente, geram os pensamentos antidialéticos e
dialéticos, estabelecendo, assim, a consciência existencial do estímulo.
Não é atributo do eu definir
a maioria das imagens e sons que sensibilizam nossos sistemas sensoriais; eles
simplesmente são autochecados na memória e compreendidos automaticamente. O eu
só entra em ação numa fase posterior do processo de interpretação, segundos
depois, para discorrer, discursar, enfim, produzir cadeias de pensamentos mais
complexas sobre os estímulos contemplados.
É impossível conter no estado
de vigília a operação psicodinâmica do fenômeno da autochecagem da memória, a
não ser que o processo de observação esteja comprometido pelo intenso efeito de
alguma substância psicotrópica, ou se a energia emocional estiver submetida a
um forte stress. Neste caso, poderia se comprometer qualitativamente a
assimilação do conteúdo do estímulo, mas não conter o processo de leitura automático
da memória.
O fenômeno da autochecagem
atua na etapa inicial do processo de interpretação. A primeira etapa do
processo de interpretação é produzida pela sensibilidade do estímulo no sistema
sensorial até ocorrer a autochecagem da memória do mesmo na memória. Através
dela se inicia a definição histórica do estímulo contemplado.
Pela definição histórica,
desencadeamos a produção intelectual. Porém, apesar da importância fundamental
da atuação psicodinâmica do fenômeno da autochecagem da memória, podemos
colocar o estímulo observado em um cárcere, por submetê-lo exclusivamente às
dimensões das informações contidas na memória. Uma pessoa que tem preconceitos
contra alguém pode autochecar seus comportamentos e produzir reações que desprezam
completamente o conteúdo dos mesmos, sem submetê-los a uma análise posterior.
Uma pessoa que só gravita em
torno dos pensamentos produzidos pelo gatilho da memória é incapaz de repensar
suas reações e gerenciar suas idéias, portanto, vive debaixo da ditadura do
preconceito. O gatilho autocheca o estímulo na memória e produz os primeiros
pensamentos, mas cumpre ao eu refletir sobre eles e criticá-los depois de
produzidos.
Ao observar uma pessoa tensa,
ansiosa, irritada, desesperada, é fácil julgá-la superficialmente através das
cadeias de pensamentos produzidas pelo fenômeno da autochecagem, sem
considerarmos, através do gerenciamento do eu, as causas intrapsíquicas e
psicossociais que geraram esses comportamentos.
Os estímulos extrapsíquicos,
captados pelo sistema sensorial, são assimilados pelo córtex cerebral, gerando
sistemas de códigos físico-químicos. Esses sistemas de códigos são
transmutados, através de sítios específicos do cérebro, no campo de energia
psíquica, transformando-se nos sistemas de códigos dos pensamentos essenciais,
que ainda são "a-históricos".
Estes sistemas de pensamentos
essenciais "a-históricos" são autochecados na memória, em regiões
específicas do córtex cerebral, conquistando historicidade. A atuação do
fenômeno da autochecagem gera as mais diversas formas de preconceito dos
estímulos que interpretamos. Se o eu não gerenciar esses preconceitos, gera-se,
então, a ditadura do preconceito e do preconceituosismo que comprometem a
democracia das idéias.
Os sistemas de códigos dos
pensamentos essenciais "a-históricos", advindos dos estímulos
extrapsíquicos, são histórico-dependentes, ou seja, são autochecados
automaticamente pela ação do fenômeno da autochecagem na memória.
A autochecagem da memória é
produzida através das leituras das RPSs diretivas (ligada diretamente ao
estímulo extrapsíquico) e das RPSs associativas (relacionada com o mesmo).
Nesse processo de leitura existe uma correspondência entre os sistemas de
códigos físico-químicos recebidos pelo sistema sensorial, os sistemas de
códigos dos pensamentos essenciais "a-históricos" e os sistemas de
códigos físico-químicos (provavelmente eletrônicos) que representam
psicossemanticamente as experiências psíquicas que foram registradas no
arquivo existencial da memória, localizada no córtex cerebral.
O FENÔMENO DA AUTOCHECAGEM CONSTRÓI PENSAMENTOS E ESTIMULA A EMOÇÃO SEM A AUTORIZAÇÃO DO "EU"
Os estímulos extrapsíquicos,
como disse, são histórico-dependentes, ou seja, precisam ser invariavelmente
autochecados na memória intrapsíquica para serem compreendidos. Antes de serem
compreendidos no palco consciente da mente, eles são autochecados na memória,
produzindo as matrizes de pensamentos essenciais históricos. As matrizes de
pensamentos essenciais históricos têm de ter, por sua vez, um sistema de
correspondência entre a leitura virtual dos pensamentos dialéticos e os
sistemas de códigos fisico-químicos das RPSs.
Sem esses sofisticados
sistemas de relação, não seria possível haver determinados níveis de
"correspondência ou relação lógica" entre o pensamento dialético
sobre uma determinada pessoa e a pessoa em si. Por isso, reitero que, embora a
construção de pensamentos ultrapasse os limites da lógica, ela possui um
sistema de relação lógica; caso contrário, não seria possível produzir ciência,
não haveria verdade científica.
Entre os pensamentos
dialéticos e antidialéticos, e a realidade dos objetos e pessoas que nos
circundam, há uma distância infinita, insuperável, pois os pensamentos são
virtuais, antiessenciais, e os objetos e as pessoas são reais, essenciais. Essa
distância nunca é superada, na realidade; nós apenas temos a sensação, a
impressão e a consciência dessa superação pelos níveis de "relação
lógica" produzidos pelos sistemas de relações existentes nos processos de
construção dos pensamentos. Como disse, apesar da intransponibilidade entre a
consciência da essência e a realidade intrínseca da própria essência, é
possível que a construção de pensamentos possa gerar conseqüências
científicas, tais como previsão de fenômenos, comprovação dos argumentos
teóricos e aplicações científicas, através dos sistemas de relação lógica e de
materialização das matrizes dos pensamentos essenciais históricos que estão na
base dos pensamentos dialéticos e antidialéticos.
As matrizes dos pensamentos
essenciais, produzidas pelo fenômeno da autochecagem, não apenas sofrem um
processo de leitura virtual e geram os pensamentos dialéticos e antidialéticos;
elas também reorganizam o caos da energia como um todo. Elas atuam
psicodinamicamente no processo de transformação da energia emocional e
motivacional e, em pequenas frações de segundos depois, sofrem um processo de
leitura virtual que gera a construção dos pensamentos conscientes. Assim, as
ofensas, os elogios, as situações fóbicas, as circunstâncias existenciais, etc.
antes de serem conscientizadas pelo eu, são autochecadas na história
intrapsíquica, tornam-se matrizes de pensamentos essenciais históricos, que
transformam primeiramente a energia emocional e motivacional para, em fração de
segundos, sofrerem uma leitura virtual que gerarão os pensamentos dialéticos e
antidialéticos no palco da consciência intelectual.
Há vários exemplos que, se
observados através de uma "pesquisa empírica aberta" disciplinada, e
que reorienta continuamente o processo de observação, interpretação e produção
de conhecimento, podem comprovar indiretamente que os estímulos extrapsíquicos
são autochecados historicamente antes de ocorrer a assimilação ou compreensão
intelectual do mesmo.
Uma pessoa que assiste a um
filme de terror pode resolver não sofrer nenhuma sensação fóbica com as cenas
de terror, devido à conscientização de que existe um diretor de cinema, um
artista plástico, um câmera, um iluminador por detrás de cada cena bem como
devido à conscientização de que o "monstro" do filme é meramente um
ator, que repetidas vezes ensaiou seu comportamento e, provavelmente, ironizou
os textos que interpreta. Porém, se o espectador estiver sozinho na sua sala
de TV e se ela estiver à meia-luz, quando a porta começa a ranger, sugerindo a
iniciação da cena de terror, o espectador, ainda que esteja racionalizando os
estímulos e determinado a ficar indiferente a eles, sofrerá a ação
inconsciente do fenômeno da autochecagem, que lerá automaticamente a sua
memória. Nessa leitura, ele resgatará um grupo de RPSs ligadas às experiências
fóbicas vividas na sua infância e que se relacionam ou se associam aos
estímulos extrapsíquicos contidos nas cenas. Assim, ele sofrerá, ainda que não
deseje, determinado grau de ansiedade fóbica, principalmente se seu passado for
rico em fobias e superstições.
O exemplo acima evidencia um
dos segredos do funcionamento da mente humana. O fenômeno da autochecagem lê a
memória, constrói pensamentos e transforma a energia psíquica sem a autorização
do eu.
O GATILHO DOS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO MULTIFOCAL DOS PENSAMENTOS
O fenômeno da autochecagem
desencadeia, em frações de segundos, o gatilho das primeiras reações da
inteligência. Quando um observador contempla os estímulos extrapsíquicos (ex.,
a arquitetura das casas, o comportamento humano, os sons musicais, um quadro
etc.) ele produz, em última análise, nos bastidores da sua mente, as matrizes
dos pensamentos essenciais "a-históricas", que autochecadas na
memória produzem as matrizes dos pensamentos essenciais "históricos".
Essas matrizes atuam psico-dinamicamente no processo de transformação da
energia emocional. Frações de segundos depois, elas sofrem o processo de
leitura virtual que gerará a produção de pensamentos dialéticos e antidialéticos.
Quando os pensamentos
dialéticos e antidialéticos são formados, o eu entra em cena e, dependendo de
sua capacidade de gerenciamento, exerce uma revisão crítica das idéias e das
reações emocionais desencadeadas e produzidas pelo fenômeno da autochecagem ou
do gatilho da memória.
O desencadeamento da
construção da inteligência ocorre freqüentemente através dos mordomos
psicodinâmicos da mente sem a participação do eu. Porém, cumpre a ela ser o
agente modificador da sua história psicossocial e exercer um redirecionamento
desses processos de construção que se desencadearam sem a sua determinação
consciente e lógica.
A autochecagem dos estímulos
extrapsíquicos começa na vida intra-uterina. Com o decorrer do tempo, se
processa também a autochecagem dos estímulos intrapsíquicos, ou seja, das
idéias, das análises, das emoções etc, que são geradas diariamente na mente
humana. Ao longo do processo existencial, o fenômeno do gatilho da memória
opera-se psicodinamicamente bilhões de vezes, expandindo a história da
personalidade, pois cada experiência gerada por ele é registrada
automaticamente pelo fenômeno RAM.
A leitura desta história,
produzida pelo fenômeno da autochecagem, e as cadeias de pensamentos geradas
por ele contribuem, paulatinamente, para educar o eu, "orientando-o"
inconscientemente a utilizar a memória, estimulando-a a percorrer as mesmas
trajetórias psicodinâmicas.
A seguir, será apresentado um
quadro didático sobre o fenômeno da autochecagem da memória e sua atuação
psicodinâmica na construção das cadeias de pensamentos e na formação da
consciência existencial.
GRÁFICO 1
FENÔMENO DA AUTOCHECAGEM DA MEMÓRIA (GATILHO)
Produção automática de cadeias
de pensamentos e de experiências emocionais pela autochecagem da memória diante
dos estímulos extrapsíquicos e intrapsíquicos
Capítulo 6
O Fenômeno do Autofluxo da Energia Psíquica e a Ansiedade Vital
O CAMPO DE ENERGIA PSÍQUICA EXPERIMENTA UM CONTÍNUO ESTADO DE DESEQUILÍBRIO PSICODINÂMICO
O fenômeno do autofluxo é o
fenômeno que lê continua e diariamente inúmeros territórios da memória
produzindo uma "usina" de emoções e de pensamentos cotidianos.
Depois de todos estes anos de
pesquisa em que vivi continuamente a tríade de arte intelectual e a
reorganização do processo de observação, interpretação e produção de
conhecimento, tenho a convicção de que o campo de energia psíquica nunca
encontra o equilíbrio estático e nem o psicodinâmico. Os jargões da psicologia,
tais como "equilíbrio emocional", "pessoa equilibrada", são
superficiais; não procedem do ponto de vista científico.
O campo de energia psíquica
nunca se "equilibra", mas vive continuamente um "desequilíbrio
psicodinâmico", que alavanca o processo de organização dos microcampos de
energia psíquica, expandindo, assim, continuamente suas possibilidades de
construção.
O conceito do
"desequilíbrio psicodinâmico" é extremamente importante e está
ligado ao fluxo vital da energia psíquica. Chamo esse desequilíbrio
psicodinâmico de "ansiedade vital". O fluxo vital da energia psíquica
possui intrinsecamente uma ansiedade vital ou desequilíbrio psicodinâmico
contínuo em toda a trajetória da existência humana.
A ANSIEDADE VITAL
Todo ser humano vive
continuamente, nos bastidores da sua mente, uma ansiedade vital. Ninguém pode
se livrar da ansiedade vital. A ansiedade vital é diferente da ansiedade
patológica, da tensão emocional doentia, que normalmente é angustiante e,
freqüentemente, é acompanhada de sintomas psicossomáticos. A ansiedade vital é
fundamental no processo de leitura da história intrapsíquica e de construção da
inteligência. A ansiedade vital anima e provoca psicodinamicamente os
processos de construção dos pensamentos, da consciência existencial e as
transformações da energia emocional e motivacional.
Embora todo ser humano tenha
essa ansiedade vital, ela é qualitativamente diferente de pessoa para pessoa.
As crianças hiperativas ou hiper-cinéticas têm uma ansiedade vital intensa; por
isso, provocam inconscientemente e de maneira exacerbada os fenômenos que
fazem a leitura da memória, gerando um hiperfluxo de transformações emocionais
e motivacionais e uma hiperconstrutividade de pensamentos, que se expressa na
hiperatívidade psicomotora. Algumas crianças autistas, ao contrário, têm sua
ansiedade vital diminuída e, com isso, têm uma estimulação psicodinâmica
reduzida dos fenômenos que fazem a leitura da memória, que se traduz numa
redução da transformação da energia emocional, numa redução da construção
quantitativa dos pensamentos e numa redução pela interação e interesse social.
Por isso, elas criam um mundo particular dentro de si mesmas. Nas crianças
autistas o grande desafio psicoterapêutico é estimular os mordomos
psicodinâmicos que constroem os pensamentos a contribuírem para formar o eu (a
consciência de si mesmo e a consciência do mundo extrapsíquico).
A ansiedade vital está
intimamente ligada aos níveis de desorganização e reorganização pelos quais as
experiências psíquicas passam no campo da energia psíquica. A ansiedade vital é
o estado de desequilíbrio psicodinâmico contínuo e irrefreável que anima o
fluxo vital da energia psíquica, que, como disse, é o "princípio dos
princípios" do processo de transformação da própria energia psíquica, do
processo de formação da personalidade.
A ansiedade vital está ligada
psicodinamicamente tanto à qualidade quanto à velocidade da leitura da memória
e, conseqüentemente, à qualidade e velocidade dos processos de construção da
psique, e também, conseqüentemente, à qualidade do processo de formação da
personalidade. Diversas variáveis atuam psicodinamicamente na ansiedade vital
determinando seus níveis qualitativos, tais como os microcampos de energia
físico-química determinadas pelo metabolismo neuroendócrino (determinado
geneticamente), o pool de experiências vivenciadas no meio ambiente
intra-uterino, a qualidade da história intrapsíquica, a estimulação
socioeducacional, a operacionalidade psicodinâmica do fenômeno da
psicoadaptação, etc.
A ansiedade vital é,
portanto, uma variável intrapsíquica influenciada psicodinamicamente por variáveis
de origem genética, socioeducacional e intrapsíquica. Apesar da importância da
ansiedade vital na construção da inteligência, eu me restringirei apenas a esta
abordagem sintética sobre ela.
O FENÔMENO DO AUTOFLUXO E SUA RELAÇÃO COM A ANSIEDADE VITAL
O autofluxo é uma palavra
conjugada que aqui significa um fluxo por si mesmo, um fluxo espontâneo e
contínuo. Fenômeno do autofluxo é uma expressão que representa um conjunto de
fenômenos que atua nos bastidores da mente humana e que financia um fluxo espontâneo
e inevitável da energia psíquica, gerando continuamente uma produção de
pensamentos, idéias, motivações, emoções. A energia psíquica está continuamente
fluindo ou se transformando na forma de pensamentos e emoções. Cada pensamento
e emoção produzida no campo da energia psíquica se desorganiza e se reorganiza
continuamente em outros pensamentos e emoções.
Ninguém consegue interromper
a transformação da energia psíquica. Ela sofre a ação contínua e inevitável do
fenômeno do autofluxo. É impossível interromper a produção de pensamentos.
Todos viajam nas avenidas dos pensamentos e se desligam, ainda que por
instantes, do mundo concreto. Os juízes viajam enquanto julgam os réus. Os
psicoterapeutas, por mais atentos que sejam, viajam enquanto atendem seus
pacientes. Os cientistas viajam enquanto pesquisam. As crianças viajam no mundo
dos seus sonhos. Os idosos, nas trajetórias do seu passado.
Alguns viajam muito, estão
sempre flutuando nos seus pensamentos. Outros viajam menos, mas mesmo assim
fazem constantes viagens intelectuais. Uns sofrem muito com seus pensamentos
traumáticos, outros se alegram com suas idéias, pois elas estimulam seus
projetos. Uns pensam e logo se concentram nas suas tarefas. Outros pensam tanto
que se desligam do que estão fazendo, por isso têm grande déficit de
concentração e, conseqüentemente, se esquecem facilmente dos fatos cotidianos.
Todavia, esse déficit de memória não é neurológico, mas psicodinâmico, portanto
não é grave. Ele é fruto apenas da hiperprodução de pensamentos, situação que
ocorre quando alguém vive intensamente o fenômeno do autofluxo. As pessoas
hiperativas e as estressadas freqüentemente apresentam esse déficit de memória
psicodinâmico.
Comentei que a psique humana
é um campo de energia psíquica que sofre um fluxo vital contínuo de
transformação essencial; por isso tenho falado que, da aurora da vida fetal até
o último suspiro da existência, todos vivemos uma revolução da construção das
idéias e uma usina psicodinâmica de emoções. O fenômeno do autofluxo contribui
decisivamente para gerar o fluxo vital da energia psíquica.
A ansiedade vital é uma
variável intrapsíquica que participa do fenômeno do autofluxo. A ansiedade
vital está ligada psicodinamicamente também a outras variáveis intrapsíquicas,
tais como o fenômeno da auto-checagem da memória, a âncora da memória, o eu,
etc.
O fenômeno do autofluxo é um
fenômeno intrapsíquico que ocupa um lugar de destaque como mordomo da mente.
Ele é responsável pela leitura da história intrapsíquica, pela reorganização do
caos da energia psíquica, pela construção inconsciente das idéias e,
conseqüentemente, pela educação, orientação e organização do eu. Quem forma o
"eu" não é a educação escolar e familiar, como até hoje pensávamos,
mas principalmente o fenômeno do autofluxo. A educação social apenas dá um
pequeno empurrão num processo belo e inevitável.
Milhares de pensamentos são
produzidos por dia no palco da mente de um bebê, através das leituras do
fenômeno do autofluxo. Num ano são milhões. Cada pensamento é registrado
automaticamente pelo fenômeno RAM, tornando-se um pequeno e precioso tijolo da
arquitetura do "eu". Quando uma criança de três anos diz que tem medo
de ficar num quarto fechado, esta pequena reação fóbica não é produzida apenas
pela palavra medo, mas pela consciência do medo, uma consciência que é gerada
pela leitura instantânea de milhares de informações contidas na sua memória,
ligadas à ausência de sua mãe, insegurança, sentimento de solidão, vazio,
angústia.
Os computadores jamais
sentirão medo e solidão, mas o homem, por desenvolver a consciência de si
mesmo, por possuir um "eu", sentirá e terá consciência dessas
emoções. Os computadores são mais lógicos do que o homem, mas o homem é
indescritivelmente mais complexo do que eles. Até a memória humana é mais
complexa que a dos computadores. No homem ela não é lida por índice, mas por
conteúdos seletivos.
O ciclo de construção do
campo de energia psíquica, expresso pela organização, pelo caos e reorganização
da construção dos pensamentos é, freqüentemente, muito mais rápido do que o
ciclo fisico-químico da construção. Uma casa de alvenaria demoraria décadas ou
séculos para se submeter completamente ao caos fisico-químico e ser
incorporada à terra e, a partir daí, participar de outras estruturas físicas.
De outro lado, como vimos, as idéias, os pensamentos, as análises, a
ansiedade, o prazer, as reações fóbicas, etc, embora sejam construções
psicodinâmicas extremamente complexas, vivem o caos em segundos ou frações de
segundos para, em seguida, serem reorganizadas em novos microcampos de energia
psíquica, que definimos como novas emoções, motivações e matrizes de pensamentos
essenciais.
Se o campo de energia
psíquica não passasse, milhares de vezes ao dia, por um "ciclo de
construção psicodinâmico" extremamente rápido, não seria possível
desorganizar a estrutura psicodinâmica intrínseca dos pensamentos, das emoções
e das motivações e reorganizá-las novamente em outras construções
psicodinâmicas. Sem a sofisticação e rapidez do "ciclo de construção
psicodinâmico" não seríamos o que somos. O homem, como vimos, não seria o
complexo e sofisticado Homo intelligens, não desenvolveria sua
personalidade nem construiria história e uma identidade psicossocial, pois sua
mente não viveria sob o regime de uma construção inevitável de idéias e de
transformações da energia emocional e, conseqüentemente, não experimentaria
diariamente um conjunto de pensamentos antecipatórios, de análises, de
sínteses, de resgates de experiências passadas, de prazer, de angústia, de
ansiedade, de insegurança, de desejo, de impulso.
Reitero, o fenômeno do
autofluxo participa decisivamente do "ciclo psicodinâmico da
construção" da mente, participa decisivamente da construção de
pensamentos e de experiências emocionais. O fenômeno do autofluxo não apenas
participa da leitura da memória, mas ele mesmo é multifocal, pois é composto de
um conjunto de fenômenos ou de variáveis intrapsíquicas da mente. Entre as
variáveis que participam da composição e ação psicodinâmica do fenômeno do
autofluxo está a ansiedade vital, o fenômeno da psicoadaptação, a energia
emocional.
A energia psíquica jamais
pára de se transformar. Todos sabemos que produzimos milhares de pensamentos
diariamente. Se nos interiorizarmos e fizermos uma análise desses pensamentos,
verificaremos que apenas uma pequena parte desses pensamentos foi produzida
debaixo do gerenciamento do eu. Quem, então, é responsável pela produção
clandestina de pensamentos que ocorre na mente humana? Diversos fenômenos, dos
quais o fenômeno do autofluxo é o mais importante. Ninguém consegue interromper
a construção dos pensamentos e as transformações da energia emocional, porque
ninguém consegue interromper a atuação psicodinâmica do fenômeno do autofluxo.
O homem (a psique) vive para pensar e pensa para viver. Pensar não é uma opção
do homem; pensar é o seu destino inevitável. A opção do homem ocorre apenas no
que tange ao gerenciamento da construção inevitável dos pensamentos.
O fenômeno do autofluxo lê
multifocalmente a história intrapsíquica, produzindo em grande parte do
processo existencial diário inúmeras matrizes de pensamentos essenciais
históricos. Essas matrizes atuarão no campo de energia emocional e
motivacional, produzindo uma usina psicodinâmica de emoções e motivações. Além
disso, elas sofrerão um processo de leitura virtual, produzindo a construção
dos pensamentos dialéticos e antidialéticos.
A construção de pensamentos,
gerada pelo fenômeno do autofluxo, ocorre freqüentemente, como comentei, sem a
determinação consciente do eu, ou seja, através de mecanismos psicodinâmicos
espontâneos que envolvem a ansiedade vital, a estimulação da energia
motivacional, a leitura da história intrapsíquica, a formação das matrizes dos
pensamentos essenciais, a leitura virtual dessas matrizes, a produção de
pensamentos dialéticos e antidialéticos na esfera da virtualidade ou da
perceptividade.
O mundo dos pensamentos e das
emoções produzidos pelo fenômeno do autofluxo e pelos demais fenômenos
intrapsiquicos que fazem a leitura da história intrapsíquica, é um dos maiores
mistérios da mente humana, um mistério que está no âmago da inteligência.
A MAIOR FONTE DE ENTRETENIMENTO HUMANO
O fenômeno do autofluxo é
acionado através dos estímulos extra-psíquicos, intraorgânicos e
intrapsiquicos. Porém, independentemente desses estímulos ele é acionado pela
atuação psicodinâmica da ansiedade vital, gerando um fluxo por si mesmo, um
fluxo vital e espontâneo da energia psíquica. Na ausência de pensamentos
essenciais, dialéticos, antidialéticos (estímulo intrapsíquico), de estímulos
extrapsíquicos (ex., imagens e sons) e de estímulos intraorgânicos (ex.,
endorfinas, drogas psicotrópicas, mensagens dos neurotransmissores) o fenômeno
do autofluxo é psicodinamicamente ativado pela ansiedade vital que o constitui.
A ansiedade vital provoca um
processo de leitura espontânea, sem motivação consciente da memória, gerando
pensamentos essenciais que transformarão a energia emocional e motivacional e
que servirão de base para a produção de pensamentos dialéticos e antidialéticos
sem a autorização do eu, promovendo, assim, o autofluxo vital da energia
psíquica.
Os estímulos extrapsíquicos
provocam primeiramente a atuação do fenômeno da autochecagem da memória, que
produz cadeias de pensamentos essenciais, dialéticas e antidialéticas e,
depois, acionam o fenômeno do autofluxo. Ao observar o comportamento de uma
pessoa (estímulo extrapsíquico), produzimos o primeiro grupo de pensamentos
através do fenômeno da autochecagem da memória; porém, o segundo grupo de pensamentos
será fruto do gerenciamento do eu ou do fenômeno do autofluxo. Se o segundo
grupo de pensamentos foi aleatório, sem uma agenda lógica e coerente, ele
normalmente foi construído pelo fenômeno do autofluxo. O fenômeno do autofluxo
produz aquelas viagens intelectuais em que nos distanciamos da situação real e
divagamos por nossas idéias.
Os estímulos intra-orgânicos
também acionam primeiramente o fenômeno da autochecagem da memória. Se os
estímulos intraorgânicos forem decorrentes de distúrbios metabólicos graves ou
se forem drogas psicotrópicas alucinógenas, a autochecagem da memória será
totalmente bizarra, incoerente, ilógica, gerando cadeias de pensamentos
alucionatórios e delirantes, que não possuem um sistema de relação com a
realidade extrapsíquica e intrapsíquica (memória). Após a atuação do fenômeno
da autochecagem da memória e, conseqüentemente, após a produção das primeiras
cadeias de pensamentos e das primeiras reações emocionais, o fenômeno do
autofluxo é acionado. Uma vez acionado, ele continuará a construção das
cadeias de pensamentos e das experiências emocionais. Porém, a qualquer
momento, o eu pode se conscientizar de que não está gerenciando a construção de
pensamentos e retomar esse gerenciamento, dando coerência a essa construção.
Muitas vezes estamos fazendo viagens intelectuais absurdas em nossas mentes e,
de repente, nos conscientizamos desse processo e, assim, interrompemos a
produção das fantasias e das idéias incoerentes e redirecionamos a construção
dos pensamentos.
Confesso que, na minha
trajetória de pesquisa, fiquei pasmado em perceber a complexidade da
construção dos pensamentos sem a autorização do eu. Eu pensava que todos os
pensamentos produzidos na mente tinham algum tipo de ligação com o eu, que por
sua vez, de alguma forma, atuaria administrando a sua construtividade. Porém,
como explicar a rica construção de pensamentos e das experiências emocionais
ocorridas nos sonhos? Como explicar a multiplicidade de pensamentos e fantasias
que diariamente são construídas em nossa mente e que, às vezes, nos causam
intensa ansiedade e angústia existencial, tais como resgatar situações
angustiantes do passado e antecipar situações traumáticas do futuro, e que são
produzidas à revelia da determinação consciente do "eu"? Como
explicar as idéias fixas de conteúdo negativo, como ocorre nos transtornos
obsessivos, ligadas a acidentes, a perdas, a doenças graves, a mortes etc, que
geram forte tensão emocional e que são rejeitadas sem sucesso pelo eu?
Nos transtornos obsessivos há
uma hiperconstrutividade de idéias de conteúdo negativo que não é explicada por
nenhum princípio que rege o processo de formação da personalidade estabelecido
pelos teóricos da personalidade. O princípio do prazer de Sigmund Freud, o self
criador de Carl Gustav Jung, a busca da superioridade de Adler, a busca do
sentido existencial de Viktor Frankl etc, não explicam a hiperconstrutividade
de idéias fixas de conteúdo negativo ocorrida nos transtornos
obsessivo-compulsivos (TOC) e que não são administradas pelo eu. Porém, os
transtornos obsessivos podem ser explicados pelo fluxo vital da energia
psíquica, que é o princípio dos princípios da psique, pois evidencia que ocorre
um processo vital e inevitável de autotransformações da energia psíquica.
O fluxo vital da energia
psíquica é o princípio vital que anima e promove o processo de formação da
personalidade e o desenvolvimento da história psicossocial do homem. Os
fenômenos psíquicos estão imersos no fluxo vital da energia psíquica; por isso
lêem continuamente a história intrapsíquica, produzindo as cadeias de
pensamentos. O fluxo vital da energia psíquica sofre um "ciclo
psicodinâmico de construção", expresso por um processo contínuo e
inevitável de organização, desorganização e reorganização.
Quando estudamos os processos
de construção dos pensamentos, compreendemos que ocorre uma riquíssima
operacionalidade dos fenômenos que estão na base do funcionamento da mente, bem
como uma riquíssima participação das variáveis intrapsíquicas que atuam nessa
leitura. É impossível interromper o fluxo vital da energia psíquica; por isso,
como disse, é impossível interromper a construção das idéias e as
transformações emocionais.
Se fosse possível interromper
o fluxo vital da energia psíquica, a vida humana seria um tédio insuportável,
uma solidão angustiante, pois a construção das idéias e a produção das emoções
e motivações, geradas sem a autorização do eu, são a mais importante fonte de
entretenimento humano.
Gastamos, diariamente, grande
parte do nosso tempo mergulhados em nosso mundo intrapsíquico, envolvidos com a
construção contínua e inevitável das idéias, emoções e desejos produzidos à
revelia da determinação do eu. Até mesmo a vida dos autistas seria intensamente
angustiante se não houvesse a operacionalização espontânea dos fenômenos que
realizam a construção dos pensamentos.
Toda a indústria do turismo e
todas as demais fontes de entretenimentos, tais como o cinema, a TV, as artes,
a literatura etc, produzidas pelo homem são restritivas se comparadas à "fábrica"
de idéias e de emoções produzidas espontaneamente no campo de energia psíquica.
O fenômeno do autofluxo é uma variável que contribui significativamente para
produzir o processo contínuo de transformação da energia psíquica, conduzindo o
homem em toda a sua trajetória existencial, dormindo ou em estado de vigília, a
viver sob o regime dos pensamentos e das emoções.
O fenômeno do autofluxo é o
grande gerador inconsciente do fluxo vital da energia psíquica,
independentemente das características doentias ou saudáveis dos pensamentos que
produz. Quem é que teria coragem de chamar os amigos e os parentes para fazer
uma conferência sobre o universo de pensamentos que produzimos no silêncio de
nossas mentes? Pensamos tantas coisas bizarras, que provavelmente nem o mais
puritano dos homens teria coragem de fazer uma exposição de todos os
pensamentos construídos em sua mente.
O FENÔMENO DO AUTOFLUXO CONTRIBUINDO PARA A FORMAÇÃO DA HISTÓRIA INTRAPSÍQUICA E DO "EU"
A atuação psicodinâmica e
construtiva do fenômeno do autofluxo, associada à atuação psicodinâmica e
construtiva do fenômeno da autochecagem da memória, produz desde a aurora da
vida do feto um grupo contínuo de experiências psíquicas que, registrado
automaticamente pelo fenômeno RAM, enriquece a história intrapsíquica. A medida
que a história intrapsíquica se enriquece, os fenômenos intensificam o ciclo
psicodinâmico de construção de matrizes de pensamentos essenciais que, na
vida extra-uterina, gerará a produção de pensamentos dialéticos e antidialéticos.
Com a expansão da produção de pensamentos dialéticos e antidialéticos, o eu
começa a se organizar e a ler continuamente as informações pertinentes a história
intrapsíquica para construir pensamentos e produzir emoções sob uma
determinação consciente.
Na criança, em seus primeiros
anos de vida, o eu constrói conscientemente pensamentos simples, que expressam
pequenos desejos, tais como tomar água, deslocar-se para determinado ambiente,
querer determinado objeto etc, embora a leitura da história intrapsíquica e a
produção inconsciente das matrizes de pensamentos, que estão na base desses
simples pensamentos, sejam altamente complexas. Com o passar do tempo, à
medida que o eu aprende com os mordomos da mente os caminhos psicodinâmicos da
leitura e utilização da memória, ele começa a enriquecer a construção de
pensamentos e o gerenciamento dessa construção. Penetrar nos arquivos da
memória, utilizar os parâmetros e as informações neles contidos, processar a
construção dos pensamentos e expandir cada vez mais o gerenciamento dessa
construção, são os mais sofisticados trabalhos intelectuais do eu.
O processo de leitura da
memória e da construção dos pensamentos pelos fenômenos intrapsíquicos, que
gera uma aprendizagem psicodinâmica e psicossocial lenta e gradual do eu, é uma
das áreas mais importantes e complexas da Psicologia. Sem compreendê-lo, haverá
grandes lacunas teóricas não apenas na Psicologia, mas também nas demais
ciências que estudam a psique e suas manifestações.
No ambiente clandestino e
inconsciente dos bastidores da mente, o "eu" aprende um dos mais
refinados, complexos e sofisticados paradoxos da inteligência, que é aprender
silenciosamente os caminhos psicodinâmicos "inconscientes" da leitura
da história intrapsíquica e do gerenciamento dos processos de construção dos
pensamentos. O eu só pode se organizar e gerenciar o processo de construção dos
pensamentos, e os demais processos de construção da inteligência, se ele
paradoxalmente aprender a ler "inconscientemente" a história intrapsíquica
e produzir também, "inconscientemente", as cadeias psicodinâmicas
das matrizes de pensamentos. Os mais complexos trabalhos intelectuais da mente
humana não são a construção dos computadores, as grandes obras de engenharia,
a produção da ciência, mas são a leitura da memória, a construção dos
pensamentos e o gerenciamento dessa construção, pois esses trabalhos, além de
serem sofisticadíssimos, são produzidos por processos totalmente inconscientes.
A ciência, as artes e a tecnologia estão apenas na ponta do iceberg da
inteligência multifocal.
Ao observar as pessoas que
nos circundam produzindo idéias e expressando-as, deveríamos ficar intrigados
com o gerenciamento sobre fenômenos inconscientes que participam do espetáculo
da construção dessas idéias, mesmo das mais ínfimas. Todos pensamos, mas não
nos surpreendemos com os mistérios contidos no espetáculo da construção dos
pensamentos, mesmo dos mais débeis. Quando observamos um cientista produzindo
pensamentos complexos e uma pessoa deficiente mental produzindo uma pequena
idéia, não temos a consciência de que as enormes diferenças desses pensamentos
existe apenas na sua expressão consciente, exterior, pois interiormente ambos
foram produzidos pela sofisticada operacionalidade dos mesmos fenômenos
inconscientes. Se a pessoa deficiente mental não tivesse uma memória
comprometida, e se tivesse um ambiente socio-educacional adequado, ela poderia
desenvolver toda a agenda de formação do eu e, assim, ter um gerenciamento e
uma construção de pensamentos também complexa.
Inúmeras vezes, gastei horas
e horas contemplando atenta e embevecidamente as pessoas produzindo e
expressando seus pensamentos, bem como a minha própria construção de
pensamentos. Ao observar a construção de uma idéia, mesmo produzida por uma
criança pequena, eu fazia a mim mesmo centenas de perguntas sobre ela, e
exercia a arte da dúvida, da crítica para procurar entender os processos de
construção que a envolviam. O uso desses procedimentos não me era confortável,
pois me conduzia ao caos intelectual e revelava minha limitação intelectual.
O caos intelectual, por um
lado, pode ser desconfortável, pois desorganiza nossos paradigmas
intelectuais, postulados, conceitos históricos e teóricos, mas, por outro
lado, expande as possibilidades de compreensão e de construção do conhecimento.
A luz que emerge do caos é reveladora. Após anos de caos intelectual, fui
compreendendo paulatinamente a atuação clandestina do fenômeno do autofluxo na
construção da inteligência.
O processo socioeducacional
apenas contribui com um pequeno "empurrão extrapsíquico", um pequeno
redirecionamento socioeducacional para a silenciosa e inevitável formação do eu
a partir da operação psicodinâmica espontânea dos mordomos inconscientes da
mente.
O eu, ao se conscientizar das
cadeias de pensamentos produzidas inconscientemente pelo fenômeno da
autochecagem da memória e pelo fenômeno do autofluxo, interrompe ou continua
essas cadeias. A continuação da construção dessas cadeias é também uma forma
silenciosa e importante de aprender a se organizar e desenvolver o
gerenciamento dos processos de construção dos pensamentos. Nos adultos, é
fácil verificar isso. O fenômeno do autofluxo faz uma leitura da memória e
produz pensamentos referentes a uma situação ocorrida na infância, por exemplo,
um atrito com algum colega de escola. Nesse exemplo, o fenômeno do autofluxo
pode ter sido ou não desencadeado por algum pensamento anterior (ex., pensamento
sobre a dificuldade nas relações interpessoais) ou por algum estímulo do meio
ambiente (ex., imagem de duas crianças brigando) ou, então, pela leitura
aleatória da memória estimulada pela ansiedade vital. Durante a produção de
pensamentos dialéticos e antidialéticos produzidos pelo fenômeno do autofluxo,
o eu se conscientiza dessa produção e começa a gerenciá-la. Assim, ele penetra
nos meandros da memória, utiliza informações e continua a construção de
pensamentos iniciada pelo fenômeno do autofluxo. Nesse caso, é possível que o
eu comece a questionar por que o atrito surgiu, de que maneira ele poderia ser
solucionado, como está o colega depois de tantos anos que esse fato ocorreu
etc. Embora não percebamos, freqüentemente o eu continua a construção de
pensamentos não iniciada por ele, mas pelo fenômeno do autofluxo ou pelo fenômeno
da autochecagem da memória. Essa frase evidencia que a inteligência humana é
multifocal, pois é formada sobre os alicerces da construção de pensamentos.
O eu se conscientiza de toda
cadeia psicodinâmica virtual dos pensamentos dialéticos e antidialéticos
produzida ou não por ele, embora nunca chegue a se conscientizar da cadeia
psicodinâmica das matrizes dos pensamentos essenciais. Gastamos boa parte do
nosso tempo pensando, produzindo idéias, antecipando situações do futuro,
resgatando situações do passado, construindo pensamentos sobre os problemas
existenciais etc. Enfim, gastamos boa parte do nosso tempo voltados para o
mundo das idéias e das emoções desencadeadas pelos fenômenos inconscientes da
mente.
Uma pessoa dirigindo um
veículo, uma pessoa assistindo a uma palestra, a um culto religioso, a uma
peça teatral etc., faz com freqüência inserções dentro do seu próprio ser,
produzindo ricas viagens intelectuais que o desconecta da realidade exterior,
expressa por idéias e emoções que muitas vezes não têm relação com os
estímulos que estão à sua volta. Uns viajam mais outros menos, mas no mundo
intelectual todos são viajantes.
É impossível se concentrar ou
se fixar plenamente no mundo extra-psíquico, a não ser por determinados
períodos. Os psicoterapeutas viajam intelectualmente quando atendem a seus
pacientes; os alunos viajam quando estão diante dos seus professores; os
juízes viajam quando estão julgando os réus; os jornalistas viajam quando
tentam organizar os fatos. Os filósofos e os cientistas estão sempre viajando
e se entretendo intelectualmente. Claro que precisamos nos concentrar no mundo
extrapsíquico, principalmente para ouvir atentamente o "outro"; mas
quando o "outro" reclamar que estamos distraídos, temos que pedir
desculpas e assumir que somos viajantes no mundo das idéias. Viajar muito, às
vezes, é um problema, pois dificulta a concentração nos estímulos externos,
comprometendo as construções dos pensamentos, a materialização da produção
intelectual, a práxis dos pensamentos; mas deixar de viajar é impossível, pois
pensar é o destino do homem. Fazemos, diariamente, centenas ou milhares de
viagens curtas ou longas no mundo das idéias. Porém, o problema freqüentemente
não está na quantidade das viagens intelectuais que fazemos, mas na qualidade
dessas viagens, que pode refletir as dificuldades de gerenciamento da
construção dos pensamentos pelo eu.
As pessoas portadoras de
transtornos obsessivos sofrem, como veremos, pela quantidade exagerada e,
principalmente, pela qualidade ruim das suas viagens intelectuais produzidas
pelo fenômeno do autofluxo.
TRÊS POSTURAS DO EU DIANTE DA REVOLUÇÃO DAS IDÉIAS.
OS TRANSTORNOS OBSESSIVOS
O eu pode assumir três
posturas diante da construção de pensamentos e das transformações emocionais:
a) Ser um espectador passivo, que apenas se conscientiza das mesmas, b) Ser um
agente psicodinâmico coadjuvante, que tem pequena participação na construção
das mesmas, c) Ser um agente psicodinâmico principal, que tem grande controle
qualitativo e quantitativo das mesmas.
Na maior parte do tempo, o eu
é um espectador passivo ou um agente coadjuvante da revolução das idéias
ocorrida no palco de nossas mentes. Nos transtornos obsessivos, a passividade
ou atuação psicodinâmica coadjuvante é evidente. Nesses transtornos, os
mordomos da mente produzem uma espécie de "conspiração construtiva"
contra o eu, produzindo idéias fixas, geralmente de conteúdo negativo, que não
são autorizadas pelo eu. Imagine um jurista de alto nível cultural produzindo a
idéia fixa de que tem um câncer na garganta, indo toda semana a médicos
otorrinolaringologistas, durante anos, para tirar suas dúvidas com respeito a
ter ou não essa doença. Imagine um cientista produzindo obsessivamente, durante
vinte anos, centenas de vezes ao dia, imagens mentais (pensamentos
antidialéticos) sobre um acidente de carro em que seu corpo está preso nos
escombros. Imagine um engenheiro e professor de faculdade produzindo obsessivamente,
centenas de vezes ao dia, pensamentos dialéticos e antidialéticos sobre uma
faca penetrando no corpo dos filhos que ele ama. A análise minuciosa da
intencionalidade do eu e das cadeias psicodinâmicas desses pensamentos
evidencia claramente que esses pacientes rejeitam a idéia de câncer, de
acidente e de morte dos filhos.
Precisamos compreender que
não apenas o desejo consciente e inconsciente de algo ou de alguma coisa
privilegia o arquivo de uma experiência em áreas mais nobres ou disponíveis da
memória, facilitando sua leitura e a construção obsessiva de determinadas
idéias. Há teorias psicológicas ingênuas e psicoiatrogênicas que,
desconhecendo os processos de construção dos pensamentos, sobrecarregam de
culpa os pacientes obsessivos, afirmando que o desejo inconsciente que possuem
é a fonte que sustenta sua produção de idéias fixas. Ao contrário,
freqüentemente, a aversão a algo ou a alguma coisa, tal como a aversão ao
câncer, ao infarto, aos acidentes de carros, à morte dos filhos, etc, gera
experiências tão angustiantes que estimula a ansiedade vital e a construção de
idéias fixas pelo fenômeno do autofluxo. Essas idéias são registradas de
maneira privilegiada na memória e, por isso, são lidas continuamente pelo
fenômeno do autofluxo e inseridas em novas cadeias de pensamentos, gerando um
"ciclo de construção de idéias obsessivas" que dificulta o
gerenciamento dos processos de construção dos pensamentos.
Há possibilidade de haver a
participação da variável genético-rnetabólica na construção das obsessões
através da ansiedade vital. Nesse caso, é possível inferir um postulado
biológico dizendo que a alteração de determinados neurotransmissores cerebrais
ou qualquer outra substância neuro-endócrina pode estimular a ansiedade vital
e, conseqüentemente, estimular exageradamente o fenômeno do autofluxo, gerando
uma propensão genética para as obsessões. Porém, toda a agenda complexa e
sofisticada da construção de pensamentos é estritamente psicológica; por isso é
possível que os fatores psicodinâmicos e psicossociais possam produzir um eu,
que é capaz de realizar um gerenciamento eficiente dessa construção e, assim,
redirecionar a propensão genética para as obsessões e para outras doenças
psíquicas.
A construção psicodinâmica do
fenômeno do autofluxo, o registro das experiências psíquicas na memória, a
leitura das mesmas e as cadeias psicodinâmicas dos pensamentos são mais
complexas do que qualquer achado metabólico que, porventura, possa participar
da gênese dos transtornos obsessivos ou de qualquer outra doença psíquica,
psicossocial e psicossomática. Se as neurociências podem explicar pouco a
gênese das doenças psíquicas, elas, por outro lado, podem ser mais eficientes
na produção de pesquisas para o tratamento das mesmas, pois a ação terapêutica
das drogas psicotrópicas pode, em determinadas doenças, contribuir indiretamente
com o gerenciamento do eu, por reorganizar os humores e atuar nos níveis da
ansiedade vital. Portanto, as neurociências não anulam a Psicologia e
vice-versa, mas são coexistentes e complementares.
A aversão a uma experiência
gera, como disse, à medida que ela se desorganiza caoticamente no campo de
energia psíquica, um registro privilegiado na memória, fazendo com que as RPSs
que as representam estejam mais disponíveis para serem lidas e utilizadas na
produção de idéias dialéticas e antidialéticas de conteúdo semelhante. Uma vez
produzidas, essas idéias provocam uma experiência emocional angustiante e uma
reação aversiva, que expande a ansiedade vital e facilita novamente o arquivo
das mesmas, aumentando sua disponibilidade histórica, sua leitura e
reinterpretação, o que gera novas cadeias semelhantes de pensamentos, que são
expressas por idéias fixas de conteúdo angustiante. Assim se produzem psicodinamicamente
e psicossocialmente os transtornos obsessivo-compulsivos (TOC).
Nos transtornos obsessivo-compulsivos,
os fenômenos da mente, principalmente o fenômeno do autofluxo, lêem
continuamente as RPSs de conteúdo negativo e reconstroem-nas
interpretativamente gerando experiências angustiantes que o eu não consegue
administrar. Com isso, formam-se na história intrapsíquica "tramas de
RPS" doentias que alimentam a produção de idéias fixas, gerando, assim, o
"ciclo de construção de idéias obsessivas".
O nascedouro das obsessões
ocorre, em sua grande maioria, na infância e se desenvolve ao longo do
processo de formação da personalidade, principalmente se não aprendermos a
exercer uma administração dos pensamentos. Infelizmente ninguém nos ensina a
intervir no nosso mundo e gerenciar nossos pensamentos e emoções.
Crescemos aprendendo a
intervir no mundo de fora, mas ficamos inertes diante de nossas dores
emocionais, pensamentos antecipatórios, ansiedades. Um dia, depois de explanar
a construção dos pensamentos para um executivo de uma grande empresa, ele
concluiu que, apesar de ter atingido o topo da carreira, de estar acima de
milhares de funcionários, não sabia atuar no seu medo, sintomas
psicossomáticos, angústias. Era um líder no mundo de fora, mas um prisioneiro
no mundo de dentro.
Todos os três exemplos de
transtornos obsessivos que citei evidenciam que o fenômeno do autofluxo
"conspirou construtivamente" contra o eu, porque este assumiu, ao
longo do processo de formação da personalidade, um papel de espectador passivo
ou pobremente atuante no gerenciamento da construção dos pensamentos.
O último exemplo que citei, o
caso do pai produzindo idéias fixas sobre uma faca que penetrava no peito do
filho, perdurou por vinte anos e foi tratado por onze psiquiatras. Sua doença
psiquiátrica era tão grave que houve psiquiatras que a tratavam como psicose
esquizofrênica. Porém, essa pessoa, em detrimento do absurdo das suas idéias
fixas, não era psicótica, porque o eu conservava os parâmetros da realidade,
tinha consciência crítica de que essas imaginações obsessivas eram irreais, de
que não passavam de fantasias, embora não conseguisse gerenciá-las e
reciclá-las. Esse paciente tomou alguns tipos de neuroléticos e, praticamente,
todos os tipos de antidepressivos disponíveis, principalmente os tricíclicos e
em diversas dosagens, porém não obteve melhora. Nos últimos quatros anos, antes
de se tratar comigo, ele se isolou do mundo, não desenvolvia mais nenhuma
atividade socioprofissional, isolou-se, inclusive, dos seus próprios filhos.
Quando chegou ao meu consultório, ele não olhava nos meus olhos. cabisbaixo e
expressando intenso sofrimento, contou-me sua história.
Ao longo do tratamento,
fui-lhe expondo os processos de construção da inteligência e os fenômenos que
produzem idéias fixas sem o "aval" do eu. Além disso estimulei-o a
desenvolver algumas importantes funções da inteligência, tais como a arte da
crítica, para descaracterizar o conteúdo intrapsíquico das suas idéias fixas, a
arte da contemplação do belo, para resgatar o prazer de viver, o gerenciamento
dos processos de construção dos pensamentos, para resgatar a liderança do eu
nos focos de tensão. Com isso, pouco a pouco, após um período de seis meses,
esse paciente, que parecia ser um caso sem solução na Psiquiatria e Psicologia
clínica, aprendeu a reorganizar e redirecionar a construção das idéias
obsessivas e voltou a ter uma vida psíquica e socioprofissional normal, para
espanto das pessoas que com ele conviviam.
Os outros dois pacientes que
citei também, felizmente, aprenderam a administrar a revolução das idéias
obsessivas ocorridas em suas mentes, redirecionando-a para a construção de
pensamentos, emoções e desejos saudáveis.
A PSICOTERAPIA É UM INTERCÂMBIO DE IDÉIAS PRODUZIDAS NO CLIMA DA DEMOCRACIA DAS IDÉIAS
A teoria da inteligência,
aqui exposta, abrange múltiplas áreas da Psicologia, da Filosofia, da
Sociologia, da Educação, da Sociopolítica etc; portanto, sua utilidade vai
muito além do que sua aplicação nas psicoterapias. Porém, apesar disso, eu
gostaria de fazer um comentário sobre elas.
Durante grande parte do meu
tempo, estou unindo a Psicologia, a Filosofia e outras ciências para produzir
conhecimentos sobre a psique, mesmo quando estou no meu consultório. Pelo fato
de pesquisar a psique na perspectiva dos fenômenos que constroem os
pensamentos, tenho procurado ter uma visão abrangente da mente. Por isso, como
citei no primeiro capítulo, na psicoterapia multifocal tenho usado os
princípios derivados dos processos de construção dos pensamentos, da
transformação da energia emocional, da formação do eu e da formação da história
da existência.
Esses princípios podem ser
úteis para qualquer psicoterapeuta de qualquer corrente de psicoterapia. A
maioria deles também pode ser usada para formar cientistas, pensadores,
executivos, líderes sociais, ou por qualquer pessoa que queira expandir sua
qualidade de vida.
Quando compreendemos, ainda
que com limitações, os processos de construção da inteligência, o projeto
psicoterapêutico torna-se sofisticado, pois fundamenta-se na construção dos
pensamentos, torna-se humanístico e democrático, pois é realizado no ambiente
intelectual do humanismo e da democracia das idéias, e torna-se ambicioso, pois
objetiva muito mais do que resolver doenças psíquicas, psicossociais (ex.,
farmacodependência) e psicossomáticas, mas produzir homens que brilham na arte
de pensar, que saibam navegar no território da emoção e resgatar o sentido da
vida.
A psicoterapia, para mim, é
um intercâmbio de idéias em que o psicoterapeuta ajuda os pacientes com sua
técnica e suas interpretações, mas no qual também os pacientes não deixam de
contribuir com seus psicoterapeutas. A psicoterapia é uma escola da existência,
um processo de aprendizado mútuo. Aprender a se colocar em contínuo processo de
aprendizagem expressa o humanismo e a sabedoria existencial do psicoterapeuta,
bem como do médico, do jornalista, do cientista, do jurista, enfim de qualquer
ser humano.
A psicoterapia deve ser
realizada no clima da democracia das idéias; caso contrário, as interpretações
e os procedimentos dos psicoterapeutas tornam-se uma maquiagem intelectual em
que se camufla o autoritarismo das idéias. O terapeuta deve expor e nunca impor
suas idéias; deve estimular a inteligência dos pacientes, deve honrar sua
capacidade intelectual e respeitar seus direitos fundamentais. A democracia das
idéias exige dos psicoterapeutas uma postura em que eles propiciam liberdade
para que seus pacientes critiquem suas interpretações, suas técnicas e a teoria
que utilizam como suporte da interpretação.
Os psicoterapeutas poderiam
achar que, com a democracia das idéias, perderiam o controle do processo
psicoterapêutico. Sim, o controle autoritário é perdido; mas, por outro lado,
eles estariam criando um clima intelectual que estimula a inteligência dos
pacientes, que os estimulam a desenvolver a arte da dúvida, a arte da crítica,
a capacidade de gerenciamento da construção dos pensamentos e sobre a
transformação da energia emocional.
A busca da sabedoria
existencial e o debate de idéias que são metas da Filosofia nunca foram
adequadamente incorporadas na relação terapeuta-paciente pela Psicologia e pela
Psiquiatria; por isso elas se tornaram excessivamente psicopatológicas,
curativas e, ao mesmo tempo, pobres na prevenção das doenças psíquicas,
psicossociais e psicossomáticas, pobres na formação de pensadores.
A Psicologia e a Psiquiatria
têm uma grande dívida com a Filosofia, pois ela foi, ao longo de muitos
séculos, a fonte das idéias humanísticas. Elas são ciências jovens, têm muito o
que aprender com a Filosofia, mas, infelizmente, a juventude e a prepotência
delas a sufocaram. Muitos cursos de especialização de Psiquiatria nem estudam a
Filosofia.
Nos cursos de Psicologia, ela
é estudada nos anos básicos, mas diversos alunos de Psicologia me disseram que
ela é estudada com grande desinteresse, como se fosse um apêndice de pouco
valor do conhecimento. Sem a Filosofia, o mundo das idéias psiquiátricas e
psicológicas fica pequeno; o homem passa a ser tratado como um doente passivo
que precisa, com o uso de medicamentos psicotrópicos e de técnicas psicoterapêuticas,
resolver suas doenças e não como um ser humano complexo e sofisticado, que tem
grande potencialidade psicossocial que precisa ser expandida.
Nos três pacientes portadores
de transtornos obsessivos que citei e que retornaram a uma vida psicossocial saudável,
embora eu tenha usado procedimentos de investigação da mente e produção de
conhecimentos sobre os processos de construção dos pensamentos, a melhora deles
não dependeu muito de mim. Eu sinto que não fiz muito; apenas funcionei como
catalisador do gerenciamento do "eu", estimulando-os na arte de
pensar e a gerenciar a construção das idéias obsessivas ocorrida dentro deles,
produzida pelo fenômeno do autofluxo.
Nenhum psicoterapeuta ou
psiquiatra pode se gabar de ter por si mesmo sucesso no tratamento dos seus
pacientes; somente o eu é que pode ter tal sucesso, pois somente ele pode
penetrar, e com limites, no fluxo vital da energia psíquica, lugar que nenhum
psiquiatra ou psicoterapeuta pode penetrar. Somente ele pode ler
multifocalmente a história intrapsíquica, construir as cadeias psicodinâmicas
dos pensamentos e aprender a redirecionar os processos de construção dos
pensamentos, da história intrapsíquica e da transformação da energia emocional.
UM EXCELENTE MORDOMO DA MENTE HUMANA
Aprendemos, com os mordomos
da mente, a percorrer os caminhos psicodinâmicos que lêem a memória e que
formam as matrizes dos pensamentos essenciais históricos. Porém, nem sempre
assumimos uma administração da inteligência; por isso, tendemos a gravitar em
torno da produção de pensamentos não autorizada por nós. Cumpre à nossa vontade
consciente, ao "eu", redirecionar a construção das idéias e das
emoções para a produção das artes, da ciência, das relações interpessoais
qualitativas, da tecnicidade, dos mecanismos de superação das intempéries
existenciais e dos estímulos estressantes.
A qualidade do gerenciamento
do eu sobre o mundo dos pensamentos e das emoções é que determinará a
capacidade do homem como agente modificador da sua história intrapsíquica e
social. A tendência natural do homem é ser vítima de suas misérias psíquicas.
Se o fluxo vital da energia
psíquica não for conduzido para a produção de pensamentos e experiências
emocionais saudáveis e enriquecedores, ele será conduzido inevitavelmente para
a produção de experiências angustiantes, tensas, agressivas, autopunitivas.
O fenômeno do autofluxo lê as
RPSs mais disponíveis da história intrapsíquica arquivada na memória, e embora
não queira entrar em detalhes neste livro, digo que a ordem da disponibilidade
dessas RPSs dependerá de vários fatores, tais como o período do registro (tempo
em que foi vivenciada e registrada a experiência psíquica como RPSs no córtex
cerebral); da qualidade da experiência emocional original (angústia,
ansiedade, raiva, ódio, amor, prazer, desejo de destrutividade, complacência
etc); do "eco introspectivo" na mente da experiência original (o
quanto gerou de autocrítica, reflexão, intolerância, indignação); da freqüência
da leitura da mesma e da qualidade da reinterpretação desse resgate. Dependendo
da disponibilidade das RPSs lidas, sem direção consciente e lógica, pelo fenômeno
do autofluxo teremos a qualidade da construção dos pensamentos e das reações da
energia emocional e motivacional.
O fenômeno do autofluxo é um
importantíssimo mordomo intrapsíquico que contribui para o processo de formação
do "eu". Sem ele, que desde a aurora da vida fetal enriquece a
história intrapsíquica, provavelmente na vida extra-uterina jamais chegaríamos
a desenvolver a consciência existencial, o que faria de nós seres impensantes
e inconscientes. Porém, apesar dele ser fundamental para o desenvolvimento do
"eu", ele não deve, à medida que ele é formado, tomar a
preponderância qualitativa da produção dos pensamentos, pois essa é a tarefa
intelectual do eu, embora inevitavelmente tome a preponderância quantitativa,
pois ele é quem promove o fluxo vital da energia psíquica.
A seguir, será apresentado um
quadro didático sobre a atuação psicodinâmica do fenômeno do autofluxo na
construção dos pensamentos e na formação da consciência existencial.
* * *
Este e-book foi digitalizado pela equipe do Semeadores da
Palavra e-books evangélicos.
Se não encontrou essa informação na 2ª página, então você o
baixou de um site desonesto, que não respeita o trabalho dos outros, e retirou
os créditos.
Venha se abastecer de literatura evangélica diretamente da
fonte:
Fórum (para pedidos e trocas de idéias):
Mas o livro ainda não acabou.
Continue na página seguinte!
* * *
GRÁFICO 2
O FENÔMENO DO AUTOFLUXO DA ENERGIA PSÍQUICA E A ANSIEDADE VITAL
Produção espontânea e
inevitável de cadeias de pensamentos e de transformações da energia emocional e
motivacional
Capítulo 7
A Âncora da Memória
A ÂNCORA DA MEMÓRIA E OS TRÊS DESLOCAMENTOS QUE SOFRE
A âncora da memória é um
fenômeno intrapsíquico inconsciente que desloca e é deslocada psicodinamicamente
pelos três outros fenômenos que fazem a leitura da história intrapsíquica:
fenômeno da autochecagem da memória, fenômeno do autofluxo e o eu. Nem toda
memória está disponível para ser lida. A âncora da memória é difícil de ser
definida, mas em síntese ela se refere a um foco ou "território" de
leitura da memória num determinado momento da existência. A âncora da memória
fornece um grupo de informações psicossociais que ficam disponíveis para serem
utilizadas pelos fenômenos que lêem a memória e constroem pensamentos.
Como o próprio nome sugere,
"âncora da memória" é a "fixação psicodinâmica" da leitura
da história intrapsíquica em determinados territórios da memória. Em cada
ambiente em que nos encontramos, tais como em casa, no escritório, num hospital,
num quarto escuro e fechado, em meio a um grupo de amigos, em meio a um grupo
de pessoas estranhas etc, a âncora da memória dirige o território da leitura da
memória para um grupo de informações básicas, que ficam mais disponíveis para
serem usadas. Por isso, temos freqüentemente uma construção de cadeias de
pensamentos e de reações emocionais particulares em cada um desses ambientes e
circunstâncias.
Todos temos liberdade para
cantar no banheiro de nossas casas, mesmo que sejamos desafinados. Nesse ambiente,
é possível até falar com as "paredes" sobre nossas idéias e expressar
nossas emoções sem nenhum constrangimento, pois a âncora da memória deslocou a
leitura da história intrapsíquica para áreas da memória onde há uma plena
liberdade para se produzir os processos de construção dos pensamentos. Porém,
se estivéssemos num anfiteatro, diante de uma platéia, provavelmente não
cantaríamos nem expressaríamos nossas idéias com liberdade. Nesse ambiente, a
liberdade de construção dos pensamentos seria reduzida e, em alguns casos,
interrompida, dando a sensação de que estamos sem condições de raciocinar,
tendo um lapso de memória. Houve, nesse momento, um deslocamento da âncora da
memória para áreas da memória que contêm informações ligadas a fobias, julgamentos,
vexame social, preocupação com o que os outros pensam e falam de nós etc,
gerando uma restrição na leitura da memória e, conseqüentemente, na construção
de pensamentos dialéticos.
Muitos médicos e juízes de
direito são sérios e sóbrios nas suas profissões. Porém, ao se reunirem com
antigos colegas da faculdade, numa festa comemorativa de formatura, eles se
soltam emocionalmente, brincam, contam piadas, elevam o tom da voz, dialogam
sem policiamento. Nesses ambientes e circunstâncias psicossociais, os
estímulos extrapsíquicos (comportamentos dos colegas da faculdade) e
intrapsíquicos (resgate de experiências dos tempos de faculdade) deslocam a
âncora da memória para determinadas "regiões" da memória que, por
sua vez, direcionam a leitura da história intrapsíquica e, conseqüentemente,
produzem matrizes de pensamentos essenciais históricos que gerarão emoções,
pensamentos dialéticos e antidialéticos mais tranqüilos, prazerosos, livres,
socialmente despreocupados.
Os deslocamentos da âncora da
memória direcionam a qualidade das idéias e reações emocionais que produzimos
num determinado momento da existência. Parece que somos livres para pensar o
que quisermos em cada momento de nossas vidas. Porém, esta é uma verdade
parcial. A âncora da memória dirige mais do que imaginamos a qualidade de
nossas idéias, e emoções.
Uma pessoa que sofre um
ataque de pânico, ainda que possa ser sóbria e extremamente coerente na grande
maioria de suas atividades socio-profissionais, aciona o gatilho da
autochecagem que desloca a âncora para determinadas regiões da memória,
restringindo o seu território de leitura. A partir desse território, se produz
uma leitura da história intrapsíquica que, por sua vez, gerarão emoções
intensamente ansiosas e pensamentos qualitativamente mórbidos que, canalizados
para o córtex cerebral, gerarão uma série de sintomas psicossomáticos. Os
mecanismos de produção da síndrome do pânico à luz da construção multifocal de
pensamentos são muito mais complexos do que a hipótese dos neurotransmissores
na gênese dessa síndrome.
O deslocamento da âncora da
memória nos ataques de pânico é rápido e dramático, gerando no paciente uma
construção de idéias de que vai morrer ou desmaiar, e uma reação fóbica tão
angustiante que as idéias do médico dizendo que ele não tem nada de grave não o
conforta.
Há pessoas que, fora do
ambiente familiar, são sorridentes, solícitas, pacientes e sóbrias (um
"anjo social"); porém, quando entram dentro de suas casas, se
transformam em "carrascos da família", pessoas agressivas, violentas,
ansiosas, que dificilmente relaxam e sorriem. Alguns diriam que essa pessoa tem
dupla personalidade. Porém, o termo dupla personalidade é dialeticamente pobre
e cientificamente inverificável. Há apenas uma personalidade porque há apenas
uma mente, apenas um campo de energia psíquica. O que transformou os
"anjos sociais" em "carrascos da família" foi o
deslocamento da âncora da memória pelos estímulos extrapsíquicos. Nesse caso,
se uma pessoa não expandir a âncora da memória, ela pode se tornar um escravo
dos deslocamentos destrutivos que, às vezes, ela gera.
Há milhões de pessoas que
cuidam com paciência e dedicação de seus pequenos cachorros. Esses pequenos
animais não reclamam, não criticam, pouco expressam suas emoções e, por isso,
pouco exigem de seus donos e deslocam pouco suas âncoras da memória, apesar de
diversos deles se ligarem muito afetivamente aos donos. Em muitas metrópoles,
como em Paris, é fácil observar essa relação homem-animal. Porém, cuidar dos
filhos e educá-los é totalmente diferente, pois eles têm necessidades
complexas, exigências complexas, expressam suas emoções e críticas que deslocam
freqüentemente e com muita intensidade a âncora da memória dos pais. Por isso,
os pais têm uma construção de pensamentos e um processo de transformação da
energia emocional que é muito flutuante, alternados entre o prazer e o
aborrecimento, entre a paciência e a irritabilidade etc.
Os pais devem aprender a
administrar o deslocamento de suas âncoras da memória na educação dos filhos.
Catalisar a revolução das idéias dos filhos e levá-los também a administrar os
deslocamentos de suas âncoras da memória, para promover uma construção de
pensamentos que promova o desenvolvimento do humanismo, da cidadania, da
capacidade crítica de pensar, da capacidade de contemplação do belo diante dos
pequenos eventos da vida, da capacidade de superar as dores e perdas, é uma
das mais importantes tarefas que os pais e professores devem realizar no
processo socioeducacional.
Os estímulos intrapsíquicos
(pensamentos, idéias, análises, reações fóbicas, ansiedade, etc), os estímulos
extrapsíquicos (ambientes sociais, comportamentos das pessoas, elogios,
ofensas, situações de discriminação, cobrança socioprofissional, provas
escolares etc.) e os estímulos intraorgânicos (substâncias produzidas
adequadamente ou inadequadamente no metabolismo neuroendócrino, dores físicas,
medicamentos psicotrópicos, cocaína, heroína, álcool etílico etc.) deslocam
constantemente a âncora da memória, influenciando decisivamente na qualidade do
processo de interpretação e, conseqüentemente, na qualidade da produção dos
pensamentos dialéticos e antidialéticos e na qualidade das experiências
emocionais e motivacionais que temos em cada momento existencial.
A LIBERDADE DE PENSAMENTO E SUA RELAÇÃO COM A ÂNCORA DA MEMÓRIA
Podemos ficar chocados ao
constatar, diante dessa exposição, que a liberdade de pensamento tão sonhada na
história humana, tão almejada na Filosofia, tão procurada pelos direitos
humanos, não é tão fácil de ser alcançada, mesmo em condições sociais
adequadas. A liberdade plena de pensamento nem sempre é conquistada pelo eu,
mas dirigida inconscientemente pelos deslocamentos da âncora da memória, que
restringe o território de leitura da memória.
Quando produzimos pensamentos,
nós nem sempre temos uma livre escolha das informações, nem sempre temos a
livre escolha das idéias, devido à restrição da "disponibilidade
histórica" imposta pela âncora da memória. Grande parte dos pensamentos
gerenciada e produzida pelo eu não foi, na realidade, gerenciada e produzida
com plena liberdade de escolha, mas dentro dos limites da âncora da memória.
Por isso, é necessário aprender a conquistar na ciência, bem como na vida
cotidiana, o máximo de liberdade possível no processo de construção de
pensamentos.
Na relação
psicoterapeuta-paciente, pai-filho, professor-aluno,
pesquisador-teoria-fenômeno, como disse, se não aprendermos a reciclar criticamente
a história intrapsíquica, principalmente os deslocamentos da âncora da memória,
podemos nos contaminar excessivamente com a história intrapsíquica.
Muitas vezes achamos que
somos livres na produção das idéias, mas somos prisioneiros da âncora da
memória. A âncora da memória é um fenômeno fundamental na construção dos
pensamentos e na produção das reações emocionais; porém, devemos aprender a
gerenciá-la, reciclá-la criticamente e deslocá-la com liberdade,
principalmente quando a âncora se alojar em áreas da memória que promovem uma
construção de pensamentos rígida, fechada, autoritária.
Todos os estímulos que geram
tensões emocionais e prazeres intensos deslocam a âncora da memória e,
conseqüentemente, contraem a liberdade da produção de pensamentos. Uma pessoa
excessivamente alegre, num determinado momento, também pode ser excessivamente
tolerante e excessivamente permissiva. Uma pessoa muito tensa, num determinado
momento, pode ser muito intolerante, rígida e agressiva.
Quando alguém nos ofende, os
estímulos extrapsíquicos ligados ao conteúdo da ofensa, à pessoa do ofensor e
ao ambiente em que ele expressou a ofensa (ambiente público ou particular)
deslocam a âncora para determinadas regiões da memória, restringindo a
"disponibilidade histórica" das RPSs, que, por sua vez, produzirá uma
construção de pensamentos com liberdade reduzida. Por isso, passado o momento
de tensão, nós achamos que deveríamos ter tido outro tipo de reação diante
daquela circunstância.
Todo e qualquer estímulo
extrapsíquico e intrapsíquico, que aciona o fenômeno da autochecagem da memória
e produz cadeias psicodinâmicas dos pensamentos que geram significativas
tensões emocionais, é capaz de deslocar a âncora para determinados territórios
da memória, restringindo sua leitura em um determinado momento existencial.
Inicialmente, o fenômeno da autochecagem da memória desloca a âncora da
memória e, posteriormente, o próprio fenômeno da autochecagem da memória, bem
como os demais fenômenos que lêem a memória, tornam-se vítimas desse deslocamento,
pois restringem a leitura da memória e, conseqüentemente, a construtividade das
cadeias psicodinâmicas dos pensamentos e as transformações da energia
emocional aos limites da sua ancoragem.
Uma pessoa que se embriaga
com bebidas alcoólicas transmuta microcampos de energia físico-química no campo
de energia psíquica que reduz o gerenciamento dos processos de construção dos
pensamentos e, ao mesmo tempo, desloca a âncora da memória para determinadas
regiões da memória, fazendo com que ele produza pensamentos e atitudes que
jamais produziria em condições normais.
OS DESLOCAMENTOS DA ÂNCORA DA MEMÓRIA NOS TERRITÓRIOS DA MEMÓRIA
A âncora da memória
sobrepõe-se a determinados territórios da memória colocando em disponibilidade
um grupo de RPSs diretivas (diretamente ligadas ao estímulo) e associativas
(relacionadas com o estímulo) que serão lidas pelos fenômenos que lêem a
história intrapsíquica. Essas RPSs serão usadas como matéria-prima na produção
das cadeias psicodinâmicas dos pensamentos essenciais históricos, que atuarão
psicodinamicamente no processo de transformação da energia emocional e
motivacional e, ao mesmo tempo, sofrerão um processo de leitura para gerar as
cadeias psicodinâmicas virtuais dos pensamentos dialéticos e antidialéticos.
A âncora da memória facilita
o processo de seleção e disponibilidade das informações que servirão de
matéria-prima para a produção das cadeias psicodinâmicas dos pensamentos
essenciais históricos e, conseqüentemente, dos pensamentos dialéticos e
antidialéticos.
O eu tanto dirige os
deslocamentos da âncora da memória como é dirigido por esses deslocamentos,
através do resgate da disponibilidade das RPSs produzidas por eles. Nos
momentos de tensão, de stress psicossocial, da angústia existencial, de
ofensas e de perdas a tendência do eu é ser controlado pela âncora da memória e
submeter a sua construção de pensamentos nos limites da memória em que ela
está ancorada. Se ele não tiver êxito em abrir a âncora e alargar os
territórios de leitura da memória a produção de pensamentos e reações
emocionais pode ser insegura, fóbica, agressiva e acima de tudo restrita.
Se a âncora da memória se
fechar muito diante dos estímulos estressantes, a inteligência se
"trava", ou seja, o eu fica totalmente restrito na sua capacidade de
pensar. Quem determina o cárcere intelectual é a âncora da memória. Nos focos
de tensão, podemos ter reações totalmente contrárias às que teríamos se
estivéssemos tranqüilos.
As pessoas normalmente
acreditam que são livres porque vivem em sociedades democráticas, mas são
escravas dos deslocamentos da âncora da memória. Crêem que pensam o que querem
pensar, mas na realidade sua liberdade é parcial; pois não percebem que
constroem seus pensamentos dentro dos limites da disponibilidade histórica das
EPSs produzida pela âncora da memória nos vários momentos existenciais.
Se aprendermos a fazer um "stop
introspectivo", ou seja, aprendermos a pensar antes de reagir, então
teremos condições de gerenciar a construção de pensamentos nos focos de tensão,
o que nos prepara o caminho para a liberdade. Assim, não nos submeteremos ao
jugo da âncora da memória; pelo contrário, a expandiremos, o que nos permitirá
realizar uma construção de pensamentos sóbria e coerente, capaz de dar
respostas maduras e inteligentes. Aqueles que reagem antes de pensar são apenas
livres por fora.
TODOS POSSUÍMOS O MESMO ESPETÁCULO PSICODINÂMICO NOS BASTIDORES DA MENTE
Compreender os processos de
construção dos pensamentos, ligados aos deslocamentos da âncora da memória e à
leitura da memória, nos remete a fazer considerações humanistas a favor dos
direitos humanos e contra toda e qualquer forma de discriminação humana.
Tanto a intelligentsia, ou
seja, a classe dos intelectuais, como a classe das pessoas que nunca
sentou nos bancos de uma universidade, possui a mesma operacionalidade dos
mordomos da mente e os mesmos processos que formam o eu. Todo ser humano lê a
história intrapsíquica e resgata com extremo acerto, em pequenas frações de
segundo e em meio a bilhões de opções, cada RPS diretiva e associativa que
constituirá as cadeias psico-dinâmicas das matrizes dos pensamentos essenciais
históricos e as cadeias psicodinâmicas virtuais que constituirão suas idéias,
análises, conceitos, discursos teóricos, etc.
A construção dos pensamentos,
das idéias, dos raciocínios analíticos, dos discursos teóricos, é produzida por
fenômenos alheios à consciência humana, tanto da pessoa considerada intelectual
como da pessoa considerada inculta. Não deveria haver uma intelligentsia como
classe, ou qualquer outra forma de classificação intelectual que distinga os
seres humanos, pois toda forma de classificação é discriminatória,
anti-humanística e desinteligente, já que não leva em consideração o Homo
interpres, ou seja, a construção dos pensamentos nos bastidores da mente
humana, mas apenas o Homo intelligens, ou seja, as manifestações dos
pensamentos conscientes, que estão na ponta do iceberg da inteligência.
Se o uso de determinadas classificações é inevitável na estrutura social e
socioacadêmica que temos, elas deveriam ser consideradas um apêndice de
pouquíssimo valor.
Todas as premiações sociais,
honras sociopolíticas e condições socioeconômicas são apenas apêndices de pouco
valor se comparadas à condição humana, à complexidade, sofisticação, liberdade
criativa e plasticidade construtiva dos processos de construção da inteligência.
Os seres humanos gostam de se classificar, amam estar em degraus mais altos que
seus pares. Se eles aprenderem a ser caminhantes nas trajetórias de seus
próprios seres, compreenderão que nada pode tornar o curriculum tão
digno de um homem do que ele ser um ser humano com uma humanidade elevada. As
sociedades humanas necessitam de homens que tenham sede de ser homens, e não
supra-humanos.
O mais profundo humanismo,
como disse, não decorre da compaixão do homem pelo homem, pois esta é
circunstancial, psicossocialmente instável e nem sempre valoriza as dimensões
daqueles que sofrem, mas da compreensão psicológica e filosófica da
complexidade, sofisticação, liberdade criativa e plasticidade construtiva da
inteligência. O humanismo que decorre da compreensão dos processos de
construção dos pensamentos tem raízes mais profundas, gera uma macrovisão
psicossocial da espécie humana, nos faz considerar o outro na sua complexidade
psicossocial.
Todos somos privilegiados
pela atuação psicodinâmica e psicossocial dos fenômenos que financiam nossa
construção de pensamentos e nossa consciência existencial. Por isso, do ponto
de vista da gratuidade, complexidade e espontaneidade dos fenômenos que
constroem a inteligência, o valor de cada ser humano é igualmente inseparável e
indistinguível em toda a nossa espécie. Todos somos beneficiários gratuitos da
operacionalidade espontânea desses fenômenos que se iniciam, no mínimo, desde
a aurora da vida fetal e perduram até o último suspiro da existência. Todos
temos uma produção inevitável de pensamentos, que alimenta os arquivos da
memória, promove o desenvolvimento de nossas personalidades e contribui para
sermos seres que têm consciência de si e do mundo.
Temos diferenças culturais,
intelectuais, sociais, econômicas, genéticas, raciais, de idade, de
nacionalidade, de sexo, etc, mas no que tange aos processos de construção dos
pensamentos, somos uma espécie mais homogênea do que temos imaginado.
Seria importante que as
ciências da cultura incorporassem o conhecimento relativo à leitura da
história intrapsíquica, às matrizes dos pensamentos essenciais históricos, o
caos da energia psíquica, os sistemas de co-interferências das variáveis
intrapsíquicas, o processo de construção dos pensamentos, o processo de
construção da consciência existencial, o processo de construção da história
intrapsíquica, o processo de transformação da energia emocional e motívacional,
a revolução das idéias, a atuação psicodinâmica do fenômeno da autochecagem da
memória, do fenômeno do autofluxo, do eu e da âncora da memória, etc. Se essas
ciências incorporassem esse conhecimento, elas poderiam mergulhar nas
trajetórias do humanismo e da democracia das idéias, o que as tornariam agentes
sociopolíticas mais eficientes no desenvolvimento da arte de pensar e na
prevenção das doenças psicossociais, tais como a síndrome da exteriorização
existencial, o mal do logos estéril, as discriminações raciais, a farmacodependência
etc.
Capítulo 8
O Gerenciamento do Eu e a Práxis dos Pensamentos
O "EU" É O ÚNICO FENÔMENO CONSCIENTE QUE PRODUZ E GERENCIA OS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DA INTELIGÊNCIA
Se o leitor se interiorizar e
observar sua construção de pensamentos, terá consciência do fluxo vital da
energia psíquica, pois verificará que diariamente são produzidas milhares de
construções psicodinâmicas em sua mente: idéias antecipatórias, recordações,
análises, prazeres, angústias, ansiedades, desejos etc. Essas
"construções psicodinâmicas", ao contrário do que na ciência e na
coloquialidade tem-se pensado até hoje, nem sempre são autorizadas e
determinadas logicamente e conscientemente pelo "eu".
O "eu", como disse,
não é um termo vago conceitualmente, mas se refere à "consciência de si
mesmo", a consciência de que existimos, de que pensamos e nos emocionamos
e de que podemos administrar a inteligência.
O "eu" ou o self,
por incrível que pareça, além de normalmente ter pouca consciência da
complexidade dos processos de construção dos pensamentos, não é o grande líder
dos mesmos; pelo contrário, muitas idéias, resgates de experiências passadas,
fantasias, escapam ao seu controle.
Muitos psicólogos,
sociólogos, filósofos e cientistas podem ficar chocados com essa afirmação e,
por não conhecer os processos de construção dos pensamentos, podem considerá-la
uma heresia científica, pois acreditam que o controle do "eu" (em
inglês: self-control) é o único responsável pelos processos de
construção dos pensamentos. Porém, como temos visto, possuímos o fenômeno da
autochecagem, a âncora da memória e o fenômeno do autofluxo produzindo
continuamente cadeias de pensamentos. Eles produzem continuamente a maior fonte
de entretenimento humano, reescrevem a memória e, conseqüentemente, alargam os
horizontes do próprio "eu".
Tenho a convicção teórica de
que, cientificamente, é improcedente considerar que a vontade consciente do
homem é o único centro produtor do mundo das idéias.
Na realidade, os processos de
construção dos pensamentos são multifocais. Eles são gerados através do fluxo
vital de dezenas de variáveis, das quais o "eu" é apenas uma, embora
ela devesse ser a variável ou o fenômeno que tomasse a liderança, ainda que
parcial, dos processos de construção dos pensamentos.
Na mente há cinco grandes
etapas da interpretação, que se processam em frações de segundos, das quais as
três primeiras são inconscientes. O eu é formado na quinta etapa da
interpretação, quando já foi desencadeada toda uma rica construção de
pensamentos nas etapas anteriores. Por isso, o homem, que é um grande líder do
mundo extrapsíquico, tem grande dificuldade em liderar seu próprio mundo
intrapsíquico.
Todos sabemos que não é fácil
controlar os pensamentos e emoções construídos no palco de nossa mente. Quantos
pensamentos de cadeias simples ou complexas produzimos ontem? Talvez milhares.
Mas, quantos pensamentos nós decidimos logicamente produzir? Talvez dezenas ou
centenas. Fiz essa pergunta a muitas pessoas, inclusive a psicólogos e
cientistas, e as respostas foram sempre parecidas. Todos disseram que produzem
inúmeros pensamentos diariamente, e que apenas uns poucos foram determinados
lógica e conscientemente. Quando respondem a essa pergunta, não percebem a
seriedade científica da afirmação de que o controle do eu sobre o processo de
construção de pensamentos é parcial. Só quando o eu é gerado na quinta etapa é
que ele, retroativamente, pode exercer um gerenciamento da construção de
pensamentos e tornar-se agente controlador dos pensamentos e das emoções.
Se fosse procedente
cientificamente que o "eu" é o único organizador e o líder absoluto
dos processos da inteligência, só vivenciaríamos as idéias e as emoções
produzidas por ele, o que talvez não fosse nem dez por cento das idéias e
emoções produzidas pelos fenômenos inconscientes que lêem a memória. Nesse
caso, a vida humana seria um tédio contínuo, uma solidão insuportável, um
vazio existencial angustiante, pois não teríamos uma riquíssima construtividade
de idéias, pensamentos antecipatórios, pensamentos existenciais, recordações,
fantasias etc, produzidos pelos demais fenômenos e que são capazes de entreter
o homem e provocar-lhe clandestinamente uma rica experiência de prazer,
expectativa, inspiração, busca, ansiedade, em toda a sua trajetória
existencial.
Qual é a maior fonte de
entretenimento humano? Não é o cinema, a TV, as artes plásticas, as artes
cênicas, o esporte, a literatura etc, mas, sim, a rica produção de pensamentos
que diariamente produzimos na mente. Provavelmente, mais da metade de nosso
tempo de vigília é gasto com os pensamentos que são produzidos em nossa mente e
que não chegam a ser expressos. Uma das mais importantes causas que explicam
por que muitas crianças de colo são quantitativamente mais agitadas, ansiosas e
inquietas que os adultos, é que elas não têm uma rica fonte de pensamentos
dialéticos como eles. Muitas crianças autistas também são agitadas, ansiosas,
não só porque têm vínculos contraídos com o mundo extrapsíquico, mas também
porque não têm uma rica produção dialética de pensamentos como fonte de
entretenimento.
A ansiedade e agitação
psicomotora não é característica de todas as crianças autistas. As crianças
autistas, que possuem uma memória que se enriquece no processo existencial e
que sofre um processo de leitura, capaz de resultar numa rica construtividade
de cadeia de pensamentos (idéias e fantasias) em sua mente, são emocionalmente
mais tranqüilas, pois têm uma fonte clandestina de entretenimento.
As crianças hiperativas são
mais inquietas porque o fluxo vital da energia psíquica está mais exacerbado.
Nelas, o processo de organização, caos e reorganização da energia psíquica está
intensificado, o que produz uma construtividade de pensamentos
psicodinamicamente movimentada, que, embora rica, não se torna uma fonte
intrapsíquica capaz de remeter à introspecção, à autocontemplação, o que
dificulta a assimilação das experiências. Por isso, quando corrigidas, elas
tendem a repetir freqüentemente os mesmos erros. As crianças hiperativas
necessitam de uma abordagem socioeducacional que leve em consideração as
particularidades psicossociais dos seus processos de construção do pensamento.
A construtividade diária de
pensamentos ultrapassa os limites do controle do "eu". Ela é gerada
pelo fluxo vital dos fenômenos que produzem os processos de construção da
inteligência. Além disso, se o "eu" fosse o organizador ou líder
absoluto dos processos intelectuais, como é que poderia ocorrer, então, o
desenvolvimento da personalidade, do período correspondente desde a vida fetal
até o estágio extra-uterino, período em que a criança começa a produzir
pensamentos conscientes e ter consciência de que pode administrá-los? Se os
processos de construção dos pensamentos fossem produzidos apenas pelo
"eu", e não também pelos fenômenos que estão nos bastidores da mente,
esse período fundamental do desenvolvimento da personalidade não ocorreria.
Assim, todas as etapas do processo de formação da personalidade não ocorreriam,
pois o eu jamais atingiria por si próprio o mínimo de maturidade para se
auto-organizar, produzir pensamentos conscientes e administrá-los.
Muitos adultos, incluindo
muitas pessoas idosas, nem chegam a desenvolver a maturidade de gerenciamento
do eu, a maturidade intelecto-emocional; por isso, dificilmente intervém com
consciência crítica na sua produção clandestina de pensamentos, raramente
revisam suas idéias e padrões de comportamentos e, assim, freqüentemente
trabalham mal suas dores, perdas e contrariedades. Essas pessoas, como todo ser
humano, têm na rica produção de pensamentos sua maior fonte de entretenimento;
porém, como não amadurecem o gerenciamento do "eu" eles transformam
esta fonte numa fonte de ansiedade. Por não conseguir gerenciar minimamente
sua produção de pensamentos, elas se angustiam muito quando essa produção é
constituída de pensamentos de conteúdo negativo, angustiante, antecipatório. A
gênese de muitas doenças psíquicas está neste processo.
A CONSTRUÇÃO DE PENSAMENTOS GERA UMA INTELIGÊNCIA MULTIFOCAL DIFÍCIL DE SER GERENCIADA
O eu é o fenômeno que
expressa a vontade consciente do homem. Sem esta, o homem é um ser que vaga
irracionalmente como os demais seres da natureza. Se fôssemos capazes de
destruir o eu, estaríamos encerrados na mais terrível solidão, existiríamos
sem ter consciência de que existimos. As psicoses esquizofrênicas comprometem
a estrutura e a lógica do eu, por isso elas são graves. Todavia, quando
ajudamos os pacientes em surto psicótico a desacelerar seus pensamentos, eles
organizam o processo de leitura da memória, constroem pensamentos dentro dos
parâmetros da realidade e rompem com seus delírios e alucinações. Desacelerar o
fluxo dos pensamentos e alargar os territórios de leitura da memória (âncora) é
fundamental para que o eu possa administrar a produção dos pensamentos com
lógica.
Os medicamentos
antipsicóticos não atuam diretamente nas psicoses, como pensa a grande maioria
dos psiquiatras. Eles não fazem nenhum milagre na reorganização da
inteligência, apenas provocam uma tranqüilidade artificial, química, que
diminui o ritmo de produção dos pensamentos, propiciando condições para uma
leitura organizada e multifocal da memória, tanto do eu como do fenômeno do
autofluxo.
O eu deveria administrar a
leitura e a disponibilidade das informações produzidas pela âncora da memória.
Assim, conseqüentemente, ele revisaria os paradigmas socioculturais, os estereótipos
sociais, as reações ansiosas, as reações fóbicas, o raciocínio analítico
superficial, as influências genéticas do humor. Porém, o eu jamais consegue
exercer plenamente esse gerenciamento, pois a inteligência não é unifocal, mas
possui fenômenos difíceis de controlar.
É particularmente complexo e
difícil o gerenciamento do eu nos deslocamentos da âncora da memória e na
construção de pensamentos produzida pelo fenômeno da autochecagem da memória e
pelo fenômeno do autofluxo. Esse gerenciamento se torna difícil também devido
ao fato de a psique ser um campo de energia psíquica que se encontra num fluxo
vital contínuo. O gerenciamento do eu tem limitações, mas, como estudaremos,
essas limitações não só geram transtornos psicossociais, mas também grande
proteção intelectual.
Eu me lembro que, quando
cursava a faculdade de Medicina, um professor, que era psiquiatra e
psicanalista, fez um comentário sincero na sala de aula, dizendo que não
entendia por que a mente humana era um campo de batalha, por que havia
pensamentos que ele, o professor, controlava e outros que escapavam do seu
controle. Ele também disse que percebia esse tumulto intelectual até no
comportamento das crianças. Esse conflito intelectual, que acompanha a
trajetória de todo ser humano, é devido ao fato de a construção de pensamentos
ser multifocal.
Gerenciar a inteligência é um
trabalho intelectual complexo e difícil, pois grande parte dos pensamentos é
produzida sem a determinação e a elaboração do eu. Todos podemos afirmar que é
impossível submeter totalmente o mundo dos pensamentos ao nosso controle
consciente. Porém, se a inteligência não contasse com os três mordomos da mente
nas quatro primeiras etapas da interpretação, o eu, que é o grande gerenciador
da inteligência, não chegaria a se formar.
O processo socioeducacional,
produzido pelos pais e professores, é apenas um ator coadjuvante da complexa e
sofisticada tarefa de produzir pensamentos. É claro que, quanto mais eficiente
e profundo for o processo socioeducacional, quanto mais levar em consideração o
desenvolvimento da inteligência e o processo de interiorização, mais chances
tem o homem de expandir e aprimorar sua racionalidade, sua produção de
pensamentos.
Produzimos diariamente, no
silêncio da psique, milhares de pensamentos, tanto de cadeias simples quanto
de cadeias complexas, que nunca chegam a ser verbalizados nem expressos. Uma
parte significativa desses pensamentos é produzida pelos três mordomos
intrapsíquicos. Na infância, os mordomos intrapsíquicos ensinaram em silêncio o
eu a penetrar nos meandros da memória e utilizar as informações para construir
cadeias de pensamentos. Nos adultos, eles continuam ativos, porém perderam
essa função intra-educacional. Nos adultos, sua função é produzir a mais
importante fonte de entretenimento humano. Porém, dependendo da qualidade dos
pensamentos, essa fonte se torna uma fonte de terror. Esse é o caso dos
pacientes portadores de obsessão, depressão, síndrome do pânico e fobias.
O GERENCIAMENTO DOS PENSAMENTOS DIALÉTICOS: A NECESSIDADE DE EXPANDIR A LIDERANÇA DO EU
Administrar a construção dos
pensamentos, a transformação da energia emocional e a formação da memória não
quer dizer ter pleno domínio sobre esses processos ou sobre as variáveis que os
produzem. Mas significa realizar um gerenciamento com consciência crítica e
maturidade, embora tendo limites.
Na ciência, gerenciar a
inteligência é, antes de tudo, vivenciar a arte da dúvida e da crítica no
processo de observação dos fenômenos psíquicos; é aprender a ter uma postura aberta,
crítica e reciclável do processo de interpretação; é aprender a se
"esvaziar", tanto quanto possível, das contaminações decorrentes da
história intrapsíquica; é ter consciência da construção dos pensamentos, da
consciência existencial, da história intrapsíquica e da transformação da
energia emocional, e aprimorar qualitativamente essa construção, através de
exercícios de um domínio administrativo "parcial" das variáveis que
dela participam. Porém, nós jamais atingiremos o pleno controle de nossa mente,
seja na pesquisa científica, seja no processo existencial diário.
Nenhum ser humano, seja ele
um intelectual, um líder religioso, um filósofo ou um psicoterapeuta, consegue
ter total domínio do funcionamento da mente. Na realidade, em grande parte do
processo existencial diário somos controlados pelo mundo das idéias que são
produzidas no cerne da alma.
Não podemos nos esquecer que
o eu é formado dentro do campo de energia psíquica, é fruto desse campo de
energia, uma parte dele, embora, ao usarmos coloquialmente a palavra
"eu", estejamos querendo identificar a totalidade da psique. O eu não
é a totalidade da psique; mas, pelo fato de ser a totalidade da consciência da
psique, ele assume para si toda a identidade da psique e de tudo o que nela é
produzido. O eu não deveria assumir as idéias de conteúdo negativo que não
foram autorizadas por ele, mas, por não termos consciência da produção dessas
idéias pelos fenômenos inconscientes, nós ingenuamente as assumimos.
Quantas pessoas têm a
sensação de que vão-se ferir ou matar alguém ao ver uma faca ou uma arma? Elas
não são perigosas, pelo contrário, às vezes são pessoas dóceis, mas o medo de
ferir alguém retroalimenta continuamente a memória com essas idéias negativas.
Como elas são registradas de maneira privilegiada, ficam disponíveis para ser
lidas pelo fenômeno do autofluxo. Uma vez lidas, produzem idéias angustiantes
ligadas a ferimento e morte. O eu jamais deveria assumir tais idéias, pois não
foram produzidas por ele. Ele deveria ser livre, mas como ninguém nunca nos
ensinou a não assumi-las nem gerenciá-las, transformamos a maior fonte de
prazer na maior fonte de terror.
O "eu" consegue,
com significativo êxito, gerenciar a produção de pensamentos dialéticos, que é
o mais consciente, bem formatado, lógico e psicolingüisticamente organizado
grupo de pensamentos. Porém, ele não consegue realizar um amplo e eficiente
gerenciamento dos pensamentos antidialéticos.
Todos pensamos o que
queremos, quando queremos e na velocidade e freqüência que queremos. Se
levarmos em consideração o gerenciamento dos pensamentos dialéticos, no
entanto, poderemos incorrer no erro de considerar o homem um grande líder dos
processos de construção da inteligência, o que não é verdade. Quem domina
completamente a emoção, quem seleciona todos os registros da memória? A própria
rejeição de uma experiência angustiante facilita o seu registro! Quem é que, ao
ser ofendido, rejeitado, contrariado, injustiçado, consegue conter a
hiperconstrução de pensamentos e as reações tensas e, ao mesmo tempo, evitar
que essas mazelas psíquicas sejam fixadas nos porões de nossa memória?
Na psicose, o "eu"
está tão desorganizado, que perde os parâmetros da realidade e não consegue
gerenciar, com coerência e lógica, a leitura da história intrapsíquica. Como a
construção das idéias não pode ser estancada, essa construção fica por conta
apenas dos fenômenos que lêem a memória, principalmente do fenômeno do
autofluxo. Nas psicoses, a história intrapsíquica é retroalimentada
continuamente pela produção de delírios e alucinações, expandindo a
disponibilidade histórica das RPSs ilógicas. Nesses casos, à medida que o
fenômeno do autofluxo lê a memória, produz novas cadeias psicodinâmicas de
pensamentos delirantes e alucinatórias.
Até hoje não se sabe como os
medicamentos psicotrópicos efetivamente atuam nas psicoses e em outras doenças
psíquicas. Só há hipóteses e postulados. Eles certamente não estruturam o eu
nem reorganizam por si mesmos a construção de pensamentos. Todavia, como disse
anteriormente, creio que eles, no caso das psicoses, atuam no metabolismo dos
neurotransmissores e provavelmente criam microcampos de energia físico-química
que interferem no campo de energia psíquica, abrindo a âncora da memória,
diminuindo os níveis de tensão e desacelerando os pensamentos desorganizados.
Tais situações propiciam um caminho para que o eu realize o maior de todos os
espetáculos, a organização da inteligência, principalmente da identidade da
personalidade: quem somos e onde estamos.
O GERENCIAMENTO DOS PENSAMENTOS ANTIDÍALÉTICOS
O gerenciamento dos
pensamentos antidialéticos é mais difícil de ser processado do que o dos
pensamentos dialéticos, pois eles são menos conscientes, formatados, lógicos;
além disso, são psicolingüisticamente desorganizados. A produção intelectual
que usa os pensamentos antidialéticos tem menos referenciais lógicos, tais como
as fantasias, as construções tempo-espaciais e a construção das circunstâncias
psicossociais.
Em diversas doenças
psíquicas, o eu tem grande dificuldade em gerenciar a construção dos
pensamentos antidialéticos, assim como nas fobias e nas síndromes do pânico.
Através da psicoterapia, porém, e mesmo nessas doenças, é possível que o eu
produza um gerenciamento eficiente. É possível, com uma técnica psicoterapêutíca
adequada, que o eu funcione como ator principal no tratamento e os medicamentos
psicotrópicos, quando utilizados, como atores coadjuvantes. Porém, há casos em
que a desorganização dos pensamentos em determinadas doenças psíquicas é tão
grave, como nas psicoses e na fase eufórica dos transtornos bipolares, que os
agentes medicamentosos se tornam atores principais do tratamento.
Com respeito ao gerenciamento
do processo de transformação da energia emocional, o eu tem bem menos
eficiência do que em relação ao gerenciamento da construção dos pensamentos conscientes.
A TERAPIA MULTIFOCAL E O GERENCIAMENTO DO EU
Por que o eu tem tanta
dificuldade em gerenciar o campo de energia psíquica? Esse assunto nunca foi
estudado na psicologia, embora ele seja o centro da própria psicologia e da
ação de todos os psicólogos. Por que tratar de um paciente deprimido, com
síndrome do pânico ou transtorno obsessivo, é um processo lento e complicado?
Se o mundo das idéias e das emoções é tão criativo, por que temos dificuldade
em subjugá-lo?
Os cirurgiões fazem um
"milagre no corpo". Em horas, são capazes de extrair um tumor ou uma
úlcera, mas os terapeutas demoram semanas, meses ou, às vezes, anos, para levar
um paciente à resolução de uma doença psíquica. Há muitas causas que explicam
os entraves do gerenciamento do funcionamento da mente, e uma delas é que a
produção de pensamentos é multifocal, ou seja, produzida por múltiplos
fenômenos. Todavia, a principal causa é que o instrumento usado pelo eu para
intervir no mundo psíquico é virtual: trata-se do pensamento dialético.
O eu usa tanto os pensamentos
dialéticos como os essenciais para atuar na mente, porém se utiliza mais dos
dialéticos. O eu tem como produzir pensamentos essenciais, que são de natureza
"real", e fazê-los intervir no território da emoção, transformando a
ansiedade em serenidade, o humor deprimido em prazer. Se temos essa capacidade,
por que, então, não conseguimos dominar totalmente o mundo dos pensamentos e
das emoções? Porque o instrumento que o eu usa para intervir no território da
emoção e nos fenômenos que produzem as cadeias de pensamentos não é apenas o
pensamento essencial, mas, principalmente, o pensamento dialético, que é de
natureza virtual. O que é virtual tem condições de se conscientizar do que é
real, mas não tem como modificá-lo.
Um exemplo. Você pode
assistir na TV a uma pessoa presa nos destroços de um carro acidentado.
Contudo, apesar de ter consciência do seu sofrimento, esta é virtual. Entre
você e a pessoa acidentada existe um mundo intransponível. Por isso, apesar de
estar consciente da dor da pessoa, você não tem condições de ajudá-la. Do mesmo
modo, os pensamentos dialéticos servem para nos tornar conscientes das nossas
angústias, dores e ansiedades, mas eles não têm como intervir e transformar
essas emoções.
Os pensamentos dialéticos são
o principal instrumento do gerenciamento do eu; por isso, apesar de o eu estar
consciente dos conflitos psíquicos e das causas que geraram esses conflitos,
ele, por si só, não tem capacidade de resolvê-los. Um dos maiores erros da
psicanálise é acreditar que, pelo fato de o paciente compreender as causas
inconscientes dos seus conflitos, ele conseguirá resolvê-los. Freud não estudou
a construção multifocal de pensamentos e, portanto, não teve oportunidade de
conhecer o fenômeno da autochecagem, do autofluxo, da âncora, do registro
automático da memória, nem a natureza dos pensamentos e os limites do
gerenciamento do eu sobre o universo psíquico.
Compreender as causas de uma
doença é importante, mas insuficiente para superá-la. Um paciente pode ficar
dez anos deitado num divã, conhecer toda a formação de sua personalidade, mas,
ainda assim, não saber reescrever o seu passado, pois tem um eu inerte,
passivo, que não consegue ser um agente modificador do funcionamento doentio de
sua mente. A dificuldade da psicanálise em atuar na psique também ocorre nas
demais terapias.
As terapias cognitivas e
comportamentaís procuram desprezar os aspectos inconscientes mais profundos da
personalidade e levar o paciente a intervir diretamente nos conflitos, no humor
deprimido, nas reações fóbicas. Todavia, essas terapias também enfrentam as
limitações do eu, mas sem dúvida são mais eficientes do que a psicanálise nos
transtornos depressivos e ansiosos. Por que a terapia cognitiva, que tem uma
teoria mais simples e estimula menos a capacidade de pensar do que a
psicanálise, é mais eficiente em alguns transtornos psíquicos? Essa é uma
questão importante, ignorada talvez até mesmo pelos adeptos dessas correntes
terapêuticas.
A resposta é que os
terapeutas cognitivos estimulam os pacientes a usar mais os pensamentos
essenciais do que os dialéticos no sentido de intervir no mundo psíquico. A
psicanálise, sem o saber, usa mais os pensamentos dialéticos, através da técnica
da livre-associação, do que os essenciais no processo terapêutico.
É paradoxal, mas a
psicanálise, que objetiva reorganizar o inconsciente, usa, mais do que imagina,
os pensamentos conscientes (dialético e antidialético) como instrumento
terapêutico. Eles são de natureza virtual e, portanto, não têm força para atuar
no campo de energia emocional e nem nos fenômenos que constroem as cadeias de
pensamentos essenciais. De outro lado, a terapia cognitiva, que dá pouco valor
ao inconsciente, usa, mais do que supõe, o pensamento inconsciente (essencial)
como instrumento terapêutico. Por isso, esta corrente terapêutica, sem ter
consciência, estimula o fenômeno RAM a reeditar várias áreas da memória, onde
estão arquivadas experiências existenciais doentias.
A psicanálise almeja dar um
novo significado à história do paciente, reciclar os seus traumas, o que são
objetivos nobres, mas, para isso, usa excessivamente o pensamento consciente.
Quando o paciente fala de sua história, deitado no divã, ele produz uma série
de pensamentos essenciais que geram os pensamentos conscientes. Estes, por sua
vez, vão criando um ambiente para que o "eu" leia com mais eficiência
a memória e, conseqüentemente, produza mais pensamentos essenciais que gerarão
mais pensamentos conscientes, expandindo, assim, a capacidade de pensar. Todavia,
quem é registrado na memória são os pensamentos essenciais e não os pensamentos
conscientes. Uma vez registrados, os pensamentos essenciais reescrevem a
memória. Deste modo, ocorre espontaneamente a melhora do paciente.
Como os pensamentos
essenciais, na técnica psicanalítica, nem sempre têm uma carga emocional
intensa e freqüentemente não são direcionados para atingir diretamente os
conflitos dos pacientes, como ocorre nas terapias cognitivas, o registro
desses pensamentos não é privilegiado nas regiões inconscientes da memória,
por isso a psicanálise, em muitos casos, se torna um processo terapêutico
prolongado.
A terapia multifocal usa
intensamente os pensamentos conscientes e os essenciais. Usa o pensamento
dialético para fazer dos pacientes pensadores conscientes da sua história, e
usa os pensamentos essenciais, através das técnicas do resgate da liderança do
eu nos focos de tensão, para torná-los agentes modificadores de sua história. A
terapia multifocal não entra em conflito com a psicanálise nem com a terapia
cognitiva, mas as completa e abre para elas "avenidas" de pesquisa e
de compreensão do homem total.
Há pouco tempo atendi um
paciente com grave transtorno obsessivo. Há vinte anos ele é perturbado
continuamente por idéias fixas relacionadas a acidentes, doenças e morte de
pessoas íntimas. Perdeu completamente o controle sobre a produção dessas idéias
obsessivas e desenvolveu estranhos gestos compulsivos para tentar aliviar-se.
Quando pensa com fixação que sua filha ou sua esposa vai sofrer um acidente,
ele se desespera tanto, que se comporta de modo compulsivo e repetitivo para
desviar ou descaracterizar o pensamento: bate continuamente no peito ou na
cabeça. Tal é seu descontrole que ele faz estes gestos em público.
Ultimamente, entrava no banheiro de sua empresa e batia a cabeça na parede,
por isso todos se assustavam com seus hematomas.
Esse paciente passou por
diversos psiquiatras e psicoterapeutas. Fez psicanálise, terapia cognitiva e
muitos outros tipos de terapia. Porém, não teve sucesso nos tratamentos. Tomou
todos os tipos de antidepressivo, mas nenhum devolveu-lhe o prazer de viver e
lhe trouxe a saúde para seu mundo psíquico. Era um empresário, mas vivia uma
vida angustiante. Alguns o consideravam "louco", outros um ser
socialmente estranho, bizarro.
Seus pais viram aquele jovem,
a partir da adolescência, crescer com esse transtorno, e sofriam muito. Por
fim, recomendaram-lhe o "melhor" psiquiatra do país, que não sei quem
é. Chegando lá, o psiquiatra o desanimou, dizendo-lhe que não tinha mais nada
a fazer, pois ele já havia feito diversos tratamentos psicoterapêuticos e tomou
os mais diversos medicamentos. Segundo esse psiquiatra, o paciente teria que
conviver com sua miséria psíquica.
Há alguns meses, esse
paciente me procurou. Como estou acostumado a tratar de casos resistentes,
sabia que o meu maior problema não era a sua doença, mas o fato de ele não
acreditar que poderia melhorar, que poderia administrar seus pensamentos e se
tornar uma pessoa saudável. Perguntei-lhe com toda a honestidade se ele queria
que eu fosse mais um psiquiatra e psicoterapeuta que passaria pela sua vida ou
se queria que fosse o último. Procurei aguçar-lhe a inteligência, romper com a
adaptação à sua miséria. Desejava instigar sua produção de pensamentos
essenciais e estimulá-lo a fazer uma revolução no seu mundo psíquico,
estimulá-lo a romper seu cárcere intelectual.
Durante o tratamento, levei-o
a compreender como a mente funciona, como produzimos os transtornos obsessivos,
como retroalimentamos os conflitos na memória, como atuam o fenômeno RAM, o
gatilho da memória e o autofluxo. Também o levei a compreender, à luz desses
fenômenos multifocais, as causas inconscientes do seu conflito e a resgatar a
liderança do eu nos focos de tensão. Para tanto, estimulei-o a atuar no seu
universo psíquico dia após dia, durante seis meses, construindo idéias
inteligentes e críticas contra cada idéia obsessiva. Queria que ele
reconstruísse a sua história, pois ela alimentava suas idéias fixas através
das leituras contínuas produzidas pelo fenômeno do autofluxo.
O resultado foi brilhante. Já
no primeiro mês de tratamento ninguém acreditava que aquela pessoa tão doente
melhorara tanto. Esse paciente foi mais um dos que fizeram a terapia
multifocal, compreenderam o funcionamento básico do processo de construção dos
pensamentos e venceram seu drama, mais um dos que se tornaram agentes
modificadores da sua história e se tornaram líderes do seu próprio mundo.
O AMBIENTE DA PSICOTERAPIA MULTIFOCAL
O psicoterapeuta multifocal é
um estudioso dos fenômenos que participam da construção do pensamento, da
transformação da energia emocional, da formação da história intrapsiquica e da
consciência existencial do "eu". Compreende que o funcionamento da
mente humana é complexo e sabe que um dos maiores desafios da inteligência
humana é transformar o "eu" num agente modificador da sua própria
história.
A postura do terapeuta
multifocal é importante para se criar um ambiente terapêutico inteligente,
livre, aberto e que estimula a arte de pensar. Ele não se coloca como um
gigante no território da emoção. Mas como alguém que, apesar de treinado para
conhecer o processo de formação da personalidade e tratar das doenças
psíquicas, é um ser humano que também possui dificuldades existenciais e
limitações no processo de gerenciamento das emoções e dos pensamentos.
Portanto, o psicoterapeuta não deve assumir a postura de semideus, de dono da
verdade nem o paciente deve encará-lo como uma pessoa inatingível, distante de
suas fragilidades e angústias.
Um bom psicoterapeuta é antes
de tudo um excelente ser humano. Alguém que é sociável, alegre, seguro, bem
resolvido, que não tem medo de reconhecer suas dificuldades, que se coloca como
aprendiz diante da vida e que tem a capacidade de aprender lições existenciais
com seus pacientes. Não se comporta como um "extraterrestre", mas
como um ser humano que interage com seu paciente, que honra a sua inteligência,
que o elogia e estimula sua auto-estima a cada passo que dá para desenvolver a
arte de pensar e superar a sua doença psíquica.
Um psicoterapeuta experiente
é capaz de suscitar empatia em seus pacientes e transmitir-lhes confiança e
segurança. É capaz de mostrar que está muito interessado na sua história, na
sua dor e de expressar que ele não é só mais um paciente, mas um ser único e
insubstituível, que merece todo o respeito e que tem direito de viver uma vida
livre e saudável.
O terapeuta multifocal tem
consciência das distorções que ocorrem no processo de interpretação. Sabe que é
impossível não envolver a sua própria história na interpretação dos seus
pacientes, mas questiona continuamente esse envolvimento. Tem consciência da
atuação do fenômeno do gatilho da memória (autochecagem) na análise do
comportamento dos pacientes, mas gerencia os pensamentos e as emoções
decorrentes desse gatilho. Está sempre mostrando ao paciente que suas reações
fóbicas, de ansiedade e impulsivas também são iniciadas por esse fenômeno.
Leva-o a compreender que ele desloca a âncora da memória, direcionando e
restringindo o seu campo de leitura da própria memória.
O terapeuta multifocal
enfatiza no processo psicoterapêutico os papéis fundamentais da memória: o
registro automático pelo fenômeno RAM, o registro privilegiado no inconsciente
das experiências que têm "carga" emocional intensa, a
impossibilidade de deletar a memória consciente e inconsciente, a necessidade
de reescrevê-la para mudar a estrutura da personalidade.
O terapeuta experiente,
apesar de investigar o passado do paciente, não o leva a gravitar em torno
dele, pois tem consciência de que o "eu" não tem as ferramentas para
descobrir o lócus das experiências doentias no córtex cerebral e nem, como
disse, para apagar essas experiências. A história da personalidade arquivada na
memória só pode ser reeditada, reescrita.
O risco de produzir um
paciente dependente do terapeuta tem de ser considerado por qualquer corrente
psicoterapêutica e deve ser evitado com o máximo de empenho. O paciente tem direitos
fundamentais que deveriam ser assegurados por qualquer tipo de psicoterapia,
mas, infelizmente, eles nem sempre são respeitados. Entre estes direitos, está
o de questionar seu terapeuta.
Por estar fragilizado pela
sua doença, o paciente está numa relação desigual com o terapeuta, está
desprotegido diante dele, por isso este pode tanto ajudá-lo como anulá-lo,
prejudicá-lo e embotar sua capacidade de pensar. É necessário que o terapeuta
dê plena liberdade para o paciente questionar suas interpretações, bem como a
teoria e os procedimentos que utiliza. Ele deve estimular a arte da pergunta,
da dúvida e da crítica do paciente. Aquele que não se deixa ser questionado
pelo paciente deveria assumir o lugar dele, deveria ser tratado.
Quando o paciente tiver
condições de andar sozinho, de gerenciar seus pensamentos, de proteger sua
emoção nos focos de tensão, de trabalhar seus transtornos psíquicos, ele deve
ter alta supervisionada, ou seja, voltar somente quando necessário.
Independentemente de ser um
psicólogo, um psiquiatra ou um agente de saúde, o terapeuta que transmite suas
interpretações como se fossem verdades absolutas, que se comporta como um
semideus com relação aos pacientes, pode estar apto a exercer qualquer
profissão, menos a de psicoterapeuta.
O objetivo da terapia
multifocal não é só resolver doenças, mas estimular os pacientes a desenvolver
os amplos aspectos da liderança do eu sobre os pensamentos, bem como as funções
mais importantes da inteligência: a arte de pensar, a arte da crítica, a capacidade
de superação das suas intempéries, a capacidade de pensar antes de reagir, de
expor e não de impor as idéias, de se colocar no lugar do outro, de contemplar
o belo. Não basta ajudar o paciente a resolver sua doença. É preciso torná-lo
um ser completo, que brilha na sua inteligência, que saiba navegar no
território da emoção, que seja especial por dentro, ainda que comum por fora.
Por isso, a terapia multifocal vai além dos limites das doenças, procura
expandir as potencialidades intelectuais do paciente.
Para atingir esses objetivos,
o terapeuta deve estimular o paciente, durante o tratamento, a continuar sua
terapia no ambiente que exerce suas atividades sociais e profissionais, através
das técnicas do resgate da liderança do eu, bem como do gerenciamento do
gatilho da memória, da âncora da memória, do fenômeno do autofluxo. Além disso,
deve estimulá-lo também a utilizar o fenômeno RAM para reescrever a sua
história e se tornar um agente modificador dela, reorganizando, assim, os
transtornos depressivos, a síndrome do pânico e os transtornos obsessivos. A
terapia multifocal, portanto, tem prosseguimento nos territórios sinuosos da
vida, fora do ambiente do consultório. Caso contrário, criamos a crença
ilusória de que só as diretrizes dadas nas sessões terapêuticas sejam
suficientes para o paciente estruturar e reorganizar sua personalidade.
O clima na sessão
psicoterapêutica deve ser inteligente e participativo. A terapia deve
transcorrer num ambiente da democracia das idéias, numa via de mão dupla.
Ambos, terapeuta e paciente, discutem os problemas multifocalmente. Analisam os
momentos da história do paciente, investigando o seu passado, os elementos que
foram registrados de maneira superdimensionada pelo fenômeno RAM, as
experiências retroalimentadas pelo fenômeno do autofluxo, a dificuldade de
gerenciamento do eu, as dificuldades de descaracterizar as imagens
inconscientes que estruturam os conflitos, a necessidade de intervenção nos
pensamentos essenciais que geram não apenas os pensamentos conscientes
(dialéticos e antidialéticos), mas também a ansiedade, o humor deprimido, os
conflitos existenciais.
Na terapia multifocal o comum
é o paciente apresentar melhoras significativas em semanas e ter alta em
meses, embora haja exceções. Lembre-se de que o grande problema não é a doença
do doente, mas o doente da doença, ou seja, a disposição do eu em penetrar no
seu mundo, revisar a sua história e reorganizar a sua maneira de reagir à sua
doença e ao ambiente social.
UM RESUMO DOS PRINCIPAIS PRINCÍPIOS PSICOTERAPÊUTICOS
Reitero, a psicoterapia
multifocal objetiva muito mais do que resolver doenças; ela visa fazer com que
o paciente desenvolva a arte de pensar e as funções mais importantes da
inteligência.
1. Atuar no processo de
construção dos pensamentos, na transformação da energia emocional, na formação
da história intrapsíquica e na formação do eu.
2. Estimular a capacidade de
pensar do paciente para que ele não apenas seja capaz de criticar o mundo que o
envolve, mas também de criticar a interpretação do psicoterapeuta, suas
técnicas e seus procedimentos.
3. Estimular sua capacidade
de análise multifocal para que possa superar as contradições e as
contrariedades da vida.
4. Levá-los a proteger sua
emoção diante dos estímulos estressantes e trabalhar suas perdas e frustrações.
5. Estimulá-los a
desenvolverem a arte da contemplação do belo, o prazer pela vida e o sentido
existencial.
6. Conduzi-los a compreender
os papéis da memória e a reescrever a história consciente e inconsciente nela
arquivada.
7. Estimulá-los a ter como
meta não apenas a resolução de sua doença depressiva, ansiosa ou qualquer
outra, mas a procurar a sabedoria como meta de vida.
8. Levá-los a resgatar a
liderança do eu nos focos de tensão.
9. Levá-los a expandir o
território de leitura da memória (âncora da memória).
10. Conduzi-los a gerenciar a
construção dos pensamentos e a transformação da energia emocional produzidos
pelo fenômeno do autofluxo e pelo gatilho da memória.
Como comentei, a terapia
multifocal não conflita ou anula as demais correntes psicoterapêuticas, ao
contrário, explica-as e complementa-as, pois estuda e trabalha com os fenômenos
universais que estão presentes na base do funcionamento da mente e da
construção de pensamentos.
AS DIFICULDADES DO GERENCIAMENTO DO EU
Vamos continuar a investigar
com mais detalhes os entraves da atuação do homem no seu próprio mundo e
compreender por que os procedimentos psicoterapêuticos, sejam eles quais forem,
possuem limitações significativas.
O eu usa mais os pensamentos
dialéticos e antidialéticos, que são de natureza virtual, para gerenciar a
inteligência do que os pensamentos essenciais, que são de natureza real. Não
podemos nos esquecer que são os pensamentos dialéticos que formam a consciência
humana. Precisamos compreender as limitações do eu para entender as suas
potencialidades.
Como o que é virtual pode
atuar no que é real? Como a consciência virtual pode atuar na realidade
essencial intrínseca dos processos de construção da inteligência, por exemplo,
do processo de transformação da energia emocional? Como os pensamentos
dialéticos e antidialéticos podem transformar as emoções? Essas perguntas são
importantíssimas.
Os pensamentos conscientes
(dialéticos e antidialéticos) têm "em si mesmos" uma dificuldade
intransponível de materializar intrapsiquicamente sua intencionalidade. Na
realidade, os pensamentos conscientes, ao contrário do que pensamos, não atuam
por si mesmos na essência da energia psíquica; eles apenas criam um
"ambiente consciente", um "ambiente dialeticamente e
antidialeticamente iluminador", para que o eu administre
"inconscientemente" o processo de leitura da história intrapsíquica e
as matrizes de pensamentos essenciais inconscientes. Esse mecanismo é um dos
mais complexos e importantes da inteligência humana.
É paradoxal e difícil de se
entender, mas usamos os pensamentos dialéticos, que são conscientes e virtuais,
para administrar os pensamentos essenciais, que são inconscientes e essenciais,
e que estão na base da construção dos próprios pensamentos dialéticos. Quando
entro numa sala e realizo algumas tarefas, a luz do ambiente me permite
locomover-me e realizar essas tarefas. A luz não foi a responsável pela
realização das tarefas, mas criou um ambiente propício para que elas fossem
realizadas. Esse exemplo, embora deficiente, pode demonstrar o trabalho do eu.
Os pensamentos dialéticos e antidialéticos, embora não se materializem na
realização das tarefas psicodinâmicas, criam um ambiente consciente para que o
eu leia a memória e realize suas tarefas psicodinâmicas inconscientes.
A "dificuldade intransponível" da
materialização intrapsíquica dos pensamentos dialéticos faz com que o eu não
exerça uma grande liderança administrativa sobre os processos de construção do
mundo intrapsíquico, como exerce sobre os processos de construção do mundo
extrapsíquico. Quem se "materializa" psicodinamicamente não são os
pensamentos conscientes, mas os pensamentos essenciais inconscientes.
Os pensamentos essenciais se
materializam e atuam psicodinamicamente com mais eficiência no córtex cerebral
e, conseqüentemente, no sistema motor, do que no próprio campo de energia
psíquica. Podemos coordenar cada movimento muscular, que tem milhões de
detalhes metabólicos, por causa da eficiente materialização das matrizes dos
pensamentos essenciais no córtex cerebral, mas não temos a mesma eficiência
para materializar os pensamentos essenciais a fim de administrar nossas emoções
e modificar nossa angústia, nossa dor, nossa ansiedade etc. O resultado é que o
homem sempre foi um grande líder do mundo extrapsíquico, mas nunca o foi do
mundo intrapsíquico.
O eu não consegue determinar
que o processo de transformação da energia emocional, bem como os outros
processos de construção da inteligência, submeta-se diretamente à sua
liderança. Se houvesse uma liderança plena sobre o processo de transformação da
energia emocional, os problemas concernentes ao sofrimento psíquico
(angústias, humor deprimido, tensão, desespero, solidão, farmacodependência
etc.) e psicossocial (sofrimento decorrente de discriminação, perda, ofensa
pública, exclusão social etc.) estariam resolvidos, pois todo ser humano
conseguiria viver num oásis de prazer, em detrimento de suas misérias
extrapsíquicas.
O eu também não é muito
eficiente ao atuar na história intrapsíquica, arquivada na memória. A história
intrapsíquica guarda os segredos inconscientes e conscientes do processo
existencial. A impotência em gerenciar o registro e a leitura automática da
história intrapsíquica traz importante proteção contra a destruição
socioeducacional e a autodestruição da história intrapsíquica.
O eu não pode apagar nem
destruir as RPSs registradas na memória. No máximo, e esse é o seu papel
fundamental no gerenciamento da história intrapsíquica, ele poderá reciclar criticamente
essas RPSs, produzindo idéias críticas sobre o processo de interpretação e uma
análise dos estímulos que geraram essas RPSs. O gerenciamento das RPSs
iniciais redundarão em novas RPSs, que alterarão, por sua vez, a qualidade da
história intrapsíquica que, lida pelos fenômenos que fazem a leitura da mesma,
gerará novas cadeias psicodinâmicas das matrizes de pensamentos essenciais,
novas transformações da energia emocional e novas cadeias psicodinâmicas
virtuais dos pensamentos dialéticos e antidialéticos. Embora não seja oportuno
neste livro, há muito o que dizer sobre esse assunto, pois podemos extrair dele
importante conhecimento psicológico e filosófico.
O homem que é senhor do mundo
em que ele está, é pouco senhor do mundo que é ele. Se fôssemos senhores do
mundo que somos, certamente faríamos uma grande faxina intelectual em nossa
mente; até mesmo os psicopatas fariam isso. Quantos pensamentos, idéias,
recordações, fantasias, angústias, humores deprimidos, sentimentos de solidão,
etc. não iríamos querer deixar de produzir; mas eles são produzidos
independentemente da determinação do "eu". A revolução das idéias
independe do eu; ela é financiada, principalmente, pelo fenômeno do autofluxo e
pela âncora da memória. Quantos de nós não gostaríamos de deixar de sofrer por
antecipar situações futuras ou ruminar situações passadas ou, ainda, produzir
pensamentos sobre o que os outros pensam e falam de nós, sobre problemas
sociais e profissionais; mas, freqüentemente, nos sentimos incapazes de
controlar plenamente o universo psíquico.
Temos que começar a revisar
os paradigmas intelectuais contidos nas teorias da personalidade e compreender
que a inteligência não é unifocal e unidirecional, mas multívariável; que a
construção de pensamentos se dá através de diversos fenômenos e que está
sujeita a riquíssimos processos de co-interferências das variáveis, que são
difíceis de serem administrados. O nosso gerenciamento da capacidade de pensar
é micro ou macrodistinto a cada momento da existência.
Temos que usar procedimentos
de investigação, tais como os derivados da busca do caos intelectual, para
investigar e compreender a leitura e construtividade dos pensamentos. Não
adianta usar jargões psicológicos simplistas para explicar o porquê de o homem não
ter pleno controle sobre a produção de pensamentos. É superficial e genérico
dizer que isso se deve ao fato de ele sofrer de neuroses, de conflitos
psíquicos, de transtornos obsessivo-compulsivos, de stress.
Os diagnósticos na
psiquiatria podem ser úteis para traçar algumas "avenidas"
farmacoterapêuticas e psicoterapêuticas, mas também podem funcionar como
"véus" que cobrem nossa inteligência, nossa dificuldade de
compreender os segredos da mente humana. Como eu já disse, mesmo que houvesse
um homem dotado da mais plena sanidade intelectual, ele não exerceria pleno
controle sobre sua mente, sobre a construção dos seus pensamentos, sobre a
transformação da sua energia emocional.
Se não compreendermos, ainda
que parcialmente, o complexo processo de construção de pensamentos e da
formação da consciência existencial, não chegaremos a entender nem mesmo como
ocorrem o autoritarismo das idéias e a ditadura dos discursos teóricos que
controlam não só os ditadores políticos, as pessoas preconceituosas, as pessoas
que respiram discriminação, mas também nossa própria atitude anti-humanística
nas relações interpessoais.
Quando abordo as limitações
do eu, não estou dizendo que ele não seja responsável pelas atitudes
anti-humanísticas, destrutivas, autodestrutivas. Se ele consegue estabelecer,
ainda que parcialmente, os parâmetros da realidade extrapsíquica e
intrapsíquica, ele se torna responsável pelos atos humanos, pois toma
consciência da construção de pensamentos iniciada pelo fenômeno da autochecagem
da memória ou pelo fenômeno do autofluxo. Nesse caso, ele adquire condições
para gerenciar os processos de construção de pensamentos e o comportamento
humano.
O comportamento humano, que é
a manifestação dos pensamentos, é mais fácil de ser controlado do que os próprios
pensamentos. Com respeito ao gerenciamento dos pensamentos, o mais importante
não é querer fazer uma faxina intelectual pura e completa, ou seja, querer
eliminar todos os pensamentos débeis que temos, mas ter consciência crítica
deles, reciclá-los, desorganizá-los e descaracterizá-los intelectualmente.
É mais fácil o homem explorar
o espaço físico do universo do que seguir a trajetória do seu próprio ser. Por
isso, o humanismo, a cidadania, a democracia das idéias, a análise multifocal,
a arte da contemplação do belo etc, embora sejam funções intelectuais nobres da
inteligência, não são fáceis de ser conquistados, a não ser, como tenho dito,
através de um processo educacional interiorizante, que estimula o homem a
pensar, a desenvolver a consciência crítica, a expandir o mundo das idéias, a
se tornar um pensador humanista.
Não podemos compreender a
violação histórica dos direitos humanos e, conseqüentemente, produzir
"vacinas" psicossociais humanísticas, se não levarmos em consideração
a construção dos pensamentos e os limites do "gerenciamento do eu".
Porém, nas sociedades modernas essas "vacinas" são uma utopia, pois,
até o momento, temos vivido um intrigante paradoxo intelectual, expresso por
explorarmos e conhecermos intensamente o imenso espaço e o pequeno átomo e, ao
mesmo tempo, explorarmos e conhecermos pouco o nosso próprio mundo
intrapsíquico, o nascedouro das idéias, as origens de nossa inteligência.
GERENCIANDO A INTELIGÊNCIA A PARTIR DA QUINTA ETAPA DE INTERPRETAÇÃO
O eu não tem o poder de
controlar as quatro primeiras etapas da interpretação e a atuação do fenômeno
da psicoadaptação que ocorrem antes da sua formação e envolvem a leitura da
história intrapsíquica pelo fenômeno da autochecagem da memória e pelo
fenômeno do autofluxo (primeira etapa), a formação das matrizes dos pensamentos
essenciais históricos (segunda etapa), a atuação psicodinâmica dessas matrizes
no campo de energia emocional e motivacional (terceira etapa) e o processo de
leitura virtual que essas matrizes sofrem para gerar os pensamentos dialéticos
e antidialéticos (quarta etapa). O eu é formado na quinta etapa da
interpretação, logo após a formação dos pensamentos dialéticos e
antidialéticos, como estudaremos com detalhes no próximo capítulo.
Os processos espontâneos de
construção dos pensamentos dialéticos e antidialéticos, financiados pelos três
"mordomos" intrapsíquicos, dão-nos a impressão de que o eu se
desenvolve continuamente no estado de vigília. Na realidade, a âncora da
memória produz um grupo de informações instantâneas, que fornece subsídios
para financiar um quadro básico da consciência de nossas identidades num
determinado momento existencial.
Quando estamos num
determinado ambiente, numa escola, numa empresa, num ambiente freqüentado por
pessoas estranhas ou por pessoas de nossa intimidade, a âncora da memória se
desloca na memória financiando um grupo de informações que nos identificam e
identificam o ambiente. Assim, ainda que não fiquemos preocupados em controlar
o tipo de respostas e reações que devemos ter em determinado ambiente, mudamos
o nosso comportamento espontaneamente, devido ao deslocamento da âncora da
memória e, conseqüentemente, do grupo de informações que financiam a
"consciência instantânea". Assim, a "consciência
instantânea" é um acessório valioso do "eu".
Apesar de a "consciência
instantânea" ser um acessório fundamental do eu, paradoxalmente ela não é
produzida nem administrada pelo próprio eu, pelo menos no primeiro momento,
mas pelo deslocamento da âncora da memória propiciado pelo fenômeno da
autochecagem ou do gatilho da memória. Ficamos inibidos num ambiente público,
mas somos espontâneos num ambiente familiar; somos brincalhões entre amigos e
sérios nas reuniões de trabalho. Essas mudanças de postura intelectual nem
sempre ocorrem porque programamos nossa inteligência, mas devido a uma
construção espontânea de cadeias de pensamentos dialéticos e antidialéticos que
financiam a consciência instantânea. Só quando temos uma sensação de
"vazio intelectual", de "ausência de memória", devido a uma
situação estressante ou ao uso de substâncias psicotrópicas, é que sofremos um
deslocamento brusco da âncora da memória, o que nos causa uma perda da
consciência instantânea de quem somos, de onde estamos, do que fazemos no
ambiente em que nos encontramos.
O deslocamento brusco da
âncora da memória tira-nos da órbita da consciência instantânea, desorganiza a
nossa identidade, comprometendo, assim, todo o processo de interpretação num
determinado momento existencial.
Reitero: o eu não tem,
portanto, o poder de gerenciar os processos de construção da inteligência
gerados nas quatro primeiras etapas da interpretação. Porém, depois que é
formado na quinta etapa, através da produção dos pensamentos dialéticos e
antidialéticos, ele adquire condições para intervir nos fenômenos da
inteligência, inclusive na consciência instantânea gerada pelo gatilho da
memória e nos conseqüentes deslocamentos da âncora da memória. Esses
mecanismos estão entre os segredos mais importantes da inteligência humana.
A liberdade criativa e a
plasticidade construtiva dos pensamentos, gerenciadas pelo "eu", são
sofisticadas e importantíssimas e têm de ser conquistadas individualmente nos
territórios sinuosos da própria psique. Muitos são exteriormente livres nas democracias
políticas, mas são intrinsecamente prisioneiros dentro de si mesmos. Muitos têm
sucesso social, econômico e profissional, mas não têm sucesso em desenvolver
as funções mais nobres da inteligência, em expandir o mundo das idéias, em
trabalhar seus focos de tensão, em administrar sua ansiedade, seu stress, suas
frustrações.
A seguir, será apresentado um
quadro didático sobre a construção de pensamentos e o gerenciamento do eu.
GRÁFICO 3 GERENCIAMENTO DO "EU" (SELF-CONTROL)
Administração dos processos de
construção da inteligência
Capítulo 9
A Comunicação Social Mediada, as Etapas do Processo de Interpretação e o Fenômeno da Psicoadaptação
A COMUNICAÇÃO SOCIAL MEDIADA E A RECONSTRUÇÃO DO "OUTRO" PELO PROCESSO DE INTERPRETAÇÃO
Não comunicamos a essência do
que pensamos e sentimos e nem incorporamos as emoções das pessoas que nos
circundam. Vivemos ilhados nas sociedades, ainda que nos consideremos seres sociais.
Quando a energia psíquica de uma pessoa, contida nas idéias, angústias,
humores deprimidos, reações fóbicas, inseguranças, sentimentos de tolerância,
de prazer etc, é assimilada pelo seu córtex cerebral e transmitida como pool
de estímulos físico-químicos ao longo dos nervos, ela se descaracteriza
essencialmente.
Os sistemas de códigos físico-químicos
são expressões restritivas das idéias, das inseguranças e das emoções que estão
contidas no campo de energia psíquica. Quando as experiências psíquicas se
tornam sistemas de códigos que excitam a musculatura esquelético-facial e as
cordas vocais, produzindo gesticulações e sons que são captados pelo sistema
sensorial auditivo e visual do observador e assimilados pelo seu córtex
cerebral, ocorre uma acentuação da descaracterização da experiência psíquica da
pessoa que a emana.
Após atingir o córtex
cerebral e serem assimilados, os sistemas de códigos passam por um processo de
transmutação, através das janelas TC (janelas de transmutação codificada)
existentes em determinados sítios do cérebro, que excitam o campo de energia
psíquica do observador. Diante disso, fica patente que a experiência psíquica
de uma pessoa, à medida que ela se torna uma cadeia de códigos, que por fim
será assimilada e transmutada no campo de energia psíquica do observador,
afasta-se cada vez mais de sua realidade essencial. Assim, quando uma pessoa
expressa que está deprimida ou angustiada, o observador jamais capta a
realidade essencial do seu humor deprimido, mas um sistema de códigos pobre com
relação às dimensões de sua experiência emocional. O observador terá de
interpretar os sistemas de códigos para reconstruir a experiência do
"outro".
O observador, ao captar
sensorialmente o grupo de códigos físico-químicos que representa pobremente as
riquíssimas experiências do "outro", reconstruirá
interpretativamente, nos bastidores da sua mente, essas experiências. Porém,
essa reconstrução não ocorrerá de maneira pura, mas com inúmeras distorções,
que incluem "cores" e "formas" próprias de interpretação.
O observador reconstrói interpretativamente a experiência psíquica do
"outro" não só através dos códigos que a representam, mas também por
meio da leitura da sua história intrapsíquica e dos sistemas de co-interferências
das variáveis que atuam nos bastidores da sua mente. A grande questão na
comunicação social mediada é que a "interpretação do outro" deixa de
ser a realidade essencial da energia psíquica do "outro", ou seja,
deixa de ser sua experiência psíquica, seu prazer, sua angústia existencial,
sua insegurança, sua idéia etc, e passa a ser a própria experiência do observador,
que pode ter pouquíssima relação com a experiência real do "outro".
Não comunicamos a essência da
energia psíquica a ninguém. Os ambientes também não nos comunicam outros tipos
de "energia" que não seja a energia físico-química captada pelo
sistema sensorial. Diante de determinadas personalidades ou de determinados
ambientes, algumas pessoas, com tendências, místicas ou supersticiosas, acham,
que captaram, uma energia estranha, diferente, proveniente deles. Porém, na
realidade, reconstruíram interpretativamente, nos labirintos da mente, a partir
de sistemas de códigos físico-químicos sensorialmente captados, as
"sensações", "vibrações", emoções e percepções que crêem
ser provenientes de fora.
Nas relações interpessoais,
comunicamos estímulos sensoriais e interpretamos estímulos sensoriais. A
comunicação extra-sensorial, tão comentada nos meios coloquiais, é
especulação, achismo empírico e superstição. Se há algum tipo de comunicação
extra-sensorial, ela é cientificamente pouco evidente e quase indistinguível da
produzida pelo processo de interpretação. Estamos ilhados no mundo
intrapsíquico; por isso temos a enorme responsabilidade de realizar um processo
de interpretação maduro. As sensações que as pessoas têm nos ambientes e nas
relações humanas são reconstruções, realizadas pela interpretação, produzidas
pelo fenômeno da autochecagem, autochecagem que lê a memória e produz cadeias
de pensamentos essenciais, que, por sua vez, excita inconscientemente a energia
emocional.
Embora todos tenhamos um
complexo campo de energia psíquica em que construímos constantemente
pensamentos, reflexões, recordações, pensamentos antecjpatórios, angústias,
prazeres, sentimentos de tolerância etc, vivemos uma profunda solidão
paradoxal, a solidão da consciência existencial, que é muito mais profunda que
a solidão emocional, representada pela consciência e a angústia de estarmos
sós. A solidão paradoxal da consciência tem um conceito muito sofisticado, e
só podemos compreendê-lo adequadamente quando unimos a Psicologia com a
Filosofia. Estamos sós, ilhados em nosso universo intrapsíquico, não porque
temos a consciência de estarmos sós, a consciência da solidão, mas porque a
consciência existencial, por ser virtual, nunca incorpora a realidade
essencial do mundo tornado consciente por ela.
Neste livro, comentarei
sinteticamente a solidão paradoxal da consciência existencial, embora tenha
produzido diversos textos sobre ela. Estamos fisicamente próximos das pessoas e
dos ambientes, mas, ao mesmo tempo, estamos infinitamente distantes deles. A
consciência existencial é virtual; por isso, possui um antiespaço com a
realidade essencial contida no mundo extrapsíquico. A solidão paradoxal da
consciência existencial é uma das grandes promoções inconscientes que motiva o
homem a desenvolver a comunicação social e a criatividade intelectual.
O homem produz uma rica
construção de pensamentos dialéticos e
antidialéticos, que fica seqüestrada dentro de si mesma ou que é expressa nas
relações interpessoais, porque ele está continuamente tentando superar a
solidão paradoxal da consciência existencial. Comentei que o destino do homem é
pensar, pois a mente é um campo de energia psíquica que possui fenômenos que
lêem a memória e constroem pensamentos voluntária e involuntariamente. Esse é o
conceito psicológico da construção de pensamentos. Agora, o conceito
filosófico é que o homem necessita pensar não só devido ao fluxo vital dos
fenômenos que atuam nos bastidores da mente humana, mas também porque ele sofre
uma indescritível solidão da consciência existencial, ou seja, porque o eu
está próximo e infinitamente distante da realidade essencial do mundo
extrapsíquico e até do seu próprio mundo intrapsíquico, pois a consciência de
si mesmo não é a essência de si mesmo, mas um sistema de intenções dialéticas e
antidialéticas.
O homem pensa continuamente,
numa tentativa inconsciente de superar a solidão da consciência existencial. A
solidão da consciência existencial é inconsciente; mas quando essa superação
falha, ele sofre a solidão emocional, que é percebida conscientemente.
Produzimos diariamente milhares de pensamentos, embora grande parte deíes nunca
sejam expressos nas relações sociais, como tentativa de superar a solidão
paradoxal. Por isso eu disse que a maior fonte de entretenimento humano é a
construção de pensamentos, as viagens intelectuais que fazemos continuamente
pelo mundo das idéias.
A produção poética, a
pintura, o teatro, o estabelecimento de relações sociais, a produção contínua
de diálogos, a produção de idéias e todos os tipos de criatividade intelectual
são expressões vivas e marcantes do fluxo vital da energia psíquica canalizada
pela tentativa de superação da solidão paradoxal.
A consciência existencial é
extremamente complexa e é até mesmo indescritível na sua plenitude. Através
dela, temos consciência do mundo que somos e do mundo em que estamos,
discriminamos os parâmetros tempo-espaciais, discriminamos entre o ter e o ser
e acusamos os objetos e todos os seres vivos que contemplamos, porém, sem a necessidade
de incorporar suas realidades essenciais. A espécie humana conquistou o privilégio
de ser uma espécie pensante e que possui uma consciência existencial de si
mesma e do mundo. Porém, a consciência existencial gerou uma dramática,
insolúvel e importante solidão paradoxal, que nos impele constantemente, da
meninice à velhice, consciente ou inconscientemente, a procurar superá-la
através da produção das artes, dos entretenimentos, da comunicação
interpessoal, dos diálogos produzidos no silêncio de nossa mente. Até mesmo a
ciência é uma tentativa inconsciente de superação da solidão paradoxal do
cientista.
Toda a rica construção gerada
pela busca de superação da solidão paradoxal da consciência existencial se
processa, e tem "relativo sucesso", porque ela atua no fluxo
psicodinâmico vital da energia psíquica, em que as variáveis co-interferem
mútua e continuamente.
A construção das relações
humanas e a comunicação social não são produtos do sistema educacional, embora
este possa estimulá-las, mas são construções inevitáveis do Homo interpres que
procura superar continuamente a solidão da consciência existencial do Homo
intelligens. Mesmo os anacoretas, que se enclausuram por motivos místicos,
se comunicam consigo mesmos, produzem uma riqueza de idéias e reflexões como
tentativa espetacular de superação da solidão paradoxal de suas consciências
existenciais. Os autistas, apesar de possuírem relações limitadas com o mundo
extrapsíquico, possuem uma criatividade intelectual e uma rica auto-comunicação
no seu mundo intrapsíquico. E isso é tão mais real quanto mais preservada
estiver sua construção de pensamentos.
O nascedouro psicolingüístico
dos pensamentos dialéticos, ou seja, das idéias, das análises, das sínteses
etc, e antipsicolingüísticos dos pensamentos antidialéticos, ou seja, da
imaginação, da consciência da insegurança, da consciência das expectativas, da
consciência das fobias etc, tem muitas vertentes na psique, das quais o fluxo
vital da energia psíquica é preponderante; mas temos que perceber que ele é
enriquecido pela necessidade de comunicação social e de autocomunicação
intrapsíquica (o homem pensando consigo mesmo) como tentativa contínua de
superação da solidão paradoxal da consciência existencial.
Apesar de o Homo
intelligens ter uma necessidade vital de comunicação social, ela não
transcorre no campo da realidade essencial da energia psíquica, mas da
mediação dos códigos físico-químicos.
Compreendemos o
"outro", não através da realidade essencial do outro, mas através da
interpretação dos sistemas de códigos que ele expressa pobremente no seu
comportamento. Parece que vivemos num mundo de trocas reais, onde nos
ofendemos, nos alegramos, nos inspiramos e nos encorajamos mutuamente, mas, na
realidade, vivemos no mundo da interpretação, onde estamos próximos
fisicamente do "outro" mas, ao mesmo tempo, infinitamente distantes
dele. Da qualidade de nossas interpretações dependerá os níveis de distorção e
de aproximação na reconstrução das experiências psíquicas do "outro".
Conhecemos as pessoas a
partir de nós mesmos, a partir dos processos de construção da interpretação que
fazemos delas. Milhares de pessoas estão chorando, sofrendo e tendo seus
direitos violados neste momento, mas não captamos essencialmente suas misérias.
E mesmo que queiramos ter contato com as mesmas, através da mídia ou
pessoalmente, nós, freqüentemente, devido aos entraves da comunicação mediada e
às dificuldades da reconstrução do "outro", compreendemos suas dores
e necessidades psicossociais de maneira reduzida.
Essa abordagem psicossocial e
filosófica da interpretação do outro explica por que tantos governantes são
omissos sociopoliticamente. Não há urgência nas intervenções sociopolíticas
para aliviar as dores e necessidades psicossociais do "outro" (como
indivíduo e grupo social), pois vivemos no mundo da interpretação. Nessas
condições sociopolíticas, a miséria humana vira um mero detalhe estatístico.
Somente uma interpretação
mais humanística, cidadã e profunda pode aprimorar a compreensão das necessidades
psicossociais do "outro" e, ainda assim, com injustiça em relação às
suas dimensões.
AS CINCO ETAPAS DO PROCESSO DE INTERPRETAÇÃO E O GERENCIAMENTO DO EU
Não apenas a reconstrução do
"outro" evidencia a complexidade dos processos de construção dos pensamentos,
mas também as cinco etapas do processo de interpretação, pois é através dessas
etapas que as cadeias psicodinâmicas dos pensamentos são formadas e a
interpretação do "outro" se processa.
As cinco etapas do processo
de interpretação nos possibilita não apenas compreender de maneira mais global
os processos de construção dos pensamentos, da consciência existencial e da
transformação da energia emocional, mas também abre uma grande janela
psicossocial e filosófica para compreendermos algumas causas fundamentais que
levam a espécie humana a violar continuamente, ao longo da sua história, os
direitos humanos.
O fenômeno da psicoadaptação,
atua na terceira etapa do processo de interpretação. Ele é grande responsável
pelas transformações ocorridas nos movimentos literários, na pintura, na
arquitetura, na estética dos objetos, nos costumes e até na tecnologia. A
atuação deste fenômeno é inconsciente.
O processo de interpretação é
constituído de pelo menos cinco grandes etapas. As primeiras três etapas são
inconscientes e as duas últimas, conscientes. Comentar as etapas do processo
de interpretação, pertinentes aos meandros da psique humana, me faz sentir um
pequeno aprendiz diante de tanta complexidade, pois o mesmo conhecimento que
expressa a dimensão das minhas idéias revela também as fronteiras da minha
compreensão e a dimensão da minha ignorância. Quem utiliza os "marcos do
conhecimento" para exaltar a extensão da sua cultura, aborta a produção de
novas idéias. Porém, quem os utiliza para revelar seus limites, se coloca como
eterno aprendiz na trajetória existencial; por isso enriquece continuamente
sua produção de idéias. Em ciência, a auto-exaltação e a auto-suficiência são
sinais clínicos de esterilidade científica. A dúvida e a crítica são sinais da
fertilidade das idéias.
A primeira etapa da
interpretação ocorre pela captação dos estímulos extrapsíquicos através do
sistema sensorial, assimilação no córtex cerebral e autochecagem na história
intrapsíquica. Quando um estímulo extrapsíquico (por ex., os sons e as imagens
do "outro", que representam suas experiências psíquicas) excita o
sistema sensorial ele é conduzido até o córtex cerebral e é assimilado em
determinados sítios do cérebro correspondentes ao órgão sensorial estimulado.
Falar da assimilação dos
estímulos no córtex cerebral, que é a camada mais evoluída do cérebro, é muito
simplista, pois não remete a uma compreensão mais profunda sobre o processo de
construtividade de pensamentos e de formação da consciência existencial.
Durante vários anos, eu pensava que a construção de pensamentos transcorria
nos meandros fisico-químicos do metabolismo cerebral. Porém, ao longo das
pesquisas, percebi que, em detrimento da complexidade fisico-química do
cérebro, não há como produzir teorias biológicas profundas, alicerçadas nas
leis físico-químicas do metabolismo cerebral, que sejam capazes de explicar
como se produz o nascedouro das idéias, as origens da consciência existencial.
Precisamos incorporar o
postulado de que a psique humana é um sofisticado e complexo campo de energia
psíquica e que esse campo de energia coexiste e co-interfere com o campo de
energia fisico-química do cérebro. Caso contrário, teremos grandes dificuldades
para compreender a construção dos pensamentos, a formação da inteligência.
Ambos os campos de energia co-interferem mutuamente pelo processo de
transmutação. A energia psíquica transmuta-se ou transforma-se em energia
fisico-química, e vice-versa. O campo de energia fisico-química está preso a um
sistema de leis lineares, previsíveis e lógicas, enquanto o campo de energia
psíquica ultrapassa os limites dessas leis. Como eu já disse, esse assunto é a
tese das teses na ciência, pois revela os segredos da psique humana e da
própria ciência, pois ela é um conjunto organizado de pensamentos. Embora
reconheça os enormes limites intelectuais que temos para pesquisar esse
assunto, tenho procurado investigá-lo com dedicação através da pesquisa
empírica aberta. O comentário que farei a seguir, que será útil para elucidar a
primeira grande etapa do processo de interpretação, é apenas uma pequena
síntese dos textos que produzi sobre esse assunto.
Os processos de construção
dos pensamentos, da consciência existencial, da história intrapsíquica e da
transformação da energia psíquica estão inseridos dentro do campo de energia
psíquica, porém recebem a influência dos microcampos de energia fisico-química
transmutadas pelo metabolismo cerebral. Os microcampos de energia
fisico-química que ocorrem em determinados sítios do cérebro transmutam-se no
campo de energia psíquica, interferindo em todos os seus processos de
construção, na leitura da memória, na formação das cadeias de pensamentos, no
gerenciamento do eu, etc. Os microcampos de energia fisico-química são
provenientes da assimilação dos estímulos extrapsiquicos (sensoriais) no córtex
cerebral, da ação das drogas psicotrópicas, do metabolismo de substâncias
intraneuronais (células nervosas) e do metabolismo de substâncias contidas nas
sinapses nervosas, principalmente os neurotransmissores.
O campo de energia psíquica
também transmuta microcampos de energias no córtex cerebral. Uma parte
significativa da coordenação motora revela essa transmutação refinada da psique
no cérebro. A psique também transmuta tensões emocionais no campo de energia
cerebral gerando possíveis microalterações metabólicas psicossomáticas (MMP) e
sintomas psicossomáticos, às vezes clinicamente detectáveis. A própria memória
contida no córtex cerebral, que é continuamente lida pelos fenômenos do campo
de energia psíquica, é um testemunho da fineza do processo de co-interferência
transmutativa entre os fenômenos contidos no campo de energia psíquica e o
cérebro.
A cadeia psicodinâmica dos
pensamentos produzida a partir dos estímulos extrapsíquicos se inicia após se
processar a assimilação dos mesmos, em determinadas áreas do córtex cerebral, e
posterior transmutação no campo de energia psíquica, através das janelas de
transmutação que existem em determinados sítios do cérebro. Quando os
estímulos são assimilados no córtex cerebral, formam-se, provavelmente,
microcampos de energia físico-química com "comprimentos de ondas"
específicos que se transmutam no campo de energia psíquica, gerando
sofisticadas matrizes dos pensamentos essenciais "a-históricos".
As matrizes dos pensamentos
essenciais "a-históricos" são inconscientes e fugazes, com vida média
de milésimos de segundos. Nesse momento, como já abordei, entra em operação o
fenômeno da autochecagem da memória, um fenômeno inconsciente que atua psicodinamicamente
nas matrizes de pensamentos essenciais "a-históricos",
autochecando-as na memória, dando um significado "histórico" a essas
matrizes. O fenômeno da autochecagem da memória operacionaliza uma autochecagem
das matrizes dos pensamentos essenciais "a-históricos" na memória do
córtex cerebral, numa operação de retorno transmutativo.
A memória do córtex cerebral
contém os segredos da história intrapsíquica produzidos ao longo do processo
existencial. Existe um sistema lógico entre estímulo sensorial, as matrizes de
pensamentos essenciais "a-históricos" e os registros das experiências
psíquicas (incluindo os símbolos lingüísticos) na memória do córtex cerebral.
Se não houvesse esse sistema de relação lógica, não haveria como se processas a
compreensão do mais simples pensamento expressado pelo "outro".
Compreender um pensamento,
uma idéia, um sentimento expresso pelo outro, não quer dizer, em hipótese
alguma, que se resgatou a essência das experiências do "outro", mas
que se reconstruiu interpretativamente as mesmas, com dimensões
qualitativamente e quantitativamente distintas. Assim, reconstruir
interpretativamente uma idéia transmitida pelo outro e compreendê-la não quer
dizer compreender todas as dimensões psicossociais que elas encerram.
O sistema de relação lógica
entre as matrizes de pensamentos essenciais e os estímulos extrapsíquicos não
define a complexa reconstrução da interpretação das experiências do
"outro", mas serve para estabelecer uma ponte de relação histórica
(autochecagem da memória) entre os estímulos extrapsíquicos, os pensamentos
essenciais "a-históricos" e a história intra-psíquica arquivada na
memória do observador, completando a primeira etapa da interpretação. Com isso,
podemos compreender a rica comunicação dialética expressa nas relações
interpessoais. A primeira etapa da interpretação sobrevive através do sistema
de relação lógica, mas as outras etapas têm variáveis flutuantes (tais como a
energia emocional, a energia motivacional, a âncora da memória) e evolutivas
(como o fenômeno da psicoadaptação, da história intrapsíquica), que fazem com
que o processo de construção de pensamentos, de formação da consciência
existencial e de transformação da energia psíquica não obedeçam a uma
linearidade lógica e previsível.
Diante desta sucinta
exposição, digo que a grande questão psicossocial e filosófica não é questionar
qual é a essência em si do objeto observado, pois esta não é incorporada na
consciência intelectual, como está expresso na fase inicial da primeira etapa
da interpretação. A fase inicial dessa primeira etapa revela que o observador
não incorpora a realidade essencial do objeto contemplado, mas um sistema de
códigos, que ele terá que autochecar na sua memória, que é a fase posterior
desta primeira etapa.
Depois de ter produzido a
teoria da inteligência multifocal, descobri que algumas teorias filosóficas,
como o existencialismo de Jean-Paul Sartre, também incorporavam conhecimentos
sobre a fase inicial da primeira etapa da interpretação. Sartre 7
comenta que o ser-em-si (realidade essencial do objeto ou do "outro")
não é incorporado pela consciência. A consciência vive o ser-para-si (objeto
interpretado). O ser-para-si não é a essência-em-si do objeto ou fenômeno
observado. Apesar de esse conhecimento ser importante, ele se relaciona apenas
com a fase inicial da primeira etapa da interpretação, que expressa que a
realidade do objeto ou do "outro" não é incorporada em sua essência,
mas interpretada, a partir do sistema de códigos sensoriais que os constituem,
pela consciência humana. Porém, a grande questão psicossocial e filosófica não
está apenas na compreensão da fase inicial da primeira etapa da interpretação,
mas, principalmente, na compreensão do que ocorre na fase posterior da
primeira etapa da interpretação e nas etapas posteriores, pois é através delas
que ocorre a leitura da memória, a construção dos pensamentos e a formação da
consciência existencial.
Na fase inicial da primeira
etapa da interpretação, o estímulo observado é "a-histórico", mas na
fase final dessa etapa ele conquista um significado histórico. O fenômeno da
autochecagem da memória, como o próprio nome revela, é responsável por fazer
uma ponte de relação histórica entre um estímulo extrapsíquico (ex., a imagem
de uma flor, uma atitude agressiva, as palavras contidas numa frase etc.) e a
história intrapsíquica arquivada na memória. Quando o fenômeno da autochecagem
lê a memória, a partir das matrizes dos pensamentos essenciais
"a-históricos", se completa, como eu disse, a primeira grande etapa
da interpretação.
A segunda etapa da
interpretação ocorre através da operacionalização em si da leitura da história
intrapsíquica, gerando a qualidade das cadeias psicodinâmicas das
"matrizes dos pensamentos essenciais históricos". A autochecagem da
memória é rapidíssima, pois se processa em milésimos de segundos, e com extremo
acerto, pois tem de encontrar as informações específicas em meio a bilhões de
opções. Ela gera os pensamentos essenciais históricos. Estes se distanciam dos
pensamentos essenciais "a-históricos", produzidos antes da
autochecagem da memória e, conseqüentemente, da realidade essencial do
"outro", pois acrescenta as "cores" e "formas"
históricas do observador, do interpretador.
A história intrapsíquica é
formada de bilhões de matrizes físico-químicas (RPSs), que representam
psicossemanticamente o universo das experiências existenciais vivenciadas em
toda a trajetória de vida, da aurora da vida do feto até o último suspiro da
existência. Como já comentei, chamo as matrizes físico-químicas arquivadas em
áreas específicas do córtex cerebral de RPS, representações psicossemânticas,
pois representam, ainda que pobre e restritivamente, o significado, a semântica
das complexas experiências psíquicas, tais como insegurança, reações fóbicas,
prazer, idéias, análises, pensamentos antecipatórios, preocupação existencial,
etc.
Didaticamente as RPS podem
ser divididas em dois grupos: as RPS diretivas (RPSd) e as associativas (RPSa).
As RPSd representam as experiências psíquicas semelhantes, ou seja, as idéias,
sentimentos de prazer, de raiva, de insegurança etc, que têm uma identidade
próxima em conteúdo das que vivenciamos no presente ou contemplamos no
"outro". As RPSa representam as experiências associativas que, embora
não sejam produzidas pelos mesmos estímulos e pela mesma fonte emanadora (a
mesma pessoa) e, conseqüentemente, não gerem experiências psíquicas com identidades
próximas (mesmas inseguranças, fobias, prazeres, idéias), guardam uma
relacionalidade associativa com os pensamentos essenciais
"a-históricos".
Quando alguém nos ofende, não
apenas autochecamos (primeira etapa) na memória as RPSs diretivas, com
identidades próximas, ou seja, relativas ao tipo exato de ofensa emanado pelo
tipo exato de ofensor, mas autochecamos também um grupo de RPSs associativas,
ligadas a outros tipos de ofensas produzidas por outros tipos de pessoas e em
outros tipos de ambiente. Tudo ocorre em frações de segundos, gerando, em
última análise, as matrizes dos pensamentos essenciais históricos (segunda
etapa), que atuarão psicodinamicamente no campo de energia emocional (terceira
etapa).
Por exemplo, se soubéssemos
que seremos ofendidos em público por determinada pessoa, poderíamos nos
preparar para ficar indiferentes à natureza da ofensa e às repercussões sociais
da mesma. Porém, dificilmente teríamos êxito completo na postura de indiferença
intelecto-emocional diante desse estímulo. Se tivéssemos arquivado em nossas
histórias intrapsíquicas um grupo de RPSs diretivas (semelhantes ao conteúdo da
ofensa) e associativas (ligadas à aversão a críticas, a inseguranças em relação
ao que os outros pensam e falam de nós, a preocupações com nossas imagens
sociais etc), elas seriam lidas automaticamente pelo fenômeno da autochecagem
da memória (primeira etapa da interpretação), gerando ricas cadeias
psicodinâmicas das matrizes de pensamentos essenciais históricos (segunda
etapa da interpretação), que excitariam e transformariam a energia emocional
(terceira etapa da interpretação), gerando experiências ansiosas e
angustiantes, antes da assimilação consciente do estímulo extrapsíquico
(ofensa). Paralelamente à transformação da energia emocional, as matrizes de
pensamentos essenciais históricos sofreriam uma leitura virtual (quarta etapa
da interpretação), produzindo os pensamentos dialéticos e antidialéticos.
Segundos ou frações de segundos depois de serem produzidos, os pensamentos
dialéticos e antidialéticos financiariam a produção do "eu" (quinta
etapa da interpretação).
Após ter sido formado na
quinta etapa da interpretação, o eu poderia, no exemplo citado, gerenciar a
construção de pensamentos e a transformação da energia emocional já iniciada
pelos fenômenos inconscientes. Ele poderia ler a história intrapsíquica e
questionar a natureza da ofensa e as repercussões sociais da mesma, e gerenciar
a angústia e a construção de pensamentos negativos. O homem só tem condições de
gerenciar a inteligência, e sair da condição de vítima psicossocial, na quinta
etapa da interpretação. Por isso, é mais fácil ele ser vítima do que agente
modificador da sua história.
As matrizes de pensamentos
essenciais históricos produzidas (na segunda etapa da interpretação) a partir
da atuação do fenômeno da autochecagem da memória (primeira etapa) são
inconscientes e seguem dois caminhos psicodinâmicos concomitantes no campo de
energia psíquica.
Primeiro, excita a energia
emocional, causando as primeiras experiências emocionais, as primeiras
impressões e reações (terceira etapa), que são produzidas sem a consciência e
controle do "eu". A transformação da energia emocional pelas cadeias
de pensamentos essenciais representa a terceira etapa do processo de
interpretação. Segundo, funciona como pista de decolagem virtual (leitura
virtual) para a produção das cadeias psicodinâmicas dos pensamentos dialéticos
e antidialéticos.
A leitura virtual das cadeias
de pensamentos essenciais e a conseqüente formação dos pensamentos dialéticos e
antidialéticos representam a quarta etapa do processo de interpretação. A
quinta etapa, como disse, é produzida pela formação do "eu" a partir
da produção inicial dos pensamentos dialéticos e antidialéticos. O eu é mais
sofisticado do que simplesmente pensar, é a consciência de que pensa e que pode
administrar ou gerenciar a construção de pensamentos.
O eu é a consciência dos
parâmetros intra-históricos (contidos na memória) e extrapsíquicos. Sem o eu
não teríamos a consciência dos parâmetros espaço-temporais e da realidade do
mundo que somos (intrapsíquico) e em que estamos (extrapsíquico); sem o eu um
segundo e a eternidade não teriam a menor diferença.
Os pensamentos dialéticos e
antidialéticos produzem um "ambiente consciente" que propicia ao
"eu" ler a história intrapsíquica e produzir pensamentos debaixo dos
critérios da maturidade da inteligência.
TORNANDO-SE AGENTE NA QUINTA ETAPA DO HOMEM COMO VÍTIMA E AGENTE MODIFICADOR DA SUA HISTÓRIA
Há muito o que falar sobre
essas cinco etapas da interpretação e sobre o conjunto de variáveis que
co-interferem nelas e que geram os processos de construção dos pensamentos, da
formação da consciência existencial, da formação da história intrapsíquica e da
transformação da energia emocional. As etapas da interpretação e os quatros
processos de construção da inteligência são temas para vários livros.
As quatros primeiras etapas
ocorrem em frações de segundos. Nessas etapas, o homem é vítima do processo de
co-interferência das variáveis e dos fenômenos espetaculares que atuam nos
bastidores da mente [Homo interpres) e que constroem os pensamentos
dialéticos e antidialéticos. Porém, na quinta etapa, os pensamentos
conscientes formam o eu [Homo intelligens). Ela tem uma durabilidade de
segundos ou minutos. Nessa etapa, o homem tem condições de se tornar um agente
histórico de mudanças psicossociais, administrando sua construção de
pensamentos, suas reações emocionais e, conseqüentemente, seu comportamento.
Nas quatro primeiras etapas,
podemos dizer que ele é também vítima da sua carga genética e das
circunstâncias intrapsíquicas e psicossociais que atuam nos sistemas de variáveis
da interpretação. Porém, como disse, a partir da produção de pensamentos
dialéticos e antidialéticos ocorre um espetáculo intelectual indescritível, ou
seja, a formação do "eu", que tem a liberdade criativa de
operacionalizar a leitura da história intrapsíquica, produzir (ainda que
inconscientemente) os pensamentos essenciais históricos, fazer a leitura
virtual dos mesmos, produzir pensamentos dialéticos e antidialéticos e
transformar o homem da condição de vítima histórica em agente modificador de
sua história psicossocial.
Dependendo da capacidade de
liderança do eu, ele poderá superar sua solidão paradoxal, produzir pensamentos
coerentes, produzir arte, racionalizar estímulos estressantes, ou, então,
viver às raias da destrutividade social, da insensibilidade emocional, da
insociabilidade, das doenças psíquicas.
O FENÔMENO DA PSICOADAPTAÇÃO E SUA ATUAÇÃO PSICODINÂMICA NO PROCESSO DE INTERPRETAÇÃO
O fenômeno da psicoadaptação
atua na terceira etapa do processo de interpretação e afeta a quarta e a quinta
etapa. O fenômeno da psicoadaptação é uma "incapacidade" da energia
emocional e motivacional de se submeter aos mesmos processos de transformações
essenciais, diante da exposição das matrizes idênticas ou semelhantes de
pensamentos essenciais históricos e, conseqüentemente, dos mesmos estímulos
extrapsíquicos.
O fenômeno da psicoadaptação
talvez seja um fenômeno intrapsíquico de difícil entendimento, se levarmos em
conta sua atuação psicodinâmica na terceira etapa da interpretação e sua influência
no processo de construção dos pensamentos dialéticos, antidialéticos e na
formação da consciência existencial. Porém, possui exemplos fáceis de serem
observados no cotidiano.
Uma pessoa, quando compra um
carro novo, tem prazer em observá-lo e dirigi-lo. Porém, após um mês da compra,
ela contemplou inúmeras imagens desse carro e produziu milhares de matrizes de
pensamentos essenciais históricos, através da atuação do fenômeno da
autochecagem da memória. A freqüente exposição das mesmas imagens e, conseqüentemente,
das mesmas matrizes de pensamentos essenciais, faz com que a atuação dessas
matrizes no campo de energia emocional (terceira etapa) não tenha a mesma
eficiência psicodinâmica em produzir as mesmas emoções, diminuindo o encanto
emocional e o apreço intelectual pelo objeto. Depois de um determinado período,
o proprietário do veículo é capaz de entrar dentro dele como entra no banheiro
da sua casa, sem nenhuma emoção, pois adaptou psiquicamente sua energia
emocional a ele.
Uma mulher compra uma roupa
e, depois de usá-la algumas vezes, se adapta psiquicamente a ela e não sente o
mesmo nível de prazer como das primeiras vezes em que a usou. Os objetos
prazerosos, à medida que são interpretados ao longo do tempo, diminuem sua
capacidade de provocar o prazer no ser humano.
A atuação do fenômeno da
psicoadaptação é um processo inevitável. Todos os estímulos que interpretamos,
sejam dolorosos ou prazerosos, com o passar do tempo não provocam a mesma
emoção. O fenômeno da psicoadaptação atua em toda trajetória psicossocial do
homem.
Uma mãe, ao perder um filho,
depois de meses que ocorreu a perda, ainda que essa perda seja dramática, com o
passar do tempo não sente a mesma intensidade da dor como a ocorrida nos
primeiros momentos da perda. A saudade permanecerá e nunca será resolvida, mas
essa mãe diminui fatalmente a intensidade da sua dor. A dor só permanecerá em
níveis altos se essa mãe, ou qualquer pessoa que perde alguém que ama,
vivenciar uma contínua produção de cadeias de pensamentos que resgate múltiplas
experiências passadas ligadas à pessoa que faleceu. Nesse caso, a multiplicidade
das experiências psíquicas, expressas por uma multiplicidade de pensamentos
essenciais, dificulta a operacionalização espontânea psicodinâmica do fenômeno
da psicoadaptação, estabelecendo uma perpetuação da dor, um luto crônico.
O fenômeno da psicoadaptação,
por atuar em todos os estímulos dolorosos e prazerosos, compromete a
previsibilidade lógica das reações emocionais. A transformação da energia
emocional ultrapassa os limites da lógica, revelando a complexidade do campo
de energia psíquica.
O fenômeno da psicoadaptação
se processa quando há exposição aos mesmos estímulos, ou a estímulos
semelhantes, que geram conseqüentemente matrizes de pensamentos essenciais
históricos também semelhantes, acarretando uma redução involuntária e
inconsciente da transformação da energia emocional e uma restrição no processo
de gerenciamento do "eu" dessa transformação, que comprometem a. arte
da contemplação do belo e a expansão do prazer, da motivação.
O fenômeno da psicoadaptação
alivia as dores, mas também reduz os prazeres, insensibiliza a emoção, retrai a
indignação e refreia as reações. O homem não é um grande líder de sua emoção, e
isso se deve tanto ao fluxo vital da energia psíquica quanto à atuação do
fenômeno da psicoadaptação.
Lembro-me de que, no meu
primeiro ano de Medicina, ao terem contato com dezesseis cadáveres na aula
inicial de anatomia algumas estudantes ficaram chocadas, saindo imediatamente
da sala. Realmente, o impacto daquelas imagens provocava um turbilhão de
tensões e nos fazia entrar em contato com a fragilidade humana. Porém, com o
passar do tempo, com a freqüente exposição às mesmas cenas, produzia-se um
grupo de matrizes de pensamentos essenciais que atuava psicodinamicamente no
campo de energia emocional, diminuindo paulatinamente o constrangimento emocional
e as reflexões existenciais. O fenômeno da psicoadaptação atuara naquelas
colegas que não conseguiram participar da primeira aula, e, assim, com o passar
do tempo, elas até brincavam com os outros colegas movimentando os braços dos
cadáveres como se eles estivessem vivos.
No campo da produção
intelectual, o fenômeno da psicoadaptação contribui com o processo de superação
da "solidão paradoxal da consciência existencial", estimulando a
expansão da criatividade artística, literária, científica etc. A arquitetura, a
música, a literatura, a moda, o estilo dos aparelhos eletroeletrônicos, o design
dos carros etc, estão continuamente modificando-se, e isso não apenas pela
necessidade do mercado e pelo desejo consciente do consumidor, mas pela atuação
secreta, oculta, do fenômeno da psicoadaptação nos bastidores da mente, tanto
dos produtores como dos consumidores. Os profissionais de marketing desconhecem
que um dos maiores segredos do seu sucesso, tão ou mais importante do que sua
criatividade, é a atuação do fenômeno da psicoadaptação, que leva o homem a
reduzir inevitavelmente sua capacidade de sentir prazer diante da exposição aos
mesmos estímulos.
A procura contínua daquilo
que é novo, diferente, que rompe a mesmice, que extrapola a rotina, é devida,
em grande parte, à atuação inconsciente do fenômeno da psicoadaptação. Sem ele,
a rotina e a mesmice não seriam um tédio, não gerariam insatisfação e solidão.
As palavras solidão, mesmice, rotina, tédio, e outras com semântica semelhante,
existem nos dicionários das mais diversas línguas porque o fenômeno da
psicoadaptação atua no processo de interpretação.
As artes se desenvolvem
porque o fenômeno da psicoadaptação é, clandestinamente, o seu grande
companheiro, pois esse fenômeno conduz a uma redução inconsciente da
contemplação do belo dos artistas, estimulando-os a expandir sua criatividade,
e até reciclando seus estilos. Do mesmo modo, as correntes literárias, a
arquitetura, os estilos musicais, a investigação científica, estão em contínuo
processo de transformação, de evolução, porque na clandestinidade da
inteligência existe, não apenas uma rica produção de matrizes de pensamentos
essenciais históricos e que sofrem uma leitura virtual e se tornam os
pensamentos dialéticos e antídialéticos, mas também uma atuação oculta do
fenômeno da psicoadaptação, que reduz a energia emocional e motivacional e
estimula novas experiências de prazer, de aventuras, de desafios, de crítica,
rompendo a mesmice vigente. Essa frase sintetiza alguns processos de construção
fundamentais da psique humana.
O fenômeno da psicoadaptação
é, portanto, estimulador da arte, da criatividade, da investigação científica,
bem como um aliviador das emoções angustiantes diante das perdas, frustrações,
estresses psicossociais, etc. Sem a operacionalidade do fenômeno da
psicoadaptação, haveria uma perpetuação das dores psicossociais e uma retração
da criatividade intelectual. Porém, sua atuação nem sempre é aliviadora e
construtiva, mas pode ser extremamente destrutiva. Como a comunicação é
mediada, as experiências psicossociais do "outro" têm de ser
reconstruídas interpretativamente.
A interpretação do
observador, além de reproduzir superficialmente a experiência do
"outro", tem a agravante da operacionalidade do fenômeno da
psicoadaptação, que gera uma insensibilidade emocional na terceira etapa do
processo de interpretação, que o leva a se adaptar psiquicamente às misérias
psicossociais desse "outro", fazendo com que o "eu", na
quinta etapa da interpretação, se torne passivo diante das dores e necessidades
do mesmo, gerando as omissões sociopolíticas históricas dos indivíduos e dos
governos diante da violação dos direitos humanos.
A comunicação interpessoal
mediada e o fenômeno da psicoadaptação podem, diante do superficialismo
intelectual do eu, reduzir o desenvolvimento do humanismo, da cidadania e do
desenvolvimento da capacidade de pensar criticamente, fazendo com que o homem seja
vítima de sua história psicossocial, e não um agente modificador da mesma.
Isso pode também fazê-lo como disse, ser omisso sociopoliticamente diante da
miséria do "outro" (o outro como indivíduo, como grupo social e como
povo) ou ser um agente da destruição.
A maioria de nós somos
vítimas de nossas histórias psicossociais ou omissos diante da miséria do
outro. Uma minoria é agente modificador da sua história, agente expansor do
humanismo, da cidadania e dos direitos humanos derivados da democracia das
idéias.
Temos de nos perguntar em que
situação psicossocial estamos. Temos de nos perguntar se somos meros passantes
(transeuntes) existenciais, que passam pela vida sem criar raízes mais
profundas dentro de si mesmos, ou se estamos nos interiorizando e expandindo
nossa maturidade intelecto-emocional e aprimorando nosso humanismo e cidadania.
O conhecimento superficial da
mente, bem como o empobrecimento do humanismo e da cidadania, não superam as
barreiras da interpretação geradas pela comunicação mediada pelo fenômeno da
psicoadaptação e pela co-interferência de um conjunto de outras variáveis. Não
é incomum que os governantes das nações mais ricas se adaptem psiquicamente
diante da miséria das nações mais pobres e se tornem omissos
sociopoliticamente, desculpando e camuflando suas omissões através da
preocupação com seus problemas domésticos.
Se acharmos que o problema do
outro é de responsabilidade apenas da sociedade e das instituições sociais em
que ele está inserido, estamos negando o fantástico salto da memória
instintivo-genética para a memória histórico-existencial que financia a
construção de pensamentos e a formação da consciência existencial, capazes de
nos levar a compreender que, independentemente das distâncias geográficas,
culturais, raciais, políticas, somos uma única espécie.
O processo socioeducacional
superficialista impede-nos de ter uma macrovisão psicossocial e filosófica da
espécie humana. Quem é que ouviu dos seus professores, na sua trajetória
escolar, uma defesa "contínua" e "apaixonada" pela unidade
da espécie humana, capaz de provocar uma conscientização sobre a perda do
sentido psicossocial da espécie e sobre a necessidade vital de cooperação
social intra-espécie; capaz de proclamar o espetáculo da construção dos
pensamentos na mente da cada ser humano e de evidenciar a desinteligência e o
desumanismo das discriminações? Provavelmente, nem ao menos ouvimos, ou pouco
ouvimos, sobre a necessidade de aprender a nos colocarmos no lugar do outro e
o analisarmos, para reconstruir interpretativamente, com menos distorções e
mais adequação, suas dores e necessidades psicossociais. Provavelmente, até
mesmo uma parte significativa dos estudantes de Psicologia e de especialização
em Psiquiatria desconhecem as complexas distorções passíveis de ocorrer no
processo de interpretação e, por isso, não são treinados
psicossocio-filosoficamente para aprender a reconstruir interpretativamente o
"outro" e perceber suas dores e necessidades psicossociais, seus
conflitos histórico-existenciais, a construção multifocal de seus pensamentos,
sua dificuldade no gerenciamento dessa construção etc.
Se temos graves falhas
socioeducacionais na compreensão do "outro", que dimensões não terão
as falhas socioeducacionais que nos impedem de conquistar uma macrovisão
intelectual da espécie humana? Nem ao menos percebemos que perdemos o sentido
psicossocial de espécie. Temos um conhecimento superficial de que somos uma
mesma espécie, mas "respiramos idéias" e "sentimos
emoções" como se não fôssemos. Até entre vizinhos freqüentemente há muito
mais do que um pequeno espaço físico que os separam; há também enormes
barreiras psicossociais. Mesmo nas relações familiares, pais e filhos gastam
horas e horas diariamente assistindo à TV ou navegando pela Internet, mas
não gastam minutos sequer dialogando uns com os outros, explorando o mundo das
idéias e das experiências.
O problema do homem deveria
ser um problema da espécie humana, e o problema da espécie humana deveria ser
um problema do homem. Não deveria haver intromissão na soberania sociopolítica,
na cultura e nos direitos sociopolíticos de um cidadão em uma sociedade, mas
deveria haver, na plenitude, uma cooperação humanística
"intersociedades", "intra-espécie", na solução dos
problemas biopsicossociais de cada sociedade. Porém, infelizmente, apesar de
conservarmos os laços genéticos, perdemos o sentido psicossocial de espécie,
pois não compreendemos que o humanismo e a teoria da igualdade são decorrentes
dos fenômenos que financiam a nossa capacidade de pensar e a nossa consciência
existencial. Parafraseando Abraham Lincoln, devemos nos perguntar o que podemos
fazer pela nossa espécie e não o que a nossa espécie pode fazer por nós.
Devido à síndrome da
exteriorização existencial, à interpretação inadequada do "outro" e
à adaptação psíquica as misérias humanas, há uma tendência histórica de ocorrer
violações dos direitos humanos irrigada com omissões sociopolíticas, o que
compromete a viabilidade humanística da nossa espécie. Infelizmente, tem que
haver nas sociedades modernas expressivas pressões sociopolíticas por parte da
imprensa ou das ONGs (organizações não-governamentais) para que determinadas
atitudes governamentais sejam tomadas, para que possa haver cooperação
"intersociedade". Parece que, sem a pressão sociopolítica, as
sociedades, principalmente as mais ricas, perdem a macrovisão da espécie humana
e se tornam insensíveis, adaptadas psiquicamente às misérias das nações mais
pobres.
Como tenho dito, as
sociedades humanas têm uma necessidade vital de políticos, empresários e
líderes institucionais que tenham fome e sede de ser apenas homens. Homens que
não ambicionem ser supra-humanos, semideuses, que o mundo gravite em torno
deles, homens que elevem o padrão de sua humanidade. Homens que tenham uma
macrovisão psicossocial e filosófica da espécie humana e a valorize mais do que
seu grupo social de interesse. Homens que valorizem mais o mundo das idéias do
que a estética social. Homens que se preocupem menos em inscrever seus nomes
nos anais da história e mais com a práxis da cidadania, do humanismo e da
democracia das idéias; homens que não apenas percebam suas necessidades
psicossociais, mas também que aprendam a perceber as necessidades de sua
sociedade.
Cientificamente falando, a
cadeia de distorções ligadas à interpretação do "outro", impostas
pela comunicação social mediada, pela insensibilidade intelecto-emocional
decorrente do fenômeno da psicoadaptação, pelo sistema de co-interferências das
variáveis da interpretação ocorrida nos processos de construção dos
pensamentos, só pode ser superada e, ainda assim, parcialmente, se o homem
compreender esses mecanismos distorcidos, se compreender determinados limites e
o alcance dos pensamentos dialéticos; se aprender a se interiorizar, a
desenvolver a arte da dúvida e da crítica, e a gerenciar a construção de
pensamentos com consciência crítica. A educação tradicional, por ser
exteriorizante e "a-histórico-crítico-existencial", é incapaz de
desenvolver coletivamente essas funções nobres da inteligência, de formar
engenheiros de idéias humanistas e pensadores que apreciem a democracia das
idéias e tenham uma macrovisão da espécie humana. A educação que forma
pensadores e engenheiros de idéias é aquela que estimula o processo de
interiorização, o exercício da arte de pensar, a compreensão da formação da
inteligência, a revisão da história intrapsíquica, a compreensão dos alicerces
básicos do processo de interpretação, a arte de ouvir, o apreço pelo humanismo
e pela democracia das idéias etc.
Na vida social coloquial, ter
a sensibilidade de aprender a se colocar no lugar do outro e perceber suas
dores e necessidades psicossociais já é um grande avanço humanístico. Mas,
infelizmente, acredito que a maioria das pessoas só tem sensibilidade para
perceber suas próprias angústias, desejos e necessidades. O mundo do outro é
quase imperceptível a elas; por isso, quando ouvem o outro elas compreendem
apenas a semântica "seca" das palavras que ele profere, mas não os
segredos que essas palavras expressam nas entrelinhas, nem o que a expressão
facial e o silêncio traduzem.
O mutismo social, expresso
por falarmos muito do "mundo em que estamos", mas falarmos pouco
sobre o "mundo que somos", revela o superficialismo das relações
sociais que construímos. Podemos conviver durante décadas com pessoas e não
conhecê-las intimamente, não penetrar em seus mundos intrapsíquicos e nem
permitir que elas penetrem em nossos mundos. Numa sociedade mutista, a
ditadura do preconceito satura as idéias e provoca um grande receio de se falar
sobre o mundo que somos. Vivemos em sociedade, mas ilhados dentro de nós
mesmos, como parceiros da solidão. Por isso, muitas pessoas se sentem sós,
mesmo estando no meio de uma multidão.
Lembro-me de um paciente que
se adaptou à miséria psíquica. Havia vinte anos era portador de depressão e
síndrome do pânico. Passou por diversos psiquiatras e tomou todo tipo de
antidepressivos disponíveis no mercado farmacêutico, todavia, continuava
doente. Perdeu o encanto pela vida e esperança de ser saudável. Viver era um tédio
para ele. Trabalhar era angustiante, pois tinha fobia social, ou seja,
detestava freqüentar lugares públicos: festas, bancos. Embora fosse um
industrial, não tinha prazer de conviver com seus funcionários. Dizia-me que
perder ou ganhar dinheiro era a mesma coisa. Na realidade, esse paciente não
apenas estava profundamente doente, mas também havia se psicoadaptado a sua
doença. O maior problema não é a "doença do doente", mas o
"doente da doença", ou seja, a disposição do eu em atuar no mundo
psíquico e de não aceitar ser um doente.
Se o terapeuta provoca a
inteligência do seu paciente, se o estimula a resgatar a liderança do eu do seu
mundo psíquico, este rompe a psicoadaptação à doença e pouco a pouco aprende a
gerenciar as cadeias de pensamentos e suas emoções angustiantes. O resultado? A
liberdade no território da emoção e do intelecto. O paciente em questão foi
mais um dos que saíram da condição de vítima da sua história para ser um agente
modificador dela.
O psicoterapeuta, ao
interpretar seus pacientes, pode-se adaptar psiquicamente às suas misérias,
ficando insensível a elas, e produzir interpretações totalmente distorcidas,
que dizem mais a respeito de si mesmo do que à personalidade dos seus
pacientes.
Do mesmo modo, os pais
podem-se adaptar psiquicamente às necessidades psicossociais dos seus filhos e
não saber doar-se e trocar experiências com eles. Pais e filhos se tornam,
assim, um grupo de estranhos vivendo dentro de uma mesma casa. Os professores
podem também se adaptar aos comportamentos dos seus alunos e não perceber que,
atrás de cada reação de agressividade, timidez ou alienação, há um mundo a ser
descoberto, um ser sofisticado que produz complexas cadeias de pensamentos e
tem complexas necessidades psicossociais.
* * *
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* * *
Capítulo 10
A Crise da Psicologia e da Psiquiatria
AS RAÍZES DAS DISCRIMINAÇÕES INTELECTUAIS
Vivemos num mundo saturado de
informações prontas, acabadas, mas que não estimula o homem a pensar e
desenvolver a consciência crítica. Os livros de auto-ajuda, que saturam as
sociedades modernas, têm sua utilidade, mas freqüentemente pensam pelo leitor,
produzem respostas prontas, o que pouco estimula a arte de pensar e o desenvolvimento
da inteligência. Por isso, insistirei continuamente, ao longo destes textos,
na necessidade vital de conhecermos as origens da inteligência, os limites e
alcance dos pensamentos, o conceito do humanismo e da democracia das idéias e
de expandirmos a arte da pergunta, a arte da dúvida, a arte da crítica, o
processo de interiorização, que são alguns dos pilares fundamentais do
desenvolvimento da inteligência e, conseqüentemente, da formação do homem como
pensador e engenheiro de idéias.
As origens da inteligência são
produzidas por fenômenos que constroem multifocalmente os pensamentos. A
atuação psicodinâmica desses fenômenos é inerente ao homem, ou seja, não
depende do controle humano nem da condição social; por isso ela está presente
tanto nos seres humanos que vivem em miséria absoluta e no anonimato social
como naqueles que vivem gravitando em torno da riqueza e do estrelato social.
Assim, independentemente das gritantes desigualdades humanas, todo ser humano
possui o privilégio de ter uma inteligência multifocal. Porém, possuí-la não
quer dizer ter uma inteligência qualitativamente desenvolvida.
O desenvolvimento qualitativo
da inteligência é conquistado por um conjunto sofisticado de procedimentos
intrapsíquicos e socioeducacionais. Esses procedimentos, como veremos, nem
sempre são produzidos num ambiente de cultura e escolaridade. Há muitas pessoas
que têm elevada escolaridade e abastada cultura, mas sua inteligência não se
expandiu; por isso seu mundo das idéias é pequeno, por isso elas não conseguem
pensar além da esfera dos seus problemas e dificuldades.
Aparentemente o homem é muito
informado e inteligente, mas é emocionalmente frágil, e sua inteligência
geralmente é unifocal, pois não sabe caminhar dentro de si mesmo, pensar
criticamente e analisar multifocalmente as causas históricas e as
circunstâncias psicossociais que envolvem suas relações, conflitos, angústias
existenciais, estímulos estressantes.
A crise de interiorização e a
carência de compreensão mais profunda dos processos de construção da inteligência
atingem, também, uma parte significativa da assim chamada casta dos
intelectuais ou intelligentsia. Provavelmente, uma parte significativa
dos psicoterapeutas, psiquiatras, sociólogos, psicopedagogos, juristas,
professores universitários, cientistas etc, desconhece a operacionalidade e a
co-interferência dos fenômenos que atuam nos bastidores da mente e que geram,
em fração de segundo, as complexas cadeias psicodinâmicas dos pensamentos
dialéticos e antidialéticos que financiam a consciência existencial do mundo em
que estamos e que somos.
Provavelmente, essas pessoas
desconhecem também a natureza, os limites e o alcance do conhecimento, usado
como instrumento educacional, social e científico, e o sistema de encadeamento
distorcido, que ultrapassa os limites da lógica, ocorrido nos processos de
construção do conhecimento dialético e que nos faz, conseqüentemente,
incorporar a "democracia das idéias" como uma necessidade vital no
processo de organização das relações sociais.
Talvez poucos conheçam sobre
a leitura multifocal da história intra-psíquica arquivada na memória e sobre o
complexo sistema de variáveis que co-interferem nos bastidores inconscientes da
inteligência para gerar o processo de interpretação e, conseqüentemente, os
processos de construção dos pensamentos, a formação da consciência existencial
e o processo de transformação da energia emocional. Por isso, provavelmente,
elas também desconhecem quais os sistemas de relações que existem entre a
verdade científica e a verdade essencial (real), e quais os riscos e benefícios
que existem na utilização de uma teoria psicológica, psiquiátrica,
sociológica, educacional, etc, usada como suporte da interpretação no processo
de observação, interpretação e produção do conhecimento científico.
O status de ser um
"intelectual" é um jargão social inadequado e preconceituosista, pois
discrimina a grande massa de seres humanos que, embora não possuam cultura
acadêmica e não tenham títulos de pós-graduação, têm igualmente os mesmos
complexos e sofisticados processos de construção dos pensamentos. Tanto a idéia
sofisticada de um intelectual quanto a idéia simplista de uma pessoa iletrada
são construídas a partir de uma indescritível leitura multifocal inconsciente
da memória. Essa leitura, como estudaremos, é conduzida por um conjunto de
fenômenos intrapsíquicos que atuam, em milésimos de segundo, nos bastidores da
mente.
Esses fenômenos lêem, com
incrível precisão, as informações na memória e, em meio a bilhões de opções,
utilizam-nas para construir psico-dinamicamente tanto as cadeias das idéias
"sofisticadas", ou seja, as intelectualmente brilhantes, como as
consideradas "simplistas". Sem esses fenômenos, inerentes à mente
humana, não apenas não existiriam os homens intelectualmente simples, mas
também os intelectuais, os pensadores, os cientistas; não existiria o Homo
sapiens. Não seríamos uma espécie pensante.
Todos somos devedores à
gratuidade e à operacionalidade espontânea dos fenômenos que lêem a memória e
constroem as cadeias psicodinâmicas dos pensamentos. Não se sabe como lemos e
utilizamos as informações constituintes das cadeias dos pensamentos, pois elas
são utilizadas e organizadas em fração de segundo, antes de termos consciência
existencial dos próprios pensamentos. Portanto, não há intelectuais e/ou
iletrados; somos todos ignorantes em relação aos fenômenos que nos constituem
como seres pensantes. Somos apenas, intelectualmente, mais ou menos ignorantes
uns do que os outros...
Os títulos acadêmicos não são
grandes referenciais que evidenciam a qualidade do processo de exploração da
mente e desenvolvimento das funções mais nobres da inteligência. É possível ter
excelente cultura e títulos acadêmicos de graduação e pós-graduação, mas nunca
ter aprendido a se interiorizar e conhecer, ainda que minimamente, os processos
de construção dos pensamentos, da consciência existencial e da história
intrapsíquica, que são produzidos num fluxo vital espontâneo e inevitável no
âmago da mente.
A grandeza de um homem não é
dada pelo seu status social, sucessos sociointelectuais, condição
financeira, títulos acadêmicos (ex. doutorado, Ph.D.), mas pelo quanto ele é um
caminhante nas avenidas do seu próprio ser, pelo quanto ele é inteligente
multifocalmente, pelo quanto ele é um pensador e um engenheiro qualitativo de
idéias, que expande e aprimora as funções mais nobres da mente. Ainda que haja
inúmeras diferenças de personalidade e diversas diferenças sociais na
construção das sociedades, a postura de considerar uma minoria como portadora
do status de intelectual, porque possui cultura e títulos
socioacadêmicos, tem de ser revista, pois é discriminatória e desinteligente.
Todos os seres humanos possuem igualmente os mesmos fenômenos psicodinâmicos
que financiam a construção dos pensamentos e da consciência existencial, enfim,
da inteligência multifocal.
A grandeza de um homem está
na grandeza do seu ser, e não na sua notoriedade social. As funções mais nobres
e humanísticas da mente se iniciam à medida que alguém começa a se
interiorizar, a se colocar como um aprendiz no seu processo existencial e a
perceber suas limitações intelectuais diante da inesgotabilidade dos processos
de construção da inteligência.
Todos somos limitados na
compreensão das complexas "tramas de energia psíquica", que nos constituem
psicodinamicamente como seres humanos que pensam, têm consciência de que pensam
e podem administrar os processos de construção dos pensamentos.
O nascedouro e o
desenvolvimento de pensamentos ocorrem na esfera inconsciente da psique humana.
Diante da uma visão macrocientífica sobre os processos de construção dos
pensamentos, compreenderemos que, ainda que tenhamos diferenças genéticas e
socioculturais e diferenças qualitativas no processo de gerenciamento da
construção dos pensamentos, somos mais iguais do que podemos imaginar. Este
livro, ao desenvolver um corpo teórico sobre os processos de construção
ocorridos na mente, evidencia que cada ser humano é extremamente complexo e
digno da mais alta respeitabilidade; até mesmo as crianças deficientes mentais
o são. Por isso, tanto as discriminações humanas como a supervalorização de
algumas minorias de intelectuais, líderes políticos, líderes místicos,
artistas, etc, são atitudes desinteligentes e desumanísticas.
A CRISE DA PSICOLOGIA E DA PSIQUIATRIA, A DISCRIMINAÇÃO PELA FILOSOFIA E A NECESSIDADE DE TEORIAS MULTIFOCAL
A Psicologia e a Psiquiatria
ainda se encontram nos estágios iniciais do desenvolvimento teórico. Quem tem o
mínimo de compreensão sobre o que é uma teoria, como ela se organiza, se fundamenta
e é usada como suporte da interpretação, assim como sobre o que é o
conhecimento, seus limites, alcance, lógica, validade e práxis, sabe que a
Psicologia e a Psiquiatria, em detrimento de possuírem inúmeras teorias,
avançaram apenas alguns degraus na escala inesgotável de conhecimento sobre a
psique humana.
Um dos grandes obstáculos ao
desenvolvimento teórico na Psiquiatria e na Psicologia é que elas possuem um
objeto de estudo — a psique, alma, ou mente — intangível sensorialmente e
inacessível essencialmente. Tal dificuldade investigatória tem propiciado a
produção de diversas teorias psicológicas e psiquiátricas com postulados,
definições, sistemas de conceitos, hipóteses e variáveis intrapsíquicas
distintas. Por isso, não se intercomunicam nem se expandem mutuamente.
O cientista da medicina, por
exemplo, um cirurgião, rebate a pele e a musculatura e penetra na intimidade do
órgão que estuda. Além disso, ele pode extrair tecidos desses órgãos e
analisá-los em laboratório. Assim, seu objeto de estudo se torna tangível ao
seu sistema sensorial. O cientista da química promove reações, utiliza
instrumentos de medição e verificação, podendo, assim, observar fenômenos,
selecionar dados, interpretá-los e produzir conhecimento sobre eles. Porém, o cientista
da Psicologia e da Psiquiatria não tem a mesma facilidade para observar,
interpretar e produzir conhecimento sobre a psique humana: os fenômenos
intrapsíquicos, o processo de construção dos pensamentos, de formação da
consciência existencial, de transformação da energia emocional.
Como os cientistas da
Psicologia e da Psiquiatria podem discursar teoricamente sobre a intimidade da
psique humana, se ela é inacessível essencialmente e intangível
sensorialmente? Como poderão investigar os complexos processos de construção
dos pensamentos, se não se sabe do que se constitui a natureza intrínseca da
energia psíquica, como se organizam os pensamentos e se descaracterizam na
mente? Como se organiza a energia emocional em fobias, angústias, prazeres e humores
deprimidos? As perguntas são amantes das dúvidas. Elas evidenciam nossas
limitações intelectuais e investigatórias. Temos, até mesmo, limitações para
explicar o que é a essência intrínseca de uma dor emocional e o que é a
consciência dessa dor. O discurso teórico é contracionista até para explicar
quais são os limites e as relações entre a consciência existencial da dor e a
natureza essencial dessa dor.
A Psicologia e a Psiquiatria
discursam sobre um mundo inacessível e intangível. Além da complexidade do
processo de investigação dos fenômenos psíquicos, há, como estudaremos, toda
uma cadeia de distorções da interpretação que um teórico pode produzir durante
o processo de observação, aplicação metodológica e análise de dados, que
macula sua produção intelectual e contrai a compreensão de variáveis
universais que poderiam financiar uma intercomunicação da sua teoria com
outras teorias. Produzir ciência teórica sobre a psique é mais complexo do que
imaginamos, ainda que possamos ser criteriosos.
O grande problema da
Psicologia e da Psiquiatria, bem como de outras ciências, não é produzir
teorias, mas romper seus apriscos teóricos, intercomunicar suas idéias, mesclar
seus postulados, conjugar seus conceitos, afinar suas definições, organizar
suas derivações e criar avenidas comuns de pesquisa sob o prisma de variáveis
universais.
Ainda hoje existem dúvidas
fundamentais sobre a psique que não foram minimamente resolvidas pelas teorias
psicológicas e psiquiátricas. Às vezes, evita-se discutir essas dúvidas, devido
à ansiedade e polêmica que geram. O homem possui uma mente ou psique que está
além dos limites do cérebro ou ela é intrinsecamente o próprio cérebro, ou
seja, fruto do espetáculo do metabolismo cerebral? Esta pergunta nunca foi
respondida pela ciência, a não ser no campo da especulação. Porém, sem
respondê-la, as ciências que norteiam a psique sempre terão um grande obstáculo
em sua expansão qualitativa.
Apesar do conhecimento sobre
a natureza da energia psíquica ser a tese das teses na ciência, por referir-se
à essência intrínseca que nos constituem como seres que pensam e sentem, e,
portanto, ser de fundamental importância para o homem e para os destinos da
própria ciência, esta própria foi omissa e tímida em pesquisá-la. Devido à
complexidade e polêmicas que envolvem a natureza intrínseca da psique humana,
a ciência, com exceção da Filosofia, preferiu abandoná-la e deixá-la para ser
discutida apenas no campo da religiosidade. Essa atitude omissa e tímida gerou
um caos teórico na Psiquiatria, na Psicologia e nas demais ciências
psicossociais. Depois de desenvolver neste livro o corpo teórico sobre os
processos de construção dos pensamentos e da formação da consciência
existencial, defenderei em outra publicação uma tese sobre este assunto, que
poderá trazer diversas implicações e conseqüências nestas ciências.
Somos seres pensantes,
produzimos ciência, arte, construímos relações humanas, mas não sabemos, o que
somos intrapsiquicamente, como se transforma, se organiza, se desorganiza e se
reorganiza a energia psíquica. A ciência é o mundo das idéias mas, como se
processa o nascedouro das idéias, como se organizam as cadeias de pensamentos?
O que ocorre com a energia psíquica no pré-pensamento, ou seja, milésimos de
segundo antes de se transformarem em idéias, pensamentos?
As ciências que investigam
direta e indiretamente a psique humana talvez nem saibam precisar em que
estágio de desenvolvimento estejam. Misticismos, psicologismos e
"achismos", que expressam produções de conhecimentos sem embasamento
científico, têm saturado as sociedades e contaminado essas ciências, trazendo
grande confusão teórica.
Precisamos de teorias
multifocais capazes de explicar os processos de construção dos pensamentos, a
formação da consciência existencial, a transformação da energia psíquica,
enfim, o funcionamento psicodinâmico e histórico-existencial da mente humana.
Porém, tenho a impressão de que a produção de teóricos na Psicologia se reduziu
a partir das últimas décadas do século XX. A grande maioria dos pensadores e
cientistas que investigam a psique inibiu-se na produção de novas teorias. É
mais fácil e confortável intelectualmente produzir conhecimento dentro dos
limites de uma teoria do que reciclá-la criticamente, reorganizá-la e
expandi-la ou, então, partir para um motim teórico e produzir uma nova teoria.
Minha produção de conhecimento, como comentarei, foi produzida durante vários
anos nos trilhos do motim teórico e, depois, se converteu nos trilhos da
democracia das idéias.
Apesar do número reduzido de
teóricos da Psicologia, expandiu-se a produção destes nas neurociências. É
inegável que a Psicologia perdeu e tem perdido cada vez mais espaço
acadêmico-científico para as neurociências, que incluem a Psiquiatria
biológica, a Neurologia, a Psicofarmacologia, a Fisiologia cerebral, a
Bioquímica cerebral.
Com a expansão das
neurociências, surgiram os postulados sobre a desorganização metabólica dos
neurotransmissores cerebrais, dos quais a serotonina atualmente tem figurado
como estrela na gênese das depressões, e também sobre as escalas de
comportamentos, as técnicas do tipo estímulo-respostas, as técnicas de
avaliação de diagnóstico e desempenhos clínicos, o mapeamento do cérebro, a
cintilografia computadorizada, os exames laboratoriais, etc. Porém, ainda que a
produção de conhecimento e as técnicas das neurociências sejam respeitáveis e
relevantes, as questões fundamentais da psique humana permanecem abertas,
irresolúveis. Por exemplo, o postulado sobre os neurotransmissores pode
explicar alguma influência genético-metabólica na gênese das depressões, porém
nada explica sobre a natureza intrínseca, a organização e desorganização da
energia emocional depressiva, nem sobre a complexa leitura da memória e muito
menos sobre a sofisticada construtividade das cadeias de pensamentos de
conteúdo angustiante, que acompanha muitos tipos de depressão.
Um dos grandes problemas da
ciência não é produzir respostas, mas formular perguntas. Perguntas abrem as
avenidas das respostas. Perguntas mal formuladas geram respostas redutoras,
inadequadas e/ou superficiais. A dimensão das perguntas determina a dimensão
das respostas, embora as respostas tenham invariavelmente uma dívida filosófica
com as perguntas. Cada resposta não é um fim em si mesma, mas é o começo de novas
perguntas. Por isso, a arte da formulação de perguntas é fundamental à expansão
da ciência.
As teorias das neurociências
precisam se expandir e se intercomunicar com as teorias psicológicas; se isso
não ocorrer, o desenvolvimento científico será seriamente comprometido.
Teremos de um lado os pensadores organicistas que supervalorizam o cérebro e
acreditam que a alma é puramente química, o que é um absurdo. E de outro,
pensadores da psicologia que desvalorizam qualquer influência do metabolismo
cerebral na construção dos pensamentos e das reações emocionais, o que também
é igualmente um absurdo. O maior mistério da ciência não está no espaço, está
na mente humana. Está na convivência de um campo de energia que coabita,
coexiste e cointerfere continuamente com o metabolismo cerebral. Não creio que
haja um postulado mais complexo e importante do que este.
A redução do desenvolvimento
teórico na Psicologia não se deve apenas à diminuição atual da safra de
grandes teóricos. Freud, Jung, Adler, Sullivan, Erich Fromm, Roger, Viktor
Frankl, Lewin, Allport, Kurt Goldstein, Piaget, Lacan etc, são exemplos da
safra de pensadores da Psicologia. As causas desse entrave teórico são, como
disse, multifocais. São elas: 1. As dificuldades intransponíveis de promover uma
composição dos elementos que constituem as teorias, tais como os postulados, as
definições, os conceitos, as derivações teóricas; 2. A ausência de variáveis
universais, capazes de produzir avenidas conjuntas de pesquisa e
intercomunicação teórica; 3. A intangibilidade sensorial e inacessibilidade
essencial dos fenômenos intrapsíquicos, que geram grandes dificuldades no
processo de observação e interpretação; 4. Os sistemas de encadeamentos
distorcidos ocorridos nos bastidores da construção dos pensamentos do cientista
teórico; 5. A produção de teorias com linguagens dialéticas distintas. Além
disso, há também outras causas, como comentarei, ligadas às limitações dos
procedimentos de pesquisa utilizados na produção de conhecimento.
Apesar de todas as dificuldades
para explorar e produzir conhecimento sobre a psique humana, precisamos
avançar, utilizar procedimentos de pesquisas capazes de reorganizar
continuamente o processo de observação e interpretação das variáveis psíquicas
nos processos de construção dos pensamentos.
Creio que necessitamos de
teorias multifocais e multivariáveis para explicar, ainda que parcialmente, a
psique humana. Creio que a Psicologia e a Psiquiatria deveriam procurar
produzir pesquisas conjuntas, se unirem teoricamente e, além disso, se
associarem com a Sociologia e a Filosofia para produzir teorias psicossociais e
filosóficas multifocais e multivariáveis sobre a psique humana.
A Filosofia sempre foi, ao
longo dos séculos, fonte das grandes idéias na ciência, sempre foi expansora
das possibilidades de construção do conhecimento, o tempero da sabedoria.
Porém, ela foi esquecida, desconsiderada e até desprezada pela Psicologia e
pela Psiquiatria. Um dos maiores erros da Psiquiatria e da Psicologia foi
excluir a Filosofia das suas teorias, desde seu nascedouro até seu
desenvolvimento teórico.
O divórcio da Psiquiatria e
da Psicologia clínica com a Filosofia reduziu a síntese da sabedoria, a
expansão das idéias psicossociais, a macrovisão do homem total: o Homo
interpres (inconsciente) somado ao Homo intelligens (consciente).
Por isso, elas se tornaram excessivamente clínicas, psico-patológicas,
contribuindo pouco para expandir o processo de interiorização, a capacidade
crítica de pensar, a inteligência multifocal. A Psiquiatria e a Psicologia
clínica se tornaram pobres na produção de vacinas educacionais eficientes
contra as doenças psíquicas, psicossomáticas e psicossociais.
A Psiquiatria e a Psicologia
clínica atuam com relativa eficiência em determinadas doenças psíquicas, mas
não atuam na sanidade do homem total. Elas não promovem e não sabem como
promover a qualidade de vida psicossocial dos consócios das sociedades. Atuam
na dor, mas não sabem como expandir o prazer. Atuam na miséria psicossocial,
mas não sabem como promover a solidariedade, o humanismo, a sabedoria existencial.
Elas, que trabalham com os parâmetros entre a doença e a sanidade psíquica e
psicossocial do homem total, deixaram essa enorme responsabilidade para outras
áreas da Psicologia, tais como a Psicologia social e educacional e para a
educação familiar e escolar.
A escola ficou
sobrecarregada, com uma responsabilidade psicossocial que ela não consegue
desempenhar com adequação. Os jovens ficam por longos anos na escola, debaixo
de um processo socioeducacional exteriorizante, unifocal e
"a-histórico-crítico-existencial", como se isso fosse suficiente
para promover as avenidas da sanidade psicossocial, para transformá-los em
pensadores humanísticos, para enriquecer suas capacidades de trabalhar os
conflitos e para expandir neles a sabedoria existencial.
Precisamos de teorias que
agreguem as diversas ciências. Teorias que não apenas compreendam as misérias
psicossociais humanas, mas que compreendam as potencialidades intelectuais do
homem; que compreendam, ainda que com limitações, os processos de construção
dos pensamentos e da consciência existencial e que sejam capazes de abrir
avenidas de pesquisas para promover a qualidade de vida psicossocial humana.
Devido a abordagem
psicossocial e filosófica do homem abordada neste livro, quando eu atuo nos
textos como um pensador da Psicologia procuro ser específico ao comentar os
fenômenos psíquicos, mas quando atuo como um pensador da filosofia, faço
críticas e generalizações com liberdade, o que é próprio dos filósofos.
Entretanto, não quero que as palavras traiam minhas intenções e nem a
democracia das idéias que tanto aprecio. Por isso, afirmo que todas as minhas
generalizações têm exceções, mesmo quando eu não as citar.
Além de abordar a teoria da
inteligência, também abordo a teoria da interpretação, a teoria da
transformação da energia psíquica e a teoria da formação e utilização da
história intrapsíquica arquivada na memória e algumas áreas da teoria crítica
do conhecimento (epistemologia), pois elas são úteis para compreendermos melhor
o processo de construção do pensamento e, conseqüentemente, da própria
construção da inteligência.
A inteligência envolve toda
produção intelectual, histórica, cultural, emocional e social produzida na
trajetória existencial humana. O desenvolvimento da inteligência também está
na base da formação da personalidade e na produção das doenças psíquicas,
psicossomáticas e psicossociais.
Durante toda a exposição
destes textos, as idéias psicológicas mesclam-se com o mundo das idéias
filosóficas. É uma viagem intelectual interessante expor a construção das
cadeias de pensamentos e suas implicações na Psicologia, Psiquiatria,
Filosofia, Neurociências, Direito, humanismo, democracia das idéias, pesquisa
científica etc.
A construção do pensamento é,
provavelmente, a área mais complexa de toda a ciência, pois envolve a origem,
natureza, alcance e limites da própria ciência, já que ela é um corpo
organizado de pensamentos, de idéias. Os processos de construção dos
pensamentos envolvem temas complexos e dificílimos de serem investigados.
Esses procedimentos podem ser usados no desenvolvimento da inteligência e no
processo de formação de pensadores.
A CONSTRUÇÃO DA INTELIGÊNCIA MULTIFOCAL (I.M.) ULTRAPASSANDO A ABORDAGEM UNIFOCAL DA INTELIGÊNCIA EMOCIONAL
Há alguns anos, foi lançado o
livro Inteligência Emocional,8 do dr. Daniel Goleman, que
teve grande repercussão mundial e influenciou as áreas socio-educacionais e de
recursos humanos das empresas. O autor, embora não tenha produzido uma teoria
sobre a construção da inteligência, não tenha estudado os fenômenos que atuam
nos bastidores da mente e que constroem multífocalmente as cadeias de
pensamentos, comentou acertadamente que a variável emocional influencia a
inteligência (quociente emocional -QE) e que não podemos nos submeter aos
restritos padrões do quociente de inteligência (QI). Porém, a inteligência não
é emocional, pois a variável emocional é apenas uma das múltiplas variáveis
intrapsíquicas que exercem uma influência multifocal nos processos de
construção da inteligência.
Além da variável da energia
emocional, há dezenas de outras variáveis que participam dos processos de
construção dos pensamentos e da consciência existencial, enfim, que participam
da construção da inteligência.
O livro Inteligência
Emocional não produz uma teoria sobre a construção da inteligência; por
isso não produz conhecimento, como o faz o livro Inteligência Multifocal, sobre:
o nascedouro das idéias; a construção das cadeias de pensamentos; a formação da
história intrapsíquica arquivada na memória; a leitura da memória pelos
fenômenos intrapsíquicos; os tipos fundamentais de pensamentos construídos na
psique humana; a natureza, limites, alcance e práxis dos pensamentos; os
fenômenos e processos que participam da construção do eu; as etapas do
processo de interpretação na construção dos pensamentos. Reitero: o livro Inteligência
Emocional é um livro que fala inteligentemente sobre a emoção, mas não é um
livro sobre a teoria da inteligência.
Inteligência Emocional tem uma abordagem científica, mas seu enfoque
principal é ser um livro de auto-ajuda, aliás é um belo livro nesse sentido.
Porém, aqui, neste livro, faço uma exposição de uma nova teoria da inteligência.
Meu desejo é que ela se torne uma fonte de novas pesquisas na Psicologia,
Filosofia, Sociologia e demais ciências; uma fonte de aplicação psicossocial no
processo psicoterapêutico, nas relações humanas e no processo educacional,
principalmente na formação de pensadores.
Este livro foi escrito com a
despreocupação completa de se tornar um best-seller, pois ele não
procura apenas homens que lêem livros, mas leitores que sejam garimpeiros de
idéias, homens que tenham consciência da complexidade da arte de viver, que
tenham consciência de que a sabedoria se conquista muito mais nos invernos do
que nas primaveras existenciais, que apreciam o mundo das idéias, que julgam
de inestimável valor a arte de pensar e o desenvolvimento da consciência
crítica.
As sociedades modernas, como
disse, estão saturadas de livros de auto-ajuda que pensam pelo leitor. Este
livro, apesar de todas as suas limitações, procura respeitar a inteligência do
leitor e, ao mesmo tempo, provocar e estimular a arte de pensar, a arte da
dúvida, a arte da crítica.
Não escrevi este livro sobre
a inteligência como um escritor que, na esteira do sucesso do livro sobre a
inteligência emocional, procura também fazer sucesso. Pelo menos dez anos antes
do livro Inteligência Emocional ser lançado nos EUA, eu já desenvolvia a
teoria multifocal do conhecimento, da qual a Inteligência Multifocal faz parte.
Faço esses comentários por respeito à inteligência do leitor, para fornecei
subsídios para o seu julgamento crítico.
Por que a inteligência é
chamada aqui de inteligência multifocal? Porque todos os processos de
construção da inteligência são multifocais: a leitura da memória, a construção
das cadeias de pensamentos, as variáveis da interpretação e os fenômenos
intrapsíquicos e socioeducacionais. Todos esses processos co-interferem para construir
o espetáculo indescritível da inteligência do homem, espetáculo este que faz
com que a humanidade seja uma espécie ímpar.
A construção dos pensamentos
faz o homem sair da indescritível solidão da inconsciência existencial, em que
o tudo e o nada são a mesma coisa, e se tornar um ser pensante, um ser
inteligente, um ser que tem consciência existencial de si mesmo e do mundo que
o circunda.
A inteligência incorpora não
apenas o Homo intelligens, ou seja, as manifestações conscientes da
inteligência humana, que se traduzem como arte, comunicação, relações sociais,
ciência, mas também o Homo interpres, ou seja, o nascedouro da
inteligência, as origens inconscientes da construção das cadeias psicodinâmicas
dos pensamentos.
Podemos dizer didaticamente que
a inteligência multifocal (LM.) possui três grandes áreas: 1. Uma construção
multifocal: através de um conjunto de processos e fenômenos psicodinâmicos; 2.
Uma influência multifocal dessa construção: através das variáveis da
interpretação intrapsíquicas, intraorgânicas e extrapsíquicas; 3. Um
desenvolvimento qualitativo: através de fatores intrapsíquicos e
socioeducacionais.
Cada uma dessas três grandes
áreas da inteligência possui um conjunto de fenômenos que interagem entre si. A
seguir, farei um relato didático e sintético de alguns dos principais
fenômenos, segundo os grupos em que estão inseridos. Peço ao leitor
despreocupar-se com a grande quantidade de informações que eles contêm. Ao
longo de todos os textos, os processos e fenômenos mais importantes, para o
momento, estão sendo expostos.
1. A construção psicodinâmica
da inteligência multifocal. Fenômenos participantes:
a. Formação e leitura
multifocal da memória.
b. Fenômeno da autochecagem
da memória: leitura automática do estímulo na memória.
c. Ancora da memória:
deslocamento do território de leitura da memória.
d. Fenômeno do autofluxo da
energia psíquica: representa um conjunto de fenômenos que financia a
multiplicidade de idéias e emoções produzidas diariamente e sem a autorização
do eu.
e. Consciência do eu:
representa a consciência da existência do eu e do mundo extrapsíquico.
f. Três tipos fundamentais de
pensamentos da mente humana, produzidos pelos quatro fenômenos descritos
acima: pensamentos essenciais, dialéticos e antidialéticos.
g. Leitura virtual das
matrizes dos pensamentos essenciais gerando os pensamentos dialéticos e
antidialéticos.
h. A construção das cadeias
psicodinâmicas dos pensamentos, segundo os parâmetros contidos na realidade
extrapsíquica e segundo os referenciais histórico-críticos contidos na história
intrapsíquica (memória).
i. A liberdade criativa e a
plasticidade construtiva na produção dos pensamentos produzidos pelo eu.
j. Fluxo vital da
transformação da energia psíquica: organização, desorganização e reorganização.
k. Etapas do processo de
interpretação, em que os fenômenos intra-psíquicos atuam para construir as
cadeias dos pensamentos.
Todos esses fenômenos estão
presentes nos bastidores da psique de qualquer ser humano e são responsáveis
pela construção da capacidade de pensar, ou seja, pela construção da
inteligência, independentemente da qualidade dessa construção. Cada um desses
fenômenos possui, na realidade, uma série de outros fenômenos subjacentes que
não citarei aqui. Esses fenômenos se inter-relacionam para formar os
intrincados processos de construção de pensamentos. Os fenômenos responsáveis
pelo desenvolvimento qualitativo da inteligência serão descritos a seguir no
segundo e terceiro grupos.
2. A influência das variáveis
da interpretação na construção da inteligência multifocal. Fenômenos ou
variáveis participantes:
a) variáveis intrapsíquicas
presentes no momento da interpretação de cada estímulo:
- qualidade da energia
emocional [stress, ansiedade, humor deprimido, reação fóbica, prazer etc).
- qualidade da energia
motivacional (motivação, ímpeto, desejo, desmotivação etc).
- atuação psicodinâmica do
fenômeno da psicoadaptação.
- qualidade do conteúdo da
história intrapsíquica (memória).
b) Variáveis intraorgânicas:
- carga genética.
- drogas psicotrópicas.
- stress físico.
- distúrbios metabólicos.
- doenças orgânicas.
c) Variáveis extrapsíquicas:
- causas históricas.
- stress psicossocial.
- ambiente intra-uterino.
- ambiente sociofamiliar.
- estímulos
socioeducacionais.
- perdas, frustrações
existenciais, adversidades, contrariedades, apoio, segurança, rejeição etc.
As variáveis intrapsíquicas,
intraorgânicas e extrapsíquicas co-interferem nos bastidores da mente, ao
longo de toda a trajetória existencial humana, influenciando a leitura da
memória, a construção das cadeias de pensamentos e o desenvolvimento da
inteligência.
3. Desenvolvimento
intrapsíquico e socioeducacional da inteligência multifocal Fenômenos
intrapsíquicos e socioeducacionais participantes:
a. Desenvolvimento da análise
global, expressa por uma análise contínua do processo de interpretação e do
processo de construção dos pensamentos e por uma postura intelectual
continuamente crítica, aberta e reciclável diante dos fenômenos (físicos,
psicológicos, sociais, profissionais) observados.
b. Resgate da liderança do
eu: desenvolvimento da capacidade de gerenciamento do eu sobre os processos de
construção da inteligência.
c. Desenvolvimento do "stop
introspectivo", ou seja, aprender a pensar antes de reagir,
comprometer-se em ser fiel ao pensamento mais do que com a necessidade imediata
da resposta.
d. Aprender a expor e não
impor as idéias.
e. Aprender a ouvir: aprender
a ouvir o que o outro tem para falar e não o que queremos ouvir; ouvir sem
distorções conscientes.
f. Desenvolvimento da arte da
formulação de perguntas, da arte da dúvida e da arte da crítica.
g. Utilização da história
intrapsíquica e da história social como leme intelectual do futuro.
h. A busca do caos
intelectual para descontaminar as distorções do processo de interpretação e
para expandir as possibilidades de construção do conhecimento na produção de
conhecimento científico, socioprofissional e coloquial.
i. Desenvolvimento da
capacidade de trabalhar os estímulos estres-santes, as dores emocionais, perdas
e frustrações psicossociais e de usá-las como alicerces da maturidade da
inteligência.
j. Desenvolvimento da arte da
contemplação do belo: expandir o prazer, não apenas diante dos grandes eventos
psicossociais, mas principalmente diante dos pequenos eventos da rotina diária.
k. Desenvolvimento da
capacidade de interpretação do "outro": aprender a se colocar no
lugar do outro e perceber suas necessidades psicossociais.
l. Desenvolvimento dos amplos
aspectos da cidadania social. Desenvolvimento do humanismo como alicerce da
teoria da igualdade e como fator de prevenção das múltiplas formas de violação
dos direitos humanos.
m. Desenvolvimento da
democracia das idéias como fator regulador do processo de interpretação em
todas as esferas políticas, sociais, culturais e educacionais.
n. Prevenção contra a
síndrome psicossocial da exteriorização existencial.
o. Prevenção contra a
síndrome intelectual do mal do logos estéril;
p. Prevenção contra a
síndrome psicossocial tri-hiper: hiperconstrução de pensamentos,
hipersensibilidade emocional e hiperpreocupação com o que os outros pensam e
falam de si (imagem social) etc.
Neste livro, a ênfase é dada
à exposição do primeiro grupo de fenômenos, ou seja, ao grupo de fenômenos
responsáveis pela construção dos pensamentos e, conseqüentemente, da
inteligência. Também abordo a teoria da interpretação e algumas variáveis do
segundo grupo, tais como a qualidade da história intrapsíquica, a atuação do
fenômeno da psico-adaptação e a transformação da energia emocional, e alguns
fenômenos do terceiro grupo, tais como o gerenciamento do eu, a arte da dúvida,
a arte da crítica, a busca do caos intelectual, a prevenção do mal do logos estéril,
que são responsáveis pelo desenvolvimento qualitativo da inteligência. Em
textos posteriores, farei uma conceituação de cidadania, do humanismo e da
democracia das idéias. Porém, devido à abrangência de todos os fenômenos
responsáveis pela construção, influência e desenvolvimento multifocais da
inteligência, outras publicações serão necessárias para abordá-los.
A construção da inteligência
incorpora não apenas o Homo intelligens, que representa as idéias, os
raciocínios analíticos, as inferências, a lógica, as soluções emocionais e os
fatores psicossociais contidos na produção intelectual consciente, mas também
o Homo interpres, que representa os processos de construção da própria
produção intelectual ocorridos clandestinamente nos bastidores inconscientes
da inteligência.
O maior espetáculo que o
homem pode produzir não está no cinema, no teatro, nos museus ou nas feiras de
informática, mas está na construção dos pensamentos ocorrida espontaneamente na
mente de qualquer ser humano, mesmo das crianças famintas na África ou
abandonadas nas ruas das grandes cidades. Sem a inteligência não haveria a
consciência existencial; sem a consciência existencial estaríamos condenados à
dramática condição de existir sem ter a consciência da existência.
Nos bastidores da mente, como
veremos, há um Homo interpres micro e macro distinto a cada momento da
interpretação, cujo campo da energia psíquica está num fluxo contínuo de
autotransformações essenciais, que faz com que o homem seja um produtor de
experiências psíquicas, que por sua vez vão sendo registradas continuamente na
sua memória e que se tornam os tijolos para a construção da inteligência
multifocal. A inteligência pode ser redirecionada para que o homem não apenas
seja um ser pensante, mas alguém que brilha na arte de pensar.
Uma das maiores críticas que
faço contra o processo socioeducacional, independentemente da teoria que
utiliza como suporte da interpretação, é que ele pouco contribui para expandir
os fenômenos que desenvolvem a inteligência em seus amplos aspectos
psicossociais. Por isso, ele gera freqüentemente retransmissores do conhecimento,
estudantes que são acometidos com a síndrome do mal do logos estéril,
que expressa uma cultura estéril, que não o torna lúcido, seguro, livre,
empreendedor.
A CIDADANIA DA CIÊNCIA. A NECESSIDADE DA FORMAÇÃO DE PENSADORES
Existe um termo, que chamo de
"cidadania da ciência", que reflete a preocupação que todo pensador
ou cientista deveria ter em relação à sua produção de conhecimentos, que é a de
procurar socializá-la, humanizá-la. "Cidadania da ciência" é,
portanto, a humanização da teoria que se expressa através de procurar torná-la
assimilável, aplicável e, portanto, psicos-socialmente útil.
Neste livro, procurei exercer
a cidadania da ciência. Em determinados momentos, a partir da teoria sobre os
processos de construção dos pensamentos, derivei implicações e aplicações nas
ciências. Além disso, ao longo da exposição dos textos, produzi críticas
multifocais às ciências, à sociopolítica, à socioeducação, tais como: crítica à
produção e validação do conhecimento científico; crítica à omissão e à timidez
da ciência em pesquisar a natureza psíquica e os sistemas de relações que ela
mantém com o cérebro; crítica ao contracionismo da democracia das idéias nas
sociedades politicamente democráticas; crítica à postura psicoterapêutica
autoritária, que posiciona o paciente como espectador passivo das
interpretações e procedimentos psicoterapêuticos; crítica ao autoritarismo das
idéias e à ditadura dos discursos teóricos existente nas ciências,
principalmente pelo uso inadequado de uma teoria como suporte da interpretação;
crítica à unifocalidade da "inteligência emocional" em relação à
multifocalidade da "inteligência"; crítica à unifocalidade das
neurociências e à excessiva culpabilidade dos neurotransmissores na complexa e
sofisticada gênese das doenças psíquicas etc.
Se incorporasse todos os
textos que produzi sobre as críticas, implicações e propostas psicossociais
derivadas dos processos de construção dos pensamentos, este livro ficaria
excessivamente extenso. Por isso, em sua grande maioria, elas apenas serão
abordadas sinteticamente.
Penso que os cientistas e os
pensadores são servos da humanidade, não precisam do brilhantismo da
notoriedade social, embora devam ser, tanto quanto possível, agentes
sociopolíticos. Os cientistas e pensadores são poetas existenciais, cuja
capacidade de observação dos fenômenos, de interpretação, de análise e de
produção de conhecimento é inspirada na cidadania da ciência, ou seja, na
necessidade de ser útil à sociedade, à sua espécie e ao ambiente ecossocial.
Por isso, creio que a grandeza das idéias na Psicologia, Filosofia, Sociologia
e em outras ciências não está somente na qualidade dos discursos teóricos e do
brilhantismo literário que as expressam, mas, principalmente, na sua
aplicabilidade psicossocial.
As universidades têm seus
méritos relevantes, têm professores e cientistas que são amantes do
conhecimento. Porém, apesar disso, o sistema acadêmico desrespeita
freqüentemente os princípios psicossociais e filosóficos derivados da
democracia das idéias e do humanismo, por isso ele forma, com as devidas
exceções, profissionais com baixo nível de cidadania; profissionais que apenas
retransmitem o conhecimento e pouco expandem as idéias; que incorporam o
conhecimento acadêmico quase que exclusivamente para benefícios próprios; que
possuem minimamente a preocupação humanística de atuar psicossocialmente nos
vasos sangüíneos da sociedade.
A transmissibilidade unifocal
do conhecimento, conduzida pela relação professor-aluno, associada ao baixo
desenvolvimento da arte da dúvida e da crítica e às enormes deficiências de
conhecimento sobre a natureza, limites, alcance e lógica do próprio
conhecimento (pensamento dialético), reduzem o debate, a expansão das idéias
e, conseqüentemente, a formação de teóricos, de cientistas, de pensadores e
profissionais humanistas. A grande maioria dos profissionais que se formam nas
universidades talvez nem saibam dizer minimamente o que é a verdade científica
(dialética) e a verdade essencial (real), e quais são as suas relações.
Utilizam o conhecimento teórico (a verdade científica) como se ele tivesse o "status"
da verdade essencial. Não compreendem que grande parte do conhecimento,
julgado como verdade científica hoje, será descaracterizado como
"verdade" nas próximas décadas.
Os sistemas educacionais, à
luz dos processos de construção dos pensamentos, precisam ser repensados como
centro da produção e validação de conhecimento e como centro da formação de
intelectuais.
Vivemos numa sociedade
saturada de informações, mas que carece da formação de pensadores. No passado,
quando a informação era escassa e sua veiculação reduzida, surgiram grandes
pensadores nas ciências. Na Filosofia, houve grandes pensadores que produziram
teorias complexas, originais e inteligentes, tais como Sócrates, Platão,
Aristóteles, Agostinho, Hume, Bacon, Bruno, Descartes, Spinoza, Kant,
Montesquieu, Voltaire, Rousseau, Locke, Hegel, Comte, Marx, Nietzsche,
Kierkegaard, Husserl e tantos outros.
Atualmente, com a
multiplicação do conhecimento, a expansão quantitativa das universidades e o
acesso facilitado às informações, deveríamos ter multiplicado a cadeia de
pensadores nas ciências, mas provavelmente não é isso que tem acontecido. Há,
sem dúvida, ilustres pensadores na atualidade; porém, creio que muitos deles
concordam que a grande maioria dos que cursam uma universidade e fazem uma
pós-graduação, se tornam espectadores passivos do conhecimento,
retransmissores do conhecimento, e não pensadores capazes de criticar e
expandir o conhecimento que incorporam ou produzir novas teorias.
A ciência, embora
fundamental, nunca incorpora a realidade essencial dos fenômenos que estuda. A
verdade científica é um sistema de intenções intelectuais produzidas
criteriosamente pela construtividade de pensamentos, capaz de gerar uma
consciência existencial científica sobre a verdade essencial, ou seja, sobre os
fenômenos psíquicos (ansiedade, fobia, humor deprimido, pensamento) e fenômenos
biofísico-químicos (energia eletromagnética, substâncias químicas, células) etc.
Porém, a consciência existencial científica (ciência) jamais alcança a
realidade essencial dos fenômenos.
A ciência define e conceitua
o mundo que somos e em que estamos; porém, nunca os incorpora essencialmente,
pois o conhecimento científico é construído através do processo de leitura
virtual das matrizes de pensamentos essenciais decorrentes da leitura da
memória.
A ciência tem limites
intransponíveis, pois é produzida na esfera da virtualidade intelectual. Um
milhão de idéias sobre um objeto de madeira, ainda que discurse com fineza
intelectual sobre tal objeto, não é a essência em si da celulose que o
constitui. Porém, apesar de seus limites intransponíveis, a ciência é também
paradoxalmente infinita, inesgotável.
A ciência, por ser
inesgotável, faz com que toda teoria, todo conhecimento, toda verdade
científica, sejam deficientes e restritivas em relação à verdade essencial. As
teorias científicas são importantes, mas todas elas são passíveis de inúmeras
expansões ao longo dos séculos e das gerações. Morrem os cientistas e os
pensadores, mas a ciência e as idéias continuam evoluindo na geração seguinte.
A ciência, como consciência
da essência, é um sistema de intenções que acusa e discursa, através da
plasticidade construtiva dos pensamentos dialéticos, sobre a essência em si dos
objetos e fenômenos, mas, como disse, jamais a incorpora. Tudo o que eu e o
leitor pensamos, racionalizamos, analisamos, discursamos sobre nós mesmos e
sobre o mundo que nos circunda, são sistemas de intenções conscientes que
discursam sobre os fenômenos intrapsíquicos e extrapsíquicos, mas nunca
incorporam a realidade intrínseca deles. Precisamos compreender os processos
de construção dos pensamentos para podermos compreender os limites e alcance da
própria ciência, ou seja, compreender a construção das relações humanas, a
gênese das doenças psíquicas e psicossomáticas, os procedimentos
socio-políticos, psicoterapêuticos, socioeducacionais etc.
Construir pensamentos parece
uma tarefa intelectual simples; mas até a mais débil das idéias tem uma
construção psicodinâmica extremamente complexa. Compreender os bastidores da
construção dos pensamentos, interessa não apenas a cientistas, psicólogos,
psiquiatras, filósofos, sociólogos, juristas, jornalistas, mas a todos aqueles
que realizam qualquer tipo de trabalho intelectual. Porém, como vimos a
trajetória de investigação dos processos de construção dos pensamentos é
extremamente complexa e saturada de entraves.
Quando a ciência resolve
investigar a si mesma (sua natureza, origens, limites, alcance, lógica, práxis
etc.), quando passamos a usar os pensamentos para investigar os próprios
processos de construção dos pensamentos, quando usamos a ferramenta do
conhecimento para explorar o nascedouro do conhecimento, quando usamos as
idéias para esquadrinhar o próprio mundo das idéias, quando procuramos
investigar a energia psíquica que nos constitui intimamente, nunca mais somos
os mesmos, pois começamos a enxergar o homem total numa nova perspectiva, numa
perspectiva psicossocial e filosófica. Quando isso acontece, nos vacinamos
contra o superficialismo intelectual e passamos a ser caminhantes nas avenidas
do nosso próprio ser, o que não nos arrebata para o pedestal intelectual; ao
contrário, nos faz imergir num estado de caos intelectual e deparar com nossas
limitações no processo de investigação e compreensão do mundo que somos.
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