sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Augusto Cury - Inteligência multifocal - Parte 3

Capítulo 12

Há um Mundo a Ser Descoberto nos Bastidores da Mente

Todas as teorias, ideologias sociopolíticas, produções artísticas, poe­sias, discursos literários, diálogos interpessoais etc, são "peças inte­lectuais" construídas nos bastidores inconscientes da inteligência e expressas na "crosta" ou "palcos conscientes da mesma".
Temos consciência da produção intelectual que geramos, mas não te­mos consciência dos processos que geram essa produção intelectual nos bastidores inconscientes. Portanto, há um mundo a ser descoberto no âma­go intrapsíquico de cada ser humano, um mundo que possui fenômenos tão complexos e sofisticados que são capazes de organizar as idéias, produ­zir as análises, confeccionar os paradigmas socioculturais, formatar os dis­cursos teóricos das ciências, produzir os pensamentos antecipatórios, resga­tar as experiências passadas, construir a consciência existencial do mundo que somos e em que estamos, transformar a energia emocional e motivacional etc. Um mundo contido nos "bastidores inconscientes da mente, psique ou alma humana".
A psique não é um campo de energia estático e nem psicodinamicamente equilibrado, mas um campo de energia em contínuo estado de desequilíbrio psicodinâmico, em contínuo estado de transformação essencial, onde se processam as faculdades intelectuais, que são responsáveis pela rica produ­ção de pensamentos, emoções e motivações diárias. Precisamos revisar, como disse, o falso conceito existente na Psicologia referente à busca do "equilí­brio psíquico". A psique humana é um campo de energia psíquica em con­tínuo estado de desequilíbrio psicodinâmico. Esse estado é fundamental para que o homem se torne uma complexa e contínua "usina de pensamen­tos e emoções".
O inconsciente foi abordado genericamente em algumas teorias psicoló­gicas. Porém, aqui, ele será visto com um pouco mais de detalhe, principalmente no que tange aos processos que constroem o mundo dos pensa­mentos e que nos transformam na espécie mais misteriosa e brilhante da biosfera terrestre. Estamos no topo da inteligência de mais de trinta mi­lhões de espécies, porém raramente percebemos o valor e a complexida­de da construção da inteligência. Nos bastidores da mente opera-se um rico conjunto de fenômenos que constroem a história intrapsíquica dentro da memória, que a lêem, que produzem as cadeias de pensamentos, que formam a consciência existencial e que transformam a energia emocional. Os fenômenos que atuam no universo inconsciente são sofisticadíssimos. Por exemplo, eles lêem a memória, em milésimos de segundo, resgatam com extrema fineza os "verbos" em meio a bilhões de informações e os inserem nas cadeias psicodinâmicas dos pensamentos, antes que estas se­jam conscientizadas. Como isso é possível? A inteligência é tão fantástica, que produzimos milhares de verbos diariamente e nem sequer ficamos perturbados com a indescritível proeza de resgatá-los, nos labirintos "escu­ros" da memória, e conjugá-los antes de termos consciência deles. Prova­velmente, muitos teóricos da Psicologia e das Neurociências não investi­garam nem produziram conhecimento sobre os fenômenos que alicerçam a construção do pensamento.
Os fenômenos e as variáveis inconscientes que sustentam o processo de construção dos pensamentos são tão complexos que ao investigá-los pode­mos ficar confusos devido à quantidade e qualidade das dúvidas que surgi­rem. Tais fenômenos operam-se em pequenas frações de segundo, organi­zando microcampos de energia psíquica, que são traduzidos nos palcos conscientes da inteligência como idéias, pensamentos antecipatórios, recor­dações, pensamentos que refletem preocupações existenciais etc.
Os fenômenos inconscientes geram os fenômenos conscientes. Parece tão simples pensar que não nos damos conta que só conseguimos ser seres pensantes, seres que têm consciência de si e do mundo circundante porque temos um mundo real e inimaginável submerso à consciência.
Não apenas a construção das idéias, dos pensamentos antecipatórios, das análises, das sínteses, das ansiedades, das reações fóbicas etc. é extre­mamente complexa, mas também a desorganização das mesmas igualmen­te o é. O espetáculo da construção dos pensamentos não se encerra quan­do eles são produzidos e encenados nos palcos conscientes da inteligência. O espetáculo continua, pois as "peças intelectuais" (os pensamentos) são psicodinâmicas, ou seja, uma vez produzidas imediatamente elas se desor­ganizam, vivenciam o caos, abrindo as possibilidades para a construção psicodinâmica de novas "peças intelectuais". Assim, pelo fato de os pensa­mentos serem construídos num campo de energia especial, o campo de energia psíquica, cuja essencialidade ultrapassa os limites da previsibilidade e linearidade das leis físico-químicas, imediatamente após serem construídos, eles desorganizam seus microcampos de energia psíquica, experimentam o caos, abrindo possibilidades psicodinâmicas para a construção de novos pensamentos.
Só conseguimos produzir milhares de pensamentos diariamente porque todos eles experimentam continuamente um processo de desorganização. Cada um dos "microcampos de energia psíquica" produzidos nos bastidores da psique, e que se expressam como pensamentos e idéias conscientes, so­frem instantaneamente um caos dramático que os desorganiza por comple­to. Nenhum ser humano consegue impedir que seus pensamentos, inclusive suas emoções e motivações se desorganizem. O caos da energia psíquica é irresistível. A idéia mais brilhante se desorganiza imediatamente após ser produzida. As emoções se desorganizam mais lentamente, mas mesmo as emoções mais românticas experimentam o caos psicodinâmico.
O amor e todas as experiências mais intensas do universo emocional, sejam elas agradáveis ou angustiantes, caminham diariamente para o caos e se reorganizam em outras emoções.
As emoções e os pensamentos novos só voltam ao cenário da mente se as anteriores forem desorganizadas e de novo reconstruídas. Portanto, a psique humana vive um fluxo vital de transformações essenciais. Esse prin­cípio é universal e atinge inevitavelmente todo ser humano em toda a sua trajetória existencial.
Não sei se os leitores já ficaram, como eu, perturbados em saber como foram geradas as idéias, as reações ansiosas, os pensamentos antecipatórios etc, encenados a cada minuto nos palcos de nossas consciências, e para onde elas foram e como se descaracterizaram. Essas questões retratam a essência intrínseca do homem. Pois toda a produção intelecto-emocional, seja científica ou coloquial, prazerosa ou angustiante, possui um conjunto de fenômenos que arquiteta seu nascedouro e sua desorganização. Procu­rei observar tais fenômenos atentamente. Nesse processo de observação e exploração usei diversos procedimentos intelectuais complexos e, ao mes­mo tempo, fiz centenas e até milhares de perguntas sobre eles para conse­guir algumas respostas teoricamente mais consistentes, que fugissem ao psicologismo.
Em meu processo de observação e investigação, eu ficava intrigado pelo fato de que num instante produzimos construções intelecto-emocionais sofisticadíssimas, sem termos consciência de como lemos a memória e de como elas foram produzidas nos labirintos da psique, e noutro instante elas desaparecem e se desorganizam sem darmos conta de "para onde" foram, de "como" e do "porquê" de elas terem ido. Na realidade, elas não foram para nenhum lugar; apenas vivenciaram o caos. Os microcampos de energia psíquica que se organizam psicodinamicamente como idéias e emoções se desorganizam inevitavelmente. Assim, o campo de energia psíquica pre­serva sua integralidade essencial.

O CAOS DA ENERGIA PSÍQUICA E O FLUXO VITAL DOS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DA INTELIGÊNCIA

Muitos pensam que o caos é destrutivo, paralisante, mas na realidade ele expande as possibilidades de construção dos fenômenos. Esse princípio vale tanto para a Física como para a Psicologia. A transformação da energia psíquica abre um caminho para a operacionalização dos sistemas de variá­veis intrapsíquicas.
Se os pensamentos e as emoções não experimentassem continuamente o caos psicodinâmico, novos pensamentos e emoções não seriam produzi­dos, a mente sofreria um congestionamento intelectual paralisante, seria criativamente estéril e, com isso, as conseqüências seriam dramáticas, pois não seríamos ricos seres que pensam e se emocionam continuamente. O homem é um ser intensamente preocupado em construir, mas não reflete que, sem o caos da energia psíquica, capaz de desorganizar toda constru­ção psicodinâmica intelectual e emocional, o Homo sapiens não existiria.
Nas doenças psíquicas, tais como nos transtornos obsessivo-compulsivos, nas depressões, nas síndromes de pânico, o caos intrapsíquico e os processos de construção dos pensamentos estão qualitativamente altera­dos. Na síndrome do pânico, por exemplo, ocorre operacionalização súbi­ta do fenômeno da autochecagem da memória, que lê em milésimos de segundo a memória e constrói instantaneamente cadeias psicodinâmicas de pensamentos, com conteúdo dramático, ligados às idéias de morte, desmaio e descontrole, que, por sua vez, provoca também subitamente um caos no processo de transformação da energia emocional, gerando uma reação fóbica intensa e incontrolável, que atua no córtex cerebral e provoca uma sintomatologia psicossomática, caracterizada por taquicardia, dispnéia (fal­ta de ar), sudorese (suor intenso) etc.
Não quero entrar em detalhes, no momento, sobre as doenças psíqui­cas; o que quero enfatizar é que, independentemente da etiologia ou causa das mesmas, independentemente da crítica que possamos fazer aos postu­lados das neurociências ligados aos neurotransmissores ou aos postulados psicológicos ligados a conflitos psíquicos e psicossociais, o fato é que, ao estudar o processo de construção dos pensamentos, verificaremos que há uma exacerbação psicodinâmica do caos intrapsíquico em algumas dessas doenças, tais como na síndrome do pânico e nas reações fóbicas. Essa exacerbação dificulta o gerenciamento do "eu" sobre os pensamentos, as ansie­dades, as preocupações existenciais, as angústias. Por isso, essas pessoas vivenciam continuamente pensamentos e emoções que não querem pensar e sentir. Porém, excetuando as doenças psíquicas, em que a exacerbação psicodinâmica do caos da energia psíquica pode reduzir o gerenciamento do "eu", ele é saudável e fundamental para expandir as possibilidades de construção da inteligência.
Sem o processo de desorganização da energia psíquica e sem a ação psicodinâmica dos fenômenos intrapsíquicos que o reorganizam, não tería­mos como explicar o fluxo vital dos pensamentos e das emoções, a extre­ma velocidade, fineza construtiva e sofisticação psicodinâmica dos proces­sos de construção que ocorrem no palco de nossas mentes. Sem a força intrapsíquica irresistível e desorganizadora do caos da energia psíquica e sem a atuação psicodinâmica rapidíssima e refinadíssima dos fenômenos que o reorganizam, o Homo sapiens não seria um engenheiro de idéias, um construtor de pensamentos antecipatórios, de análises, de inferências.
Poucos homens conseguem ter sucesso em ser um grande empresário, um respeitado político, um grande cientista, um exímio artista, mas todos conseguem realizar o maior de todos os sucessos intelectuais, o sucesso mais espetacular, que é ser um engenheiro de idéias, ura construtor de pensamentos. Todos somos engenheiros de idéias, embora nem sempre qualitativos, que vivem uma agenda intelectual complexa. Todo ser huma­no, por menos cultura que tenha, possui uma mente sofisticadíssima. Até as crianças deficientes mentais e as pessoas que sofreram lesões cerebrais, mas que têm preservadas determinadas áreas de memória, possuem uma mente complexa, pois são capazes de processar um registro parcial da his­tória intrapsíquica, sofrer a atuação psicodinâmica dos fenômenos que a lêem e produzir cadeias psicodinâmicas dos pensamentos, ainda que sem parâmetros lógicos, que se desorganizarão e se reorganizarão em outros pensamentos.
Desprovidos dos fenômenos que lêem a memória e do fluxo vital da energia psíquica, seríamos animais não-pensantes, sem consciência existen­cial, sem identidade, sem distinguir seu ser do restante do universo, sem produzir história, sem ter consciência das dores e necessidades psicossociais, sem estabelecer relações interpessoais conscientes, sem idéias, artes, ciên­cia nem livros, enfim, sem uma "agenda" intelectual diária fascinante.
O campo de energia psíquica vive um contínuo e inevitável fluxo de transformações essenciais, operacionalizadas por um riquíssimo conjunto de variáveis da interpretação, expresso por um conjunto intrincado e co-interferente de fenômenos que atuam inconscientemente. Precisamos com­preender os fenômenos que reorganizam o caos da energia psíquica e que geram, conseqüentemente, os quatro grandes processos de construção da inteligência: o processo de construção de pensamentos, o processo de for­mação da consciência existencial, o processo de formação da história intrapsíquica e o processo de transformação da energia emocional e moti­vacional.
Como vimos, esses processos são produzidos por mais de três dezenas de fenômenos intrínsecos que co-interferem no inconsciente. Claro que deve haver um número muito maior do que três dezenas de fenômenos. Porém, dentro das minhas limitações como pesquisador, detectei esse nú­mero na minha trajetória de pesquisa e produção de conhecimento. O processo de co-interferência desses fenômenos é tão complexo que nos torna diferentes a cada momento existencial. Somos micro ou macrodistintos a cada momento existencial, pois a cada momento produzimos novos pen­samentos, emoções e desejos, ainda que diante dos mesmos estímulos.
Temos estudado os fenômenos mais importantes que atuam no proces­so de construção dos pensamentos. Vimos que eles co-interferem de ma­neira particular a cada momento existencial. Até onde conheço, penso que as grandes teorias psicológicas, psicossociais e filosóficas (principalmente as epistemológicas) não estudaram os processos de construção da inteligência a partir dos sistemas de co-interferências de variáveis que atuam nas di­versas etapas da interpretação em que são gerados os pensamentos e as emoções.
Essa carência de estudo se deve ao fato de que os teóricos se preocupa­ram mais em produzir conhecimento sobre o discurso do pensamento dialético (consciente) e as manifestações das emoções do que sobre o nascedouro e as origens desses pensamentos e emoções, ou seja, sobre a natureza intrínseca da energia psíquica, a organização da história existen­cial (intrapsíquica) na memória, a leitura da memória, a organização dos microcampos de energia psíquica a partir dessa leitura, a formação das matrizes dos pensamentos essenciais (inconsciente), as cadeias dos pensa­mentos dialéticos, a desorganização caótica da energia psíquica, pois esses fenômenos estão no pré-conhecimento e na pré-transformação da energia emocional.
É insuficiente fazer uma abordagem genérica dos fatores sociais, psico­lógicos e genéticos que influenciam o processo de formação da personali­dade e o discurso dos pensamentos, mas não sobre os sistemas de variáveis que concebem o nascedouro, a natureza, os limites e o alcance dos pensa­mentos e emoções.
Os sistemas de co-interferências das variáveis, associados aos processos de construção que eles geram, são
conhecimento, é questionar seu processo de produção. Educar é transmitir o conhecimento estimulando os princípios psicossociais e filosóficos que inspiram a formação de pensadores; é levar os alunos a serem caminhantes nas trajetórias do próprio ser. Educar não é dar títulos acadêmicos e nem convencer os alunos do tanto que eles sabem, mas convencê-los do tanto
de extrema complexidade e extensão; por isso, são assunto para vários livros.

DA AURORA DA VIDA FETAL ATÉ O ÚLTIMO SUSPIRO DE VIDA

O campo de energia psíquica vive urn fluxo vital contínuo e inevitável de transformações essenciais, que são percebidas como pensamentos, idéias, emoções, motivações, diálogos, sonhos etc. Os fenômenos intrínsecos da mente que lêem a memória e produzem as "matrizes de pensamentos es­senciais históricos", e que são inconscientes, iniciam o processo de reorga­nização da energia psíquica, provocando transformações na energia emo­cional preparando "uma pista de decolagem virtual" (leitura virtual) para a formação dos pensamentos conscientes dialéticos (psicolingüisticamente organizados: idéias, pensamentos, análises) e antidialéticos (psicolin­güisticamente difusos: imagens mentais, fantasias, impressões).
A leitura da história intrapsíquíca gera os microcampos de energia, que são expressos por matrizes de pensamentos inconscientes. As matrizes de pensamentos essenciais inconscientes geram as idéias, as análises, as sínte­ses, os pensamentos antecipatórios, as expectativas, inseguranças, reações de tolerância, complacência, os sentimentos de amor, de ódio, de raiva, etc. enfim, todas as finas construções intelecto-emocionais. Assim, o campo de energia psíquica está continuamente sofrendo a ação do pool de fenôme­nos que reorganizam o caos, que em seguida se desorganiza novamente. Assim, o campo de energia psíquica se organiza, desorganiza e se reorgani­za continuamente a cada momento existencial, iniciando-se na vida intra-uterina e perpetuando-se por toda a trajetória da vida humana.
Pensar e ser inteligente não são opções intelectuais do Homo intelligens, do homem pensante, mas são frutos de Uma produção inevitável, contínua e espontânea de pensamentos na psique humana. Podemos monitorar a qualidade da produção das idéias, dos pensamentos, mas não conseguimos evitá-la.
O homem vive sob o regime da revolução das idéias. Desde a aurora da vida fetal ele produz continuamente matrizes de pensamentos essenciais inconscientes. Na vida extra-uterina, essas matrizes conquistarão pouco a pouco uma pista de decolagem virtual e se tornarão pequenos pensamen­tos conscientes, que pouco a pouco gerarão idéias mais complexas.
Se tivermos uma macrovisão da mente, poderemos dizer que o ser humano vive desde a vida intra-uterina uma leitura contínua e inevitável da memória, que resultará numa produção contínua das matrizes de pensa­mentos essenciais, que, por sua vez, resultará nos pensamentos conscientes. O homem é um engenheiro espontâneo de idéias. Ele não apenas produz idéias porque o "eu" determina que ele deva produzir idéias, mas porque o seu campo de energia psíquica se encontra num fluxo vital contínuo e inevi­tável de organização, desorganização e reorganização essencial.
O fluxo vital da energia psíquica indica que há na psique, pelo menos desde a aurora da vida fetal até o último suspiro existencial, uma operação inevitável dos processos de construção dos pensamentos. Essa operação faz com que cada ser humano seja um produtor de artes, de ciência, de técni­cas, de relações sociais, de comunicação, enfim, um ser que vive sob o regime da revolução das idéias, o que enseja o processo de formação da personalidade e desenvolvimento da história psicossocial humana como um todo.
Os fetos pensam, e pensam muito, embora não pensem os dois tipos fundamentais de pensamentos conscientes, os pensamentos dialéticos e os antidialéticos, mas as matrizes dos pensamentos essenciais inconscientes que geram emoções contínuas. A criança pensa continuamente nas suas necessidades, vive explorando o mundo que a circunda, desenvolve fanta­sias e sonhos num fluxo vital.
Quem são os "mestres" dos fetos, que os ensinam a explorar o meio intra-uterino e os seus próprios corpos e desenvolver malabarismos nas piscinas de líquido amniótico? Quem são os "mestres" das crianças, após seus primeiros anos de vida, que as ensinam a identificar, no meio de cen­tenas de milhares ou até de milhões de informações contidas em sua me­mória, que as dores e angústias que experimentam são cólicas, sentimentos de abandono, fome, sede etc. ? São os fenômenos que atuam nos bastidores da mente que lêem a memória instintivo-genética e a memória histórico-existencial, e reorganizam o caos do campo da energia psíquica e estabele­cem os processos de construção da inteligência.
Qualquer um se perderia numa cidade estranha ao procurar uma pes­soa com um endereço incompleto; mas as crianças, desde a sua mais tenra infância e sem nenhum "endereço consciente", penetram nas complexas e obscuras "cidades inconscientes da memória" e encontram os endereços das informações corretas para expressar seus desejos, suas pequenas idéias. Os adultos também realizam esse espetáculo da construção centenas ou milhares de vezes por dia, sem saber como penetram com extremo acerto e rapidez nos labirintos de suas memórias. Quem são os nossos mestres? Os professores das escolas e os pais são apenas atores coadjuvantes dos fenômenos que atuam nos bastidores da mente. São eles que causam a revolução inevitável das idéias, que promovem o processo evolutivo da personalidade.
Os leitores estão continuamente sob o regime da revolução das idéias e, provavelmente, hoje produziram milhares delas. Os cientistas, os políti­cos, os psicólogos, os pais, os ideólogos, as pessoas místicas, enfim, todo e qualquer ser humano está produzindo um universo de pensamentos, análi­ses, resgate de experiências passadas, antecipação de situações do futuro, inseguranças, expectativas, pensamentos sobre circunstancialidades exis­tenciais.

A CONSTRUÇÃO MULTIFOCAL DOS PENSAMENTOS É INEVITÁVEL E NÃO PODE SER DETIDA

Quem pode deter os processos de construção dos pensamentos? Nin­guém! É impossível deter o fluxo vital da energia psíquica.
Ainda que uma pessoa se enclausure para fins místicos, como os anacoretas, ela não conseguirá interromper o fluxo dos pensamentos, o fluxo das idéias. Mesmo uma pessoa autista, que tem relações tão frágeis com o mundo extrapsíquico, produz pensamentos continuamente, ainda que desorganizados ou que não remetam à socialização. Uma pessoa pode usar toda a sua capacidade intelectual para resistir à revolução das idéias, mas não terá êxito e, além disso, a própria tentativa de interrupção dos pensamentos já é um pensamento, já é uma idéia. Não existe o "nada inte­lectual", o "vácuo de pensamento", pois a "consciência do nada" é a "idéia ou pensamento do nada" e não o "nada em si".
A operação espontânea dos fenômenos que lêem a memória e que constroem cadeias de pensamentos, estimulam a formação do equipamen­to intelectual que estruturam os alicerces da personalidade. Todos os mem­bros de nossa espécie formam, a cada geração, suas personalidades, e isso independentemente do ambiente e das condições sociais, econômicas, cul­turais em que vivem. O desenvolvimento qualitativo da personalidade de­pende das variáveis extrapsíquicas, mas o processo em si da formação da personalidade depende apenas da operação dos fenômenos inconscientes. Se o eu não atuar na inteligência e não produzir uma revolução de idéias qualitativas, ainda assim os fenômenos participantes da construção de pen­samentos produzirão espontaneamente tal revolução, mesmo que seja não-qualitativa e não-direcionada para o desenvolvimento do humanismo e da cidadania.
A maior e mais importante revolução não é a revolução econômica, política e tecnológica, mas aquela que se opera clandestinamente na mente de cada ser humano. As outras revoluções são vítimas desta.
A construção da inteligência e da consciência existencial é inevitável na trajetória humana. Cumpre ao eu redirecionar e reorganizar essa constru­ção, através de expandir sua capacidade de pensar, de trabalhar seus estímulos estressantes, de preservar sua emoção nos focos de tensão, de enri­quecer seu humanismo. Se o eu não reorganizá-la, a personalidade se for­mará sem um direcionamento maduro, ou seja, através da leitura aleatória da história intrapsíquica e da produção psicodinâmica de pensamentos. Assim, o risco de desenvolver uma inteligência doentia, destrutiva, aliena­da, insegura, é grande, principalmente se as variáveis do processo educa­cional, do ambiente social e da carga genética forem inadequadas.
Nesses anos de pesquisa sobre a inteligência, compreendi que o homem moderno, devido à falência do processo educacional em desenvolver a ca­pacidade crítica de pensar, em desenvolver o humanismo e a cidadania, associado à fragilidade do eu em administrar os pensamentos, tem grande dificuldade de liderar os fenômenos que tecem a colcha de retalhos da sua personalidade.
As idéias são definidas, aqui, como um conjunto de pensamentos que conceituam os eventos contidos no mundo que somos (ambiente intra-psíquico) e em que estamos (ambiente extrapsíquico). Através da constru­ção contínua das idéias produzidas ou não pelo eu, o desenvolvimento da personalidade é estimulado (ainda que não qualitativamente), a história psicossocial do homem é desenvolvida, o conhecimento coloquial e cientí­fico é produzido, as relações humanas são geradas, a comunicação inter­pessoal é estabelecida.
Quando me reporto à revolução das idéias, não me refiro apenas aos simples pensamentos, fantasias, recordações, pensamentos antecipatórios, que são produzidos pela atuação dos fenômenos que atuam nos bastidores da mente, mas também à produção de idéias que é gerenciada, organiza­da, redirecionada pelo eu, tais como as análises, as sínteses, as idéias humanistas, as idéias que envolvem a racionalização de estímulos estressantes, a capacidade de trabalhar perdas, a consideração pelas dores e necessida­des psicossociais do "outro".
A construção das idéias produzida apenas pela operacionalidade in­consciente dos fenômenos que lêem a história intrapsíquica, que reorgani­zam o caos da energia psíquica e geram os processos de construção da inteligência nem sempre é suficientemente elaborada, organizada, para desenvolver o humanismo, a cidadania e a capacidade crítica de pensar. A construção das idéias, estimulada e redirecionada pelo eu, auxiliada por um processo socioeducacional multidirecional e histórico-crítico-existenci-al, tem condições de aprimorar a capacidade de produção de pensamen­tos, produzindo a revolução da ciência, e de expandir o processo de interiorização, a arte de se colocar no lugar do outro e a capacidade de trabalhar as intempéries existenciais, promovendo o desenvolvimento do humanismo e da cidadania.

O MUNDO DAS IDÉIAS PRODUZIDO PELOS FENÔMENOS INCONSCIENTES E PELO EU

O ser humano vive um processo de construção da inteligência quantitati­vamente rico, que produz milhares de pensamentos diários, milhões anual­mente. Todos esses pensamentos são registrados automaticamente na me­mória, gerando a sua complexa história intrapsíquica, da qual os fenôme­nos inconscientes se alimentarão para produzir novas cadeias de pensa­mentos. Se a construção da inteligência é quantitativamente rica, pode não o ser qualitativamente, principalmente se o eu não a compreender e não conseguir reorganizá-la, reorientá-la e redirecioná-la. Somos, freqüentemente, passantes existenciais, que percorrem as trajetórias das tendências sociais, mas que não criam raízes mais profundas dentro de si mesmos, que não aprendem a se interiorizar, a transitar pelos caminhos de nossa própria mente, a expandir a inteligência. Nosso sentido existencial é o sentido do "ter" e não o sentido do "ser"; por isso, só sabemos viver bem e com digni­dade nos períodos de "bonaça" da vida, mas temos grande dificuldade para lidar com nossas misérias, erros, perdas, dores e frustrações, que, às vezes, são imprevisíveis e inevitáveis.
As variáveis extrapsíquicas, tais como o processo educacional, a atua­ção dos pais, as interpretações psicoterapêuticas e as relações sociais como um todo não são capazes de causar nenhuma revolução intelectual, mas podem funcionar como catalisadoras de idéias, estimulando o eu a realizar essa tarefa psicodinâmica.
A produção das idéias, produzidas inconscientemente ou consciente­mente, perdura, como disse, durante todo o processo existencial humano. É teoricamente ingênuo dizer que a personalidade se forma até certa idade, por exemplo, até os 6 ou 7 anos de idade, e a partir daí ela apenas cristali­zará as características iniciais. De fato, na infância, ocorre na memória uma formação de áreas nobres da história intrapsíquica que alimentará os pro­cessos de construção dos pensamentos e da consciência existencial, subsi­diando algumas diretrizes básicas da personalidade. Porém, se compreen­dermos o funcionamento da mente, verificaremos que em toda a trajetória existencial humana ocorre um fluxo da construção de pensamentos, que expandirá a evolução da personalidade.
Uma pessoa que possui um tumor cerebral, que acomete áreas da me­mória, ou que possui uma degeneração cerebral não muda radicalmente a estrutura da sua personalidade? Sim! Um intelectual pode se comportar como uma criança nessas condições. Por que? Porque houve perda e de­sorganização das informações contidas na memória. Portanto, mesmo em casos doentios, a mudança da personalidade passa por alterações dos segre­dos contidos na memória.
O homem, independentemente da sua idade e condição sociocultural, tem, a cada momento existencial, a oportunidade de rever seu processo de interpretação e expandir seu aprendizado, de reorganizar seus paradigmas socioculturais, seus padrões de reações, seus estereótipos sociais, contidos em sua memória. Enfim, é possível refinar em qualquer tempo o geren­ciamento do eu sobre os processos de construção dos pensamentos e enri­quecer a memória e a personalidade.
Há pessoas rígidas, que não reciclam nem expandem a "consciência crítica do eu", que se apegam às suas idéias, conceitos e paradigmas socioculturais como se fossem dogmas existenciais, pois têm medo de reco­nhecer e enfrentar sua fragilidade e imaturidade, de reorganizar critica­mente suas posturas intelectuais- Tais pessoas diminuem o gerenciamento dos processos intelectuais; por isso, parece que nunca modificam o que pensam e sentem. A rigidez do eu pode reduzir qualitativamente as idéias produzidas espontaneamente no palco da mente, mas não pode interrompê-la, ainda que diariamente elas sejam produzidas quantitativamente.
Se observarmos a trajetória existencial de uma pessoa rígida, verificare­mos que ela também constrói um universo de idéias, conceitos, percep­ções. Todavia, devido à dificuldade de repensar tais idéias e expandir seus horizontes, elas causam apenas uma pequena evolução na sua persona­lidade.
A psique do Homo sapiens é tão complexa e sofisticada que a dividirei didaticamente, para melhor desenvolver o discurso teórico, em Homo interpres e Homo intelligens. O Homo interpres é o homem que interpreta o mundo, que o reconstrói nos bastidores da mente. Interpretar não é um privilégio de uma casta de pessoas intelectuais; interpretar é um processo intelectual inevitável que todo ser humano realiza em toda a sua trajetória existencial.
Não recebemos o mundo, as pessoas, os animais, o universo físico, em sua essência intrínseca, mas o recebemos codificadamente, através dos estí­mulos sensoriais. Os estímulos sensoriais são invariavelmente interpreta­dos, através dos fenômenos que lêem a memória e constroem as cadeias de pensamentos. Estas não representam a realidade essencial do mundo, mas a interpretação intelectual deste mundo. Portanto, o Homo sapiens, antes de ser sapiens ou um ser pensante, ê um Homo interpres, um ser que interpreta. O Homo interpres gera a inteligência consciente do Homo sapiens. O Homo interpres representa o universo inconsciente da psique humana: a história intrapsíquica, os processos de construção da inteligência, os fenômenos que lêem a memória, as matrizes de pensamentos essenciais, as variáveis que atuam na construção de pensamentos.
O Homo intelligens representa a inteligência consciente do Homo sapiens, tais como as idéias, as análises, as sínteses, a lógica, os pensamentos antecipatórios, as recordações, o eu, a consciência das emoções, das moti­vações, a consciência do mundo extrapsíquico, etc. Porém, a inteligência consciente não surge por si mesma, mas é produzida pelos complexos pro­cessos de construção ocorridos nos bastidores da mente, ou seja, pelo Homo interpres. O Homo interpres gera, portanto, o Homo intelligens. Toda vez que o Homo interpres interpreta um estímulo e constrói cadeias de pensamentos conscientes, ele gera o Homo intelligens. O Homo interpres representa os pro­cessos de construção existentes no universo inconsciente e o Homo intelligens representa os processos de construção existentes no universo consciente. Ambos formam o homem total, o Homo sapiens.
O Homo sapiens não é apenas um Homo intelligens, ou seja, um ser inteligente, um ser pensante, mas é acima de tudo um Homo interpres, ou seja, um ser que constrói sua inteligência, sua capacidade de pensar, atra­vés de complexos e de sofisticados processos da interpretação inconscien­te. Vivemos o processo de interpretação em toda a nossa trajetória existen­cial; até os pensamentos que temos sobre nossas angústias, fobias, insegu­ranças, prazeres, não representam a realidade em si dessas emoções, mas uma interpretação dessas emoções. As interpretações substituem a realida­de essencial dos estímulos. Porém, como veremos, essa substituição, ainda que seja rica era idéias, é sempre redutora e passível de inúmeras distorções.
O Homo sapiens é um ser que respira a interpretação em toda a sua trajetória existencial. Até as pessoas psicóticas interpretam complexamente o mundo, ainda que sem lógica e parâmetros psicossociais.
O Homo interpres é expresso pelo conjunto de variáveis intrapsíquicas inconscientes que atuam nos bastidores da mente, bem como pelos gran­des processos de construção da inteligência. As variáveis intrapsíquicas flu­tuam e evoluem a cada momento existencial; por isso direi que há um Homo interpres micro ou macrodistinto também a cada momento. Ainda que possamos ficar chocados, temos de ter consciência de que não somos intelectualmente lineares e estáveis, mas seres distintos a cada momento.
Somente o mundo da matemática é estável; o mundo físico, e principal­mente o mundo psíquico, são dinâmicos, são micro ou macrodistintos a cada momento existencial, o que resulta em micro ou macrodistorções da interpretação diante de um mesmo objeto ou estímulo contemplado. O mundo das idéias, da cultura, dos paradigmas sociais, das artes, da ciência, se encontra num processo continuamente evolutivo, ainda que não qualita­tivo. A história humana é um testemunho vivo desse princípio psicossocial.
O Homo interpres produz uma infinidade de cadeias de pensamentos que se manifestam conscientemente como Homo intelligens. Devido às variáveis nos bastidores da mente [Homo interpres) interpretamos de maneira distinta os estímulos idênticos ou semelhantes e produzimos, com isso, idéias, pen­samentos, análises distintas sobre eles nos palcos conscientes da inteligência {Homo intelligens). Por isso, mesmo se o Homo intelligens (consciência do eu e os pensamentos conscientes) for rígido, ainda assim ele experimentará clan­destinamente microrrevoluções de idéias nos bastidores da sua mente [Homo interpres), que modificarão algumas posturas existenciais, maneira de pensar e ser, enfim, algumas arestas psicodinâmicas da sua personalidade. Até na velhice podem ocorrer riquíssimas revoluções construtivas, importantes re­voluções das idéias, principalmente se aprende a se interiorizar, a expandir a capacidade crítica de pensar em seu processo de interiorização, sua análi­se das causas históricas e circunstancialidades psicossociais, seu humanismo, enfim, se alguém aprende a ser continuamente um caminhante nas aveni­das do seu próprio ser.
Se o eu tivesse plena liberdade de atuar na construção de pensamentos e na transformação da energia emocional, poderíamos pensar que a vida humana seria um "mar de prazeres", o que, como comentei, é muito discu­tível. Além disso, se o eu tivesse tal liberdade, a inteligência humana corre­ria sérios riscos, pois numa situação de stress psicossocial e de dor inadministrável, ele poderia apagar da memória a "imagem histórica" das pessoas íntimas que nos frustram. Assim, em segundos ou fração de segun­do, apagaríamos a riquíssima história existencial que demoramos décadas para construir, o que traria uma destrutividade imprevisível nas relações humanas e na formação da consciência existencial.
Os limites do eu em atuar no seu próprio mundo intrapsíquico compro­metem a sua liderança; comprometem o seu governo plenos sobre a cons­trução dos pensamentos, sobre a formação da história intrapsíquica, sobre a reorganização dos conflitos intrapsíquicos e psicossociais, sobre o processo de transformação da energia emocional etc; porém também trazem, ao mesmo tempo, grande proteção contra a autodestrutividade humana, impe­dindo o "suicídio da história intrapsíquica", o "suicídio da consciência exis­tencial". Além disso, tais limites tornam a própria psique o centro vital de entretenimento humano, pois vive sob o regime contínuo da construção das idéias não-autorizadas pelo eu. Assim, pelo fato de o homem ser um enge­nheiro espontâneo de idéias, um construtor de pensamentos sobre situações do futuro, um ruminador de experiências passadas, um arquiteto de pensa­mentos sobre circunstâncias existenciais, ele constrói uma fonte vital de en­tretenimento, que contribui para superar sua dramática solidão da consciên­cia existencial e para promover a evolução da sua personalidade e da sua história psicossocial.

A REVOLUÇÃO DAS IDÉIAS PRODUZIDA PELOS FENÔMENOS INCONSCIENTES, PELO EU, PELO PROCESSO EDUCACIONAL E PELA CARGA GENÉTICA

A revolução das idéias é "gerada espontaneamente" pelo fluxo vital da energia psíquica, é "provocada, catalisada ou estimulada" pelo processo socioeducacional, é "influenciada" pela carga genética e é "organizada" pelo eu. Não existe destino humano previsível; não existe previsibilidade rígida na trajetória humana. Ninguém controla todas as variáveis dos pro­cessos de construção da inteligência; por isso, não é possível "fabricar" ou programar a personalidade humana, pois é impossível controlar determina­das variáveis.
Muitos teóricos da personalidade não compreenderam alguns labirin­tos do seu processo de formação. A personalidade é "gerada espontanea­mente" pelo fluxo vital dos fenômenos que fazem a leitura da história intrapsíquica, reorganizam a energia psíquica e geram a construção da inte­ligência; a personalidade é "provocada, catalisada ou estimulada" pelo pro­cesso socioeducacional através da atuação no processo de formação do eu e da história intrapsíquica arquivada na memória; a personalidade é "in­fluenciada" pelos microcampos de energia físico-química gerados pelo metabolismo cerebral e que foram construídos pela agenda da carga gené­tica; a personalidade é organizada pelo gerenciamento do eu sobre os pro­cessos de construção da inteligência.
O processo socioeducacional (expresso pelas experiências que consti­tuem a nossa história intrapsíquica e pelas circunstancialidades psicossociais do presente), a "carga genética" (expresso pelo metabolismo neuroendócri-no), os fenômenos que lêem a memória, as variáveis intrapsíquicas que co-interferem nos bastidores da mente e o eu (expresso pelo gerenciamento da construção de pensamentos) levam o homem total não apenas a ser complexo, mas a ter uma complexidade multivariável, um ser que vive sob a influência de variáveis multifocais. Por isso, dizer que a personalidade humana se constrói sob o tripé da carga genética, do ambiente social e dos fatores psicológicos é indubitavelmente simplista, reducionista.
Temos múltiplas variáveis que atuam no processo de formação da per­sonalidade. A carga genética e o ambiente socioeducacional são duas va­riáveis complexas; porém, associados a elas, temos os fenômenos que lêem a memória. Temos também um conjunto significativo de variáveis, tais como o fenômeno da psicoadaptação, a história intrapsíquica, a ansiedade vital, a energia emocional etc, que atuam a cada momento da interpretação e na construção das cadeias de idéias.

A REVOLUÇÃO DAS IDÉIAS PRODUZIDA PELOS FENÔMENOS INCONSCIENTES, PELO EU, PELO PROCESSO EDUCACIONAL E PELA CARGA GENÉTICA

A revolução das idéias é "gerada espontaneamente" pelo fluxo vital da energia psíquica, é "provocada, catalisada ou estimulada" pelo processo socioeducacional, é "influenciada" pela carga genética e é "organizada" pelo eu. Não existe destino humano previsível; não existe previsibilidade rígida na trajetória humana. Ninguém controla todas as variáveis dos pro­cessos de construção da inteligência; por isso, não é possível "fabricar" ou programar a personalidade humana, pois é impossível controlar determina­das variáveis.
Muitos teóricos da personalidade não compreenderam alguns labirin­tos do seu processo de formação. A personalidade é "gerada espontanea­mente" pelo fluxo vital dos fenômenos que fazem a leitura da história intrapsíquica, reorganizam a energia psíquica e geram a construção da inte­ligência; a personalidade é "provocada, catalisada ou estimulada" pelo pro­cesso socioeducacional através da atuação no processo de formação do eu e da história intrapsíquica arquivada na memória; a personalidade é "in­fluenciada" pelos microcampos de energia físico-química gerados pelo metabolismo cerebral e que foram construídos pela agenda da carga gené­tica; a personalidade é organizada pelo gerenciamento do eu sobre os pro­cessos de construção da inteligência.
O processo socioeducacional (expresso pelas experiências que consti­tuem a nossa história intrapsíquica e pelas circunstancialidades psicossociais do presente), a "carga genética" (expresso pelo metabolismo neuroendócri-no), os fenômenos que lêem a memória, as variáveis intrapsíquicas que co-interferem nos bastidores da mente e o eu (expresso pelo gerenciamento da construção de pensamentos) levam o homem total não apenas a ser complexo, mas a ter uma complexidade multivariável, um ser que vive sob a influência de variáveis multifocais. Por isso, dizer que a personalidade humana se constrói sob o tripé da carga genética, do ambiente social e dos fatores psicológicos é indubitavelmente simplista, reducionista.
Temos múltiplas variáveis que atuam no processo de formação da per­sonalidade. A carga genética e o ambiente socioeducacional são duas va­riáveis complexas; porém, associados a elas, temos os fenômenos que lêem a memória. Temos também um conjunto significativo de variáveis, tais como o fenômeno da psicoadaptação, a história intrapsíquica, a ansiedade vital, a energia emocional etc, que atuam a cada momento da interpretação e na construção das cadeias de idéias.
Ora somos vítimas das duas primeiras variáveis, genética e socioeducacional, ora somos agentes modificadores da nossa história psicossocial. Às vezes, somos atores coadjuvantes das variáveis intrapsiquicas, tais como a energia emocional e o fenômeno da psicoadaptação, que atuam nos pro­cessos de construção dos pensamentos ou, às vezes, funcionamos como atores principais do processo de formação da personalidade, através do gerenciamento do eu. Às vezes, ainda, figuramos como meros espectado­res dos espetáculos intrapsíquicos produzidos pelos fenômenos que lêem a memória e que constroem as cadeias de pensamentos e as transformações da energia emocional.
Quem somos? É difícil de responder. Somos vítimas e, ao mesmo tem­po, agentes modificadores de nossa história psicossocial. Somos os tijolos e a argamassa provenientes da carga genética e do processo socioeducacional e, ao mesmo tempo, somos os construtores da arquitetura intelectual ou, então, meros assistentes dos fenômenos intrapsíquicos que se encontram num fluxo vital contínuo e inevitável. Quem somos? Somos vítimas, agen­tes modificadores, espectadores passivos, atores principais, atores coadju­vantes, diretores e autores do script de nossas histórias intrapsiquicas e psicossociais. Da qualidade do exercício dessas funções dependerá a quali­dade da personalidade que teremos, a qualidade de nossa sanidade psicossocial, a qualidade de nossas produções intelectuais, a qualidade de nossas relações sociais, do nosso humanismo e cidadania, a qualidade de nossas capacidades de trabalhar dores, perdas e frustrações existen­ciais e as possíveis doenças psíquicas, psicossomáticas e psicossociais que teremos.
As pessoas rígidas, agressivas e auto-suficientes são freqüentemente, ao contrário do que pensam, marionetes dos fenômenos que atuam incons­cientemente e espontaneamente nos bastidores da mente. As pessoas instá­veis e hipersensíveis são controladas pelas circunstancialidades psicossociais, vivem excessivamente preocupadas com o que os outros pensam e falam delas; por isso os estímulos estressantes, as perdas e as contrariedades cau­sam um "eco introspectivo" inadministrável. As pessoas hipercinéticas (hiperativas) ou com uma influência genética marcante para o humor (ex., depressão distímica, que se desenvolve no processo evolutivo da personali­dade) vivem debaixo do controle dos microcampos de energia físico-química que se transmutam ou se transformam no campo de energia psíquica e afetam quantitativamente e qualitativamente a leitura da história intra-psíquica. No caso das pessoas hiperativas, elas promovem uma hiperconstrutividade de pensamentos e uma hipertransformação da energia emocio­nal e motivacional, que as faz rejeitar a rotina com freqüência, procurar desafios continuamente e ter uma hiperatividade psicomotora. Esses três exemplos indicam que o eu tem apenas controle parcial do fluxo vital dos fenômenos inconscientes da mente, do meio ambiente e da carga genética.
Reitero: ninguém pode deter os processo que constroem o mundo das idéias e as vias fundamentais da inteligência. Reis e ditadores quiseram silenciar a mente humana provocando o terror, cerceando a liberdade e produzindo as mais diversas formas de opressão, de violação dos direitos humanos; mas eles caíram ou morreram, e a contínua produção de pensa­mentos ocorrida na mente daqueles que continuaram vivos modificou e reorganizou os sistemas políticos. Ninguém que queira colocar a mente humana num cárcere sobreviverá.
Há um clamor inconsciente e irrefreável de liberdade que emana do cerne da alma humana. O socialismo desmoronou-se, o capitalismo se reciclará, o nazismo foi esmagado, a globalização econômica sofrerá modi­ficações, os estereótipos sociais estão era transição etc. O homem é vítima e agente modificador da sua história. É impossível não ser vítima da história, tanto da história social quanto da história intrapsíquica, mas cumpre ao homem exercer com dignidade, dentro do espaço intelectual possível, a função de agente modificador da sua história, expandindo sua qualidade de vida psicossocial e cultivando os direitos humanos.
A evolução das funções mais nobres da mente e a evolução da história psicossocial do homem não é unidirecional e cumulativa, como os conheci­mentos nas ciências físicas e o desenvolvimento tecnológico. Infelizmente, apesar do impressionante salto da espécie humana, da memória genético-instintiva para a memória histórico-existencial, que propiciou as avenidas fundamentais para que ela desenvolva a espetacular construtividade de pensamento e a sofisticadíssima consciência existencial, é questionável se somos uma espécie viável, pois as violações dos direitos humanos não fo­ram casuísmos históricos, mas fizeram e ainda fazem parte da rotina das sociedades.

A HISTÓRIA COMO LEME INTELECTUAL. A MORTE DA HISTÓRIA E SEU RENASCIMENTO

Nas sociedades modernas, as pessoas estão ocupadas com a cotação do dólar, em comprar ou vender ações nas bolsas de valores, com o último lançamento da moda em Paris, com as novas surpresas da tecnologia de ponta, em expandir seus status sociais, mas poucas pessoas procuram se interiorizar e conquistar uma macrovisão da psique e uma macrovisão histórico-crítica da história da espécie a que pertencemos. Provavelmente, muitos professores universitários têm institucionalizado inconscientemente sua liberdade de pensar, sua consciência crítica, comprometendo sua macrovisão da história humana sob a luz dos holofotes dos processos de construção dos pensamentos.
Pelo fato de ter tido uma dedicação intensa, há muitos anos, em pesquisar os processos de construção dos pensamentos e escrever este livro, raramen­te aceitei convites para proferir palestras sobre a produção de conhecimen­to que desenvolvo. Porém, um dia, aceitando um convite de uma universi­dade, dei uma palestra para professores universitários de História e de Filo­sofia, e para alunos do último ano desses cursos. O tema que escolhi foi "a revolução das idéias e a interpretação do outro". Eu sabia que iria comen­tar assuntos diferentes daqueles que comumente ouviam, e que também iria fazer várias críticas a alguns paradigmas socioculturais e a algumas convenções do conhecimento, mas não sabia qual seria a recepção deles, mas fiquei impressionado com o nível de interesse e participação.
Os assuntos que eu abordava eram tão diferentes do que ouviam ou liam, que parecia que eu estava diante de uma platéia atônita. Eu percebia que eles compreenderam, ainda que minimamente, que nos bastidores de sua mente ocorria inevitavelmente uma riquíssima revolução das idéias. Sentia que havia despertado nos ouvintes, ao longo da exposição, um dese­jo de se interiorizar e de promover essa produção de idéias e redirecioná-la para a expansão da consciência crítica, do humanismo, da cidadania e dos mecanismos de superação das suas intempéries existenciais.
Além de fazer uma exposição sucinta dos fenômenos que atuam in­conscientemente e que geram a construção de pensamentos, comentei as possíveis distorções que ocorrem na interpretação do outro e na interpreta­ção da história. A respeito da interpretação da história, evidenciei que, sem considerarmos os processos de construção da inteligência e sem procurar­mos fazer uma exposição multifocal e teatralizada dos fatos, desesperos, angústias existenciais, destrutividades e circunstancialidades contidos nos momentos históricos, nós matamos a história, despersonalizamos a história, reduzimos as tensões e as idéias nela contidas.
Citei o exemplo de Sócrates condenado à cicuta,9 ou seja, à morte por envenenamento devido ao tumulto sociopolítico que suas idéias causaram na época. Disse que um professor poderia comentar esse momento históri­co de maneira "intelectualmente superficial", "historicamente despersonalizada", sem se transportar interpretativamente ao lugar de Sócrates, sem perceber a dramaticidade psicossocial daquele momento histórico e, con­seqüentemente, sem promover a arte de pensar dos alunos e, o que é pior, sem estimular a consciência crítica deles. Essa transmissibilidade superficial e despersonalizada da história reproduz "a-historicamente" o conhecimento histórico, retransmite apenas as letras "mortas" dos livros de história. A transmissibilidade unifocal e "a-histórica" não reconstrói, ainda que mini­mamente, a história real, não reaviva a história; por isso, ela gera uma platéia de espectadores passivos do conhecimento e não de pensadores que tenham consciência crítica sociopolítica.
A transmissibilidade despersonalizada do conhecimento histórico pro­voca a morte da interpretação da história e não estimula a formação de pensadores. Embora existam exceções, esta frase resume minha crítica: "A história, que está morta nos livros, é enterrada pelos professores universitá­rios e secundaristas e assistida por uma platéia de espectadores passivos no velório da sala de aula..."
Um povo sem consciência crítica da sua história vive um presente sem futuro, sem leme intelectual, sem proteção contra seus próprios erros e sem direção psicossocial.
O drama intelectual da transmissibilidade fúnebre do conhecimento, que informa mas não provoca a inteligência, que introduz as idéias mas não constrói a consciência crítica, não ocorre apenas no conhecimento his­tórico, mas em todas as áreas das ciências, principalmente no campo das ciências da cultura, ou seja, na Psicologia, na Sociologia, na Educação, na Filosofia.
As salas de aula se tornam, não poucas vezes, um cemitério de idéias. Nelas, as informações são transmitidas com técnicas e eficiência psicopedagógica, porém de maneira fria, não viva, incapaz de provocar o desen­volvimento da inteligência, estimular o debate das idéias, catalisar o desen­volvimento da consciência crítica. No que tange ao conhecimento históri­co, há uma grande diferença entre transmitir exteriorizadamente e "a-histórico-crítico-existencialmente" as informações históricas do que reconstruí-las interpretativamente e procurar vivenciá-las psicossocialmente. Fazer um transporte psicossocial da interpretação dos momentos históricos, até de nossas histórias intrapsíquicas, e analisá-los detalhadamente é fundamental para que a história se torne o leme intelectual do presente.
A transmissibilidade superficial da história, que apenas remete à lem­brança psicopedagógica da história, não tem condições de desenvolver a consciência crítica e sociopolítica dos alunos. Quando os professores abor­dam a discriminação racial nas salas de aula, tal como a discriminação dos negros, se eles não forem eficientes em levar os alunos a realizarem uma interpretação dos momentos históricos abordados, em orientá-los quanto a se colocar psicossocialmente no lugar dos negros, a perceber suas necessi­dades psicossociais, a compreender a dor da negação da espécie, eles, os professores, contribuirão indireta e inconscientemente com a perpetuação da discriminação racial. Os professores, ao transmitir informações como lembranças históricas e não como reconstruções histórico-existenciais, não provocam o debate de idéias, não catalisam a consciência crítica e sociopolítica dos alunos, não os formam como pensadores humanistas. A decorrência psicossocial dessa transmissibilidade do conhecimento históri­co é que o fenômeno da psicoadaptação, que é um fenômeno intrapsíquico inconsciente, leva os alunos a se adaptar psiquicamente à miséria da discri­minação, perpetuando algumas de suas raízes.
O homem tem uma capacidade de psicoadaptação incrível. Ele pode-se adaptar àquilo que mais rejeita. Pode-se adaptar às maiores misérias sociais, às maiores injustiças e até à sua própria doença. O fenômeno da psicoadaptação, se não trabalhado adequadamente, leva-nos a perder a sensibilidade e a capacidade de lutar e transformar nossa história e os fenô­menos do meio social. Essa é a face negativa desse fenômeno, e a face positiva é que ele impulsiona a inteligência, estimula o mundo das idéias.
O fenômeno da psicoadaptação pode impulsionar a criatividade huma­na. Ele gera o tédio, a rotina e a solidão, perceptíveis ou imperceptíveis. Estes fazem com que o homem crie novas idéias para superá-las.
Creio que muitos historiadores, pesquisadores e professores de história, que têm consciência crítica e sociopolítica da história, que a consideram um leme intelectual fundamental da evolutividade e da aplicabilidade da ciência e do desenvolvimento qualitativo das sociedades humanas, concor­dam que a maioria dos alunos, seja dos cursos das ciências da cultura, seja dos cursos das ciências físicas e biológicas, não se tornam intelectuais que apreciam e que sabem utilizar a história social, a história da ciência, a historiologia (filosofia da história) e até a história intrapsíquica (armazenada na memória) como leme intelectual. Não há como eximir o sistema acadê­mico de culpabilidade, pelo menos parcial, nesse processo socioeducacional superficializante.
Muitas misérias humanas foram perpetuadas pela ineficiência do siste­ma educacional em produzir pensadores psicossociais, homens que tenham consciência crítica, que tenham consciência sociopolítica. A maioria dos homens que foram líderes destrutivos de nossa espécie também sentaram-se nos bancos de alguma escola em alguma fase de sua vida. Se os alunos nunca fizeram uma interpretação multifocal das discriminações; se nunca vivenciaram, ainda que minimamente, o ódio, a dor, o desespero, a indig­nação, a humilhação e a angústia existencial de um ser humano submetido à escravidão, à discriminação e à opressão pelos membros da sua própria espécie, se nunca analisaram a dor psicossocial indescritível de ser conside­rado uma escória humana, nunca poderão contribuir com a expansão das idéias humanísticas, nunca funcionarão como agentes psicossociais capazes de "se vacinar", e aos seus íntimos, contra qualquer forma de discriminação.
A história precisa ser reconstruída, através de uma transmissibilidade teatralizada, viva, psicossocial. Caso contrário, ela será pobre e superficial, como ocorre com muitos jornais televisivos, em que o jornalista transmite a dor e a miséria do "outro" sem emoção e, em seguida, bruscamente, abre um sorriso largo ao dar uma notícia positiva. Assim, nos adaptamos psiqui­camente à miséria do "outro".
Todo professor de história deveria ser, ainda que minimamente, um ator e um diretor teatral; deveria ter uma "fala" teatralizada; deveria vivenciar a história que está morta nos livros e estimular seus alunos a vivenciá-la, analisá-la com consciência crítica; deveria levá-los a apreciar e debater o mundo das idéias.
As escolas, na minha opinião, por terem funcionado freqüentemente, ao longo dos séculos, como cemitério de idéias históricas, como transmissoras unifocais e exteriorizantes do conhecimento, tiveram participação passiva na perpetuação das misérias psicossociais e nas discriminações intelectuais, raciais, sexuais, por estética, por idade.
Nunca ouvi falar de uma universidade que alimentou uma indignação visceral contra o racismo, contra a desinteligência e a falta de humanismo da discriminação de seres humanos pela fina camada de cor da pele, pro­movendo a greve dos seus professores e alunos! As universidades tomaram para si mesmas uma grande responsabilidade por se posicionarem históri­ca e autoritariamente como centro da produção e validação do conheci­mento científico e como centro da produção de intelectuais. Porém, não tem cumprido com adequação essa responsabilidade, principalmente no campo sociopolítico, na formação de pensadores capazes de provocar a revolução do humanismo, da cidadania e da democracia das idéias. Elas formam homens que pensam, mas não os formam coletivamente.
A transmissão superficial do conhecimento, associada à redução do exercício intelectual da arte da formulação de perguntas, da arte da dúvida e da crítica, se tornaram grandes causas que promovem a falência do siste­ma acadêmico. Se 100% dos membros de uma sociedade tiverem formação universitária com alto nível de informação e títulos de pós-graduação, ain­da assim, não existem garantias de que a capacidade de interiorização, a qualidade de vida psicossocial, a cidadania e a preservação dos direitos humanos seriam coletivamente desenvolvidas. Os sistemas socioeducacionais das sociedades modernas tornaram-se protagonistas da propagação de uma doença psicossocial epidêmica que atinge a maioria dos estudantes, chama­da de "mal do logos estéril" (mal do conhecimento estéril).
O "mal do logos estéril" é uma doença psicossocial que possui uma rica sintomatologia, expressa, entre outros sintomas, pela incorporação do co­nhecimento, sem crítica, sem deleite, sem sabor, sem dúvida, sem utilidade humanística, sem desafio, sem aventura, o que aborta não apenas a cons­ciência crítica e sociopolítica, mas também o desenvolvimento do huma­nismo, da cidadania e o engajamento em projetos sociais.
Na palestra que citei, procurei reconstruir interpretativamente a história de Sócrates, conduzindo os ouvintes a se colocarem "interpretativamente" no lugar dele e a analisarem as possíveis angústias existenciais, ansiedades, reflexões, que ele poderia ter experimentado naquele dramático momen­to: momento de hesitação, de intensa dor emocional, de dúvida existencial; momento este em que teria que decidir por sobreviver e negar as suas idéias, inclusive sua crítica à mitologia grega, ou morrer, por ser fiel a elas. Que drama existencial! Eu sentia que, enquanto reconstruía interpre­tativamente a história de Sócrates, temperando-a com a consideração sobre a revolução da construção dos pensamentos ocorrida nos bastidores da sua mente, ainda que essa reconstrução fosse limitada e contivesse distorções inevitáveis, meus ouvintes não se posicionavam como espectadores passi­vos do conhecimento, mas foram incitados ao debate das idéias e a aprimo­rar sua consciência crítica. Foram transportados para aquele momento his­tórico e estimulados a analisar o drama psicossocial de Sócrates e sua opção pela fidelidade às suas idéias.
Após a palestra, não apenas vários alunos me procuraram, mas tam­bém alguns professores de Filosofia e História. Esses professores não se constrangeram em reconhecer que precisavam expandir sua visão sobre a psique, repensar criticamente o que pensavam sobre a exposição psicopedagógica da história e, além disso, expressaram a necessidade de aprender a fazer uma interpretação dela, objetivando o debate das idéias e o desenvol­vimento da consciência crítica dos alunos.
Ainda nesta palestra, também abordei que, de um modo geral, as so­ciedades modernas estão doentes psicossocialmente, porque têm vivido epidemicamente a síndrome da exteriorização existencial e o "mal do logos estéril", o que propicia grandes dificuldades para nos colocarmos no lugar do "outro" e reconstruir interpretativamente as suas dores e necessidades psicossociais, independentemente de sua condição sociofinanceira, racial, cultural. O homem moderno tem vivido na superfície da mente, delira em função do consumismo, experimenta um êxtase quando está diante de um jogo esportivo ou de um artista da sua preferência, mas pouco aprecia o mundo das idéias, pouco é estimulado a transitar pelas avenidas do seu próprio ser.
Embora o homem moderno esteja vivendo com "ufanismo" e perplexi­dade as maravilhas da ciência e da tecnicidade, principalmente no campo da computação, esse "ufanismo" e perplexidade esconde o superficialismo intelectual, pois desconsidera a insuperabilidade do espetáculo da construção dos pensamentos que ocorre, a cada momento existencial, nos bastido­res da mente de cada ser humano.
Dei-lhes o exemplo da construção da consciência existencial de uma mãe, financeiramente pobre, que sai pelas ruas pedindo ajuda para saciar a fome de seu filho. A construtividade de pensamentos dialéticos e antidialéticos gera uma consciência existencial extremamente complexa, que, no caso dessa mãe, a faz reconstruir interpretatívamente a angústia do filho e a necessidade da sua sobrevivência, compreendendo que elas são seletiva­mente mais importantes do que a sua própria dor emocional, a sua miséria social e a humilhação psicossocial gerada pelo status de mendiga. A construtividade da consciência existencial dessa mãe não é um milímetro menos sofisticada do que a de um membro da Corte da Inglaterra, do que a dos homens mais ricos listados pela Forbes, do que a dos cientistas mais brilhantes que conquistaram o Nobel. Porém, apesar da complexa construtividade de pensamentos e da sofisticada formação da consciência existencial ser comum a todo ser humano, os níveis de respeitabilidade e desigualdade entre os membros da nossa espécie são gritantes, desinteligentes e desprovidos de humanismo.
Também comentei que a consciência existencial é tão complexa e sofis­ticada, que jamais será vivenciada por um computador, ainda que a huma­nidade se embriague de séculos e construa, através da expansibilidade da ciência e da tecnologia, inúmeras gerações de computadores. O espetáculo da construção da consciência existencial não depende apenas da quantida­de de informações e dos níveis de organização das mesmas, mas de um conjunto de variáveis intrapsíquicas que co-interferem mutuamente para gerar uma construtividade de pensamentos livre e criativa. Tal constru­tividade, além de ultrapassar os limites da lógica, sofre um processo de leitu­ra virtual, capaz de libertar o homem da dramática e indescritível solidão da consciência existencial e levá-lo a conquistar a consciência existencial (dialética e antidialética) do mundo intrapsíquico e extrapsíquico.
Ao analisar os processos de construção dos pensamentos produzidos nos bastidores da mente, compreendemos que tanto a prática da discri­minação como a da supervalorização de uma minoria de seres humanos (intelectuais, artistas, líderes políticos, líderes místicos etc.) são desinte­ligentes.
Creio que, pela receptividade e pelo debate de idéias que surgiu "du­rante" e "após" a exposição do conhecimento nessa palestra, estimulei e catalisei, ainda que minimamente, a revolução das idéias que ocorre clan­destina e espontaneamente nos bastidores da psique dos alunos e professo­res universitários. Entre os objetivos fundamentais das ciências da cultura não está a transmissibilidade da verdade para os alunos, pois esta, como veremos, é inalcançável, nem o torná-los meros retransmissores do conheci­mento, mas levá-los a descobrir o mundo das idéias, estimulá-los ao debate delas, a questionar seus paradigmas socioculturais, a pensar antes de reagir, a desenvolver a arte da dúvida e da crítica, a desenvolver sua consciência crítica e sociopolítica e, conseqüentemente, a formá-los como pensadores humanistas, como agentes sociais.


Capítulo 13

O Processo de Interpretação e a Evolução Psicossocial


TODOS COMETEMOS TRAIÇÕES NO PROCESSO DE INTERPRETAÇÃO

Nestes textos estudaremos alguns fenômenos fundamentais que es­tão na base da formação da personalidade e da evolução social do homem. Algumas importantes perguntas serão respondidas. Como o homem desenvolve os alicerces básicos da sua personalidade? Qual é o real papel da educação nesse processo? Por que os manuais de educação pouco funcionam? Por que logo depois que uma teoria é produzida ela sofre uma curva ascendente de desenvolvimento, mas com o passar do tempo ela se estanca?
Compreenderemos que a inteligência prioriza a evolução da história intrapsíquica, da consciência existencial, da construção de pensamentos, da transformação da energia emocional, enfim, prioriza a revolução criati­va e evolutiva das idéias e, conseqüentemente, o processo de desenvolvi­mento da personalidade. Ficaremos surpresos ao descobrir que não evolu­ímos em todos os campos da cultura apenas porque quisemos consciente­mente evoluir, mas também porque temos fenômenos inconscientes que produzem essa evolução. A compreensão desses fenômenos revela-nos al­guns segredos fundamentais da requintada capacidade de pensar e do desen­volvimento social de nossa espécie.
Além dessas questões, também compreenderemos duas atitudes anti-humanistas que saturam as sociedades modernas: a discriminação e o culto ao personalismo, que faz com que uma grande maioria superadmire uma minoria de políticos, intelectuais, artistas, líderes místicos e gravite em tor­no dela.
A discriminação procura anular o "outro", impedindo de alguma forma que ele seja livre, enquanto o culto ao personalismo anula a si mesmo e contrai a própria liberdade crítica de pensar. A discriminação e o excesso de admiração são duas faces da mesma doença da interpretação. Até mes­mo nas ciências há essas duas atitudes anti-humanistas. Ambas abortam o mundo das idéias, maculam a inteligência. A ciência e as sociedades foram drasticamente prejudicadas por elas. Há diversas formas de discriminação e supervalorização intelectuais que circulam nas ciências.
Neste capítulo, farei uma exposição sobre o processo de interpretação gerando as mudanças contínuas nas idéias e pensamentos. O processo de interpretação é realizado pela atuação dos fenômenos que atuam desde a recepção de um estímulo físico (como, por exemplo, imagem, sons) e intra-orgânico (exemplo, droga ou medicamento psicotrópico) até a atuação do conjunto de fenômenos intrapsíquicos, nos bastidores da mente, que são responsáveis por gerar a construtividade de pensamentos, emoções e moti­vações.
Como me preocupo com a cidadania da ciência, ou seja, com a aplica­ção psicossocial da teoria que desenvolvo, farei a abordagem do processo de interpretação usando o exemplo da infidelidade da interpretação dos profissionais da Psicologia, da Sociologia, da Filosofia, da educação etc. com relação à teoria que abraçam e às distorções da interpretação ocorri­das na observação dos fenômenos.
O excesso de admiração dos discípulos de um pensador por sua teoria pode abortar a liberdade crítica e criativa dos pensamentos, gerando discí­pulos que são apenas retransmissores do conhecimento, mas não pensado­res capazes de expandir qualitativamente as idéias.
Utilizar uma teoria é importante; mas admirá-la excessivamente e gravitar em torno dela é uma doença anti-humanística e desinteligente da interpre­tação, pois aborta a capacidade crítica de pensar.
É criticável o sistema de discipulado que há nas ciências, cultivada pela admiração excessiva de um discípulo pela teoria ou pelo teórico que a produziu, ou até mesmo pela corrente eclética de pensamento que abraça. Dizer-se freudiano, junguiano, spinosista, hegeliano, marxista, piagetiano etc. é uma ofensa à inteligência, é uma ingenuidade empírica, pois, como veremos, todos os discípulos traem interpretativamente, nos bastidores de sua mente, a teoria que adotam. A defesa radical de uma teoria nos coloca num cárcere intelectual, num aprisco teórico.
Todos os discípulos são micro ou macroinfiéis aos seus mestres, pois fazem micro ou macrotraições da interpretação quando utilizam as teorias que eles produziram, devido ao sistema de co-interferência de variáveis presentes, a cada momento, nos processos da construção de pensamentos. Essa frase, que parece uma crítica, na realidade esconde alguns segredos da evolução psicossocial do homem.
Para ilustrar o processo de infidelidade da interpretação ocorrida nas ciências, tomarei o exemplo dos psicoterapeutas e suas relações com a teoria psicológica. Os psicanalistas que se dizem radicalmente freudianos, tanto os professores nas faculdades de Psicologia como os psicoterapeutas pertencentes aos institutos de Psicanálise, embora objetivem ser fiéis à Psi­canálise, sempre foram, ainda que inconscientemente, infiéis à teoria psicanalítica, sempre traíram Freud.
Não há discípulos fiéis nas ciências e na produção cultural. Essa afirma­ção pode inquietar muitos psicoterapeutas e muitos cientistas que utilizam uma teoria como suporte da interpretação, mas ela é uma realidade inevitá­vel, pois é fundamentada em princípios universais ligados ao processo de interpretação e, conseqüentemente, ao processo de construção dos pensa­mentos.
Todos os seres humanos são micro ou macrotraidores da interpretação, mesmo que apreciem a fidelidade teórica e se esmerem por alcançá-la. Porém, jamais deveríamos pensar que a traição da interpretação a que me refiro, que acontece nos bastidores inconscientes da inteligência, é um pro­cesso maléfico ou destrutivo; pelo contrário, ela expande as possibilidades de construção da teoria, promove a revolução das idéias, contribuindo sig­nificativamente para a evolução do conhecimento.
Quando contemplamos um mesmo quadro de pintura em dois momen­tos distintos ou quando sofremos uma mesma ofensa também em dois mo­mentos, era de se esperar que o processo de interpretação gerasse a mesma qualidade e quantidade de cadeias de pensamentos e de transformações da energia emocional nos dois momentos, já que os estímulos interpretados foram os mesmos. Porém, o processo de organização, caos e reorganização da energia psíquica não sofre ação apenas do estímulo observado, mas da história intrapsíquica (arquivada na memória), da qualidade da energia emocional e motivacional, do gerenciamento do eu, do fenômeno da autochecagem da memória, do fenômeno da psicoadaptação etc, que são variáveis intrapsíquicas que flutuam e evoluem a cada momento existenci­al. Como o campo de energia psíquica está num fluxo vital contínuo de autotransformações essenciais, essas variáveis também estão em contínuo processo de transformação. Disso podemos concluir que um mesmo obser­vador pode, em dois momentos diferentes, produzir cadeias de pensamen­tos e experiências emocionais distintas diante da contemplação de um mes­mo estímulo.
O processo de interpretação conduz o homem, ainda que ele não tenha consciência disso, a realizar micro ou macrotraições da interpretação. Por isso, num momento, podemos ficar inspirados ao contemplar o belo conti­do num quadro de pintura; noutro momento podemos ficar inertes diante dele. Num momento, podemos ficar profundamente angustiados com de­terminada ofensa; noutro, podemos ficar insensíveis ou pouco angustiados diante da mesma ofensa, produzida pelo mesmo ofensor num mesmo am­biente. A construtividade de pensamentos ultrapassa os limites da lógica.
O processo de traição da interpretação, caracterizado pelas modifica­ções das variáveis intrapsíquicas e, conseqüentemente, da produção de conhecimento (pensamento consciente) diante da contemplação dos estí­mulos extrapsíquicos (comportamento das pessoas, imagens, sons etc.) e intrapsíquicos (fantasias, idéias antecipatórias, angústias, reações fóbicas etc.) contribui significativamente, como veremos, não só para a evolução espon­tânea de uma teoria, mas também para a evolução do homem em todos os seus amplos aspectos psicossociais, tais como a evolução das correntes lite­rárias, da pintura, da arquitetura, dos paradigmas socioculturais, do pensa­mento filosófico. As traições da interpretação, ocorridas espontaneamente nos bastidores da mente de cada ser humano, contribuem também para a evolução do processo de formação de sua personalidade e de sua história.
As traições da interpretação ocorrem desde a aurora da vida fetal, pois nessa fase já se inicia, como comentarei, a produção das matrizes dos pen­samentos essenciais (inconscientes) a partir da leitura multifocal da memó­ria pelo fenômeno da autochecagem da memória e pelo fenômeno do autofluxo. A construção de cadeias de pensamentos sofre a influência de múltiplas variáveis, gerando inúmeras distorções inconscientes. Do ponto de vista teórico, isso deve ocorrer até quando a mente dos fetos interpreta os mesmos estímulos intra-uterinos. Provavelmente, em muitas situações os fetos não produzem as mesmas matrizes de pensamentos inconscientes e as mesmas reações emocionais diante dos mesmos estímulos. Tais distorções da interpretação enriquecem as experiências psíquicas e a formação da his­tória intrapsíquica fetal.
Sem a existência das micro ou macrotraições da interpretação, que muitas vezes são produzidas de modo clandestino na mente, a revolução da construção de novas idéias seria abortada e, assim, a história humana seria paralisante, uma mesmice.
Há, na Sociologia e na Psicologia, um grande conhecimento das evolu­ções psicossociais determinadas e promovidas pelo "eu", ou seja, do "eu" como agente histórico das evoluções, produzindo arte, construindo rela­ções sociais, produzindo conhecimento científico, transmitindo conhecimento etc. Contudo, provavelmente essas ciências ainda não incorporaram o co­nhecimento das sofisticadas evoluções psicossociais espontâneas e incons­cientes ocorridas na clandestinidade da mente humana, geradas pelos com­plexos sistemas de co-interferências das variáveis da interpretação, capazes de levar o homem a fazer micro ou macrointerpretações diante da exposi­ção dos mesmos estímulos ou de estímulos semelhantes e, conseqüente­mente, levá-lo a realizar micro ou macroproduções distintas do conheci­mento diante da contemplação de um mesmo estímulo em dois momentos diferentes.
Essa exposição é tão séria, que implica dizer que os juízes, os jurados, os promotores, os políticos, os psicoterapeutas, os médicos etc. possuem, a cada momento existencial, micro ou macrodistorções em seus processos de interpretação diante dos mesmos estímulos, gerando micro ou macrodis­tinções nas suas idéias e decisões. A produção de pensamentos não é line­armente lógica, principalmente quando ela se refere às questões existen­ciais que envolvem interpretações mais complexas. A isenção completa de ânimo, de distorções da interpretação, da participação de nossa própria história era nossas observações e julgamentos é impossível. Porém, é possí­vel aprender a nos esvaziar dos tendencialismos, principalmente se vivenciarmos, no processo de interpretação, a arte da dúvida, a arte da crítica e a busca do caos intelectual, que são importantíssimos procedimen­tos de pesquisa e análise.
Devemos olhar a ciência e as relações sociais da perspectiva da demo­cracia das idéias. No campo da democracia das idéias, o que se exige não é a busca radical da fidelidade da interpretação, a eliminação radical das distorções da interpretação, mas o desenvolvimento de uma consciência crítica dessas distorções e uma busca de fidelidade a essa consciência.

AS DISTORÇÕES NA INTERPRETAÇÃO E SUA RELAÇÃO COM A EVOLUÇÃO DA PERSONALIDADE

As infidelidades da interpretação são multifocais, ocorrem em todas as esferas do processo de interpretação. Elas ocorrem na ciência, quando um cientista contempla um estímulo em dois momentos distintos. Elas ocor­rem no processo de utilização de uma teoria. Também ocorrem com rela­ção à própria história intrapsíquica, ou seja: quando recordamos o passa­do, nunca o fazemos de maneira original, mas reconstruímos interpretativamente o passado. Nessa reconstrução cometemos invariavelmente micro ou macrotraições com relação às suas dimensões. Por isso, as recor­dações de nossas dores e angústias existenciais são reduzidas em relação às experiências originais.
O homem, desde sua vida fetal, embora utilize contínua e intensamente sua história intrapsíquica arquivada em sua memória, nos processos de construção dos pensamentos "trai" inconscientemente essa história quando contempla estímulos semelhantes, pois no processo de leitura e utilização da mesma ocorre, como disse, diversos sistemas de co-interferências de variáveis da interpretação que provocam diferenças na interpretação e, conseqüentemente, nos limites e no alcance das idéias, das análises, da síntese, da lógica dos pensamentos e das reações emocionais produzidas.
A conclusão psicossocial e filosófica dessa importante abordagem teóri­ca é que somos intelectualmente diferentes a cada momento. Reagimos, pensamos, nos emocionamos, analisamos, sintetizamos etc. de maneira di­ferente a cada momento. Somos emocional e intelectualmente macro ou microdiferentes a cada momento de nossas vidas; por isso, produzimos diariamente milhares de pensamentos e emoções diferentes.
Pergunto: os milhares de pensamentos e emoções que vivenciamos diaria­mente foram todos determinados e produzidos logicamente pelo eu? Fiz essa pergunta, como disse, a inúmeras pessoas, e todas elas responderam o que eu já havia constatado na pesquisa, ou seja, que só uma pequena parte desses pensamentos e emoções foi determinada e produzida logicamente pelo eu. Muitos cientistas não têm noção das conseqüências psicológicas e sociológicas desse fato, da seriedade científica do que é responder que tais experiências foram produzidas fora do controle do eu. Esse fato importan­tíssimo provavelmente nunca foi investigado pelas teorias psicológicas e sociológicas. Ele está na raiz da Sociologia, pois envolve a construção e evolução das relações humanas, e na raiz da Psicologia, pois envolve o processo de formação da personalidade.
Algumas variáveis da interpretação, como estudamos, tais como o fenô­meno da psicoadaptação, a história intrapsíquica, a energia emocional, o fenômeno da credibilidade autógena, a âncora da memória etc, não têm uma linearidade psicodinâmica estável, lógica, mas flutuante e evolutiva; por isso, são capazes de provocar distorções da interpretação e, conseqüen­temente, a produção de cadeias de pensamentos distintas, mesmo quando contemplamos estímulos idênticos.

AS DISTORÇÕES DA INTERPRETAÇÃO PRODUZINDO A EVOLUÇÃO SOCIAL

Todo ser humano, da meninice à velhice, ao interpretar estímulos se­melhantes (elogios, ofensas, reações discriminatórias, estressantes estímulos psicossociais etc), produz experiências psíquicas distintas. Até mesmo o feto, ao interpretar estímulos semelhantes (temperatura e viscosidade do líquido amniótico, contração da parede intra-uterina, substâncias neuroendócrinas maternas que passam pela barreira placentária etc), também pro­duz experiências micro ou macrodistintas, devido à flutuabilidade e evolutividade das variáveis que participam do processo de interpretação desses estímulos. Tal abordagem, como disse, abre os horizontes para compreen­dermos o nascedouro e o desenvolvimento da evolução psicossocial do homem.
Se ocorre a produção de experiências distintas diante da interpretação de estímulos semelhantes, podemos prever que elas ocorrem quantitativa e qualitativamente em muito maior dimensão diante da interpretação de estí­mulos distintos. A produção de experiências micro ou macrodistíntas, ocor­rida no palco da mente humana, é registrada automaticamente pelo fenô­meno RAM (registro automático da memória). Todos os pensamentos, an­gústias, prazeres, reações fóbicas são registrados na memória, não por opção intelectual, mas involuntariamente, o que faz com que a memória seja rees-crita continuamente, transformando, assim, os pilares da personalidade. No computador, as informações são registradas através de um comando; no homem, são registradas involuntariamente. No Homo sapiens, conquistar uma história intrapsíquica é uma inevitabilidade.
O registro inevitável e contínuo das experiências intelecto-emocionais contribui para a evolutividade inconsciente da história intrapsíquica que é uma variável da interpretação fundamental que promove, impulsiona, o processo de construtividade de pensamentos e o processo de formação da personalidade.
A formação e desenvolvimento da história intrapsíquica na memória não depende apenas da intervenção do processo educacional sociofamiliar, que ministra conhecimento, regras comportamentais, paradigmas culturais, mas principalmente pela atuação de um conjunto de variáveis, na qual se incluem diversos fenômenos inconscientes, que se operacionalizam espon­taneamente e silenciosamente nos bastidores da mente. É intelectualmente superficial achar que uma pessoa se tornou culta porque freqüentou anos de escola, se tornou um cientista porque freqüentou uma grande universi­dade e se doutorou nela.
A escolaridade e mesmo a leitura dos livros só podem contribuir com a expansão da cultura e a produção das idéias de alguém porque ocorrem na mente inúmeras, silenciosas e complexas etapas da interpretação não admi­nistradas pelo processo educacional, e que são responsáveis pelo indescritível processo de registro, de leitura da memória, de construtividade dos pensa­mentos e de formação da consciência existencial.
O sistema de variáveis que atuam nos bastidores da mente, associado ao irresistível caos intrapsíquico que desorganiza as estruturas psicodinâmicas (idéias, pensamentos, emoções, motivações etc), abrem continuamente as possibilidades de construção da inteligência, gerando assim, silenciosamen­te, em cada ser humano uma produção contínua de novas idéias, que são registradas, lidas e utilizadas na construção de novas cadeias de pensamen­tos, promovendo a evolução da história intrapsíquica e da personalidade e, num sentido mais amplo, a evolução da história psicossocial do homem.
Reitero: devido ao sistema de co-interferência das variáveis da interpre­tação que atuam nos bastidores da mente, não somos fiéis no processo de observação, interpretação e produção de conhecimento, ou seja, não re­produzimos as mesmas experiências psíquicas diante da contemplação dos mesmos estímulos ou de estímulos semelhantes. Por incrível que pareça, nem quando resgatamos as experiências psíquicas passadas ocorre uma recordação pura, original, das mesmas, mas uma interpretação que sofre diversos encadeamentos distorcidos.
Como vimos, ao contrário do que pensamos, não existem recordações do passado, mas reconstruções do passado, fundamentadas na interpreta­ção das complexas experiências psíquicas que foram registradas na história intrapsíquica arquivada na memória. Todas as finíssimas "arquiteturas psicodinâmicas" contidas nas experiências psíquicas, tais como as idéias, os pensamentos antecipatórios, as inspirações, as ansiedades, os desesperos, as reações fóbicas, os prazeres etc, antes de serem desorganizadas pelo caos intrapsíquico, são registradas no arquivo existencial da memória, que chamo de história intrapsíquica, pelo fenômeno do registro automático da memória.
Se não houvesse a atuação psicodinâmica do fenômeno RAM, fração de segundo antes da desorganização das experiências psíquicas pelo caos intrapsíquico, e se não houvesse o tecido do córtex cerebral intacto, sem degenerações, isquemias, traumas ou tumores, para receber a ação deste fenômeno intrapsíquico, nenhum ser humano teria uma história intrapsíquica e, conseqüentemente, nenhum ser humano desenvolveria a construtividade de pensamentos e a consciência existencial.

A HISTÓRIA INTRAPSÍQUICA (PASSADO) É ESSENCIALMENTE IRRETORNÁVEL

Um dia, ministrando um curso sobre a construtividade de pensamentos para uma equipe multidisciplinar de profissionais que cuidam de pacientes autistas, perguntei a eles se, quando recordam seu passado, resgatam a originalidade das suas experiências psíquicas. Eles me disseram que sim. Eu disse-lhes que isso era impossível, que a energia psíquica das idéias e das emoções do passado é essencialmente irretornável, pois ela não está no passado, mas evoluiu no presente.
A energia psíquica, ao contrário do que muitos psicólogos pensam, não se depositou nem se arquivou na memória como energia psíquica, mas como um sistema de códigos físico-quimicos que representam essas experiências, as RPSs (representações psicossemânticas). Eu disse, para surpresa deles, que a energia psíquica vive num fluxo vital de transforma­ções que evolui constantemente, por isso as idéias, as análises, os pensa­mentos antecipatórios, os pensamentos sobre o passado, as emoções etc, são continuamente produzidos. Quando essas experiências são registradas, elas perdem sua essencialidade original, tornando-se um sistema de códi­gos físico-quimicos "pobres" em relação à originalidade das experiências psíquicas.
A história é registrada quando a experiência psíquica se descaracteriza ou se desorganiza essencialmente e evolui na construtividade de outras experiências. O processo de resgate da história intrapsiquica não é uma simples lembrança, mas um processo de interpretação complexo e cheio de segredos, capaz de produzir cadeias de pensamentos e experiências emocionais a partir dos sistemas de códigos físico-quimicos "frios" e "restri­tos" contidos na memória.
A leitura da história intrapsiquica, associada à participação de um con­junto de variáveis da interpretação, faz com que o resgate das experiências passadas não obedeça a uma linearidade lógica e, por isso, não resgata as mesmas dimensões das idéias, dos prazeres, das frustrações, das angústias etc, contidas nas experiências originais.
Depois de minha exposição para a equipe multidisciplinar que cuidava de pacientes autistas, obviamente mais detalhada do que esta síntese, um participante do curso disse-me que havia entendido o que eu dissera, pois vivenciou esse processo através de uma experiência traumática no passa­do, porém sem entendê-lo na época. Ele comentou que há anos havia atro­pelado uma pessoa que veio a falecer. Embora não tivesse culpa no aciden­te, disse que havia sofrido intensamente com o fato. Toda vez que o recor­dava, se angustiava muito. Porém, com o passar do tempo, o processo de recordação não trazia os mesmos níveis de angústia como nas primeiras vezes, e ele não entendia a causa disso. Através da abordagem sobre os processos de construção dos pensamentos, ele compreendeu que o proces­so de registro descaracteriza a realidade essencial da experiência original, e o processo de resgate, devido à ação de um conjunto de variáveis, não reconstrói interpretativamente a mesma intensidade das angústias e das cadei­as de pensamento produzidas na experiência original. O distanciamento do processo de interpretação do passado e as próprias experiências originais do passado ficam mais claros à medida que o tempo passa.
Nenhum ganhador do Oscar, do prêmio Nobel, de disputas esportivas, de pleitos eleitorais etc, consegue manter os mesmos níveis de prazer e auto-estima contidos nas experiências originais produzidas na época da premiação. Com o passar do tempo, o prazer se reduz e, às vezes, até se estanca diante dessas "recordações".
Quando reconstruímos interpretativamente o passado, fazemos micro ou macrotraições em relação à originalidade essencial das experiências do passado. As teorias psicológicas e educacionais precisam incorporar o co­nhecimento relativo ao processo de interpretação da história. Os psicanalis­tas e outros psicoterapeutas que procuram resgatar e analisar a história inconsciente dos seus pacientes têm de estar cientes de que a história é irrevogável, que aquilo que o paciente traz na técnica de associação livre não é a sua história pura, original, mas a história reconstruída interpre­tativamente e, portanto, passível de inúmeras distorções da interpretação. Na realidade, no processo psicoterapêutico, como em todas as esferas das relações humanas, ocorre uma cadeia de distorções da interpretação. O paciente distorce a sua história e o psicoterapeuta distorce a história do paciente já distorcida. Por isso, o que está em jogo no processo psico­terapêutico não é a verdade em si, não é trabalhar a verdade em si, mas a "reconstrução da verdade" e o "trabalhar dessa reconstrução da verdade" e, principalmente, a expansão da consciência crítica e da capacidade de o próprio paciente trabalhar as suas dores, perdas, frustrações e conflitos interpessoais.
A história intrapsíquica é fundamental para a construção de pensamen­tos e para a produção da consciência existencial, mas a história em si mes­ma é irretornável essencialmente. Por isso, todos temos a grande responsa­bilidade de reconstruí-la interpretativamente com adequação para evitar determinados níveis de contaminações da interpretação em nossos julga­mentos, na compreensão de mundo, nas reações intrapsíquicas. A interpre­tação adequada também é importante para fornecer subsídios para traba­lharmos e reciclarmos criticamente os registros inconscientes das experiên­cias passadas e, assim, aliviarmos nossas tensões, fobias, ansiedades e sinto­mas psicossomáticos do presente.

AS TRAIÇÕES DA INTERPRETAÇÃO OCORRIDAS NA UTILIZAÇÃO DAS TEORIAS

Nenhum psicoterapeuta, sociólogo, filósofo, jurista, cientista etc, no processo de interpretação de uma teoria, resgata as dimensões das idéias de um teórico. No processo de interpretação da teoria já ocorrem traições da interpretação, que continuam à medida que se exercem. Dois profissio­nais, usando a mesma teoria para interpretar um mesmo fenômeno, produ­zem conhecimentos micro ou macrodistintos sobre ele. Até um mesmo profissional utilizando a mesma teoria em dois momentos distintos, para interpretar um mesmo estímulo, pode produzir conhecimento micro ou macrodistinto sobre ele.
Quando a teoria é interpretada, ela deixa de ser a teoria do teórico para ser a teoria do interpretador. Quando a "teoria interpretada" é arquivada na memória, as idéias que ela contém perdem suas dimensões essenciais intelecto-emocionais, o que favorece a continuação de traições da interpre­tação. Quando o interpretador (ex., discípulo de uma teoria) resgata as idéias da "teoria interpretada" na sua memória, ele, agora, trai a si mesmo pois, como disse, esse resgate não é uma recordação original, mas uma interpretação, passível de inúmeras distorções. Assim, o discípulo de uma teoria não apenas trai interpretativamente a teoria que abraça, mas tam­bém trai, ainda que minimamente, a si mesmo, ou seja, trai as dimensões das próprias idéias que produziu nas primeiras interpretações que fez da teoria. Por isso, ainda que se deva procurar fidelidade no processo de utili­zação de uma teoria como suporte da interpretação, é inevitável que haja microtraições da interpretação. Isso ocorre porque a mente ativa a evolu­ção da história intrapsíquica, ainda que seja às custas de microtraições da interpretação inconscientes e não pela determinação do "eu". Este tema envolve alguns princípios fundamentais do processo de formação da perso­nalidade e da construção das relações humanas e da história social.
Por que temos que reconstruir interpretativamente o passado e não resgatar a sua essencialidade original? Um dos motivos é que a mente, através da operacionalidade dos fenômenos intrapsíquicos, dá prioridade à evolução da história intrapsíquica e psicossocial e não à paralisia dessas histórias.
Se uma mãe, ao perder um filho, recordasse ao longo do tempo os mesmos níveis de sofrimento decorrente das experiências originais, ela paralisaria a evolução da sua história intrapsíquica. Nesse caso, sua história se tornaria um luto crônico, uma extensão dramática e contínua do velório do filho. Felizmente isso não ocorre. Já estudamos a atuação inconsciente do fenômeno da psicoadaptação em textos posteriores, vimos que ele produz uma redução nos níveis de dor, bem como de prazer, no processo de resgate contínuo das experiências passadas. O fenômeno da psicoadaptação é um dos fenômenos que evoluem ao longo do processo existencial, o que contribui, conseqüentemente, para a produção de diferenças de interpreta­ção, tanto diante do resgate das experiências passadas como diante dos estímulos (fenômenos) do presente.
Provavelmente, a maioria dos teóricos das diversas áreas das ciências, bem como seus discípulos, não compreenderam a mente por esse prisma; não compreenderam que ocorrem inevitavelmente microtraições da inter­pretação porque ela dá prioridade à evolução da história intrapsíquica e psicossocial, na qual se inclui a evolução do conhecimento teórico.
No campo das psicoterapias, não poucos psicoterapeutas se perdem na compreensão dos labirintos da mente; eles pensam, como disse, que estão interpretando a realidade essencial dos conflitos dos seus pacientes, quan­do na realidade estão interpretando a reinterpretação da história dos seus pacientes. Muitos podem argumentar que, quando se lembram do passa­do, sentem e pensam a mesma coisa que sentiram e pensaram no passado, mas isto não é verdade; é fruto de uma análise superficial dos limites e do alcance das emoções e dos pensamentos nos dois momentos históricos: o passado e o presente. Pode haver aproximação no processo de construção das experiências passadas, mas haverá inevitavelmente, como disse, microdistinções.
Somos micro ou macroinfiéis em relação ã história intrapsíquica, aos estímulos contemplados, aos conhecimentos coloquiais e científicos e às teorias. Tal infidelidade da interpretação, embora contribua muito para a construção e evolução das idéias, da arte e da personalidade, nem sempre é qualitativamente construtiva e evolutiva.
Nas ciências, o processo de utilização das teorias, das idéias e das teses de outros cientistas produzem também diversas infldelidades e traições da interpretação. É possível que muitas dessas infidelidades da interpretação não remetam a uma evolução qualitativa da teoria, principalmente se no processo de utilização de uma teoria não houver honestidade científica e o mínimo de consciência crítica capazes de auxiliar o processo de revisão do conhecimento produzido e da teoria utilizada.
Estes assuntos revelam alguns dos mais profundos segredos da evolu­ção psicossocial do homem, contidos no inconsciente. O homem evolui psicossocialmente tanto pela administração consciente da sua construtividade de pensamentos quanto pelo sistema de co-interferências das variáveis que geram micro ou macrodistinções inconscientes da interpretação.
Há um Homo interpres, no cerne da psique humana, micro ou macro-distinto a cada momento da interpretação. Não somos os mesmos a cada momento existencial. Nosso processo de interpretação está em contínuo processo de mudança, porque algumas variáveis que o constituem evoluem e flutuam continuamente. Uma parte significativa das transformações das idéias filosóficas, do pensamento sociopolítico, das correntes literárias, da estética das artes, dos paradigmas socioculturais, das posturas intelectuais, é produzida por essa revolução clandestina que ocorre silenciosamente no processo de interpretação. Se o leitor ler dez vezes os textos deste livro, terá provavelmente dez produções de cadeias de pensamentos micro ou macrodistintas, expressando diversas impressões, reações emocionais, en­tendimento. Por isso, quanto mais estudamos, mais expandimos o mundo das idéias.

TODOS OS DISCÍPULOS SÃO INFIÉIS

Os discípulos de uma teoria não reproduzem, como disse, a originalida­de, a pureza das idéias, os limites e o alcance do conhecimento, as emoções e motivações que foram vivenciadas pelo autor e registradas em livros. Até os discípulos das ciências físicas traem a completeza original das idéias con­tidas nas teorias que utilizam.
O discurso teórico de um discípulo pode parecer igual ao do teórico; mas, se forem analisados os labirintos intelectuais que estão na base dos discursos, é possível encontrar as distinções e, às vezes, até macrodistinções disfarçadas dialeticamente, e que estão subjacentes ao sistemas de códigos que confeccionam as frases, as idéias, os pensamentos. Quando dez pes­soas julgam uma obra de arte, a contemplação do belo não será igual para todos os observadores, mas, provavelmente, haverá inúmeras dimensões qualitativas e quantitativas subjacentes à idéia do belo.
Quando um discípulo de uma teoria a estuda nos livros ou ouve a exposição dela diretamente do seu autor, ele não incorpora a realidade essencial da teoria, pois a teoria escrita ou falada é um sistema de código visual e sonoro. Em contato com esse sistema de código, o discípulo tem de interpretá-la. Interpretando-a, a compreensão dela não tem as mesmas di­mensões qualitativas e quantitativas das idéias do autor, ainda que a dife­rença de pensamento esteja disfarçada dialeticamente. Os discípulos de uma teoria traem-na interpretativamente. Essa traição da interpretação in­consciente, associada a um questionamento consciente, poderá levar um discípulo a deixar de ser um mero espectador passivo da teoria, para ser alguém que contribui com o desenvolvimento das suas idéias.
Diante dessa exposição, pergunto: Quem são os piores inimigos de uma teoria? Os piores inimigos de uma teoria são aqueles que a superdimensionam, que gravitam em torno dela e a defendem radicalmente, pois são incapazes de contribuir para criticá-la, reciclá-la e expandi-la. Se os discípu­los de uma teoria não são capazes de realizar críticas conscientes à teoria que abraçam, com medo de serem infiéis a ela ou com medo de serem banidos da sociedade científica ou psicoterapêutica a que pertencem, eles a trairão inconscientemente, através da co-interferência das variáveis que atuam clandestinamente nos seus processos de construção do pensamento. Os piores inimigos de uma teoria são aqueles que desconhecem os limites e o alcance de uma teoria, as sofisticadas relações entre a verdade essencial e a verdade científica e, principalmente, aqueles discípulos que defendem radicalmente a teoria que abraçam, que juram fidelidade ingênua a ela e não compreendem que a traem nos bastidores de sua mente. Os discípulos radicais de uma teoria, os "ianos" ou os "istas", confinam-se em um aprisco teórico, submetem-se a um cárcere intelectual, que compromete a liberda­de de pensar e a consciência crítica. Nesse cárcere intelectual, ainda que inconscientemente, eles prejudicam a sua atuação socioprofissional, estan­cam a evolução da teoria e contraem o mundo das idéias.
É provável que grande parte das sociedades científicas e psicoterapêuticas não compreendam adequadamente as etapas do processo de interpretação e o processo de traição da interpretação que ocorre nos bastidores da men­te dos seus membros. É provável que muitos professores de graduação universitária e de pós-graduação cometam o autoritarismo das idéias na transmissibilidade do conhecimento e na orientação dos alunos, por não compreender adequadamente os labirintos do processo de interpretação, os limites de uma teoria, e que os processos de construção dos pensamen­tos ultrapassam os limites da lógica. Vários alunos de Psicologia já me dis­seram que alguns dos seus professores afirmaram, em sala de aula, que são freudianos radicais e que não aceitam qualquer outra teoria sobre a perso­nalidade. Esses tais, além de serem ingênuos intelectualmente, são traido­res da teoria a que julgam ser fiéis e, o que é pior, exercem uma ditadura do pensamento, engessando, assim, a inteligência dos alunos.
Não existem discípulos fiéis e não existem teorias essencialmente ver­dadeiras e completas, pois além de não haver verdade essencial no pensa­mento dialético e no antidialético, a ciência é inesgotável. O pensamento dialético é um sistema de intenções conscientes e virtuais que acusa (defi­ne) e discursa sobre a verdade essencial sem nunca incorporá-la essencial­mente.
O excesso de admiração e "endeusamento" de uma teoria ou de um teórico por parte dos discípulos radicais não apenas inibe sua evolutividade, mas também cultiva a produção de opositores igualmente radicais, que a criticam pelo próprio radicalismo dos discípulos e não através de uma aná­lise mais adequada e isenta de paixões.
Os freudianos, junguianos, hegelianos, marxistas, piagetianos etc, en­fim, os que aderem radicalmente a uma teoria, que são incapazes de criticá-la, de reciclá-la e de expandi-la são, ao contrário do que pensam, seus piores inimigos, são os que mais destroem sua credibilidade ao longo da história. As grandes teorias sociais, políticas, econômicas, culturais, acabam sendo destruídas, não pelos seus opositores, mas pelos seus defensores radi­cais, que são incapazes de reciclá-la e adequá-la historicamente.
Esses acidentes intelectuais não estão presentes apenas nas ciências da cultura, mas também nas ciências físicas e correlatas, bem como em todas as esferas das relações sociais.
Só o fato de alguém dizer-se freudiano, junguiano, spinosista, ou qual­quer expressão que indique ser ele um discípulo contumaz de um teórico ou de uma teoria de qualquer natureza é uma expressão da ingenuidade intelectual. A adesão não-crítica a uma teoria bloqueia a catalisação das idéias e a utilização humanística da própria teoria.
Todos os freudianos são traidores da interpretação da teoria psicanalítica de Sigmund Freud. O excesso de admiração e a defesa radical de uma teoria são um dos motivos que também abortam a produção de novas safras de pensadores, pois reduzem a capacidade crítica de pensar e bloqueiam a expansibilidade análise do defensor radical.
Os discípulos que gravitam em torno de uma teoria e são incapazes de criticá-la se tornam retransmissores do conhecimento e não pensadores que promovem novas idéias. Esse é um dos mais importantes motivos que sufo­caram e sufocam a formação de pensadores.
Expressarei sinteticamente os mecanismos psicossociais que extermi­nam com a safra de pensadores na Psicologia, na Sociologia, na Filosofia, na Educação e em todas as demais áreas da cultura. Um pensador começa a observar, a interpretar e a produzir conhecimento sobre os fenômenos. Sua produção de conhecimento conflita com as idéias vigentes. Como ele tem de optar em ser fiel às suas idéias ou submeter-se ao conhecimento vigente, ele opta por se rebelar contra este. Por fim, sua produção de co­nhecimento se expande e se torna uma teoria ou uma corrente de pensa­mento. Suas idéias cativam seus primeiros discípulos, que se tornam, não meros discípulos, mas colaboradores, que debaixo do calor da rebeldia do pensador, das perspectivas da sua teoria e das possíveis discriminações sofridas por ele se tornam também produtores de conhecimento capazes de utilizar, reciclar e expandir a teoria que abraçam.
A teoria, em seus estágios iniciais, que ainda não se tornou uma institui­ção intocável, gera nos discípulos divergências na interpretação e, conseqüentemente, divergências na produção de conhecimento. O teórico não consegue controlar essas divergências; por isso elas parecem ruins, pois comprometem a unidade da teoria, mas, na realidade, expandem o mundo das idéias. Foi através desses mecanismos psicossociais que, provavelmen­te, Sócrates, Platão, Hegel, Freud, Piaget etc. agregaram inicialmente não apenas discípulos, mas pensadores. Porém, nas gerações posteriores, ocor­re a produção dos discípulos radicais, aqueles que institucionalizam o co­nhecimento, que supervalorizam a teoria ou a corrente de pensamento e que são incapazes de criticá-la e reciclá-la. Assim, morre a safra de pensa­dores e somente algures ou alhures ocorre a produção de alguns deles.
Usar as teorias para se produzir as teses científicas é legítimo e pode ser importantíssimo para expandir a produção do conhecimento cultural e ci­entífico, mas querer submeter exclusivamente os comportamentos e os fe­nômenos físicos que observarmos dentro dos seus limites, retrai a evolução das idéias.
Tanto os teóricos como os discípulos de uma teoria têm que aprender a conhecer alguns pilares do processo de construção do pensamento e de interpretação. A ciência é inesgotável e todas as teorias são redutoras da inesgotabilidade do conhecimento; por isso, todas elas precisam ser conti­nuamente revisadas.
Os desastres do socialismo, do capitalismo, da globalização das infor­mações, da globalização da economia estão na incapacidade intelectual dos seus defensores de reciclá-los e expandi-los continuamente respeitando as avenidas da democracia das idéias.
Qualquer pensador-teórico faz freqüentemente microtraições incons­cientes ao interpretar sua própria teoria, pois discutir, ler e refletir sobre as próprias idéias não quer dizer resgatá-las com pureza, originalidade, mas reconstruí-las interpretativamente na mente com micro ou macrotraições.
As microtraições da interpretação geram uma promoção evolutiva in­consciente importante de uma teoria ou de qualquer produção científica. As microtraições inconscientes da interpretação são produzidas, como co­mentei, inevitavelmente pelos sistemas de co-interferências das variáveis que flutuam e evoluem continuamente nos bastidores inconscientes da in­teligência e que geram os sistemas de encadeamentos distorcidos na racionalidade, ou seja, na construção das cadeias de pensamentos. Se não houvesse esses espetáculos na mente humana, seria impossível produzir milhares de pensamentos, idéias, análises, reações ansiosas, prazeres, inse­guranças, desejos, etc, distintos diariamente. A vida humana seria uma mesmice insuportável, um tédio existencial, pois não teria sua maior fonte de entretenimento.
O fenômeno da psicoadaptação, a âncora da memória, a energia emo­cional, a história intrapsíquica, o fenômeno do autofluxo etc, são fenôme­nos que se apresentam qualitativamente distintos a cada momento, fazendo com que os processos de construção da inteligência sofram sistemas de encadeamentos distorcidos que geram as distorções inevitáveis da interpre­tação que, por sua vez, geram uma variabilidade nas dimensões qualitati­vas e quantitativas dos pensamentos, idéias, conceitos, análises, emoções.
A história intrapsíquica se expande diariamente, através da atuação psicodinâmica do fenômeno do registro automático da memória. A ener­gia emocional flutua a cada momento, levando-nos a experimentar diver­sos tipos de estresses, prazeres, ansiedades. O fenômeno da psicoadaptação evolui continuamente ao longo da trajetória existencial, fazendo-nos redu­zir a capacidade de experimentar prazer ou dor diante da exposição dos mesmos estímulos. A âncora da memória desloca constantemente o territó­rio de leitura da memória. O fenômeno do autofluxo financia o fluxo vital da energia psíquica, através da reorganização do caos dessa energia, da leitura espontânea da memória e da abertura, a cada momento, das possi­bilidades de construção de novos pensamentos.
A flutuabilidade e evolutividade dessas variáveis da interpretação pro­vocam um riquíssimo sistema de encadeamento distorcido no processo de interpretação, expressa por micro ou macrotraições da interpretação, que produz diariamente milhares de idéias distintas, uma verdadeira revolução de idéias nos bastidores da psique humana.
As traições inconscientes da interpretação, somadas à revisão crítica do conhecimento pelo eu, foram e são os dois pilares fundamentais que sus­tentam a evolução de qualquer teoria científica, de qualquer estereótipo social, de qualquer paradigma sociocultural, de qualquer ideologia políti­ca, de qualquer sistema socioeconômico, sociopolítico e socioeducacional, enfim, de qualquer área da história psicossocial humana.

O ZELO EXCESSIVO DE FREUD PELA PSICANÁLISE CONTRAPONDO-SE À DEMOCRACIA DAS IDÉIAS

Após serem produzidas, todas as teorias continuam evoluindo, não ape­nas pelo gerenciamento exercido pelo "eu", mas também pela flutuabilidade e evolutividade das variáveis da interpretação e pelos sistemas de encadea­mentos distorcidos que atuam nos processos de construção do pensamento do teórico e de seus discípulos.
Freud, embora fosse um inteligente e respeitável teórico, um pensador sobre o inconsciente, não compreendeu algumas áreas fundamentais do inconsciente, principalmente as que se relacionam com os complexos sistemas de co-interferências mútuas das variáveis intrapsíquicas e com os sofisti­cados sistemas de encadeamentos distorcidos ocorridos no processo da construtividade de pensamentos.
Se ele tivesse tal conhecimento, teria compreendido que as traições da interpretação são inevitáveis na construção dos pensamentos; teria compre­endido que tanto ele como seus discípulos traíam inconscientemente a teo­ria psicanalítica. Se ele tivesse esse conhecimento, também teria compreen­dido, apreciado e cultivado a democracia das idéias, não seria tão rígido com os limites e contornos teóricos da psicanálise e, conseqüentemente, não teria banido da família psicanalítica os que pensavam contrariamente às suas idéias, tais como Carl Gustav Jung e Alfred Adler.10
Muitos filósofos e pensadores não compreenderam a democracia das idéias. Não compreenderam que ela está muito acima da democracia polí­tica e que ela nem mesmo é uma opção ideológica, mas uma inevitabilidade nas ciências e nas relações humanas. A democracia das idéias é expressa pela rejeição a toda e qualquer forma de discriminação; pelo respeito e consideração pelas idéias do "outro", ainda que possamos discordar delas, pelo direito personalíssimo "meu" e do "outro" de pensar e ser livre. A democracia das idéias é derivada de um corpo de conhecimento universal ocorrido nos processos de construção do pensamento, tais como: a flutuabilidade e evolutividade das variáveis da interpretação, o sistema de encadeamento distorcido, as traições inconscientes da interpretação, a li­berdade criativa e plasticidade construtiva dos pensamentos dialéticos, a virtualidade da consciência existencial, a inesgotabilidade do conhecimen­to, etc.
O Homo sapiens micro ou macroviolou os direitos humanos, mesmo nos ambientes menos suspeitos, porque ele pouco conheceu a democracia das idéias, pouco compreendeu que a divergência de idéias é uma inevitabilidade e não apenas uma opção do eu, pois há um Homo interpres que o constitui intrinsecamente e que é micro e macrodistinto a cada momento existencial.
Temos de compreender que a verdade essencial, embora uma pérola a ser procurada ansiosamente pela pesquisa científica, pela pesquisa empírica, é inalcançável pela consciência existencial, cuja natureza é antiessencial ou virtual; por isso, os pensamentos dialéticos, apesar de acusar e discursar teoricamente sobre os objetos e fenômenos de estudos, jamais incorporam a realidade essencial intrínseca dos mesmos.
Todos os teóricos, cientistas e pensadores são andejos da virtualidade dialética que percorrem e esquadrinham os territórios essenciais dos fenô­menos extrapsíquicos e intrapsíquicos, porém sem nunca encontrá-los na sua essencialidade. Porém, apesar de nunca incorporarmos pela consciên­cia existencial a realidade essencial do mundo que contemplamos, nossa produção de conhecimentos pode produzir, como comentarei, conseqüên­cias científicas, tais como verificabilidades, aplicabilidades e previsibilidades. Sem essas conseqüências, a ciência não existiria.
Muitos poderiam reclamar do fato de a consciência existencial não in­corporar a realidade essencial dos fenômenos, do fato de que milhões de pensamentos sobre um objeto são apenas um discurso virtual intencional sobre ele, pois nunca atinge em si mesmo a realidade essencial do objeto. Não poucos pensadores tentaram superar a distância entre o pensamento e o objeto, pois não perceberam que essa distância é infinita, que existe um antiespaço entre o pensamento consciente (virtual) e a realidade essencial do objeto. Porém, temos de compreender que a nossa incrível liberdade criativa e plasticidade construtiva dos pensamentos conscientes advêm da própria limitação da natureza antiessencial e virtual dos mesmos.
Se os discursos dos pensamentos conscientes tivessem de incorporar a realidade intrínseca dos objetos sobre os quais se discursa, nós jamais se­ríamos seres pensantes. Os astrônomos jamais poderiam abordar os astros e os químicos jamais poderiam discursar sobre os átomos e as moléculas que nunca tocaram; os psicólogos jamais poderiam discorrer sobre as emo­ções intangíveis sensorialmente e inacessíveis essencialmente. Se a construtividade dos pensamentos não operasse na esfera da virtualidade, não poderíamos antecipar fatos futuros, pois estes ainda não aconteceram; nem poderíamos discorrer sobre experiências passadas, pois estas são irrevogáveis essencialmente; nem poderíamos pensar sobre qualquer coisa ou pessoa sem que elas penetrassem no "tecido" dos nossos pensamentos.
A virtualidade dos pensamentos produz, como comentei, limites intransponíveis na sua práxis ou "materialização", mas, ao mesmo tempo, produz uma liberdade criativa e uma plasticidade dialética indescritíveis.
Só é possível a existência da revolução criativa e evolutiva das idéias porque as idéias são produzidas na esfera da virtualidade, pois nessa esfera elas conquistam uma plasticidade e liberdade que superam a necessidade de incorporação da realidade essencial do mundo que somos e em que estamos.

O FLUXO CONTÍNUO DOS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DA MENTE GERANDO A REVOLUÇÃO INEVITÁVEL E CLANDESTINA DAS IDÉIAS

Penso que os cursos de Psicologia, Sociologia, Filosofia, Educação, Di­reito, Psiquiatria etc, precisam compreender e incorporar o conhecimento básico sobre o funcionamento da mente. Com respeito aos cursos de Psicologia, há grandes lacunas na formação dos psicólogos clínicos, que saem motivados a abraçar uma teoria da personalidade.
A postura de se abraçar uma teoria como suporte da interpretação e como validação dos procedimentos psicoterapêuticos, sem um processo de filtragem crítica das idéias nela contida, se deve à imaturidade científica da Psicologia na compreensão dos processos de construção dos pensamentos.
Seria importante que as sociedades de Psicoterapia (Psicanálise, Psicoterapia analítica, Psicodrama, Logoterapia, cognitiva, comportamental etc.) promovessem cursos sobre os sistemas de encadeamentos distorcidos ocorridos na construtividade de pensamentos; sobre os sistemas de co-in­terferências das variáveis da interpretação que conduzem à ocorrência de micro e macrotraições da interpretação do Homo interpus, passíveis de ocor­rer no processo psicoterapêutíco; sobre a necessidade de promover a revo­lução construtiva das idéias dos pacientes e torná-los agentes ativos e críti­cos no "ambiente da psicoterapia", e não espectadores passivos das inter­pretações e dos procedimentos psicoterapêuticos.
Pode não ser confortável para um psicoterapeuta promover a capacida­de crítica de pensar dos pacientes e incentivá-los a criticar suas próprias interpretações e procedimentos psicoterapêuticos, mas tal atitude, além de se afinar com a democracia das idéias, contribui muito para promover a revolução das idéias, expandir a capacidade de superar seus fracassos, refi­nar o processo de superação dos estímulos estressantes e tornar os próprios pacientes agentes modificadores da sua história psicossocial.
Os psicoterapeutas, independentemente se não incorporarem um co­nhecimento básico sobre o funcionamento da mente e o processo de inter­pretação, poderão exercer o processo psicoterapêutíco fora do campo da democracia das idéias, produzindo interpretações e procedimentos sem dar aos pacientes o direito de discuti-los e criticá-los. Assim, podem criar uma relação psicoterapeuta-paciente desigual, em que eles, os psicotera­peutas, exercem uma poderosa influência sobre os pacientes, gerando um microclima de autoritarismo das idéias, submetendo o mundo dos pacien­tes às restritas dimensões da teoria que abraçam e das interpretações e pro­cedimentos que produzem. Tal postura psicoterapêutica contrai e, às vezes, pode até abortar o desenvolvimento da capacidade crítica de pensar dos pacientes ("iatrogenia psicoterapêutíca"), fazendo com que estes gravitem em torno da "órbita intelectual" dos seus psicoterapeutas. A dependência do terapeuta encarcera a inteligência.
Princípios semelhantes podem ocorrer no processo educacional. Pro­fessores que desconhecem os processos de construção da inteligência po­dem ter uma postura tão rígida e unidirecional no processo educacional que contraem ou abortam a capacidade crítica de pensar dos seus alunos, tornando-os espectadores passivos do conhecimento, com grande dificulda­de para expressar suas dúvidas e criticar seus professores e as idéias por eles expressas, o que revela uma "iatrogenia socioeducacional". O processo edu­cacional unidirecional, "a-histórico-crítico-existencial" e exteriorizante pou­co alavanca e redireciona a espetacular revolução da construção das idéias que ocorre clandestinamente na mente dos alunos e, conseqüentemente, pouco contribui para expandir neles o humanismo e a cidadania.
Os professores e os psicoterapeutas precisam compreender que, de fato, eles não fazem muito no processo socioeducacional e psicoterapêutico; no máximo, contribuem para estimular a produção das idéias que ocorre es­pontaneamente em seus alunos e pacientes. Sem a operação espontânea e inevitável dos fenômenos que constroem os pensamentos, o homem nem mesmo desenvolveria sua personalidade e nem teria condições de conquis­tar a consciência de si mesmo e do mundo que o circunda.
Ilustres pensadores abordaram o princípio fundamental que rege o pro­cesso de formação da personalidade. Sigmund Freud" abordou o princípio do prazer; Carl Gustav Jung 12, o self (eu) criador; Alfred Adler 13, a busca de superioridade; Erich Fromm 14 abordou, entre outros fatores, a busca de proteção e segurança; Viktor Frankl 15 abordou a busca do sentido existen­cial etc. Porém, há um princípio globalizante, um princípio dos princípios, que é a fonte que incorpora todos os princípios postulados pelos demais autores e que está na base de todos os processos de construção inconscien­tes e conscientes da mente, que é o fluxo vital da energia psíquica. Vejamos.
A energia psíquica, como disse, está num fluxo vital contínuo e inevitá­vel. Cada idéia, pensamento, análise, reação fóbica, humor deprimido, desejo, reação instintiva etc, produzida inconscientemente e manifestada nos palcos conscientes da mesma se descaracteriza e é registrada na história intrapsíquica.
A leitura da história intrapsíquica, sob a influência dos sistemas de va­riáveis intrapsíquicas, produzirá um universo de novas idéias que promove­rá a expansão dos alicerces da personalidade. A medida que novas idéias, pensamentos, análises, reações emocionais e motivacionais são produzidos na mente, eles novamente se desorganizam caoticamente e, ao mesmo tem­po, são registrados no arquivo existencial da memória pelo fenômeno RAM.
Registrar ou arquivar as experiências psíquicas na memória não é, como vimos, um processo opcional do homem, mas um processo involuntário e inevitável. Mesmo que possamos rejeitar contundentemente as ofensas, as discriminações e as experiências mais angustiantes que vivenciamos, elas serão inevitavelmente, à medida que caminham para o caos psicodinâmico, registradas no arquivo da memória pelo fenômeno RAM. Se a ausência dessa "opção" traz alguns transtornos, traz também, como comentei, imprescindíveis benefícios à psique, tal como a preservação da história intrapsíquica, pois sem ela viveríamos um contínuo, indescritível e dramá­tico estado inconsciente. Embora não seja possível optar por ter ou não a história intrapsíquica, é possível, no entanto, reciclá-la e reorganizá-la.
O campo de energia psíquica é tão complexo que, simultaneamente ao processo de desorganização das idéias, das emoções e das motivações, ocorre o desenvolvimento da história intrapsíquica. Com a expansão da história intrapsíquica estimula-se a produção de novas cadeias de pensamentos, reações emocionais e experiências existenciais, que alavancarão o desen­volvimento da personalidade. Através desse desenvolvimento, ocorrerá a "busca do prazer", o "self criador", a "busca de proteção e segurança", a "busca de superioridade", a "busca do sentido existencial", que são os prin­cípios que gravitam em torno da órbita globalizante do princípio do fluxo vital da energia psíquica. Portanto, os princípios estabelecidos por outros teóricos são "sintomas" do fluxo vital que ocorre no cerne da psique humana.
Existe, por incrível que pareça, um paralelo entre o desenvolvimento da personalidade humana e das teorias científicas. Embora ambas possam ser evolutivamente recicladas e promovidas pelo "eu", pelo determinismo do pensamento dialético (lógico), na realidade esse determinismo apenas "pega carona psicodinâmica" no fluxo vital espontâneo e inevitável dos fenômenos que reorganizam a energia psíquica.
O "eu" só pode pensar "o que quer", "quando quer" e na "freqüência e velocidade que quer" porque, na base inconsciente da mente, há um grupo de fenômenos que realizam tarefas psicodinâmicas extremamente refina­das, tais como a leitura dos endereços da memória e a organização de dados.
As matrizes dos pensamentos essenciais são inconscientes; porém, na medida em que são geradas, sofrem, como vimos, um intrincado processo de leitura virtual que produz o espetáculo da construção dos pensamentos conscientes (dialéticos e antidialéticos).
O Homo sapiens é tão sofisticado que podemos dizer que o controle das idéias, das argumentações, das análises, das sínteses, das previsibilidades tempo-espaciais é operacionalizado em cima de um processo inevitável, multifocal e multidirecional gerado pelo Homo interpres. O Homo sapiens não é sapiens porque quer, ou seja, não é um ser pensante porque determi­na sê-lo, mas porque é inevitável sê-lo. O fluxo vital dos fenômenos que organizam e reorganizam o caos da energia psíquica torna o homem um ser inevitavelmente pensante, um ser inevitavelmente consciente.
Muitos filósofos e teóricos da Psicologia procuraram ansiosamente com­preender como se forma a consciência do homem, que chamo de cons­ciência existencial ou "eu". Alguns até mesmo dizem que essa compreensão é o maior desafio da ciência. Realmente, essa compreensão não apenas revela os segredos inconscientes do homem, pois o espetáculo da constru­ção da consciência é produzido por fenômenos inconscientes, mas também os segredos intrínsecos da própria ciência, pois a ciência é uma manifesta­ção da consciência.
Devido a alguns limites dos pensamentos conscientes usadas na investi­gação da própria consciência, a ciência jamais irá alcançar algumas respos­tas, pois a natureza dos pensamentos conscientes é "antiessencial", virtual e, como vimos, o que é virtual nunca incorpora a realidade intrínseca da­quilo que é essencial; apenas a discursa, a conceitua, a define. Porém, em detrimento das limitações da consciência em compreender a si mesma, é possível compreender diversas peças intelectuais dos processos de constru­ção da psique que nos constituem intrinsecamente como seres que pen­sam, se emocionam e têm consciência existencial do mundo que somos e em que estamos.

TODO AUTOR DEIXA DE SER PROPRIETÁRIO DE SUAS IDÉIAS QUANDO AS PUBLICA. O JULGAMENTO DA INTERPRETAÇÃO DAS IDÉIAS PERTENCE AO LEITOR

Os fenômenos responsáveis pela construção dos pensamentos são ina­cessíveis essencialmente e intangíveis (imperceptíveis) sensorialmente, o que dificulta intensamente o processo de observação, interpretação e produção de conhecimento sobre eles. Essa dificuldade gerou grandes confusões teó­ricas na Psicologia, na Filosofia, na Educação e em outras ciências.
Não poucos cientistas, ao conquistar reconhecimento social, diminuem significativamente sua produção intelectual. Ao contrário do mundo profis­sional, no universo científico os aplausos, se inadequadamente trabalhados, podem fechar as janelas da inteligência e conspirar contra o livre pensa­mento. Isso se deve à atuação do fenômeno da psicoadaptação na terceira etapa inconsciente do processo de interpretação. A fase mais produtiva de um cientista muitas vezes ocorre quando ele não tem estética socioacadêmica; quando a ciência é sua única paixão; quando ele se considera um aprendiz diante da sua inesgotabilidade e considera que a grandeza das idéias é muito mais importante do que a hierarquia acadêmica e do que a conquis­ta de títulos.
O sistema acadêmico pode libertar o pensamento ou encerrá-lo num cárcere. Freqüentemente ele o aprisiona. Todos somos inconscientemente micro ou macroinfiéis ao nosso processo de interpretação, o que expande, como disse, a evolutividade das próprias idéias. Porém, falo de uma outra fidelidade: a fidelidade à consciência crítica, aos princípios que norteiam a honestidade intelectual. Devemos procurar ansiosamente ser fiéis aos prin­cípios que norteiam a honestidade intelectual, independentemente dos cons­trangimentos sociais que possamos vivenciar pelas nossas idéias e pela prá­tica dessa honestidade. O homem que não ê fiel às suas idéias, fiel à sua consciência, tem uma dívida impagável consigo mesmo.
Diante da exposição sobre o processo de interpretação, estou convenci­do de que a democracia das idéias deva ser exercida em todos os níveis das relações humanas, em destaque na ciência. As idéias de um cientista ou pensador, incluindo os produtores de arte, à medida que ele as expressa em livros ou em qualquer outro meio de comunicação, deixa de ser do próprio autor e passa a pertencer invariavelmente ao observador. Interpre­tar, ou seja, ser um Homo interpres, não ê uma opção do Homo intelligens, mas seu destino inevitável.
A Mona Lisa deixa de ser de Da Vinci e passa a pertencer ao observa­dor, que, ao interpretá-la, acrescenta "cores" e "formas" próprias em sua mente, ou seja, acrescenta cadeias de pensamentos e experiências emocio­nais próprias no processo de observação e interpretação.
Do mesmo modo, a teoria de um teórico deixa de pertencer a ele mes­mo e passa a pertencer ao observador (leitor ou utilizador da teoria) que, ao interpretá-la, ainda que com critérios, acrescentará a ela suas particulari­dades sobre as quais o autor jamais terá controle. Por isso, cumpre ao observador a responsabilidade de interpretar uma obra, não apenas com liberdade, mas também com consciência crítica, procurando descontaminar-se no processo de interpretação, tanto quanto possível, de cientificismos e psicologismos.
O autor só pode julgar sua obra para si mesmo. Ele jamais poderá transferir ou abortar o direito do julgamento do observador; caso contrário, ele pratica o autoritarismo das idéias e a ditadura dos discursos teóricos.
O direito à interpretação do observador é inalienável e intransferível. Mesmo os ditadores políticos não podem sufocar completamente o direito do julgamento da interpretação dos consócios de uma sociedade; não po­dem abortar a revolução clandestina das idéias que ocorrem nos bastidores de sua mente; por isso, como disse, todos os sistemas político-econômicos opressivos reciclam-se inevitavelmente ao longo da história.
Penso que todo teórico, cientista, pensador ou produtor de arte, não apenas deveria aceitar, mas até mesmo estimular, os que entram em conta­to com sua obra a julgá-la com liberdade e consciência crítica, até porque, nos labirintos da sua mente, todo observador realiza inconsciente e inevita­velmente esse julgamento com micro ou macrotraições.
Nas sociedades modernas, a estética sobrepuja o conteúdo. Essa doença intelectual contaminou também a ciência, pois a procedência universitária, a fama do centro de pesquisa, os títulos acadêmicos, o país de origem de um cientista se tornam um marketing socioacadêmico e sociopolítico inconscien­te, que pesa sutilmente na interpretação, julgamento e credibilidade do observador.
Tais sutilezas, que influenciam o processo de interpretação, ocorrem em todas as esferas das relações sociais. Creio que a maioria dos cientistas e dos demais produtores de conhecimento não tem como evitar totalmente a estética socioacadêmica e outras influências passíveis de contaminar a interpretação; por isso eles deveriam estimular o julgamento das suas idéias pelo observador onde elas são expressas, seja nos livros, nas salas de aula, nos congressos, na imprensa. Esta atitude está dentro do contexto da demo­cracia das idéias.


Capítulo 14

O Conceito de Cidadania, Humanismo e Democracia das Idéias

Derivados dos Processos de Construção da Inteligência

A "CIDADANIA DA CIÊNCIA": SOCIALIZANDO A CIÊNCIA, TORNANDO-A ASSIMILÁVEL E ÚTIL PSICOSSOCIALMENTE

A Psicologia estuda o nascedouro dos pensamentos, o nascedouro das idéias; a Filosofia estuda as dimensões filosóficas das idéias, estuda as suas possibilidades e, portanto, expande o mundo das idéias. A inteligência multifocal, portanto, não é fruto apenas da construção dos pensamentos, mas também das possibilidades psicossocial e filosóficas desses pensamentos. A Filosofia amplia os horizontes da Psicologia.
Penso que os assuntos concernentes aos fundamentos do processo de interpretação, à construção de uma teoria e aos limites e alcance do conhe­cimento raramente são ministrados com profundidade nos cursos de gra­duação de Psicologia, Sociologia, Direito, Antropologia, Pedagogia, nos cursos de especialização de Psiquiatria e até mesmo nos cursos de gradua­ção das Ciências Físicas e demais Ciências Naturais. Creio que eles são ministrados com mais profundidade nos cursos avançados de pós-gradua­ção acadêmica, porém, não exatamente da maneira como os exponho, pois tenho uma produção de conhecimento original sobre eles. Provavel­mente, esses assuntos são os mais difíceis de serem compreendidos pelos alunos de pós-graduação (mestrando e doutorando) e até pelos cientistas.
Confesso que, em boa parte destes anos em que pesquiso sobre o fun­cionamento da mente, eu pensava em escrever apenas para cientistas e intelectuais circunscritos nas universidades e institutos de pesquisas. Po­rém, apesar de ainda não ter perdido esse alvo, admito que estava sendo exclusivista ao me dirigir somente a um pequeno grupo de pensadores; por isso, procurei compreender e me reconciliar com a democracia das idéias e exercer a "cidadania da ciência".
A cidadania da ciência, como já comentei, é expressa pela atitude do teórico em procurar humanizar ou socializar sua teoria, tornando-a acessí­vel aos profissionais que exerçam qualquer tipo de trabalho intelectual e útil como fonte de pesquisa e de aplicabilidade. A cidadania da ciência ou científica deveria ser o objetivo fundamental de todo cientista, seja ele um teórico ou um utilizador de uma teoria. No meu caso, embora minha lin­guagem escrita nem sempre seja fácil de se entender, devido à complexida­de dos assuntos abordados, me animo com a possibilidade de humanização da teoria, de ela se tornar útil como fonte de pesquisa e de aplicabilidade psicossocial.
A ciência não existe fora da mente humana; ela é um produto intelec­tual do homem e, como tal, seu objetivo ético fundamental é ser útil à humanidade e ao meio ambiente. Produzir ciência para violar os direitos humanos ou qualquer tipo de comprometimento da qualidade de vida biopsicossocial humana é um desvio dos sentimentos mais nobres da ética científica.
Os homens que mais macularam e maculam a história humana nem sempre foram desprovidos de cultura e escolaridade. A cultura e a escola­ridade quantitativa são insuficientes para promover a cidadania e o humanismo, bem como a democracia das idéias. É necessário uma cultura qualitativa, interiorizante, ou seja, aquela que estimula o homem a ser um caminhante nas trajetórias do seu próprio ser, um caminhante à procura de suas origens intelectuais, de suas origens como ser pensante. Se o pensa­mento não for usado para investigar o próprio pensamento, para questio­nar seus limites, alcance, validade e processos envolvidos na sua constru­ção, ele poderá ser facilmente usado com autoritarismo, contribuindo para promover toda sorte de violação dos direitos humanos.
Tenho consciência de que a grande maioria das pessoas que pratica­ram na história o humanismo e a cidadania nunca compreenderam os fe­nômenos que participam da construção dos pensamentos e nem algumas variáveis do processo de interpretação. Porém, é mais fácil produzir um ambiente coletivo solidário, tolerante e saturado de cooperação social se investigamos nossas limitações, se compreendermos as origens do pensa­mento e as bases do processo de interpretação.
Em todos os níveis escolares deveriam ser ministrados, obviamente com linguagens distintas, conhecimentos que expressam que a memória não pode ser apagada, apenas reescrita; que o fenômeno RAM registra automa­ticamente todas as experiências que transitam no palco de nossas mentes e que privilegia as que têm mais tensão; que o fenômeno da autochecagem gera o gatilho da inteligência, produzindo as primeiras cadeias de pensa­mentos e reações emocionais; que a memória não está toda disponível para leitura, mas por território; que o fenômeno do autofluxo produz milhares de pensamentos diários sem a autorização do "eu" e que, portanto, gera a maior fonte de entretenimento ou de terror humano; que o "eu" precisa aprender a gerenciar os pensamentos e ser líder do seu próprio mundo; que o processo de interpretação nunca é puro, mas sofre a influência de inúme­ras variáveis, gerando uma produção de pensamentos continuamente dis­tinta, mesmo sobre um mesmo objeto.
Conhecer a Física, a Matemática, a Química, a Geografia, é importante, mas é tão ou mais importante que os alunos aprendam a conhecer que o pensamento não é apenas relativo, mas que sofre diversos sistemas de encadeamentos distorcidos, que o stress pode comprometer nossa liberdade de pensar e nossa consciência crítica em determinados momentos da interpre­tação, que nos bastidores de nossa mente somos micro ou macrodistintos a cada momento de nossa existência, que o pensamento dialético é produzi­do na esfera da virtualidade e que, nessa esfera, apesar de conquistar uma indescritível liberdade criativa, possui limitações em sua práxis ou materialização, que a arte da pergunta, da dúvida e da crítica deveria fazer parte de todo o processo de aprendizado escolar e coloquial.
As escolas deveriam também ministrar cursos específicos sobre a demo­cracia das idéias, a cidadania e o humanismo. Essa nova abordagem do processo educacional objetiva formar um homem completo, seguro e livre no território dos pensamentos e das emoções, um homem que sabe traba­lhar suas intempéries existenciais e usa sua inteligência para contribuir com sua espécie.
Comentei a cidadania da ciência. Agora, comentarei o conceito de ci­dadania social, do humanismo e da democracia das idéias à luz da teoria multifocal do conhecimento humano que estou expondo.

O CONCEITO DE CIDADANIA

A cidadania social, neste livro, vai muito além da definição clássica de cidadania, expressa pelo gozo pleno dos direitos políticos de um cidadão em uma determinada sociedade. Essa definição clássica é redutora e eucentrista, pois envolve os direitos de um indivíduo em relação à sua sociedade e não expressa o comprometimento psicossocial desse indivíduo com sua sociedade. Aqui, a definição de cidadania é abrangente. A cidada­nia é um exercício intelectual de mão dupla, que envolve tanto os direitos políticos de um cidadão em sua sociedade como os deveres de um cidadão para com essa sociedade. Esses deveres não apenas se referem àqueles previstos em lei, mas também àqueles que dependem da maturidade inte­lectual, emocional e social, tais como: solidariedade, tolerância, dignidade, cooperação social, preocupação com as dores e necessidades psicossociais do outro, aprender a se doar psicossocialmente sem esperar a contrapartida do retorno etc.
As pessoas raramente sabem se doar sem a contrapartida do retorno, pois subjacente às suas intenções existe uma busca de prestígio, de retorno social, de retorno político. Por exemplo, as drogas nem sempre interessam apenas aos usuários e aos traficantes, mas também a alguns que, ao falar do seu combate, apenas usam-na como instrumento para se promover politica­mente. Infelizmente, na história humana, muitos políticos utilizaram e ain­da utilizam as misérias humanas como instrumento para ampliar seus poderes, para conquistar prestígio social e ganhar espaço eleitoral. Para aqueles que conhecem a cidadania apenas no discurso, a miséria humana é uma grande mercadoria para ser usada para promoção social. O exercício mais nobre da cidadania é aquele que se faz no silêncio, que se faz sem alardes, que se faz sem esperar a contrapartida do retorno. O único retorno legíti­mo que deveria ser almejado no exercício da cidadania é aquele produzi­do pelo prazer de contemplar a melhora da qualidade de vida do outro, da sociedade e do meio ambiente.
A solidariedade, expressa pelo prazer de ser útil e de contribuir para o alívio das dores e das necessidades biopsicossociais do outro, é um dos pilares mais ricos da cidadania. Cultura e dinheiro não compram a cidada­nia. A cidadania é conquistada na trajetória existencial; é conquistada quando alguém se torna um poeta da vida, um poeta existencial, quando alguém aprende a se interiorizar.
Eu não sei como muitos dos homens mais ricos do mundo, listados pela revista Forbes, conseguem dormir com a consciência tranqüila, en­quanto há tantos seres da sua própria espécie, tão complexos intelectual­mente como eles, que estão subnutridos, famintos, vivendo em condições miseráveis em diversas sociedades. Talvez porque, em contraste com a riqueza financeira, eles estão pobres no mundo de idéias, estão subnutridos de cidadania e de humanismo. Enriquecer apenas para si mesmo, excluin­do toda e qualquer meta social, é uma mediocridade. A vida humana é como uma gota existencial na perspectiva da eternidade; refletir sobre a temporalidade e a fragilidade da vida humana deveria nos fazer expandir a lucidez intelectual e nos estimula a estabelecer metas e prioridades humanísticas.
As empresas também deveriam exercer a cidadania empresarial. Deve­riam não apenas ter como meta a competitividade, a qualidade dos seus produtos e serviços e a lucratividade, mas também a cidadania, expressa pela meta de procurar expandir a qualidade de vida dos seus trabalhado­res e da sociedade como um todo, bem como deveriam exercer a cidada­nia verde, ou seja, expressa pela preocupação com a preservação do meio ambiente, não como marketing político, mas como responsabilidade social.
A cidadania, portanto, é um exercício intelectual em que o cidadão incorpora e exercita seus direitos sociopolíticos e, ao mesmo tempo, coope­ra com a preservação dos direitos e da qualidade de vida dos consócios da sua sociedade, contribuindo para que a sociedade se torne um albergue não apenas da democracia política, mas também um albergue do humanismo e da democracia das idéias. A cidadania, ainda, envolve a consciência crí­tica de cada ser humano do seu papel ecossocial. Este expressa tanto a consciência da preservação da natureza como a necessidade de coexistên­cia harmônica entre a espécie humana e o meio ambiente. O exercício pleno da cidadania é uma expressão da maturidade da inteligência multifocal.

O CONCEITO DE HUMANISMO

O humanismo foi um termo filosófico usado de diversas maneiras por diversos pensadores em gerações passadas; porém, neste livro, ele tem conotações extensas e particulares. Para alguns, o humanismo é o exercício da complacência, da bondade, da tolerância e, nesse sentido, ele se confun­de com o conceito de cidadania. Porém, esse tipo de humanismo está sujei­to às flutuações das intempéries sociais, das circunstâncias psicossociais, das pressões políticas, dos paradigmas culturais. Portanto, ele é instável e suas raízes intelectuais são pouco profundas.
O humanismo a que me refiro vai além do exercício da cidadania, além do exercício da tolerância, solidariedade e cooperação social, pois ele se alicerça numa macrovisão das origens intelectuais da espécie humana. Ele é fruto da procura do Homo intelligens pelo Homo interpres, ou seja, do homem que pensa pelos processos inconscientes que constroem os pensamentos. Portanto, o conceito de humanismo incorpora a necessidade de compreen­dermos as origens da inteligência, os fenômenos que nos constituem como seres pensantes. Esse humanismo diminui a paixão nacionalista, grupai, bairrista e expande a paixão pela espécie humana. Ele cria uma relação poética do indivíduo com a espécie humana. Esse humanismo tem uma reação visceral contra a multiplicidade dos parâmetros que promovem as mais diversas formas de discriminação humana: racial, cultural, religiosa, intelectual, etc. Ele ecoa altissonante, evidenciando que acima de sermos americanos, alemães, franceses, brasileiros, árabes, judeus, ingleses, africa­nos, curdos, somos uma única espécie, uma espécie que, apesar de todas as diferenças genéticas, geográficas, culturais e sociopolíticas, possui clandesti­namente, nos bastidores da mente, os mesmos processos e fenômenos que são responsáveis pelo maior de todos os espetáculos humanos, o espetáculo da construção de pensamentos e da consciência existencial.
O humanismo declara uma paixão poética pela espécie humana, por­que decorre da compreensão de que a inteligência é produzida gratuita­mente por fenômenos que realizam uma sofisticadíssima e inconsciente lei­tura da memória, que resulta numa complexa construção das cadeias psicodinâmicas de pensamentos. Devido ao fluxo vital da energia psíquica, pensar é um privilégio inevitável de nossa espécie. Sem o espetáculo gratui­to da construção dos pensamentos, não haveria ciência, arte, livros, leitores, relações interpessoais conscientes; não haveria nem mesmo a consciência do tempo, pois um segundo e a eternidade seriam a mesma coisa. Por isso, toda forma de violação dos direitos humanos, bem como toda forma radical de nacionalismo, de bairrismo e de defesa grupai ou racial é desumanística e intelectualmente injustificável.
O humanismo evidencia que a teoria da igualdade, que é a matriz de todos os demais direitos humanos, não é apenas uma defesa jurídica, cons­titucional, cultural, ética, social, mas, muito mais do que isso, se considerar­mos a construção da inteligência constatamos que ela é inevitável.
A teoria da igualdade humanista evidencia que, apesar de todas as diferenças humanas, somos inevitavelmente iguais nas origens da inteligên­cia, no nascedouro das idéias, no espetáculo da construção do pensamen­to. As sociedades humanas não compreenderam a complexidade da teoria da igualdade, e por isso cometeram genocídios, discriminações raciais e outras formas de violação dos direitos humanos. Essas violações ocorreram ao longo da história porque o mundo das idéias humanísticas dos seres humanos, em especial dos homens que detinham o poder sociopolítico, foi e ainda é pequeno. A teoria da igualdade humanista demonstra que todo ser humano, independentemente de sua raça, nacionalidade, cor, idade, sexo, condição social, nível cultural, condição econômica, níveis de sanida­de psíquica, etc, tem o direito irrestrito, inalienável e intransferível de igual­dade em seus amplos aspectos biopsicossociais. Um dia, proferindo uma palestra sobre a formação de pensadores para cientistas de um instituto de pesquisa, vários deles me procuraram após a palestra e elogiaram a aborda­gem do humanismo e sua relação com a inteligência. Eles me disseram que nunca tinham compreendido o ser humano na perspectiva psicológica e filosófica e ficaram surpresos ao perceber que a igualdade humana decorre dos fenômenos que nos tornam seres pensantes e que constroem a inteligên­cia. Nessa palestra, a união da Psicologia com a Filosofia causou um choque de humanismo nos ouvintes.
O humanismo afirma que nenhum ser humano, por mais sucesso que tenha, pode acrescentar algo à sua condição humana e tornar-se, assim, supra-humano, semideus. Por isso, toda supervalorização de líderes políti­cos, religiosos, intelectuais, artistas, esportistas etc, tão comum nas socieda­des modernas, é uma atitude desinteligente e desumanística, uma expres­são da imaturidade da inteligência. Aquele que supervaloriza o outro e gravita em torno dele, ou da imagem intelectual que faz dele, discrimina a si mesmo, pois desconhece suas origens intelectuais.
Existem pessoas que funcionam como modelos de comportamento sau­dáveis, que inspiram a produção intelectual; porém, quando alguém supervaloriza uma pessoa e gravita intelectualmente em torno dela, isso compromete sua liberdade de pensar e a consciência crítica. O humanismo também afirma que nenhum ser humano, por menos sucesso que tenha, por mais desprivilegiado socialmente que seja, não perde a dignidade da sua condição humana. Assim, o humanismo evidencia que tanto discrimi­nar como supervalorizar o "outro" são pólos doentios do mesmo processo de interpretação desinteligente e desumanístico.

O CONCEITO DE DEMOCRACIA DAS IDÉIAS

Após ministrar uma conferência num congresso de educação, um dire­tor de uma escola, me procurou para falar da importância da democracia das idéias. Ele já havia lido a primeira edição deste livro. Disse-me que teve de estudar cerca de dez vezes o conceito de democracia das idéias para ministrá-lo aos seus professores. O assunto pode ser complexo, mas ele é fundamental para regular as relações humanas.
A democracia das idéias representa uma das mais nobres funções inte­lectuais da maturidade da inteligência humana. Depois de fazer a exposi­ção deste assunto extrairemos uma série de direitos e deveres importantes que podem preparar um ambiente para que as relações humanas passem a ser construídas com mais dignidade, respeitabilidade, inteligência.
A democracia das idéias tem um conceito sofisticado, mais sofisticado que o humanismo. Enquanto o conceito de humanismo é extraído da com­preensão de que todo ser humano tem um conjunto de fenômenos que participam da organização da inteligência, o conceito de democracia das idéias é extraído da atuação desses fenômenos, formando um intrincado conjunto de processos que são responsáveis pela leitura da memória e pela construção das cadeias de pensamentos. Esse conceito também é extraído da natureza, limites e alcances desses pensamentos, dos entraves da comu­nicação interpessoal e das variáveis que atuam no processo de interpreta­ção.
O humanismo evidencia que há uma igualdade humana inevitável quan­do consideramos as origens da inteligência, quando consideramos os fenô­menos que constroem os pensamentos. A democracia das idéias evidencia que há, opostamente, uma desigualdade inevitável quando consideramos o resultado dessa construção, ou seja, o resultado das cadeias de pensamen­tos construídas.
Os fenômenos que constroem os pensamentos são os mesmos, mas o resultado dessa construção, que são as próprias cadeias de pensamentos, freqüentemente não são exatamente iguais, ainda que possamos considerar dois observadores diante de um mesmo estímulo, ou um mesmo observa­dor diante do mesmo estímulo observado em dois tempos distintos. A pro­dução de pensamentos tem uma diversidade interpessoal (entre duas pes­soas) e intrapsíquica (era uma mesma pessoa). Ainda que estejamos num ambiente social prejudicial à arte de pensar, devido à globalização da infor­mação e à massificação da cultura, a construção de pensamentos sofre uma contínua diversidade.
Os fenômenos que atuam na construção da inteligência são iguais; mas o resultado nunca é uma inteligência igual, o resultado nunca é uma unani­midade de idéias. A diversidade de pensamentos não acontece, como dis­se, apenas entre duas pessoas diferentes, que supostamente têm cargas ge­néticas diferentes, estímulos familiares diferentes, estímulos socioeducacionais diferentes, etc, mas também no universo psíquico de uma mesma pessoa. Como vimos, há um Homo interpres nos bastidores da psique humana, micro ou macrodistinto a cada momento existencial. Por isso, mesmo diante dos mesmos estímulos, freqüentemente produzimos pensamentos micro ou macrodiferentes. Procurar uma unanimidade de idéias é uma atitude desinteligente.
A democracia das idéias é tão importante, que deveria regular todas as esferas das relações humanas: as relações pais-filho, professor-aluno, políti­co-eleitor, as relações acadêmicas, jornalista-leitor etc. Os alicerces da de­mocracia das idéias são constituídos por diversos fatores. Para compreendê-los melhor, podemos dividi-los em oito grandes processos: 1. A comunica­ção social é mediada, ou seja, as relações humanas não transcorrem através de trocas essenciais, tais como da energia psíquica das angústias, ansieda­des, prazeres, etc, mas por um sistema de códigos sensoriais, principalmen­te sonoros e visuais. 2. Pelo fato de a comunicação social ser mediada, conhecemos o "outro" não pela essência do outro, mas pela reconstrução dele nos bastidores de nossas mentes, produzida pelo nosso processo de interpretação. Assim, o conhecimento do "outro", bem como de todo fenô­meno extrapsíquico, é passível de inúmeras distorções. 3. O pensamento dialético e o pensamento antidialético, os dois tipos de pensamentos cons­cientes produzidos pela psique humana, são de natureza virtual. 4. A virtualidade dos pensamentos conscientes indica que, por mais que eles sejam eficientes em conceituar os fenômenos, eles nunca atingem a realida­de essencial (a verdade essencial) dos mesmos, ou seja, a essência intrínse­ca que os constitui. 5. Por não atingir a realidade essencial dos fenômenos, os pensamentos conscientes, que representam a verdade científica, jamais incorporam a verdade essencial. Assim, a verdade científica torna-se apenas um sistema de intenções intelectuais que tenta discursar sobre a verdade essencial. 6. O Homo interpres (processo de interpretação), que representa os processos intrapsíquicos inconscientes envolvidos na construção de pensa­mentos, é micro e macrodistinto a cada momento existencial, pois diversas variáveis que participam desses processos flutuam e evoluem continuamen­te. 7. Devido à flutuabilidade e evolutividade contínua das variáveis intrapsíquicas, ocorre um sistema de encadeamento distorcido no processo de construção dos pensamentos, gerando uma diversidade de idéias inevitá­veis. 8. O gerenciamento do eu na construção de pensamentos nunca é completo, pois existe um conjunto de fenômenos que constroem pensa­mentos sem a sua autorização.
Portanto, concluindo, a democracia das idéias é inevitável, pois a comu­nicação social é mediada, os pensamentos conscientes são limitados, a ver­dade essencial é inatingível, o processo de interpretação é passível de inú­meras distorções e o eu não é líder absoluto do processo de construção de pensamentos. A democracia das idéias expressa, portanto, que a verdade é inatingível, que é muito difícil interpretar adequadamente o outro, que o pensamento consciente tem limites, que o eu não reina na mente humana.
A arte de viver é mais complexa do que podemos imaginar. Somos complexos e sofisticados intelectualmente e, ao mesmo tempo, limitados e frágeis. Produzimos o indescritível mundo das idéias e, ao mesmo tempo, podemos distorcer a verdade mais do que podemos compreender. Cons­truímos belíssimas relações humanas e, ao mesmo tempo, podemos ser autoritários e distorcer o direito do outro mais do que temos consciência.
A democracia das idéias é muito mais abrangente, profunda e comple­xa do que a democracia política. A democracia das idéias, diferente da democracia política, não é uma opção intelectual, mas uma inevitabilidade. Só não é inevitável porque conhecemos pouco o processo de construção dos pensamentos, o processo de construção das relações interpessoais, o processo de interpretação, o processo de gerenciamento do eu e a natureza dos pensamentos.
A democracia das idéias é o ponto de encontro da Psicologia com a Filosofia, a Sociologia, a Educação e demais ciências, mesmo as ciências naturais.
Os direitos e deveres extraídos da democracia das idéias são mais pro­fundos e abrangentes do que aqueles contidos na constituição dos países ou na carta dos direitos humanos das Nações Unidas. A seguir, farei uma síntese desses direitos e deveres:
a) Como a comunicação social é mediada, temos de aprender a desen­volver relações sociais maduras e inteligentes: aprender a respeitar a complexidade do outro; compreender que nunca temos a realidade essencial das pessoas com as quais nos relacionamos; ter consciência de que nossas interpretações sobre o outro são facilmente contami­nadas pelo nosso universo psíquico e, portanto, são passíveis de inú­meras distorções; aprender a interpretar o outro com consciência crítica, a analisá-lo e procurar se colocar no lugar dele, para que possamos compreender, com menos distorção possível, suas idéias, dores e necessidades psicossociais; aprender a arte de ouvir, ou seja, ouvir com maturidade e consciência crítica, ouvir o que o outro tem para falar e não ouvir o que queremos ouvir.
b) Como os pensamentos conscientes são de natureza virtual, temos de compreender alguns limites e alcances básicos dos pensamentos: aprender que a verdade essencial é inalcançável; reconhecer que a verdade científica é apenas um sistema de intenções que tenta conceituar a verdade essencial; ter consciência de que a verdade coloquial, aquela que expressa nossos julgamentos, opiniões, idéias em nossas atividades sociais, também não expressam a realidade essen­cial; aprender a expor e não a impor nossas idéias; aprender a não nos submetermos passivamente às idéias do outro, julgando-as com liberdade e consciência crítica e a permitir que os outros possam julgar nossas idéias com a mesma liberdade.
c) Como o Homo interpres é micro ou macrodistinto, a cada momento existencial temos que aprender a respeitar a diversidade das idéias: aprender a respeitar o pensamento do "outro" (o outro como indiví­duo e como grupo social), ainda que confronte com o nosso pensa­mento; compreender que a unanimidade de idéias no campo políti­co, social, econômico, cultural e educacional é impossível; aprender que a democracia das idéias implica respeitar as diferenças e não impor a unanimidade; compreender que a unanimidade ocorre ape­nas no campo do espírito humano, da solidariedade, da respeitabili­dade, da tolerância, do humanismo, da cidadania. d) Como o eu não exerce um gerenciamento pleno na construção de pensamentos, devido à atuação psicodinâmica de outros fenômenos que também constroem pensamentos, temos que aprender a desen­volver com maturidade esse gerenciamento: aprender a pensar antes de reagir; aprender a ser fiel aos nossos pensamentos; trabalhar os estímulos estressantes e as frustrações psicossociais; aprender a de­senvolver a arte de perguntar, duvidar e criticar; aprender a expan­dir o mundo das idéias e a criatividade na superação dos problemas socioprofissionais; aprender a nos tornarmos pensadores humanistas e engenheiros de idéias originais; aprender a revisar nossos paradigmas socioculturais; rever nossas posturas dogmáticas e autoritárias, caso contrário, engessamos nossa capacidade de pensar e seremos escra­vos de nossa rigidez.
Devido às distorções inevitáveis ocorridas no processo de interpretação e de construção multifocal de pensamentos, o uso da democracia das idéias torna-se não um luxo intelectual, mas vital e necessário nas relações sociais e na produção científica.
A liberdade humana não é cultivada apenas pelo fato de o homem aprender a produzir pensamentos e expressá-los livremente, pois os ditado­res, os psicopatas e os que praticam as múltiplas formas de discriminação usam suas produções de pensamento para defender suas idéias anti-humanísticas. A liberdade do Homo intelligens (homem consciente) é culti­vada quando ele aprende a pensar sobre o Homo interpres (bastidores in­conscientes da inteligência), ou seja, pensar criticamente sobre o próprio pensamento, quando procura suas origens e processos intelectuais, quando conquista um conhecimento básico sobre os limites e alcance da constru­ção da sua inteligência, quando aprende a desenvolver com maturidade a arte de pensar. Assim, ele pode reunir subsídios para desenvolver uma sólida consciência crítica, um exercício maduro da cidadania, do humanismo e da democracia das idéias.
O enfileiramento de centenas de milhares de soldados germânicos na promoção do holocausto judeu ocorreu não apenas pelos fatores sociais, econômicos e políticos da Alemanha pré-nazista, e nem pela agenda nazis­ta de Hitler, pois esses fatores eram extrapsiquicos. Ocorreu também por fatores intrapsíquicos, dos quais se destaca a psicoadaptação à dor dos ju­deus, a dificuldade da liderança alemã e dos soldados em se interiorizar, gerenciar seus pensamentos e revisar seus paradigmas. Os nazistas eram violentos por fora, mas frágeis por dentro, no território da inteligência. A Alemanha sempre foi um dos mais nobres celeiros de idéias e de pensado­res, tais como Kant, Hegel e Schopenhauer. Todavia, a cultura histórica não é insuficiente para conter a agressividade e a violação dos direitos hu­manos em determinados períodos.
Devido à conjunção de fatores externos e psíquicos, os nazistas fizeram um corte radical com as raízes intelectuais e a história social de sua nação. O homem instintivo prevaleceu e controlou o homem pensante. As rea­ções inumanas que eles produziram indicam que é possível um grupo de pessoas anular a história do seu povo, construída ao longo dos séculos, e viver em função dos paradigmas construído em determinado momento histórico. Se as bases filosóficas e psicológicas do humanismo e da demo­cracia das idéias não forem amplamente incorporadas, através da educa­ção, a cada geração, outros holocaustos surgirão. De fato, alguns holocaustos têm surgido depois da Segunda Grande Guerra. Basta citar o dramático e indescritível genocídio de Ruanda, no fim do século XX, o século mais prodigioso para a ciência: neste genocídio milhares de homens, mulheres e crianças foram dizimados a golpes de clavas e facões.
A única "vacina intelectual" segura contra as múltiplas formas de violên­cia é a construída todos os dias no cerne do espírito e da alma humana, no âmago da construção da inteligência. A construção de pensamentos é mais vulnerável e influenciável do que podemos imaginar, principalmente nas situações estressantes; por isso, se as bases que regulam o processo de inter­pretação não for a democracia das idéias, o humanismo e o exercício da cidadania, podem-se cometer as maiores atrocidades humanas, seja uma Ruanda, desprovida do brilho da cultura ocidental, ou uma Alemanha, que contém a fina flor do pensamento filosófico. A nação mais solidária, tolerante e humanista pode, na geração seguinte, produzir as mais repug­nantes violações dos direitos humanos.
Somos uma espécie que tem o privilégio da capacidade de pensar, mas que não conhece minimamente as origens da sua inteligência. Infelizmen­te, raramente temos uma relação humanista e poética com a nossa própria espécie. Raramente temos consciência de que a teoria da igualdade é mais do que uma teoria ética, mas uma inevitabilidade; que a democracia das idéias é mais do que um discurso teórico, mas é ou deveria ser um mecanis­mo psicossocial regulador do processo de interpretação. Por esses motivos, apesar de sermos uma espécie pensante que está no topo da inteligência de dezenas de milhões de espécies na biosfera terrestre, temos tido grande dificuldade de viabilização psicossocial.
Nas sociedades modernas, há uma verdadeira crise de interiorização crítica e de idéias humanistas; por isso é fundamental que o conhecimento possa ser democratizado, humanizado; que a produção das idéias seja orga­nizada e promovida nos territórios sociais, e não seja apenas privilégio de uma elite de pensadores. Essa visão, como disse, estimulou-me a exercer a "cidadania da ciência" e, ao mesmo tempo, fez-me desenvolver críticas sobre o papel sociopolítico e histórico-social das instituições acadêmicas, bem como de uma série de outras instituições sociais e de posturas inte­lectuais individuais que ferem a democracia das idéias.

A PRÁTICA DO AUTORITARISMO DAS IDÉIAS NO PROCESSO DE INTERPRETAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIOPROFISSIONAIS

A ciência é um dos frutos mais nobres da "respiração da interpretação" da mente humana. A interpretação reduz a realidade essencial dos fenôme­nos e dos sistemas de relações que eles mantêm entre si. Por exemplo, toda angústia, dor, desespero que percebo do outro é sempre um exercício da interpretação que faço dele e que é passível de distorções e reduções em relação à essência emocional que ele está vivendo.
Qualquer processo ou sistema da interpretação comete inconscientemente distorções e produz injustiça em relação ao objeto interpretado. Porém, há grande diferença entre a interpretação que é extraída de um processo de interpretação realizado dentro do campo da democracia das idéias e que revisa criticamente o conhecimento produzido, da interpretação extraída de um processo de interpretação que desconsidera completamente a demo­cracia das idéias e qualquer questionamento do processo de interpretação e do conhecimento produzido. O resultado desta última interpretação tem a pretensão absurda e autoritária de proclamar que a verdade da interpreta­ção é idêntica à verdade essencial.
Devemos desconfiar de todas as pessoas que tentam impor seus pensa­mentos e querem que o mundo gravite em torno de suas idéias, de suas verdades. Os homens que são incapazes de ser questionados, ainda que tenham elevada cultura e poder político, são frágeis, se escondem atrás de sua agressividade.
Toda interpretação comete injustiça em relação ao objeto interpretado; mas as grandes injustiças, as grandes distorções, seja na esfera científica ou na esfera dos direitos humanos, foram produzidas pela prática do tendencialismo, pela falta de consciência crítica sobre as distorções passíveis de ocorrer no processo de construção de pensamento.
Toda vez que pensarmos que "algo" é "assim", deve estar claro que esse "algo" nunca é exatamente "assim", pois este "assim" é um sistema intelectual que, além de não ser idêntico à essência real desse "algo", é passível de diversas distorções. Há inúmeras conseqüências psicossociais derivadas des­ses fatos. Os pais compreendem menos os filhos do que imaginam. Os juízes e promotores distorcem mais seus julgamentos do que têm consciência. Os jornalistas distorcem mais as informações do que acreditam. Os políticos desfiguram a realidade mais do que têm consciência dela. Os psicoterapeutas compreendem menos seus pacientes do que pensam.
Não é possível impedir que se cometam determinadas injustiças inte­lectuais no processo de interpretação, mas a prática deliberada e conscien­te do autoritarismo das idéias e da ditadura do discurso teórico é anti-científica, antidemocrática e anti-humanística. O homem que não duvida e critica suas próprias interpretações, ainda que tenha excelente cultura e eloqüência dialética, torna-se um agente micro ou macrodestrutivo da sua sociedade.
Se a utilização de uma teoria psicológica pode ser muito importante para enriquecer a produção de conhecimento sobre o paciente e a eficiên­cia do processo psicoterapêutico, pode também ser contracionista se utili­zada autoritária e ditatorialmente. Por isso, é imprescindível que todas as sociedades de psicoterapias, independentemente da corrente teórica que utilizam, possam compreender os limites e alcance de uma teoria no pro­cesso de interpretação e alguns aspectos básicos dos processos de constru­ção dos pensamentos, para que possam estimular a capacidade crítica de pensar dos psicoterapeutas e conduzi-los a compreender e cultivar a demo­cracia das idéias no processo psicoterapêutico, inclusive estimular os pa­cientes a desenvolver a arte de pensar.
A democracia das idéias é tão importante, que qualquer ser humano deveria expor e defender suas idéias em quaisquer níveis das relações hu­manas, mas nunca deveria impô-las como verdades irrefutáveis. Devido à relevância da democracia das idéias e à sua superioridade em relação à democracia política, eu a aplico de diversas maneiras nos textos deste livro. A democracia das idéias é um canteiro vivo onde se cultiva o humanismo, a cidadania e a capacidade crítica de pensar.
Alguém poderia argumentar que a matemática é a ciência mais lógica e deveria ser usada como princípio básico em todas as ciências, inclusive nas ciências da cultura. Vários pensadores exaltaram os princípios da Matemá­tica e quiseram usá-los para regular a produção de conhecimento, conformando-a aos limites da lógica.
Os princípios da Matemática são importantes e seduziram filósofos, psicólogos, sociólogos, psicopedagogos etc, porque eles são constituídos de leis lógicas, que se pautam pela linearidade e previsibilidade. As leis físíco-químicas também possuem lógica, linearidade e previsibilidade. Porém, esses pensadores não compreenderam que a verdade científica é deri­vada da verdade da interpretação e não da verdade essencial dos fenôme­nos; e a verdade da interpretação está sujeita não apenas aos limites da virtualidade da consciência, mas também aos sistemas de encadeamentos distorcidos ocorridos no processo de interpretação e, conseqüentemente, no processo de construtividade dos pensamentos (conhecimento). A verda­de científica possui um distanciamento infinito em relação à verdade essen­cial, embora possa ser submetida à prova, produzir aplicabilidades e gerar previsibilidades.
A verdade científica é uma consciência virtual, formada por pensamen­tos dialéticos, sobre a realidade essencial. Entre o que é virtual e o que é essencial existe uma distância intransponível.
Grande parte dos professores, inclusive universitários, provavelmente nunca perceberam que os pensamentos e, conseqüentemente, as verdades científicas descrevem os fenômenos, mas, ao mesmo tempo, jamais os in­corporam essencialmente, pois estão a uma distância infinita, intransponível em relação a eles. Devido a essa falta de compreensão, os professores, ao transmitir o conhecimento em sala de aula, usam argumentos e uma tonali­dade lingüística que impõem as idéias e não as expõem, expressando que a verdade científica é idêntica à verdade essencial. Eles praticam uma dita­dura do pensamento por desconhecerem a natureza e os limites do conhe­cimento. As salas de aulas, mesmo nos países que mais honram a democra­cia política, nem sempre são albergues da democracia das idéias, mas do autoritarismo das idéias. Por isso, as escolas formam homens que retrans­mitem o conhecimento, mas que não são pensadores humanistas.
As verdades científicas sofrem contínuas transformações ao longo do tempo, porque são sistemas de intenções intelectuais que tentam descrever e discursar sobre os fenômenos e objetos de estudos. Com o avanço das pesquisas, as verdades científicas se tornam paradigmas ultrapassados. As verdades científicas de há um século foram profundamente repensadas. Daqui a um século, grande parte do conhecimento, que hoje é aceito como verdade científica, também será profundamente reorganizado.
A verdade científica não coincide jamais com a verdade essencial dos fenômenos, embora possa produzir conseqüências científicas, tais como a comprovação dos argumentos e aplicabilidades técnicas. Além disso, a ló­gica, linearidade e previsibilidade, que são características fundamentais que promovem a produção de conhecimento na Física, na Química, na Biolo­gia, etc, são restritivas para esquadrinhar psicodinamicamente os proces­sos de construção dos pensamentos.
Os processos de construção das cadeias psicodinâmicas dos pensamen­tos ultrapassam os limites da lógica, da linearidade e da previsibilidade das leis da Matemática contidas nos processos fisico-químicos. Os pensamentos esquadrinham e utilizam os princípios da Matemática, mas eles têm uma natureza e construtividade que ultrapassam esses princípios, que ultrapas­sam a lógica, a previsibilidade e a linearidade dos mesmos.
Todo pesquisador ou utilizador de uma teoria deveria ser um democra­ta das idéias e, tanto quanto possível, rever as idéias e expandir os discursos teóricos contidos na mesma, e não utilizá-los com autoritarismo e com uma postura ditatorial, circunscrevendo rigidamente os fenômenos de estudos apenas dentro dos seus limites, como se quisesse prestar a ela uma fidelida­de inalcançável e encontrar a partir dela uma verdade essencial inatingível.
O homem deveria ser livre na sua mente. A mais refinada e nobre liberdade ocorre na fonte produtora dos pensamentos. Há muitas pessoas que não são autoritárias com os outros, mas são extremamente rígidas con­sigo mesmas, pois conduzem suas vidas, sua capacidade de contemplação do belo, de superação dos estímulos estressantes e sua capacidade de dar soluções aos conflitos interpessoais e às intempéries socioprofissionais den­tro dos limites contracionistas, rígidos e irrecicláveis das suas idéias, de seus paradigmas socioculturais, de sua maneira de ser e de pensar. Há milhões de pessoas ditadoras de si mesmas nas diversas sociedades, pessoas que são incapazes de ferir e tolher conscientemente os direitos dos outros, mas que são algozes, carrascos de si mesmas. Essas pessoas não se permitem relaxar, errar, começar tudo de novo, experimentar o prazer de viver, etc. Eu costu­mo dizer que as pessoas rígidas e autopunitivas dançam a valsa da vida com as duas pernas engessadas. Elas costumam ser ótimas para os outros, mas péssimas para si mesmas.
Pode-se ter privilégios econômicos, sucesso social e liberdade de ex­pressão, mas, ainda assim, ser um prisioneiro no seu próprio mundo, na sua própria mente, praticam o autoritarismo e o auto-autoritarismo das idéias.


Capítulo 15

A Reorganização do Caos da Energia Psíquica


O processo de construção dos pensamentos gera múltiplas formas de "conhecimento", que são direcionadas para produzir a ciên­cia, a tecnologia, as artes, as relações humanas, o processo socioeducacional e profissional. Porém, em detrimento de o "conhecimen­to" ser o material fundamental de toda produção intelectual, pouco se co­nhece de sua natureza intrínseca, bem como das variáveis que co-interfe­rem mutuamente e que participam dos seus processos de construção.
Percorrer algumas trajetórias do conhecimento sobre o próprio conhe­cimento e sobre a fonte que o produz pode nos remeter temporariamente a um profundo estado de ansiedade e a um dramático caos intelectual, que pode expandir a produção de novos pensamentos.
Há três tipos de caos que abrangem, talvez, a totalidade dos tipos de caos existentes no universo: o caos físico-químico, o caos da energia psíqui­ca e o caos intelectual.
Neste capítulo, farei um comentário um pouco mais abrangente sobre o caos da energia psíquica, bem como sobre o fluxo vital dos fenômenos da mente e sobre a reorganização do caos através da leitura da história intrapsíquica e dos sistemas de co-interferência das variáveis. Além disso, também farei um breve comentário sobre o caos físico-químico.
O conceito, expresso neste livro, dos vários tipos de "caos" implica um processo vital de construtividade, expresso pela organização, desorganiza­ção e reorganização dos fenômenos. Antes de abordar mais extensamente o caos da energia psíquica, eu gostaria de fazer uma pequena síntese do que penso sobre o caos físico-químico. Quero, entretanto, reafirmar que a teoria sobre o caos intelectual e o caos da energia psíquica foi, como os demais textos deste livro, produzida sem nenhuma influência sistemática de outras teorias e de outros teóricos. A teoria do caos intelectual e do caos da energia psíquica pertencem à teoria multifocal do conhecimento (TMC).
Não podemos confundir o caos da energia com o caos intelectual. O caos da energia psíquica refere-se ao fluxo contínuo de pensamentos e de emoções que ocorre no cerne da psique; enquanto o caos intelectual é um procedimento de pesquisa, refere-se a um "desmoronamento" dos concei­tos para descontaminar o processo de observação e interpretação.

O CAOS FÍSICO-QUÍMICO

O caos físico-químico está presente em todo o universo, expandindo as possibilidades de construção da matéria e da energia.
No processo de decomposição dos organismos, ocorre o caos físico-químico e, assim, os átomos e as moléculas são incorporadas ao solo e passam a fazer parte de novas estruturas fisico-químicas. Partes desses ele­mentos também serão incorporados e assimilados novamente nas cadeias alimentares. No ciclo da água, na formação das rochas, na fusão nuclear ocorrida no Sol, no ambiente de cada átomo, na formação dos planetas, nos buracos negros, etc, o caos está presente, não é estático.
O alimento digerido experimenta o caos, para depois ser assimilado e incorporado pelo organismo. Somente depois de experimentarem o caos é que os alimentos se tornam materiais de construção.

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