Copyright © 1998 Dr. Augusto
Jorge Cury.
Dados Internacionais de
Catalogação na Publicação
(CIP) (Câmara Brasileira do
Livro, SP, Brasil)
Cury, Augusto Jorge, 1958- .
Inteligência multifocal:
análise da construção dos pensamentos e da formação de pensadores/ Augusto
Jorge Cury. — 8. ed. rev. — São Paulo : Cultrix, 2006.
Bibliografia.
ISBN 85-316-0159-2
1. Conhecimento — Teoria 2.
Inteligência 3. Memória 4. Pensamento I. Titulo.
Índices para catálogo
sistemático: 1. Inteligência multifocal: Psicologia
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O livro impresso tem 335
páginas.
Contracapa:
"Espero que este livro
possa tanto expandir o mundo das idéias na Ciência como estimular a formação de
pensadores, de engenheiros de idéias, de poetas da existência, de pessoas que
consideram a procura da maturidade da inteligência e a conquista da sabedoria
como tesouros de inestimável valor."
* * *
Há livros que nos inspiram,
que nos emocionam, mas que não modificam a nossa história pessoal. Mas há
alguns que revolucionam a ciência, estilhaçam os paradigmas intelectuais e
modificam para sempre a nossa maneira de pensar o mundo a nós mesmos.
Inteligência Multifocal enquadra-se nesta última categoria. Seu autor, o dr.
Augusto Jorge Cury, é um cientista teórico, pensador humanista da Psicologia e
da -Filosofia, psiquiatra, psicoterapeuta e consultor de universidades para o
desenvolvimento da inteligência multifocal. Suasx idéias são originais,
profundas, eloqüentes e críticas. Unindo a Psicologia com a Filosofia, ele abre
as janelas da nossa inteligência, estimula-nos a desenvolver a arte de pensar e
desvenda-nos o complexo funcionamento da mente humana.
Atualmente, as teorias de
maior impacto que enfatizam a área do desenvolvimento da inteligência são a de
Daniel Goleman, com a Inteligência
Emocional, e a teoria das Inteligências
Múltiplas, de Howard Gardner.
Levando em conta o fato de
que todos os processos de construção da inteligência são multifocais, a teoria
proposta pelo dr. Cury tem sobre essas duas teorias e sobre todas as outras a
vantagem de ser muito mais abrangente, pois envolve toda produção intelectual,
histórica, cultural, emocional e social criada na trajetória da existência
humana.
Inteligência Multifocal traz uma nova, original e revolucionária teoria que,
além de ampliar os horizontes da Psicologia, da Filosofia, da Psiquiatria e da
Educação, muda nossos paradigmas e estimula a formação do homem como pensador e
engenheiro de idéias.
Primeira Aba:
Algumas particularidades que
fazem de Inteligência Multifocal um
livro instigante:
- O livro traz a primeira
teoria ampla sobre o funcionamento da mente humana criada por um cientista
brasileiro e uma das poucas produzidas em termos mundiais.
- A primeira teoria
científica a afirmar que não apenas o eu faz a leitura da mémoria, mas que há
três outros fenômenos nos bastidores inconscientes da mente humana que também
lêem a memória e constroem cadeias de pensamentos sem a autorização do eu.
- A primeira teoria a estudar
o fluxo vital da energia psíquica, que é o princípio dos princípios que regem o
processo de formação da personalidade. Esse princípio incorpora o princípio do
prazer, de Freud, do self criador, de
Jung, da busca de proteção e segurança, de Erich Fromm, da busca de sentido
existencial, de Viktor Frankl, etc.
- A primeira teoria a estudar
e defender a tese de que pensar é mais do que uma opção do homo sapiens. Pensar é o seu destino inevitável, evidenciando que é
impossível interromper o processo de construção de pensamentos.
- Uma das poucas teorias que
não apenas produzem conhecimento psicológico, mas também descrevem os
procedimentos utilizados no seu processo de construção, tais como a arte da
observação, a análise multifocal, a arte da pergunta, a arte da dúvida, a arte
da crítica, a busca do processo de descontaminação itnerpretativa, etc.
- A primeira teoria a
descrever duas graves doenças psicossociais da modernidade: a síndrome da
exteriorização existencial, caracterizada pela incapacidade de se interiorizar,
repensar, reorganizar, etc., e o mal do logos estéril, caracterizado pela
incorporação do conhecimento sem deleite, sem desafio, sem crítica, sem
conhecer seu processo de construção, sem compromisso social, etc.
Segunda Aba:
Ao se ler o livro Inteligência Multifocal compreenderemos
que, para explicar certas aberrações do comportamento humano, como a violação
dos direitos humanos, bem como tantas outras formas de autoritarismo que
ocorrem em ambientes que estão acima da auspeição de qualquer tipo de violência
— tais como nas universidades, no sistema político, nos consultórios de
psicoterapia, nos sistemas de discipulado científico —, é necessário conhecer
as origens da inteligência humana, o nascedouro das idéias, os limites e
alcance dos pensamentos. Este livro ampliará os horizontes da Psicologia, da
Filosofia, da Neurociência e da Educação e faz críticas sérias ao processo
educacional, que tem gerado uma crise de formação de pensadores que estenderá
por todoo século XXI.
Seu autor, o dr. Augusto
Jorge Cury, escreveu pacientemente, durante 17 anos, milhares de páginas para
delas extrair o texto deste livro. Ele provoca a nossa inteligência e leva-nos
a fazer uma das mais ricas viagens intelectuais que alguém possa empreeender:
uma viagem para dentro de nós mesmos, para os complexos bastidores da mente
humana.
Revela-nos que uma pessoa
multifocamente inteligente desenvolve a arte de ouvir, a arte da dúvida, a arte
da crítica, a arte de pensar antes de reagir, a arte de expor, e não de impor
as idéias, e, além disso, trabalha com maturidade suas dores e perdas,
transformando seus problemas em desafios, destilando sabedoria dos seus erros,
aprendendo a se colocar no lugar do outro e a perceber suas dores e
necessidades psicossociais, além de valorizar a cidadania, o humanismo e a
democracia das idéias.
(final da aba)
* * *
Ofereço esta obra a todos
aqueles que desejam ser caminhantes na trajetória do seu próprio ser, àqueles
que, mais do que usar o pensamento, desejam investigar a construção do
pensamento e se tornar pensadores humanistas.
Sumário
Prefácio
Há um mundo a ser descoberto
nos bastidores da mente humana; um mundo rico, sofisticado e interessante; um
mundo além da massificação da cultura, do consumismo, da cotação do dólar, da
tecnologia, da moda, do estereótipo da estética. Procurar conhecer este mundo é
uma aventura indescritível.
A jornada mais interessante
que um homem pode fazer não é a que ele faz quando viaja pelo espaço ou quando
navega pela Internet. Não! A viagem mais interessante é a que ele empreende
quando se interioriza, caminha pelas avenidas do seu próprio ser e procura as
origens da sua inteligência e os fenômenos que realizam o espetáculo da
construção de pensamentos e da "usina das emoções".
A espécie humana está no topo
da inteligência de milhões de espécies na natureza. Imagine como deve ser
complexa a atuação dos fenômenos psíquicos responsáveis pela nossa capacidade
de amar, de chorar, de sentir medo, de ter esperança, de antecipar situações do
futuro, de resgatar experiências passadas. Investigar as origens e os limites
da inteligência não é um dever, mas um direito fundamental do homem.
Este livro objetiva conduzir
o leitor a caminhar para dentro de si mesmo e expandir o mundo das idéias
sobre a mente humana, a construção de pensamentos e a formação de pensadores. Quando
realizamos essa jornada intelectual, nunca mais somos os mesmos, pois
começamos a repensar e reciclar nossas posturas intelectuais, nossas verdades,
nossos paradigmas socioculturais, nossos preconceitos existenciais. Passamos a
compreender o homem numa perspectiva humanística: psicológica, filosófica e
sociológica. Nossa visão sobre os direitos humanos sofre uma revolução
intelectual, pois começamos a compreender e a apreciar a teoria da igualdade a
partir da construção da inteligência. Começamos a enxergar que todos os seres
humanos possuem a mesma dignidade intelectual, pois mesmo um africano, vivendo
em dramática miséria, possui a mesma complexidade nos processos de construção
da inteligência que os intelectuais mais brilhantes das universidades.
Somos diferentes? Sim, o
material genético apresenta diferenças em cada ser humano; o ambiente social,
econômico e cultural também apresenta inúmeras variáveis na história de cada
um. Porém, todas essas diferenças estão na ponta do grande iceberg da inteligência.
Na imensa base desse iceberg somos mais iguais do que imaginamos. Todos
penetramos com indescritível habilidade na memória e resgatamos com extremo
acerto, em frações de segundos e em meio a bilhões de opções, as informações
que constituirão as cadeias dos pensamentos.
Construir idéias,
pensamentos, inferências, sínteses, resgates de experiências passadas, são
atividades sofisticadíssimas da inteligência. Se não fôssemos seres pensantes
não teríamos a "consciência existencial": a consciência de que
existimos e de que o mundo existe. Não poderíamos amar, desconfiar, nos
alegrar, conferir, ter medo, sonhar, pois tudo o que fizéssemos seria apenas
reações instintivas e não frutos da vontade consciente. Ter uma consciência nos
faz, embora fisicamente pequenos, distintos de todo o universo. Sem a
consciência, que é o fruto mais espetacular da construção de pensamentos, nós e
o universo inteiro seríamos a mesma coisa.
Demorei muitos anos para
redigir estes textos. Isso ocorreu porque eles não abordam um assunto
científico comum, mas desenvolvem uma nova e original teoria sobre o
funcionamento da mente humana e o processo de construção da inteligência. Uma
teoria é uma fonte de pesquisas. Uma teoria bem elaborada abre as janelas da
mente daqueles que a utilizam, expandindo, assim, os horizontes da ciência.
Estamos, agora, numa nova
edição. Os textos da primeira edição foram reorganizados e novas idéias foram
acrescentadas. Alguns capítulos centrais do livro foram mudados de posição,
passando para o início, para que os leitores tomem, logo nos primeiros
capítulos, contato com os fenômenos que constituem o cerne da teoria. Encorajo
os leitores a utilizarem constantemente o glossário para se familiarizarem com
os termos.
Vivemos num mundo onde o
pensamento está massificado, o consumismo se tornou uma droga coletiva, a
paranóia da estética controla o comportamento, as cotações do dólar e das ações
nas bolsas de valores ocupam excessivamente o palco de nossa mente. Um mundo
onde as pessoas buscam o prazer imediato, têm pouco interesse em repensar sua
maneira de ver a vida e reagir ao mundo e principalmente em investigar os
mistérios que norteiam a sua capacidade de pensar.
Espero que este livro
provoque uma pausa na vida dos leitores, que os estimule a se interiorizarem.
Desejo que ele contribua não apenas para expandir o mundo das idéias na
psicologia e na filosofia e se tornar fonte de pesquisa nas ciências, mas
também possa funcionar como estimulador da formação de pensadores humanistas,
de engenheiros de idéias, de poetas existenciais, de pessoas que consideram a
procura da maturidade da inteligência e a conquista da sabedoria existencial
tesouros intelectuais de inestimável valor.
Capítulo 1
Minha Trajetória de Pesquisa: Princípios da Formação de Pensadores
O HOMEM MODERNO E A CRISE DE INTERIORIZAÇÃO
Uma das mais importantes
explorações do homem, se não a maior delas, é a exploração de si mesmo, do seu
próprio mundo intrapsíquico. Aprender a se interiorizar; a criar raízes mais
profundas dentro de si mesmo; a explorar a história intrapsíquica arquivada na
memória; a questionar os paradigmas socioculturais; a trabalhar com maturidade
as dores, perdas e frustrações psicossociais; aprender a desenvolver
consciência crítica, a conhecer os processos básicos que constroem os pensamentos
e que constituem a consciência existencial são direitos fundamentais do homem.
Porém, freqüentemente, esses direitos são exercidos com superficialidade na
trajetória da vida humana. Um dos principais motivos do aborto desses direitos
é que o homem moderno tem vivido uma dramática crise de interiorização.
O ser humano, como complexo
ser pensante, é um exímio explorador. Ele explora, ainda>que sem a
consciência exploratória, até mesmo o meio ambiente intra-uterino, através dos
malabarismos fetais e da deglutição do líquido amniótico. E, ao nascer, em toda
a sua trajetória existencial, explora o mundo que o envolve, o rico pool de
estímulos sensoriais e interpreta-os.
Pelo fato de experimentar,
desde sua mais tenra história existencial, os estímulos sensoriais que
esquadrinham a arquitetura do mundo extra-psíquico, o homem tem a tendência
natural de desenvolver uma trajetória exploratória exteriorizante. Nessa
trajetória, ele se torna cada vez mais íntimo do mundo em que está, o
extrapsíquico, mas, ao mesmo tempo, torna-se um estranho para si mesmo.
O homem moderno, em
detrimento dos avanços da ciência e da tecnicidade, vive a mais angustiante e
paradoxal de todas as solidões psicossociais, expressa pelo abandono de si
mesmo na trajetória existencial. A pior solidão é aquela em que nós mesmos nos
abandonamos, e não aquela em que nos sentimos abandonados pelo mundo. É
possível nos abandonarmos na trajetória existencial? Veremos que sim. Quando o
homem não se repensa, não se questiona, não se recicla, não se reorganiza, ele
abandona a si mesmo, pois não se interioriza, ainda que tenha cultura e
múltiplas atividades sociais.
Os livros de auto-ajuda,
embora não tenham grande profundidade intelectual, são procurados com desespero
nas sociedades atuais, como tentativa de superar, ainda que ineficientemente,
a grave crise de interiorização que satura as pessoas. O homem que não se
interioriza é algoz de si mesmo, sofre de uma solidão intransponível e
incurável, ainda que viva em multidões.
"O homem que não se
interioriza dança a valsa da vida engessado intelectualmente." Sua
flexibilidade intelectual fica profundamente reduzida para solucionar seus
conflitos psicossociais, superar suas contrariedades, frustrações e perdas.
E mais fácil explorar os
fenômenos do mundo que nos envolve do que aprender a nos interiorizar e ser
caminhantes na trajetória de nosso próprio ser e explorar os fenômenos contidos
em nosso mundo intrapsíquico. É mais fácil e confortável explorar os estímulos extrapsíquicos,
que sensibilizam nosso sistema sensorial, do que explorar os sofisticados
processos de construção dos pensamentos, o nascedouro e desenvolvimento das
idéias, a organização da consciência existencial, as causas psicodinâmicas e
histórico-existenciais de nossas misérias, fragilidades, contradições
emocionais, etc.
Mergulhado num processo
socioeducacional que se ancora na transmissibilidade e no construtivismo do
conhecimento exteriorizante, o homem se torna um profissional que aprende a
usar, com determinados níveis de eficiência, o conhecimento como ferramenta ou
instrumento de trabalho. Porém, tem grandes dificuldades para usar o
conhecimento para desenvolver a inteligência: aprender a percorrer as avenidas
da sua própria mente, conhecer os limites e alcance básicos da construção de
pensamentos, regular seu processo de interpretação através da democracia das
idéias e tornar-se um pensador humanista, que trabalha com dignidade seus erros,
dores, perdas e frustrações, e aprende a se colocar no lugar do
"outro" e a perceber suas dores e necessidades psicossociais.
A SÍNDROME DA EXTERIORIZAÇÃO EXISTENCIAL
Infelizmente, como veremos, a
tendência intelectual natural do Homo sapiens, desde a aurora da vida
fetal até o seu último suspiro existencial, é seguir uma trajetória de
construção intelectual superficial. Uma trajetória socioeducacional em que ele
pouco se interioriza, pouco procura por si mesmo e pouco conhece a si mesmo.
Procurar a si mesmo é
explorar e produzir conhecimento sobre os processos de construção da
inteligência, ou seja, sobre os processos de construção dos pensamentos, sua
natureza, cadeias psicodinâmicas, limites, alcance, lógica, práxis, bem como
sobre a formação da consciência existencial, da história intrapsíquica arquivada
na memória, as bases que sustentam o processo de interpretação e as variáveis
que participam do processo de transformação da energia emocional.
Quem sai do discurso
intelectual superficial e procura "velejar" para dentro de si mesmo,
e vive a aventura ímpar de explorar sua própria mente, nunca mais será o
mesmo, ainda que fique perturbado num emaranhado de dúvidas sobre o seu
próprio ser. Aliás, ao contrário do que dizem os livros de auto-ajuda, a dúvida
é o primeiro degrau da sabedoria.
Quem não duvida e critica a
si mesmo nunca se posiciona como aprendiz diante da vida e, conseqüentemente,
nunca explora com profundidade seu próprio mundo intrapsíquico. Quem aprendeu a
vivenciar a arte da dúvida e da crítica na sua trajetória existencial se
posiciona como aprendiz diante da vida e, por isso, tem condições intelectuais
de repensar seus paradigmas socioculturais e expandir continuamente suas idéias
e maturidade psicossocial. Todos os pensadores, filósofos, teóricos e
cientistas que, de alguma forma, promoveram a ciência, as artes e as idéias
humanistas foram, ainda que minimamente, caminhantes nas trajetórias do seu
próprio ser e amantes da arte da dúvida e da crítica, enquanto produziam
conhecimento sobre os fenômenos que contemplavam.
O homem que aprende a se
interiorizar e a criticar suas "verdades", seus dogmas e seus
paradigmas socioculturais estimula a revolução da construção das idéias nos
bastidores clandestinos de sua mente. Assim, sai do superficialismo intelectual
e, no mínimo, aprende a concluir que os processos de construção da
inteligência, dos quais se destacam a produção das cadeias psicodinâmicas dos
pensamentos e a formação da consciência existencial do "eu", são
intrinsecamente mais complexos que uma explicação psicológica e filosófica
meramente especulativa e superficial, que chamo de explicacionismo,
psicologismo, filosofismo.
O homem moderno tem
vivenciado, com freqüência, uma importante síndrome psicossocial doentia, a
qual chamo de "síndrome da exteriorização O ser humano, nos dias atuais,
freqüentemente só tem coragem de falar de si mesmo quando vai a um psicólogo ou
a um psiquiatra. Tem uma necessidade vital de que o mundo gravite em torno de
si mesmo. Para ele, doar-se para o outro sem esperar a contrapartida do retorno
é um absurdo existencial, um jargão intelectual, um delírio humanístico. O
mundo das idéias dos portadores da síndrome da exteriorização existencial tem
pouco espaço para uma compreensão psicossocial e filosófica da existência
humana.
Aprender a interiorizar-se é
uma arte complexa e difícil de ser conseguida no terreno da existência. O homem
moderno tem sido um ávido consumidor de idéias positivistas misticistas,
psicologistas, como se tal consumo cumprisse, por ele, o papel inalienável e
intransferível de caminhar nas trajetórias sinuosas do seu próprio ser e de
aprender a expandir sua consciência crítica e maturidade intelecto-emocional.
PESQUISANDO E ESCREVENDO COMO UM ENGENHEIRO DE IDÉIAS
A complexidade da mente,
associada às deficiências do discurso literário para esquadrinhar os fenômenos
e processos envolvidos na construtividade de pensamentos, na formação da
consciência existencial e na transformação da energia psíquica, fizeram-me
rever, criticar e reescrever continuamente os textos deste livro. Por isso,
passei mais de dezessete anos de intensa dedicação a escrevê-los, bem como aos
demais textos que compõem o arcabouço teórico da minha produção de
conhecimento e que ainda não foram publicados, objetivando que esses textos não
sejam efêmeros na ciência, mas que criem raízes e sejam úteis em diversas áreas
psicossociais.
A maioria das idéias contidas
nas frases que escrevi foram, dentro das minhas limitações, cuidadosamente
elaboradas para que expressem com um pouco mais de justiça intelectual alguns
fenômenos sofisticados que atuam nos bastidores inconscientes e nos palcos
conscientes da inteligência. Por trás de diversas frases se escondem
mecanismos psicodinâmicos sofisticados. Seria possível escrever um estudo à
parte sobre algumas delas, o que escapa aos objetivos deste livro. Além disso,
um problema aconteceu inevitavelmente com a fraseologia ou construção das
frases; elas se tornaram freqüentemente longas, devido à complexidade das
idéias nelas circunscritas, diferente das frases jornalísticas, que são
curtas, de fácil entendimento, porque encerram normalmente assuntos sem muita
complexidade.
Escrevi este livro não apenas
como um escritor, mas como um engenheiro de idéias... Cada idéia nele contida
sofreu uma engenharia dialética. Por isso, até aquelas que estão nos labirintos
dos textos e que, às vezes, passam despercebidas à compreensão, são
importantes.
Na construção das idéias,
tive de me tornar inevitavelmente um "neologista", ou seja, um
construtor e empregador de diversas palavras ou expressões novas — não
existentes na linguagem científica e coloquial — tais como psicoadaptação, Homo
interpres, fenômeno do "autofluxo", ou de palavras antigas com um
sentido novo, tais como "autochecagem da memória" e "âncora da
memória", pois a linguagem científica e coloquial se mostraram
insuficientes para definir, conceituar e discursar teoricamente a construção
dos fundamentos da inteligência. Além disso, uso freqüentemente o sufixo latino
"dade", tais como circunstancialidade, construtividade, evolutividade,
com o objetivo de romper a condição estática das palavras.
Ao usar esse sufixo, quero
resgatar o conteúdo filosófico da palavra, quero que ela expresse a dimensão, a
qualidade e a continuidade de um fenômeno ou de um processo (conjunto de
fenômenos). Por exemplo, ao escrever "construtividade de
pensamentos", quero dizer mais do que uma simples construção de
pensamentos, mas a essência dessa construção, ou seja, um processo de
construção psicodinamicamente ativo, evolutivo, que experimenta o caos para, em
seguida, se reorganizar em novas construções. Quando falo era
"circunstancialidades psicossociais" quero dizer não apenas algumas
circunstâncias particulares, mas a essência e o movimento das circunstâncias
psicossociais vivenciadas no processo existencial. Quando comento a
"evolutividade psicossocial", estou-me referindo a evoluções que
ocorrem continuamente no processo de construção do pensamento de cada ser
humano e que contribuem para a evolução da cultura. Porém, apesar desse zelo
teórico, as deficiências do discurso literário para expressar o processo de
construção do pensamento e o universo psicossocial como um todo do homem ainda
são grandes.
As letras deveriam servir às
idéias e não as idéias às letras e às regras gramaticais, como não poucas vezes
acontece. As letras e a gramática deveriam libertar o pensamento; ser um canal
de veiculação das idéias. Porém, nem sempre as frases e os textos mais
compreensíveis são mais justos para expressar as idéias de um autor, embora
facilitem a vida do leitor. As letras reduzem inevitavelmente as idéias; os
labirintos gramaticais, às vezes, aprisionam os pensamentos. A linguagem tem
um grande débito com o pensamento, principalmente com o pensamento psicológico
e filosófico.
Para termos uma idéia da deficiência
do discurso literário para expressar a ciência, basta dizer que os pontos
finais das frases, embora úteis para a compreensão da linguagem, são uma
mentira científica. Na ciência, não há pontos finais. Tudo é uma seqüência
interminável de eventos que mutuamente co-interferem. Por isso, não há
resposta completa em ciência e, muito menos, há resposta completa na aplicação
dos pensamentos procurando examinar suas próprias origens, seus próprios
processos de construção, limites, alcance, práxis, enfim, compreender a
própria fonte que os gera. Na ciência, cada resposta é o começo de novas
perguntas...
O pensamento, quando é
aplicado para discursar sobre o mundo extrapsíquico, facilmente ganha altivez;
mas, usado para discursar dialeticamente sobre a própria fonte que o concebe,
ele se abate. Quando o pensamento é utilizado para esquadrinhar o
pré-pensamento e os processos de construção que se envolvem na sua própria
construção, ele se perturba diante das suas limitações.
A psique (em grego = alma) é
constituída de um complexo campo de energia psíquica. Nela ocorrem todos os
processos que constroem as cadeias de pensamentos, transformam a energia
psíquica e escrevem os segredos da memória. Investigar os fenômenos que estão
na base da inteligência é uma grande empreitada a que todos os que pensam não
devem se furtar.
MINHA TRAJETÓRIA DE PESQUISA
O homem vive um dramático
paradoxo exploratório. Ele pensa, explora e conhece cada vez mais o mundo que
o envolve, mas pouco pensa sobre seu próprio ser, sobre a riquíssima construção
de pensamentos que explode num espetáculo indescritível a cada momento da
existência. O homem moderno, com as devidas exceções, perdeu o apreço pelo
mundo das idéias.
Apesar de ter escrito este
livro principalmente para pesquisadores, profissionais e estudantes da
Psicologia, da Psiquiatria, da Filosofia, da Educação e das demais áreas cuja
ferramenta fundamental seja o trabalho intelectual, eu gostaria que ele também
atingisse o leitor que não se considera um intelectual nessas áreas. O direito
de pensar com liberdade e consciência crítica é um direito fundamental de todo
ser humano; e este livro objetiva contribuir para esse direito.
Aprender a apreciar o mundo
das idéias, percorrendo as avenidas da arte da dúvida e da crítica, estimula o
processo de interiorização, expande a inteligência e contribui para a prevenção
da síndrome da exteriorização existencial e das doenças psíquicas.
Nestes textos, comentarei
alguns elementos psicossociais que contribuíram para promover minha trajetória
de pesquisa. Esses dados são bem sintéticos e não visam ser uma autobiografia.
Meu objetivo é fornecer algumas informações para evidenciar algumas causas
psicossociais que me fizeram, desde minha época de estudante de Medicina, me
apaixonar pelo mundo das idéias e, ao mesmo tempo, criticar diversas convenções
existentes na Psicologia e na Psiquiatria e evidenciar a crise de formação de
pensadores.
Este texto objetiva também
dar um "rosto histórico" à minha produção de conhecimento, pois creio
que o processo de produção é tão ou mais importante do que o próprio
conhecimento produzido. Um dos maiores erros da educação clássica, que bloqueia
a formação de pensadores, foi e tem sido o de transmitir o conhecimento pronto,
acabado, sem evidenciar o seu processo de produção, o seu rosto histórico.
No VII Congresso
Internacional de Educação *
ministrei uma conferência sobre "O funcionamento da mente e a formação
de pensadores no terceiro milênio". Na ocasião, comentei que no mundo
atual, apesar de termos multiplicado como nunca na história as informações, não
multiplicamos a formação dos homens que pensam. Estamos na era da informação e
da informatização, mas as funções mais importantes da inteligência não estão
sendo desenvolvidas.
Ao que tudo indica, o homem
do século XXI será menos criativo do que o homem do século XX. Há um clima no
ar que denuncia que os homens do futuro serão mais cultos, mas, ao mesmo tempo,
mais frágeis emocionalmente, terão mais informação, contudo serão menos íntimos
da sabedoria.
A cultura acadêmica não os
libertará do cárcere intelectual. Será um homem com mais capacidade de
respostas lógicas, mas com menos capacidade de dar respostas para a vida, com
menos capacidade de superar seus desafios, de lidar com suas dores e enfrentar
as contradições dá existência. Infelizmente, será um homem com menos capacidade
de proteger a sua emoção nos focos de tensão e com mais possibilidade de se
expor a doenças psíquicas e psicossomáticas. Será um homem livre por fora, mas
prisioneiro no território da emoção.
O sistema educacional que se
arrasta por séculos, embora possua professores com elevada dignidade, possui
teorias que não compreendem muito nem o funcionamento multifocal da mente
humana nem o processo de construção dos pensamentos. Por isso, enfileira os
alunos nas salas de aula e os transforma em espectadores passivos do
conhecimento e não em agentes do processo educacional.
Nos primeiros dois capítulos,
fornecerei alguns princípios psicológicos e filosóficos relevantes para o
desenvolvimento da arte de pensar. Posteriormente, do capítulo terceiro ao
nono, entrarei no cerne da teoria da construção da inteligência. A partir do
décimo capítulo retomo o processo.
de formação de pensadores e
aplico alguns elementos da teoria neste processo.
ALGUMAS CONVENÇÕES: A MENTE HUMANA, A INTELIGÊNCIA E A PERSONALIDADE
Usarei o termo
"mente" como o ambiente onde se processam as faculdades
intelectuais, onde se desenvolve a inteligência. A mente humana possui, nestes
textos, alguns termos equivalentes: a psique, a alma ou campo de energia
psíquica.
A inteligência é um conjunto
de estruturas psicodinâmicas derivadas do amplo funcionamento da mente. E a
capacidade de pensar, se emocionar, ter consciência. Ela é constituída de
quatro grandes processos, tais como construção de pensamentos, transformação da
energia emocional, formação da consciência existencial (quem sou, como estou,
onde estou) e formação da história existencial arquivada na memória.
Este livro trata muito mais
da construção da inteligência do que das suas funções. Todo ser humano constrói
uma inteligência, mas nem todos desenvolvem qualitativamente as funções mais
importantes, tais como pensar antes de reagir, expor e não impor as idéias,
gerenciar os pensamentos, resgatar a liderança do eu nos focos de tensão,
filtrar estímulos estressantes.
A inteligência e a
personalidade representam, aqui, termos equivalentes. Todos os dias esses
processos de construção da inteligência estão em atividade. Portanto, a
inteligência ou a personalidade não pára de evoluir, embora seu ritmo de
evolução possa diminuir na vida adulta.
Quando as pessoas dizem que
alguém é pouco ou muito inteligente ou que possui uma boa ou má característica
de personalidade, elas estão na realidade apenas se referindo a manifestação
exterior das funções da inteligência ou da personalidade e não sobre sua
construção. Elas não têm consciência dos surpreendentes dos fenômenos e dos
processos que produzem o homem como ser inteligente.
Outra convenção importante
está relacionada ao "eu". Aqui, o "eu" ou o
"self" não é um termo vago conceitualmente. Ele se refere a
"consciência de si mesmo", a consciência de que existimos e que
possuímos uma "identidade" única e exclusiva, a consciência de que
pensamos e que podemos administrar os pensamentos e as emoções. O adequado
seria chamarmos o "eu" de a "consciência do eu" ou "a
vontade consciente do eu", porque ele está relacionado aos amplos aspectos
da consciência e da vontade humana, mas por questões literárias o chamarei
apenas de "eu".
O grande desafio do
"eu" é gerenciar os processos de construção da inteligência,
expandindo as suas funções mais importantes. Contudo, estudaremos que o homem
tem um grande problema universal. Ele tem facilidade de ser líder no mundo que
o cerca, mas tem enorme dificuldade de ser líder no mundo psíquico, de
controlar o funcionamento da sua própria mente.
A SEDE DE CONHECIMENTO. RESPIRANDO A PESQUISA EMPÍRICA
Todo cientista que não seja
estéril é um aventureiro nas trajetórias do desconhecido, um aprendiz contumaz
no processo existencial, um rebelde das convenções do conhecimento.
Na minha trajetória de
pesquisa, o fascínio pela exploração dos processos de construção da
inteligência e a opção por produzir uma teoria totalmente original me estimularam
a desenvolver e utilizar procedimentos de pesquisa que expandiram meu processo
de observação, interpretação e produção de conhecimento.
Os procedimentos que usei na
pesquisa, tais como a "tríade de arte da pesquisa"(arte da pergunta,
arte da dúvida e arte da crítica), a análise multifocal das variáveis que
participam da construção dos pensamentos, levaram meu processo de observação,
seleção e interpretação dos dados a não ser unidirecional, visando um tipo
específico de comportamento produzido por um tipo específico de pessoa,
proveniente da mesma faixa etária e condições socioeconômicas semelhantes, mas
multidirecional. Eles levaram a explorar o máximo possível das variáveis
presentes em cada comportamento observado. Procurava descobrir até as variáveis
que estavam presentes nas entrelinhas dos pensamentos e no tom e na velocidade
de voz das pessoas que me rodeavam.
Devido à abrangência e
complexidade do projeto de pesquisa sobre os quatro grandes processos de
construção da inteligência, todas as pessoas que me eram próximas se tornavam
alvos das minhas observações e interpretações, pois eu precisava de dados com
as mesmas dimensões de abrangência. Mesmo as mínimas reações da minha mente se
tornavam um material precioso para observações e interpretações.
Em qualquer ambiente, nos
corredores da faculdade de Medicina, nas salas de aula, no leito dos pacientes,
nos ambientes sociais, nas ruas e, posteriormente, nos anos em que exercia a
Psicoterapia e a Psiquiatria, nos cursos que ministrava etc, eu observava
contínua e prazerosamente o comportamento das pessoas. Tinha sede de
conhecimento, vivia como se respirasse a investigação da personalidade, da
inteligência, da mente humana.
Uma revolução intelectual foi
provocada no cerne da minha alma. Não podia contê-la. Quando começamos a nos
interiorizar e a rever nossa maneira de pensar e nossos paradigmas
socioculturais nunca mais somos os mesmos... Por isso, procurava ser não apenas
um profissional que trabalhava com a personalidade, mas um engenheiro de idéias,
alguém que valorizava e construía idéias mesmo diante dos pequenos e
desprezíveis detalhes do comportamento. Percebi paulatinamente que na mente
ocorre um conjunto de processos de construção da inteligência, tais como o
processo de construção dos pensamentos, da formação da consciência existencial,
da formação da história intrapsíquica e da transformação da energia emocional
e motivacional.
Comecei a desejar produzir
não apenas um conhecimento psicológico qualquer, mas uma teoria sobre os
processos de construção presentes no campo de energia psíquica, embora esse
desejo fosse uma empreitada ousada e crítica das convenções do conhecimento.
Lembro-me de que o desejo de
produzir uma teoria original sobre os processos de construção da inteligência
estava me dominando tanto, que, antes de me casar, há mais de 16 anos, chamei
minha futura esposa de lado, que também era estudante de Medicina, e lhe disse
que se ela quisesse se casar comigo, teria que saber que grande parte do meu
tempo seria dedicada à pesquisa e à escrita. Na época, como estava no começo de
minhas pesquisas, eu não conseguia explicar a ela o conteúdo das minhas idéias,
meus objetivos e os resultados que poderia alcançar. Nem a mim mesmo eu
conseguia dar essas explicações. Parecia que eu estava numa sinuosa e
estimulante aventura. Só sabia que não conseguia conter a revolução das idéias
que se operava dentro de mim. Por isso, quanto mais falava a ela, mais a
deixava confusa.
Ela considerava tudo aquilo
estranho, pois ia se casar com um médico e sabia que um médico deveria estudar
doenças neurológicas, psiquiátricas, psicossomáticas etc, mas nunca tinha
ouvido falar que um médico tivesse preocupação em pesquisar os mistérios do
funcionamento da mente humana. Não entendia que o meu objetivo principal não
era exercer a Psiquiatria e a Psicoterapia, mas ser um "filósofo da
Psicologia", um teórico, um produtor de ciência. Ela entendia menos ainda
e se sentia insegura quando eu lhe dizia que estava sendo um crítico de
diversas convenções do conhecimento na Psicologia, que minha produção de
conhecimento era original e que demoraria muito tempo para que ela fosse
absorvida nos centros de pesquisas.
Ela pensava que eu estava
vivendo uma "febre" científica e acreditava que essa febre seria
passageira. Por fim, felizmente, ela se casou comigo. Passados mais de 17 anos,
desde quando iniciei minha trajetória de pesquisa
ESTIMULANDO A PESQUISA: OS FATORES PSICOSSOCIAIS E A DOR DA DEPRESSÃO
A sede de conhecimento e o
desejo de "respirar" a pesquisa científica não foram estimulados
pelos meus professores de Psicologia, Psiquiatria e Sociologia na faculdade de
Medicina, nem por qualquer pessoa com quem convivi.
O embrião dessa sede surgiu,
talvez, por viver num país com imensas desigualdades sociais, mas que, ao mesmo
tempo, possui um rico caldeirão de raças, de cultura e de afetividade e por ser
filho de imigrantes de origem multirracial, árabe, espanhol e ítalo-judia. Há
dúvida quanto à minha origem ítalo-judia, pois há possibilidade de que meus
antepassados tenham sido judeus que fugiram para a Itália e da Itália migraram
para o Brasil.
Meu desejo ardente de
pesquisar e de conhecer a mente humana também surgiu por ter vivido uma
infância rica afetivamente e próxima interpessoalmente, pois dormíamos em oito
pessoas, meus pais e seis filhos, num pequeno quarto de não mais do que 15
metros quadrados. Apesar de esses fatores psicossociais terem sido o embrião do
meu processo de interiorização, creio que o fator mais importante que
impulsionou minha trajetória de pesquisa foi uma crise de depressão por que
passei. Há mais de dezessete anos, vivi silenciosamente, por cerca de dois
meses, um intenso inverno emocional, a dor indescritível da depressão. A
tentativa desesperadora de superar esse intenso inverno emocional me estimulou
a me interiorizar.
O humor deprimido, a
ansiedade, a perda de energia biopsíquica, a insônia, a perda do sentido
existencial, os pensamentos de conteúdo negativo, os pensamentos
antecipatórios, associados a outros sintomas tornaram-se o cenário da minha
depressão. Não vou entrar em detalhes sobre este período existencial nem sobre
as causas da minha depressão, pois não é esse o objetivo deste livro. Porém,
quero dizer que minha crise depressiva se tornou uma das mais belas e importantes
ferramentas para me interiorizar e me estimular a procurar as origens dos meus
pensamentos de conteúdo negativo e as origens da transformação da minha energia
emocional depressiva.
Em síntese, a dor da
depressão, que considero o último estágio da dor humana, me conduziu a ser um
pensador da Psicologia e da Filosofia. Ela me levou não apenas a repensar minha
trajetória existencial e expandir a minha maneira de ver a vida e reagir ao
mundo, mas também me estimulou a iniciar uma pesquisa sobre o funcionamento da
mente, a natureza dos pensamentos e os processos de construção da inteligência.
O processo de interiorização foi uma tentativa desesperadora de tentar me
explicar e de superar minha miséria emocional.
Para muitos, a dor é um fator
de destruição; para outros, ela destila sabedoria, é um fator de crescimento.
Ninguém que deseja conquistar maturidade em sua inteligência, adquirir
sabedoria intelectual e tornar-se um pensador e um poeta da existência pode se
furtar de usar suas dores, perdas e frustrações que, às vezes, são
imprevisíveis e inevitáveis, como alicerces de crescimento humano.
Procurei, apesar de todas as
minhas limitações, investigar, analisar e criticar empiricamente os fundamentos
dos postulados biológicos da depressão, a psicodinâmica da construção dos
pensamentos de conteúdo negativo, os processos da transformação da energia
emocional depressiva etc. Esse caminho, no começo, foi um salto no escuro da
minha mente, um mergulho no caos intelectual, que desmoronou os conceitos e
paradigmas de vida. Esse mergulho interior me ajudou a reorganizar o caos
emocional, a dor da minha alma. Contudo, no início, me envolvi mais num
caldeirão de dúvidas do que de soluções. Porém, foi um bom começo.
O caos emocional da
depressão, se bem trabalhado, não é um fim em si mesmo, mas um precioso estágio
em que se expandem os horizontes da vida. Eu nunca havia percebido que, embora
produzisse muitas idéias, conhecia muito pouco o mundo das idéias, a
construção dos pensamentos e o processo de transformação da energia emocional.
Muitos psiquiatras não têm
idéia da dramaticidade da dor da depressão e das dificuldades de gerenciamento
dos pensamentos negativos que a promovem. Entretanto, o eu pode administrá-los
e, conseqüentemente, resolvê-la. Costumo dizer que se o eu der as costas para a
depressão e para os mecanismos subjacentes que a envolvem, ela se torna um
monstro insuperável, mas se a enfrentarmos com crítica e inteligência, ela se
torna uma doença fácil de ser superada. No capítulo sobre o gerenciamento do eu
este assunto ficará claro.
Meu inverno emocional gerou
uma bela primavera de vida, pois estimulou-me a sair da superfície
intelectual, da condição de ser um passante existencial, de alguém que passa
pela vida e não cria raízes dentro de si mesmo, para alguém que conseguiu se
encantar com o espetáculo da construção de pensamentos.
Não há gigantes no território
da emoção. Todos passamos por períodos dolorosos. Ninguém consegue controlar
todas as variáveis dentro e fora de si. Por isso, a vida humana é sinuosa,
turbulenta e bela. A sabedoria de um homem não está em não errar, chorar, se
angustiar e se fragilizar, mas em usar seu sofrimento como alicerce de sua
maturidade.
PESQUISANDO COM CRITÉRIO PARA EXPANDIR O MUNDO DAS IDÉIAS
Cada ser humano é um mundo
complexo e sofisticado a ser descoberto. Apesar da frustração que possamos ter
com o declínio do humanismo, com a epidemia psicossocial da síndrome da
exteriorização existencial, com as multiformes práticas discriminatórias e com
a baixa capacidade de trabalhar dores, perdas e frustrações que acometem muitos
consócios das sociedades modernas, quando procuramos contemplar e compreender o
espetáculo da construção dos pensamentos, não podemos deixar de nos encantar
com a obra-prima da mente humana.
A medida que eu procurava
investigar os processos de construção que ocorriam na minha mente, comecei
também, pouco a pouco, a me transportar para investigar o universo social.
Observar o homem, procurar indagar sobre os fenômenos intrapsíquicos que
produziam seus comportamentos me fascinavam.
A ousadia em querer
investigar o funcionamento da mente e a descoberta da arte da pergunta, da
arte da dúvida e da arte da crítica me faziam tão crítico, que, ainda nos
tempos de faculdade, por diversas vezes, eu formulava de maneira diferente o
conhecimento de Psicologia, de Psiquiatria e de Sociologia que me ensinavam.
Esse procedimento não derivava da falta de cultura dos meus professores; pelo
contrário, eu os considerava cultos. O problema era que a "tríade de arte
da pesquisa" que eu usava para analisar o que me ensinavam me impedia de
ser um espectador passivo do conhecimento.
Durante meu curso de
Medicina, comecei silenciosamente minha trajetória de pesquisa e a apreciar o
funcionamento da mente; por isso no final desse curso eu havia escrito diversos
cadernos sobre minhas observações e análises. Nesse período eu já começava a
ter algumas críticas contra a rigidez do sistema acadêmico.
Essas críticas aumentaram, ao
longo dos anos, à medida que fui produzindo conhecimento sobre a construção
dos pensamentos, os limites e a lógica do conhecimento, os limites das teorias,
as relações entre a verdade científica e a verdade essencial, o autoritarismo
das idéias.
Comentarei, sucintamente, uma
experiência que passei por me contrapor às regras do sistema acadêmico e que,
apesar de ter me angustiado, me estimulou a arte de pensar.
Lembro-me de que, há cerca de
16 anos, após ter-me formado em Medicina, procurei ingressar em uma conceituada
universidade para fazer pós-graduação. Ao me apresentar, peguei um texto que
havia escrito e o acrescentei em meu curriculum para mostrá-lo à banca
examinadora formada por ilustres professores doutores em Psiquiatria e
Psicologia.
Eu acreditava que eles iriam
ler algo da minha produção de conhecimento e, ainda que a criticassem,
esperava que, pelo menos, valorizassem minha capacidade de pensar. Pensava até
que os examinadores fariam algumas perguntas sobre o conhecimento que havia
produzido, apesar de estar consciente de que, na época, ele carecia de
profundidade. Porém, mesmo assim, acreditava que eles valorizariam e
incentivariam o ímpeto de pesquisar fenômenos tão complexos, por isso estava
animado com a possibilidade de discutir algumas das minhas idéias. Porém, para
minha frustração, os membros da banca examinadora pegaram aqueles textos e,
com uma postura intelectual autoritária, me perguntaram o que significava aquilo.
Respondi em poucas palavras que se referia a uma pesquisa que eu estava
realizando.
Perguntaram-me quem era o orientador
e qual era a teoria e a bibliografia usada. Respondi, educadamente, que era
uma pesquisa original; por isso não tinha nem orientador nem bibliografia.
Senti, pelo semblante dos examinadores, que os incomodei muito, que minhas
palavras soaram como um insulto à inteligência deles. Por isso se negaram a
analisar minha produção de conhecimento. Eles estavam tão enclausurados dentro
dos muros da sua universidade, que parecia uma heresia alguém produzir uma pesquisa
totalmente nova sobre o funcionamento da mente.
Eles usavam a ciência, mas
desconheciam a história e a lógica da ciência. Pareciam ser os senhores da
verdade, embora provavelmente não conhecessem a Filosofia da verdade, as
complexas relações entre a verdade científica e a verdade essencial, que serão
expostas no capítulo seguinte. Percebi que, no momento em que disse que minha
pesquisa era original, eles passaram a me ver como um rebelde ao sistema de
pesquisa que conheciam. Assim, exercendo o autoritarismo das idéias, pegaram
meu texto e, com a maior indiferença, me devolveram sem sequer manuseá-lo.
Seria mais digno e
democrático se eles o lessem e, após criticá-lo, me dissessem que eu era um
sonhador, que aquelas idéias eram tolas. A dor da crítica acusa a existência de
alguém e abre caminhos para amadurecê-lo, enquanto a dor da discriminação anula
sua existência. As universidades estão pouco preparadas para financiar
pesquisas abertas que objetivem a produção de teorias amplas, por isso grande
parte delas foram produzidas fora dos seus muros. Tal é o exemplo da teoria
psicanalítica de Freud e da relatividade de Einstein.
Após devolverem meu texto,
aqueles ilustres professores me pediram que eu retornasse à minha faculdade de
Medicina e procurasse meus professores de Psicologia e Psiquiatria, para que
produzisse pesquisa sob a orientação deles. Eles não imaginavam que, embora
respeitasse a cultura e a inteligência dos meus professores, estava-me tornando
íntimo da arte da dúvida e da crítica e, por isso, diversas vezes escrevia o
conteúdo das aulas de maneira diferente de como eles me ensinavam.
Não imaginavam que eu não
conseguia conter meu ímpeto independente de pesquisar. Catalogava cada
comportamento das pessoas ao meu redor e cada pensamento que transitava pela
minha mente e gastava tempo analisando-os. Meus bolsos viviam cheios de
anotações sobre minhas observações e interpretações e eu já havia perdido
algumas noites de sono pelas inúmeras dúvidas que tinha sobre os fenômenos que
atuam na complexa construção das cadeias de pensamentos.
Hoje, passados tantos anos,
os tempos mudaram. Minhas idéias têm sido cada vez mais conhecidas, respeitadas
e utilizadas por pesquisadores e profissionais não apenas no Brasil, mas em
outros países. Tenho proferido diversas conferências, inclusive em congressos
internacionais. A teoria da inteligência multifocal não apenas tem sido
aplicada na Psiquiatria e na Psicologia, mas também na Educação. Todavia, se no
começo de minhas pesquisas não tivesse vivido uma intensa paixão pelo mundo das
idéias, aqueles membros da banca examinadora teriam destruído meu interesse
pela investigação do funcionamento da mente.
Ao olhar para o passado,
tenho a consciência de que os "invernos" que passei no início das
pesquisas produziram minhas raízes intelectuais mais profundas. O fato de ter
aprendido a ser fiel a minha consciência fez com que os obstáculos temporários
que enfrentei se transformassem em alguns dos principais pilares da minha
capacidade de pensar e de pesquisar. Como estudaremos, esses obstáculos me
estimularam a produzir não apenas uma teoria, mas também, diferente da grande
maioria dos cientistas teóricos, criteriosos procedimentos de pesquisas na
produção dessa teoria.
Fico imaginando quantos
pensadores ilustres não tiveram sua produção de conhecimento abortada pela
postura autoritária do sistema acadêmico se impondo como o centro da produção e
da validação do conhecimento e como o centro exclusivo da produção de
intelectuais, de cientistas, de pensadores, de teóricos.
Parece paradoxal, mas o
sistema acadêmico não apenas forma intelectuais, mas também sufoca pensadores,
mesmo dentro da sua esfera. Muitos cientistas que estão dentro das
universidades sabem disso, pois de alguma forma sofrem restrição na sua
liberdade de pensar e de pesquisar.
A dor da depressão me
estimulou a conhecer o mundo das idéias e a dor da rejeição me incentivou a
expandir esse mundo com consciência crítica.
Se eu não tivesse passado por
tais dificuldades não teria, provavelmente, produzido uma nova e ampla teoria
sobre o processo de construção dos pensamentos com diversas implicações na
ciência.
Muitos pensadores foram
discriminados, considerados rebeldes e perturbadores da ordem ao longo da
história. Sócrates foi condenado a beber a cicuta, a morrer envenenado, pelo
incômodo que suas idéias causavam na época. Porém, ele considerou ser mais
digno tomar a cicuta do que ser infiel às suas idéias e ter uma dívida
impagável com sua própria consciência. Giordano Bruno, filósofo italiano, errou
por muitos países, procurando uma universidade para expor suas idéias, e por
isso experimentou diversos tipos de perseguição e sofrimento, culminando na
sua morte. Baruch Spinoza, um dos pais da Filosofia moderna, foi banido dramaticamente
pelos membros de sua sinagoga por causa das suas idéias, que chegaram,
inclusive, a amaldiçoá-lo, dizendo: "Que ele sej,a maldito durante o dia,
e maldito durante a noite; que seja maldito deitado, e maldito ao se levantar;
maldito ao sair, e maldito ao entrar...". Immanuel Kant foi tratado como
um cão pelo incômodo que suas idéias causavam no clero da época. Voltaire,
devido às suas idéias humanistas, passou por perseguições na sua época. A lista
de pensadores que foram discriminados ou sofreram perseguições é enorme.
As universidades, com as
devidas exceções, monopolizaram o conhecimento, se fecharam numa redoma, como
o clero nos séculos passados. Elas têm uma função humanística, sociopolítica e
socioeducacional importantíssima na sociedade, porém essas funções não têm
sido exercidas adequadamente. Embora possam não conhecer a teoria da
democracia das idéias, exposta nos capítulos finais, elas deveriam ser, ao
menos, albergues dos seus princípios universais.
Hoje é raro encontrar
pensadores fora da instituição acadêmica, como ocorreu nos séculos passados.
A ARTE DA OBSERVAÇÃO E DA ANÁLISE MULTIFOCAL
Eu vivia a arte da observação
e da análise multifocal. Observar a expressão de cada idéia, mesmo das mais
débeis, era uma aventura estimulante, pois provocava a minha ambição de
conhecer as variáveis que participavam do espetáculo da construção dos
pensamentos.
Ficava, como disse,
observando, anotando, interpretando e produzindo conhecimento sobre o
comportamento de determinadas pessoas. Ficava assombrado ao contemplar atenta e
embevecidamente pequenos detalhes do comportamento humano. Procurava
compreender os fenômenos que os produziam. Essa atitude me proporcionava um
prazer indescritível, mesmo quando eu ficava confuso diante de tanta
complexidade. Perguntava-me continuamente: quais fenômenos estão por detrás
desse comportamento? Como se processou a leitura da memória para que se
produzisse essa cadeia de pensamento? Por que os pensamentos fluem no palco da
mente num processo espontâneo e inevitável?
Até um mendigo era para mim
uma pessoa complexa, rica intelectualmente e interessante de ser observada e
analisada. Conversei com vários deles. Muitos deles, quando se aproximam uns
dos outros, logo estabelecem uma relação interpessoal e trocam diálogos, pois
não têm preconceitos socioculturais, não precisam ostentar status ou
provar qualquer coisa para estabelecer confiabilidade. A mercadoria de troca
interpessoal entre os mendigos é o que eles são e não o que eles têm,
diferentemente de grande parte das relações nas sociedades modernas. Assim,
aprendi que até entre as pessoas que vivem em condições miseráveis e que são
totalmente desprotegidas socialmente é possível apreciar o espetáculo da
construção de pensamentos e contemplar lições existenciais.
Uma pessoa psicótica também é
uma pessoa que possui um admirável funcionamento da mente, ainda que
desorganizado. Como veremos, na esquizofrenia, o "eu" perde o
controle da leitura da memória e da utilização dos parâmetros psicossociais na
construtividade das cadeias dos pensamentos, o que gera a produção de delírios
e alucinações. Apesar disso, as pessoas portadoras de psicoses são seres
humanos altamente complexos e que deveriam ser valorizadas, ajudadas e
acolhidas.
Pelo fato de começar a
procurar, após os primeiros anos de pesquisa, as variáveis da interpretação que
estão na base dos processos de construção da inteligência, e de começar a
perceber que elas contaminam inevitavelmente o processo de interpretação, eu
adquiria, pouco a pouco, a consciência crítica sobre a necessidade de revisão
e reorganização contínua do meu processo de observação, interpretação e
produção de conhecimento. Ficava preocupado com as contaminações da
interpretação ligadas aos referenciais contidos na minha história intrapsíquica
que poderiam promover uma produção de conhecimento sem fundamento.
Nos primeiros anos, eu não
tinha uma compreensão tão clara do processo de interpretação como a descrita
na frase anterior, mas, pouco a pouco, à medida que produzia conhecimento sobre
a mente, sobre os procedimentos utilizados na sua investigação e sobre os
limites e alcance dos pensamentos, começava a entendê-lo. A arte da formulação
de perguntas, da dúvida e da crítica inauguravam pouco a pouco minha aurora
intelectual.
À medida que eu observava
cada pessoa, cada pensamento verbalizado e cada expressão facial, formulava
sistematicamente inúmeras perguntas sobre cada fenômeno observado e, ao mesmo
tempo, criticava continuamente a produção de conhecimento que realizava sobre
elas, considerando-as, freqüentemente, reducionistas e insuficientes. Por
isso, procurava novamente o caos intelectual, agora, não apenas para filtrar
algumas contaminações da interpretação, mas também para expandir as
possibilidades de compreensão e de construção do conhecimento sobre os
fenômenos psíquicos. Assim, eu expandia o mundo das idéias e reorganizava minha
produção de conhecimento.
Esse processo me custou
muitas noites maldormidas ou de plena insônia, por causa do turbilhão de
dúvidas que vivia. Algumas dúvidas demoravam
serem resolvidas, ainda que
vivesse continuamente a "tríade de arte da pesquisa" e a busca do
caos intelectual.
Apesar de toda ousadia que
desenvolvi, apesar de viver a pesquisa psicológica como um grande e contínuo
desafio intelectual, como uma aventura indecifrável, eu hesitava algumas vezes
em continuar a pesquisar e produzir conhecimento, quando percebia que minhas
idéias se encontravam num labirinto intelectual sem progressão.
Cada fenômeno que estudava,
cada variável da interpretação, cada texto que produzia passava por um
processo contínuo de montagem e desmontagem intelectual. Assim, eu expandia as
possibilidades de construção do conhecimento.
OS COMPUTADORES JAMAIS CONSEGUIRÃO TER A CONSCIÊNCIA EXISTENCIAL
A maioria dos seres humanos
elogia as maravilhas da tecnologia, mas não conseguem se encantar com o
espetáculo da construção de pensamentos que corre na psique humana. Não
conseguem compreender que a consciência existencial expressa, por exemplo,
pela consciência da solidão e das dores emocionais, os tornam mais sofisticados
do que milhões de computadores interligados.
Os computadores jamais
passarão de escravos de estímulos programados, ainda que incorporem um
processo de auto-aprendizagem e levem em consideração a "lógica
paraconsistente", ou seja, que admitam contradições das informações.1
É cientificamente ingênuo dizer que os computadores produzem uma realidade
virtual, pois eles não têm consciência existencial de si mesmos, eles não
existem para si mesmos e, portanto, não têm consciência da organização das
informações que expressam nas telas de vídeo.
Quando estudarmos a leitura
da memória, a construção das cadeias de pensamentos e a formação da consciência
existencial do eu, entenderemos que será impossível que um dia os computadores
conquistem essa consciência, por isso, eles jamais existirão para si mesmos,
jamais conquistarão conscientemente uma identidade psicossocial, jamais
experimentarão conflitos, insegurança, ansiedade, tranqüilidade, dor, prazer.
Para os computadores, o tudo e o nada, o ter e o ser, um segundo e a
eternidade, serão inevitavelmente sempre a mesma coisa.
A NECESSIDADE DE NOVOS CIENTISTAS TEÓRICOS
A falta do conhecimento sobre
os processos de construção dos pensamentos, sobre o processo de interpretação
e sobre os limites e o alcance de uma teoria pode conduzir os pesquisadores que
procuram defender teses acadêmicas a fechar as janelas do pensamento.
Seria importante que os
usuários de uma teoria não a utilizassem como se ela incorporasse a verdade
essencial, mas como um suporte limitado do processo de observação e
interpretação. Seria importante, também, que na ortodoxia da pesquisa acadêmica
os pesquisadores fossem estimulados a fazer uma intentona teórica, um motim
intelectual, ou seja, fazer uma revolução contra as convenções do conhecimento
e o sistema rígido de pesquisa, capaz de torná-los ousados na produção de um
corpo teórico próprio, uma teoria inovadora, e nem sempre se submeterem às
idéias de Freud, Jung, Roger, Moreno, Erich Fromm, Viktor Frankl, Piaget ou de
filósofos tais como Kant, Hegel, Marx, Husserl, Heidegger etc.
Sem se adotar essa postura...
contra as convenções do conhecimento vigente não se produzirão pensadores e
cientistas teóricos, não haverá a produção de teorias originais, inovadoras.
Uma intentona teórica, alicerçada nos princípios da democracia das idéias,
deveria ser feita com ousadia, criatividade, arte da observação, arte da
formulação de perguntas, arte da dúvida, arte da crítica, análise multifocal,
entre outros procedimentos, uma postura intelectual que não oferece resistência
para reciclar e reorganizar continuamente todo o conhecimento produzido. Esses
procedimentos são fundamentais para romper os paradigmas culturais, o
continuísmo das idéias, a mesmice do conhecimento e, conseqüentemente, para
produzir cientistas teóricos e pensadores.
Esses procedimentos também
podem ser aplicados nas artes, nas ciências naturais, na educação, na
economia, no desenvolvimento empresarial, no exercício da profissão liberal
para produzirem pensadores que expandam com originalidade o mundo das idéias.
Todos os teóricos e
pensadores são revolucionários. Aliás, todo cientista é um revolucionário,
pois recicla o continuísmo das idéias. É claro que grande parte dos cientistas,
embora não sejam teóricos, utilizam as teorias e prestam um grande serviço à
ciência. Porém, a ciência precisa avançar não apenas na utilização das teorias
vigentes, mas também na produção de novas teorias. As teorias funcionam como
fonte de pesquisa e suporte do processo de observação, interpretação analítica
e produção de conhecimento.
Uma grande teoria pode
catalisar a produção de idéias, desde que os que a abraçam não gravitem em
torno dela, não sejam meros retransmissores do conhecimento que ela encerra e
não sejam rígidos defensores, incapazes de criticá-la, reciclá-la ou
expandi-la. Por isso, prejudicam o desenvolvimento da ciência os que aderem
rigidamente a ela. Qualquer usuário de uma teoria que é incapaz de criticá-la
será um mero reprodutor das suas idéias, traindo-a interpretativamente sem o
saber e praticando uma ditadura intelectual no exercício da sua profissão ou
na sua produção de conhecimento científico. Esse processo é passível de
ocorrer não apenas nas ciências da cultura, mas também nas ciências físicas,
biológicas e correlatas.
Penso que é raro uma
universidade incentivar a "intentona teórica", o "motim
intelectual" entre seus estudantes, levando-os à procura de novas
possibilidades de construção e de compreensão do conhecimento, à produção de
novas teorias a partir da busca da desorganização dos conceitos e da arte da
formulação de perguntas, da dúvida e da crítica, bem como de outros
instrumentos empíricos.
O sistema acadêmico é
excessivamente organizado, institucionalizado e preocupado com a
transmissibilidade unifocal do conhecimento. Tais atitudes limitam a formação
de pensadores. As grandes idéias surgiram a partir do caos intelectual. Todos
os que contribuíram com a expansão da ciência e com as idéias humanistas
romperam com os paradigmas intelectuais, vivenciaram micro ou macro motins
intelectuais. Não estou estimulando o caos das idéias, a ruptura pela ruptura
dos paradigmas intelectuais. Não! As idéias vigentes devem ser valorizadas, mas
também filtradas e revisadas. As idéias, mesmo as que são consideradas verdades
científicas, não são fins em si mesmas, pois não são coincidentes com a verdade
essencial, que é inatingível.
Produzir ciência não é uma
tarefa simples. A falta de conhecimento dos processos de construção dos
pensamentos, dos limites e do alcance de uma teoria, bem como dos sistemas de
encadeamentos distorcidos, passíveis de ocorrer no processo de interpretação,
faz com que muitos tenham o conceito errado de que, para produzir ciência ou se
tornar um cientista, basta defender uma tese acadêmica. Muitos orientadores das
teses sabem que isso é totalmente insuficiente. Ao longo dos anos, estudei mais
de vinte possibilidades que podem comprometer a produção de conhecimento de uma
tese acadêmica e a formação de pensadores. Infelizmente, por não ser esse o
objetivo deste livro, não as comentarei. Todavia, quando abordar os
procedimentos de pesquisas multifocais, algumas dessas possibilidades serão
evidenciadas.
Devemos repensar o processo
de formação de pensadores antes de pensar na produção da própria ciência.
Devemos nos preocupar com a qualidade da inteligência dos pensadores. Os
procedimentos de pesquisa multifocais que utilizei, tais como a arte da
formulação de perguntas, da dúvida e da crítica, a busca do caos intelectual e
os dois instrumentos empíricos ligados à análise dos processos de construção
dos pensamentos e das variáveis que atuam na construção das cadeias de
pensamentos, podem contribuir com essa tarefa intelectual.
Nas ciências da cultura, na
qual se inclui a Psicologia, a Filosofia, a Educação, a Sociologia etc, não há
muitos recursos financeiros para incentivar a formação de pensadores e a
expansão das idéias psicossociais, como o têm as ciências naturais, que incluem
a Computação, a Biologia, a Química, cujas pesquisas resultam em produtos
industriais. Se o capital é pequeno nas ciências da cultura, deveria haver,
então, um processo de compensação, através da expansão da qualidade dos
pensadores pelo uso de procedimentos que estimulam a plasticidade construtiva
e a liberdade criativa do conhecimento. Caso contrário, o contraste do
desenvolvimento entre as ciências naturais e as ciências da cultura continuará
e aumentará. A Física sabe como penetrar nas entranhas do átomo e distinguir as
partículas atômicas, tão ocultas aos olhos, e a Psicologia educacional não
sabe como prevenir eficientemente a discriminação racial dos negros, tão
visível aos olhos, nem como prevenir o uso de drogas que acomete milhões de
jovens. Se esse contraste se perpetuar, seremos cada vez mais gigantes na
tecnologia e anões na prevenção das doenças psíquicas, psicossomáticas,
psicossociais, bem como na expansão do humanismo, da cidadania e da democracia
das idéias. Nessa situação, o homem do século XXI, que navegará cada vez mais
pelo espaço e pela Internet, terá infelizmente cada vez mais dificuldade
de navegar para dentro de si mesmo, de se interiorizar e de se repensar, de
superar seus estímulos estressantes e de falar de si mesmo. Talvez ele só
consiga se interiorizar e falar de si mesmo, como já tem acontecido, quando
estiver diante de um psiquiatra ou de um psicoterapeuta.
APLICAÇÃO DA TERAPIA MULTIFOCAL
As experiências que passei
por ser crítico do academicismo me abateram temporariamente o ânimo. Naquela
época, eu estava nos meus primeiros anos de pesquisa; por isso, apesar de ser
crítico, rebelde e determinado, também era frágil e, às vezes, inseguro. Minhas
inseguranças não derivavam apenas dos fatores externos, mas também dos fatores
internos, ligados ao exercício da arte da dúvida e da crítica, bem como da
iniciação do procedimento da busca do caos intelectual no processo de pesquisa,
que será comentado posteriormente.
Os fatores internos me
deixavam freqüentemente confuso diante da complexidade da mente humana.
Produzir conhecimento sem utilizar uma teoria preexistente como suporte da
interpretação e, ainda por cima, exercitando a arte da pergunta, da dúvida e
da crítica e a busca do caos intelectual para descontaminar meu processo de
interpretação, me deixava não apenas confuso, mas perturbado nos primeiros
anos. Por isso, naquela época, apesar de produzir conhecimento sobre muitos
assuntos relativos à mente humana, eu vivia continuamente criticando minhas
próprias idéias. Assim, quando os fatores internos se associaram aos fatores
externos, realmente meu ânimo foi abatido temporariamente, afetando minha
paixão pelo mundo das idéias. Entretanto essa paixão flutua, mas não morre.
Parte do meu tempo exerço a
Psiquiatria e a Psicoterapia multifocal. O uso da teoria dos processos de
construção da inteligência no tratamento das doenças psíquicas faz com que a
Psicoterapia multifocal seja realizada dentro dos princípios da democracia das
idéias e da arte de pensar. Os resultados são. animadores. Muitos casos de
doenças psíquicas de difícil tratamento, inclusive de pacientes autistas, têm
sido resolvidos. A teoria multifocal, devido as suas variáveis universais, pode
ser aplicada em qualquer outra corrente psicoterapêutica: psicanálise,
psicoterapia cognitiva, logoterapia, psicodrama, psicoterapia analítica, etc.
EXEMPLO DE UM CASO INSOLÚVEL NA PSIQUIATRIA CLÁSSICA
Lembro-me de uma cliente de
82 anos de idade que tinha transtornos graves da personalidade e sofria de uma
depressão crônica e resistente que já durava mais de três décadas. Ela era inteligente,
mas também mal-humorada, negativista, agressiva e insociável. Queria a todo
custo separar-se do marido, pois me dizia que tinha aversão dramática por ele.
Essa aversão era tão intensa, que, quando o marido passava por ela e encostava
a mão no seu braço, ela sentia tanta repulsa por ele que ia correndo lavar essa
parte do corpo. Quando o marido tomava banho, ela só conseguia tomar banho se
mandasse desinfetar o banheiro. Viveu por cinqüenta anos um casamento falido,
transformou a relação com seu marido numa praça de guerra. Falava dele com ódio
e dizia que não podia olhar para seu rosto e, não apenas isso, raramente
conseguia expressar qualquer palavra de elogio a qualquer pessoa. Mesmo com os
filhos ela era crítica e agressiva.
O que pode a psiquiatria
fazer para uma pessoa que jamais admitiu que estivesse doente, que sempre quis
que o mundo gravitasse em torno de si mesma? O que pode a psicologia, com todas
as suas técnicas psicoterapêuticas, fazer para uma pessoa que sempre se recusou
a se interiorizar e revisar os pilares fundamentais de sua personalidade?
Muitos membros de sua família
não acreditavam que uma pessoa nessa idade, com uma depressão tão grave e
resistente e que tinha diversos transtornos de personalidade, pudesse ter
alguma melhoria. Porém, o processo psicoterapêutico é ura canteiro onde
florescem as funções mais importantes da inteligência, um ambiente que pode,
se bem conduzido, estimular a produção de um oásis no mais causticante deserto
emocional. Apesar de todas as dificuldades iniciais, da sua recusa de penetrar
dentro de si mesma, pouco a pouco aquela rocha humana foi sendo demolida.
Olhava para sua postura rígida e para seu olhar fadigado pelo tempo e pensava
comigo mesmo: "Deve haver algo belo por detrás dessa rigidez que nunca foi
explorado, deve haver algumas funções nobres da personalidade que estão
embotadas".
Levei-a a ser uma caminhante
nas trajetórias do seu próprio ser, a repensar sua rigidez intelectual, a
analisar as origens de suas angústias e de suas reações insociáveis. Procurei
provocar sua inteligência e estimular sua compreensão sobre alguns fundamentos
do processo de construção dos pensamentos e da transformação da energia
emocional. Acreditava, mesmo com sua idade avançada, nas suas possibilidades
intelectuais e procurava fazer do processo psicoterapêutico um debate de
idéias, criando um clima que promovia o desenvolvimento da arte da dúvida e da
crítica contra seus próprios paradigmas intelectuais. Meu objetivo não era de
que ela apenas resolvesse sua doença psíquica e superasse a sua dor, mas que se
tornasse uma pensadora, uma poeta existencial, alguém capaz de expandir tanto a
arte de pensar como a arte da contemplação do belo.
Depois do tratamento, que
durou cerca de quatro meses, ninguém acreditava no que havia acontecido com
ela. Tornara-se uma pessoa dócil, amável, sociável, tolerante. Começou a tratar
o marido com ternura, inclusive passou a chamá-lo de "meu bem" e
constantemente lhe pedia que a beijasse e lhe fizesse carinho.
Ela me dizia que passou a
amar seu marido como nunca ocorreu em toda a sua história conjugal. Seu marido,
também com 82 anos, um ex-professor universitário, estava, antes da sua
melhora, abatido fisicamente, com dificuldades de se locomover e de organizar
seu raciocínio. Porém, com o grande salto da qualidade de vida da sua esposa,
ele passou a se alimentar mais, ganhou peso, melhorou a deficiência da memória
e seu rendimento intelectual. Marido e esposa mudaram tanto que passaram, mesmo
diante das suas limitações físicas, a cantar e a dançar juntos na sala de seu
apartamento.
Algumas vezes eles choravam
por ter a consciência de que atravessaram um imenso deserto existencial,
saturado de angústias e discórdias. Contudo, queriam recuperar o tempo perdido,
queriam viver intensamente cada minuto que lhes restava de vida, por isso,
algumas vezes, eles acordavam um ao outro de madrugada para conversar e ficar
mais tempo juntos. A afetividade entre os dois floresceu como na primavera
mais rica da adolescência.
Minha paciente me dizia que
havia encontrado um sentido para sua vida e que, no final de sua existência,
começou a trabalhar suas contrariedades e a aprender a ter prazer nos pequenos
estímulos. Por isso, até os sons dos pássaros que eram imperceptíveis aos seus
ouvidos, se tornaram músicas para eles. Comovido com essa melhora acentuada e
estável, escrevi um bilhete para ela e para o marido, dizendo: "Parabéns;
vocês se tornaram poetas da existência, souberam encontrar ternura e dignidade
no final de suas vidas; descobriram que a sabedoria se conquista quando aprendemos
a superar nossos invernos existenciais..." Eles ampliaram os dizeres deste
bilhete e o colocaram na sala do apartamento deles.
Ela deu um salto qualitativo
na sua saúde emocional e intelectual. Resolveu sua depressão crônica, sua
insociabilidade, agressividade e tornou-se uma pessoa encantadora aos 82 anos
de idade. Viveu uma rica história de amor com seu marido por mais dois anos,
até que ele morreu. O último pedido dele, no leito de sua morte, é que ela o
acariciasse até que ele morresse. Foi assim que findou este romance.
A história dessa paciente é
um exemplo vivo que evidencia que, mesmo nos casos aparentemente insolúveis
pela psiquiatria e pela psicologia, é sempre possível reescrever os capítulos
fundamentais da personalidade.
O homem, independentemente de
sua idade, personalidade e transtornos psíquicos, pode e tem o direito de se
tornar um engenheiro de idéias que constrói e reconstrói a sua história
psicossocial. Ao aplicar os princípios psicoterapêuticos derivados do processo
de construção da inteligência, estimulamos o resgate da liderança do eu e
fazemos com que os pacientes deixem de ser espectadores passivos de misérias
psíquicas e passem a ser agentes modificadores de sua personalidade. Onde a
psiquiatria clássica não consegue pisar os procedimentos psicoterapêuticos
multifocais pode, em diversos casos, alcançar.
Capítulo 2
A Metodologia e os Procedimentos Usados na Construção da Teoria da Inteligência Multifocal
O AUTORITARISMO DAS IDÉIAS E A DITADURA DO DISCURSO TEÓRICO
As idéias, como um
"conjunto organizado de pensamentos", servem para definir, conceituar
e caracterizar os fenômenos que observamos. Por sua vez, o discurso teórico,
como um "conjunto organizado de idéias", serve como instrumento
intelectual para teorizar, discorrer, descrever um conhecimento mais complexo e
abrangente desses fenômenos, bem como das micro e macro-relações que eles
mantêm com outros fenômenos. As idéias, expressas por conceitos, hipóteses e
postulados (convenções), são os tijolos de uma teoria. Uma teoria se expressa
através de um discurso, que chamo de discurso teórico.
As idéias e os discursos
teóricos são instrumentos fundamentais da ciência. Através das idéias podemos
desenvolver relações interpessoais, nos comunicar, desenvolver atividades de
trabalho. Por sua vez, através dos discursos teóricos, ou seja, pela
manipulação de uma teoria, podemos produzir conhecimento, construir
argumentações científicas, organizar postulados, derivar hipóteses, predizer
fenômenos. Porém, apesar de as idéias e discursos teóricos definirem,
conceituarem e descreverem os estímulos psíquicos, sociais, biológicos,
físicos, químicos, enfim, todos os fenômenos e objetos de estudo etc, elas são
e serão sempre devedoras de suas realidades essenciais.
Por exemplo, podemos produzir
enciclopédias inteiras sobre as causas, sintomas e mecanismos psicológicos
presentes nos transtornos depressivos, mas essas enciclopédias serão apenas um
corpo de conhecimento que definem, através das idéias, e discursam, através das
teorias, sobre os transtornos depressivos. Entretanto, o processo de leitura
da memória, a construção de pensamentos e transformação da energia emocional,
presentes nos transtornos depressivos, são maiores do que todo o conhecimento
que possamos produzir sobre eles. Além dessa limitação, temos um outro grande
problema. Todo o conhecimento que produzimos sobre as depressões nunca é em si
mesmo a essência da energia do humor deprimido, mas apenas um sistema teórico
que tentará defini-lo, conceituá-lo. Portanto, temos duas grandes limitações
científicas que não poucos cientistas desconhecem.
Primeira, o conhecimento
sobre os transtornos depressivos, por mais avançado que seja, terá sempre uma
dívida com os mistérios que envolvem essas doenças e que ainda não foram
descobertos. Segundo, o conhecimento, mesmo se a civilização humana vivesse
milhões de anos, terá sempre uma dívida com a realidade intrínseca da energia
contida nos transtornos depressivos ou de qualquer outro fenômeno estudado
pela ciência. Por isso, podemos falar da miséria dos outros sem nenhuma emoção,
sem conseguir nos colocar no lugar deles nem enxergar minimamente o mundo com
os seus olhos. Por inferência, podemos dizer que a ciência é sempre menor do
que o universo dos fenômenos que estuda e sempre solitária em relação à
realidade essencial destes fenômenos.
Um milhão de idéias e
discursos teóricos sobre um determinado fenômeno não resgata a essência
intrínseca do próprio fenômeno, pois o fenômeno continua sendo essencialmente
ele mesmo, e as idéias e os discursos continuam sendo sistemas de intenções
conscientes (virtuais) do observador que tentam descrevê-lo na sua mente. Há
uma distância infinita entre a consciência da essência e a essência em si
mesma. Há uma distância infinita entre o pensamento de um químico sobre os
átomos e os átomos em si. Por que as ciências evoluem? Por que a cada dez anos
grandes verdades científicas se tornam grandes enganos? Um dos grandes motivos
se deve ao fato de que o conhecimento, composto de idéias e de teorias não
expressa a realidade essencial dos fenômenos que estuda, mas a realidade
virtual, intencional, sobre eles.
As idéias e os discursos
teóricos não podem ser fechados dentro de si mesmos. Veremos que "trancar"
uma teoria numa redoma intelectual, como Freud fez, é um grande perigo contra a
evolução da ciência, pois podemos confinar os fenômenos apenas dentro dos
limites de nossas idéias e de nossas teorias. As idéias e os discursos teóricos
geram paradigmas e estereótipos socioculturais que, se não forem revisados
criticamente, podem levar a uma grave distorção na produção científica.
A utilização autoritária das
idéias e a manipulação ditatorial dos discursos teóricos são ferramentas que
desfiguram a produção de conhecimento de um fenômeno em relação à sua realidade
essencial. Os que assim procedem não percebem que, além das idéias e dos
conceitos serem sempre uma expressão reducionista da verdade essencial, a
verdade essencial é inatingível em si mesma, pois todo conhecimento, ainda que
tenha sido produzido com os mais rigorosos métodos e procedimentos científicos,
e que possua as mais importantes conseqüências científicas é um sistema de
intenções dialéticas antiessenciais. Estudaremos estes assuntos.
Quem tem uma postura
intelectual autoritária não apenas fere a democracia das idéias, mas fere a si
mesmo, porque é usado, manipulado, controlado intelectualmente pela rigidez
das próprias idéias e do discurso teórico produzidos pela leitura da sua
memória.
Uma pessoa autoritária agride
e fere os direitos do "outro", mas, antes disso, fere seu próprio
direito de ser livre, de pensar com liberdade. Por isso toda pessoa agressiva é
auto-agressiva. Os profissionais liberais que exercem o autoritarismo das idéias
vivenciam dentro de si mesmos o "auto-autoritarismo", punem a si
mesmos, encerram-se dentro de um cárcere intelectual. Do mesmo modo, os
pesquisadores que exercem a ditadura do discurso teórico, que se fecham
exclusivamente dentro da teoria que abraçam, aprisionam sua capacidade de
pensar dentro dos limites da sua teoria. Para entender o
"autoritarismo" das idéias, bem como da "ditadura" do
discurso teórico, precisamos estudar os fenômenos que promovem o funcionamento
da mente e a construção dos pensamentos.
A TEORIA MULTIFOCAL DO CONHECIMENTO
Muitas pessoas consideram
raríssimo, nos dias atuais, alguém produzir uma teoria científica sem a
influência geral ou parcial de outra teoria preexistente e que, além disso,
seja consistente e fundamentada em argumentos criteriosos. Pois é uma
realidade; é muito difícil reunir num mesmo trabalho intelectual a
originalidade e a coerência.
O conhecimento se tornou
muito vasto em todos os campos da ciência, o que dificulta pesquisas originais.
Na psicologia, quase não há mais espaço para a produção de uma teoria
totalmente nova sobre o funcionamento da mente e o desenvolvimento da
personalidade, pois as teorias existentes se entrelaçam em diversas áreas e os
milhares de pesquisas, realizadas anualmente, por cientistas de todo o mundo
se apóiam freqüentemente em uma dessas teorias. Por isto, este livro representa
um grande desafio. Sob os alicerces da metodologia e dos procedimentos que
utilizei, que serão comentados neste capítulo, apresentarei não apenas uma
teoria psicológica, mas uma teoria completamente nova, original. Ela é tão
original como foi a teoria da psicanálise na época que Freud a lançou.
Entretanto, a qualidade desta teoria e de seus fundamentos deve ser julgada
pelos leitores.
Ao longo de mais de dezessete
anos desenvolvi a teoria multifocal do conhecimento (TMC). A teoria multifocal
do conhecimento, como o próprio nome expressa, é uma teoria abrangente, que
inclui diversas teorias que se inter-relacionam no campo da Psicologia,
Filosofia, Educação, tais como a teoria do funcionamento psicodinâmico da
mente, a teoria da inteligência multifocal, a teoria da interpretação, a
teoria do caos intelectual, a teoria do fluxo vital da energia psíquica, a
teoria da evolução psicossocial do homem, a teoria da personalidade, a teoria
da lógica do conhecimento, a teoria da interpretação.
Neste capítulo desenvolverei
alguns pilares da teoria da lógica do conhecimento e da teoria da
interpretação. Nos capítulos seguintes abordarei a teoria da inteligência
multifocal e do funcionamento da mente e no décimo terceiro capítulo
retomarei a teoria da interpretação e continuarei desenvolvendo-a. Por que a
teoria da interpretação será retomada depois da exposição da teoria da
inteligência multifocal? Porque ela foi desenvolvida paralelamente à descoberta
dos fenômenos que estão inseridos no processo de construção de pensamentos.
Portanto, a teoria da inteligência me ajudou a construir a teoria da
interpretação e, à medida que esta ia sendo expandida, me ajudava a reciclar a
teoria da inteligência e do funcionamento da mente.
A teoria multifocal do
conhecimento não é uma teoria que procura anular as demais teorias, tais como a
psicanalítica, cognitiva, comportamental; pelo contrário, procura contribuir
para explicá-las, criticá-las, reciclá-las e abrir novas avenidas de pesquisas
para elas. As teorias psicológicas, filosóficas, psicopedagógicas,
sociológicas etc, foram produzidas usando o pensamento como alicerces,
enquanto a teoria multifocal do conhecimento estuda as variáveis universais que
estão presentes nos próprios alicerces, ou seja, estuda os fenômenos que
promovem a própria construção dos pensamentos.
A teoria da inteligência
multifocal ultrapassa a abordagem da "teoria da Inteligência
Emocionar, pois, além da variável emocional, ela estuda mais de trinta
outras variáveis que participam da construção da inteligência humana; por isso
ela é chamada de inteligência multifocal.
Muitas perguntas importantes
procurarão ser respondidas, tais como: Os fetos pensam? Como se desenvolve o
eu? Por que o homem é um grande líder do mundo extrapsíquico, mas não é um
grande líder dos seus pensamentos e das suas emoções? Todos os pensamentos que
produzimos são determinados pelo eu ou existem fenômenos psíquicos que
constroem pensamentos sem a autorização do eu? Como penetramos na memória e
construímos as cadeias de pensamentos? Quantos tipos de pensamentos são
produzidos na mente humana e quais são as suas funções? Como se organiza,
desorganiza e reorganiza a energia psíquica? Qual a relação entre as cadeias de
pensamentos e as emoções? Como construímos as relações humanas?
Após ter desenvolvido a
estrutura básica da teoria que estou produzindo, a Teoria Multifocal do
Conhecimento (TMC), comecei a ler, a apreciar e a criticar, dentro das minhas
limitações intelectuais e de tempo, as idéias filosóficas, psicológicas,
sociológicas e psiquiátricas de outros pensadores. Por isso, embora a teoria
desenvolvida neste livro seja totalmente original, ele contém uma pequena
bibliografia, pois faço alguns pequenos comentários sobre algumas teorias. A
utilização de uma teoria no processo de expansão de conhecimento científico é
legítima e pode ser muito útil se usada com critério. Uma teoria bem produzida
é uma fonte de pesquisa, tem mais valor do que milhares de livros. O papel
principal das teorias é abrir as avenidas do conhecimento na ciência.
Os assuntos aqui tratados
serão importantes aos que querem algumas pistas para desenvolver a arte de
pensar e se tornar um pensador original, um engenheiro de idéias que se coloca
em contínuo processo de aprendizagem. A "tríade de arte da pesquisa"
e a busca do caos intelectual, como veremos, serão os ingredientes básicos para
se formarem pensadores em qualquer área da ciência e em qualquer área da sociedade,
incluindo a política e a economia. Esses assuntos também interessam àqueles que
querem entender o que é a "verdade" e se é possível atingi-la na
ciência, bem como o que é uma teoria, qual a melhor maneira de aplicá-la e
quais as suas relações com a inesgotabilidade da ciência.
Faremos uma viagem
intelectual interessante. Navegaremos pelos mares da ciência, romperemos
alguns tabus. Compreenderemos os motivos pelos quais a ciência, tão bela e
importante para a civilização humana, tem grandes limites para encontrar aquilo
que mais ama: a verdade.
OS SETE PROCEDIMENTOS MULTIFOCAL E AS CINCO MESCLAGENS DE CONTRAPONTOS INTELECTUAIS
Para que possamos gerenciar
uma construção criteriosa de pensamentos, capaz de conquistar o status de
"conhecimento científico", não basta processarmos a leitura da
memória e produzir cadeias de pensamentos dialéticos, pois essa produção de
pensamentos poderá ser meramente especulativa, o que resultará numa ciência sem
fundamento. Para fugir dessa situação, procurei desenvolver pelo menos sete
procedimentos multifocais, alguns dos quais complexos e difíceis de ser
aplicados. Estes procedimentos não são utilizados, em sua maioria, na pesquisa
acadêmica, mesmo nas teses de doutorado. Os grandes teóricos da psicologia
também não os utilizaram na produção de suas teorias, o que gerou um grande
prejuízo para esta ciência.
Os procedimentos utilizados
na pesquisa acadêmica normalmente são bem conhecidos no mundo todo, tais como:
seletividade de dados, análise de dados, levantamento bibliográfico, uso de uma
teoria como suporte da interpretação. Além dos procedimentos que desenvolvi,
também utilizei esses procedimentos clássicos. Somente não usei os
levantamentos bibliográficos nem uma teoria prévia como suporte da
interpretação, pois a teoria que desenvolvo é, como disse, totalmente
original.
O levantamento bibliográfico,
contido rio final dos textos, foi feito depois que a teoria que eu desenvolvia
estava elaborada. Ele foi feito com o objetivo de evidenciar alguns pensamentos
de outros teóricos em relação à teoria aqui exposta.
Os setes procedimentos que
utilizei são: a arte da formulação de perguntas; a arte da dúvida; a arte da
crítica; a busca do caos intelectual para se processar a descontaminação da
interpretação; a busca do caos intelectual para expandir as possibilidades de
construção do conhecimento; a análise das causalidades históricas e das
circunstancialidades biopsicossociais; e a análise dos processos de construção
das variáveis de interpretação na mente.
Além desses setes
procedimentos, também utilizei na minha trajetória de pesquisa cinco
"mesclagens de contrapontos intelectuais" (MCI), que me estimularam a
revisar criticamente e reorganizar continuamente a produção de conhecimento
sobre os processos de construção do pensamento. Essas mesclagens referem-se a
uma mistura entre pontos intelectuais opostos ou eqüidistantes, tais como: a
liberdade em observar e a disciplina na observação, a livre produção de
pensamento e a revisão crítica dessa produção. Algumas dessas mesclagens
resultaram do processo de co-interferência dos sete procedimentos de pesquisa
que utilizei. As cinco "mesclagens de contrapontos intelectuais"
(MCI) que utilizei foram: 1. Mesclagem entre a liberdade contemplativa de
observar os fenômenos com a disciplina empírica no processo de observação e
seleção dos mesmos. 2. Mesclagem entre a liberdade de interpretar os fenômenos
com a reorganização e reorientação contínua do processo de interpretação. 3.
Mesclagem entre a utilização do caos intelectual para esvaziar, tanto quanto
possível, as distorções preconceituosas e os referenciais históricos contidos
no processo de formação da personalidade com a utilização desse caos para
expandir as possibilidades de compreensão dos fenômenos e de construção do conhecimento.
4. Mesclagem entre a liberdade da produção do conhecimento com a reciclagem
crítica e contínua da mesma. 5. Mesclagem entre a análise das variáveis da
interpretação (fenômenos) com a análise dos sistemas de cointerferências que
elas organizam para gerar o funcionamento da mente e a construção das cadeias
de pensamentos.
A ARTE DA PERGUNTA, DA DÚVIDA E DA CRÍTICA
Não é objetivo deste livro
dar ênfase aos sete procedimentos e às cinco "mesclagens de contrapontos
intelectuais" que utilizei em minha trajetória de pesquisa, embora toda a
minha produção de conhecimento resulte deles. Vou dar ênfase apenas ao quarto
e quinto procedimento, ou seja, aos procedimentos que se referem à busca do
caos intelectual. Porém, quero também fazer uma síntese dos três primeiros
procedimentos: a arte da formulação de perguntas, a arte da dúvida e a arte da
crítica, pois eles foram fundamentais na minha produção intelectual.
Aprendi que a arte de
perguntar é mais importante do que a arte de responder. Aliás, a maneira como
se pergunta pode produzir um autoritarismo das idéias, pois estabelece as
diretrizes das respostas. Antes da busca das respostas, antes da produção de
conhecimento, é necessário fazer não apenas algumas perguntas, mas múltiplas
perguntas sobre os fenômenos que estamos observando e interpretando. Devemos
ainda não apenas formular perguntas multifocais sobre os fenômenos e suas
micro e macrorrelações, mas perguntas sobre as próprias perguntas, suas dimensões,
seus limites e alcance. A função da arte da formulação das perguntas não é,
inicialmente, fornecer respostas, pois as respostas são ditadoras das
perguntas, mas expandir a dúvida. Quanto mais dúvida e confusão intelectual,
mais profunda poderá ser a resposta, mais rica será a produção de conhecimento;
quanto menos dúvida, mais pobre será a produção de conhecimento.
Os três grandes inimigos de
um pensador são: as dificuldades de expandir a arte da pergunta e da crítica,
a dificuldade de conviver com a dúvida e a ansiedade por produzir respostas. A
fertilidade das idéias de um pensador não está na sua capacidade de produzir
respostas, mas na sua intimidade com a arte da formulação das perguntas, a arte
da dúvida, arte da crítica e do quanto procura e suporta a experiência do caos
intelectual.
A palavra arte associada à
palavra "dúvida" ou "crítica" não quer dizer uma simples
dúvida ou crítica esporádica, mas um processo contínuo de duvidar e criticar,
um sistema contínuo de aprimoramento da observação, interpretação e questionamento
do conhecimento. A arte da formulação de perguntas me levou a fazer centenas e,
em alguns casos, milhares de perguntas sobre cada fenômeno intrapsíquico que
observava. Mesmo diante da mais simples idéia que eu produzia na minha mente,
eu questionava intensamente suas origens, construtividade, natureza, alcance
etc. Eu observava atentamente não apenas o comportamento das pessoas, mas era
um contínuo viajante na trajetória do meu próprio ser. Assim, durante o processo
de observação dos fenômenos psíquicos, eu expandia, através da arte da
formulação de perguntas, a arte da dúvida. Esta estimulava meu processo de
interpretação e, conseqüentemente, minha produção de conhecimento. Através da
expansão da produção de conhecimento, aprimorava a arte da crítica. Com isso, aprendi
pouco a pouco a usar a arte da crítica, não apenas para criticar todo
conhecimento que previamente eu tinha sobre os fenômenos psíquicos que
observava, mas também para criticar toda interpretação e produção de
conhecimento que extraía deles.
Vivi intensamente a arte da
formulação de perguntas, a arte da dúvida e da crítica, que chamo de
"tríade de arte da pesquisa". Elas são fundamentais na produção da
pesquisa científica e até na convivência social. Elas foram para mim a fonte
motivadora do processo de produção de conhecimento sobre os complexos e
sofisticados processos de construção dos pensamentos.
O exercício contínuo da
"tríade de arte da pesquisa" foi-me levando, ao longo dos anos, a
desenvolver dois procedimentos sofisticados ligados à busca do "caos
intelectual" que objetivavam tanto processar a descontaminação da
interpretação quanto expandir as possibilidades de construção do conhecimento.
A busca do caos intelectual também me levou pouco a pouco a aprimorar dois
instrumentos de observação e análise (instrumentos empíricos), que é a análise
das causas históricas (variáveis ligadas à memória) e das circunstancialidades
biopsicossociais (variáveis intrapsíquicas, intraorgânicas e sociais presentes
no ato da interpretação) e a análise dos processos de construção das variáveis
da interpretação na mente ou campo de energia psíquica.
Tenho consciência de que
abordar sucintamente esse emaranhado de procedimentos pode gerar mais confusão
do que esclarecimento. Minha intenção é evidenciar que um pensador precisa
pesquisar com critério e rejeitar determinadas atitudes especulativas e
teoricistas. Penso que um teórico da Filosofia não precisa evidenciar seus
procedimentos, pois a grandeza das suas idéias está no conteúdo do seu
discurso teórico; mas um teórico da Psicologia precisa, embora muitos deles não
o tenham feito, pois ele estuda fenômenos intrapsíquicos específicos e sua
produção de conhecimento objetiva alcançar uma aplicabilidade psicossocial na
educação, nas relações sociais e no campo das doenças psicossociais e
psíquicas. Como procurei pesquisar o homem na perspectiva psicossocial e
filosófica, bem como com outras ciências, sinto a necessidade de fazer uma
exposição sucinta desses procedimentos que desenvolvi na trajetória da minha pesquisa.
OS PROCEDIMENTOS MULTIFOCAIS
USADOS COMO VACINA INTELECTUAL
A busca do caos intelectual
no processo de observação e interpretação dos fenômenos psíquicos abre algumas
janelas psicossociais e filosóficas para expandirmos as possibilidades de compreensão
sobre as origens, limites, alcance, práxis, natureza dos pensamentos
(incluindo o conhecimento científico) e da consciência existencial.
É mais fácil desenvolver o
autoritarismo do que a democracia das idéias, do que redirecionar o processo de
observação, interpretação e produção de conhecimentos através do exercício da
"consciência crítica do eu". Não me refiro apenas ao
macroautoritarismo e à macroditadura política, mas aos microautoritarismos e às
microditaduras sociais que freqüentemente ocorrem na relação pai-filho,
professor-aluno, policial-cidadão, executivo-empregado,
psicoterapeuta-paciente, médico-paciente, político-eleitor, líder
espiritual-fiel, palestrante-ouvinte etc. O respeito e o estímulo à capacidade
de pensar do "outro" deveriam saturar todos os níveis das relações
humanas, inclusive a pesquisa científica.
Os "antídotos"
intelectuais contra o autoritarismo nas relações humanas são multifocais: a)
compreender que a democracia das idéias é uma inevitabilidade; b) respeitar o
ser humano na sua integralidade; c) considerá-lo capaz de pensar e escolher
seus próprios caminhos; d) estimular a revolução das idéias que ocorre na sua
mente e procurar contribuir para que ela seja redirecionada para desenvolver a
revolução do humanismo, da cidadania e da capacidade crítica de pensar. Por sua
vez, as "vacinas" e "antídotos" intelectuais contra os
autoritarismos das idéias e as ditaduras dos discursos teóricos produzidos na
pesquisa científica também são multifocais: exercitar a arte da formulação de
perguntas, da dúvida, da crítica; a busca do caos intelectual, a reciclagem e
reorganização contínua do processo de interpretação; a postura constantemente
aberta no processo de observação, interpretação e produção de conhecimento,
capaz de se abrir sempre às novas possibilidades dos fenômenos que contemplamos
etc.
Os procedimentos derivados da
busca do caos intelectual se tornaram importantes "vacinas" contra o
autoritarismo das idéias e a ditadura do discurso teórico na minha trajetória
de pesquisa e produção de conhecimento. Porém, não há procedimentos totalmente
seguros; por isso a minha produção de conhecimento possui limites, além de ser,
como disse, apenas uma ilha no mar inesgotável da ciência.
O uso de uma teoria pode ser
importante para um pesquisador estimular sua trajetória de pesquisa e produção
de conhecimento, mas pode também reduzir a revolução das idéias e produzir,
como eu disse, a ditadura dos discursos teóricos. Porém, embora pesquisasse sem
a utilização de uma teoria psicológica, filosófica, sociológica ou de qualquer
outra teoria científica, aprendi que não apenas uma teoria científica pode
gerar a ditadura do discurso teórico, mas também a nossa própria história
intrapsíquica, arquivada em nossa memória, pode provocá-las.
A história intrapsíquica
funciona como uma importante teoria; a teoria histórica, e sua leitura sem
crítica gera um confinamento da liberdade de pensar, pois só conseguimos
enxergar o mundo que nos envolve apenas de acordo com o "nosso
mundo". A medida que fui expandindo essa compreensão, comecei, através da
tríade de arte da pesquisa empírica, a buscar mais intensamente o caos
intelectual, para me "vacinar", tanto quanto possível, contra essas
formas sofisticadas de controle intelectual contidas na minha história
intrapsíquica. Foram anos de dúvidas e de insegurança intelectual; porém a luz
que emerge do caos tem uma beleza e claridade ímpar.
As dificuldades do
"eu" de fazer uma revisão crítica das idéias e dos discursos do
conhecimento são grandes, mas essa revisão é imperativa para estudarmos os
fenômenos da mente, essencialmente inacessíveis e sensorialmente intangíveis
(imperceptíveis).
Produzir conhecimento pode
ser aparentemente simples, mas a construtividade de pensamentos é altamente
sofisticada. Há uma arte psicodinâmica sofisticadíssima nos bastidores da mente
que precisamos explorar e compreender, que é responsável por toda produção de
pensamento consciente expressa nos quadros de pintura, na literatura, nas
relações humanas, nos discursos dialético-científicos, enfim, nos palcos
conscientes da existência.
Falar da natureza e
construtividade do conhecimento é falar de um dos mais importantes mistérios da
ciência. Compreender a natureza do conhecimento abrirá algumas janelas para
compreendermos os limites, alcance, lógica e práxis do próprio conhecimento,
seja nas ciências físicas, seja nas ciências da cultura.
A palavra
"empírico" tem uma definição particular neste livro. Ela se refere ao
processo psicossocial e filosófico de produção de conhecimento dos fenômenos
psíquicos. Neste livro, esses fenômenos estão relacionados com a construção dos
amplos aspectos da inteligência. A produção de conhecimento é realizada através
das etapas do processo de interpretação e conduzida através do corpo de procedimentos
de pesquisas que utilizei, inclusive os ortodoxos, tais como a arte da
observação e o levantamento de dados.
As cinco etapas do processo
de interpretação, já comentadas, sofre a influência de múltiplas variáveis, o
que compromete a "pureza" da produção de pensamentos e,
conseqüentemente, macula a produção de conhecimento, inclusive a construção
das teorias científicas. Diferente da grande maioria dos cientistas teóricos,
procurei usar um corpo de procedimentos na minha produção de conhecimento, para
que pudesse ampliar as dimensões da teoria que estava criando.
Criar uma teoria foi e ainda
é uma aventura complexa e sinuosa para mim. Os teóricos produziram conhecimento
usando o pensamento como ferramenta — eu procurei produzir conhecimento sobre a
ferramenta que eles utilizaram, ou seja, sobre o próprio pensamento, sobre os
fenômenos que o constrói, sobre os elementos que dão origem às idéias.
As teorias científicas, além
de possuir limites ligados à sua construção, possuem limites ligados às suas
dimensões. A seguir, farei uma breve e importante abordagem dos limites gerais
de uma teoria em relação à inesgotabilidade da ciência.
A INESGOTABILIDADE DA CIÊNCIA. AS TEORIAS PODEM EXPANDIR OU CONTRAIR O MUNDO DAS IDÉIAS
A utilização das teorias é importante,
pois elas podem funcionar como um canteiro de idéias, capazes de expandir a
produção de conhecimento; mas elas são invariavelmente limitadas e redutoras
diante da inesgotabilidade da ciência. Quem utiliza inadequadamente as teorias
pode provocar o macroautoritarismo das idéias e a macroditadura dos discursos
teóricos; por isso o exercício da democracia das idéias, a ser estudado,
torna-se imperativo.
Não há teoria completa; todas
precisam ser reescritas e expandidas, porque a ciência é inesgotável. A ciência
é inesgotável pelo menos por três grandes fatores: 1. Pelo fato de os processos
de construção dos pensamentos ultrapassarem os limites da lógica. 2. Pelo fato
de a consciência existencial ser virtual. 3. Pelo fato de o universo
microessencial ser infinito.
Primeiro, comentei que, nos
bastidores da mente humana, o processo de interpretação sofre um processo de
influência contínua de um conjunto de variáveis, que nos leva a produzir
pensamentos distintos diante dos mesmos fenômenos e objetos que interpretamos.
A construção dos pensamentos sofre um sistema de encadeamento distorcido que
ultrapassa os limites da lógica. Portanto, diante da mesma ofensa, do mesmo
elogio, do mesmo foco de tensão, da mesma notícia, da mesma imagem, do mesmo
fenômeno físico, que interpretamos em dois tempos distintos, produzimos
pensamentos micro ou macro distintos. O sistema de encadeamento distorcido, que
ocorre espontaneamente no processo de construção de pensamentos, leva a
ciência a ser inesgotável, pois ela não é fruto do fenômeno em si, mas do
fenômeno interpretado.
Segundo, a consciência
existencial jamais atinge a realidade essencial dos fenômenos, pois a
consciência é virtual, antiessencial, ou seja, um sistema de intenções que
discursa incansavelmente sobre a realidade essencial, mas nunca a incorpora
intrinsecamente. A consciência existencial, ainda que seja sustentada por uma
produção de conhecimento, capaz de gerar aplicabilidades e previsibilidades de
fenômenos, nunca incorpora em si mesma a realidade essencial dos fenômenos (a
verdade essencial).
Há uma distância infinita
entre a consciência existencial (virtual) e a realidade intrínseca dos
fenômenos (essencial). Porém, quando o corpo de conhecimentos, que constitui a
consciência existencial, se torna aplicável e gera previsões de fenômenos, ele
se torna comprovável e ganha o status de verdade científica. Porém, a
verdade científica nunca é a verdade essencial; nunca é, portanto, completa e
absoluta; por isso ela está invariavelmente, ao longo dos séculos e das
gerações, se reorganizando e se expandindo.
A criatividade da consciência
existencial, produzida na esfera da virtualidade, torna a ciência inesgotável.
O conhecimento, ainda que utilize milhões de idéias, por ser de natureza
virtual, ao tentar descrever e dar significado à realidade essencial dos
fenômenos, nunca a incorpora. O conhecimento e a realidade essencial estão em
mundos distintos, possuem naturezas diferentes.
Os cientistas são andejos da
virtualidade, pois percorrem continuamente, através dos órgãos do sentido e do
mundo das idéias, os territórios da realidade, sem de fato nunca encontrá-los
na sua essência. Os cientistas são limitados, mas a ciência é inesgotável.
Provavelmente, são muitos os
professores universitários que não conhecem os limites entre a verdade
científica e a verdade essencial. Não compreendem que, pelo fato de a natureza
do conhecimento ser virtual e sua construção ultrapassar os limites da lógica,
geram-se tanto limitações na práxis do conhecimento (pensamento dialético) como
paradoxalmente uma inesgotabilidade nas dimensões do próprio conhecimento
científico.
As limitações ocorrem devido
ao fato de o pensamento ser virtual. Por ser virtual, o pensamento, além de não
incorporar a realidade do objeto sobre o qual discursa, tem dificuldade para se
materializar, pois sua natureza é virtual. Embora esse fato seja difícil de se
entender, ele atinge toda a nossa história de vida. Por exemplo, eu posso
pensar sobre a minha ansiedade, mas o pensamento não incorpora a realidade da
energia da ansiedade, pois ele é um discurso virtual sobre a ansiedade, mas
não a ansiedade em si. Além disso, por ser de natureza virtual, o pensamento
tem dificuldade para se materializar no campo de energia psíquica e
transformar minha ansiedade em prazer ou tranqüilidade. Notem que o homem é
líder do mundo, mas não é líder de si mesmo. Sua construção de pensamentos não
transforma facilmente suas emoções. Se os pensamentos tivessem plena liberdade
de transformar o mundo psíquico, seria fácil tratar das depressões, superar o stress,
transformar os psicopatas em pessoas humanistas e nos fazer viver num oásis
de prazer mesmo diante das nossas misérias sociais. Vimos que o pensamento
dialético, de natureza virtual, não é materializado através de si mesmo, mas
através das matrizes de pensamentos essenciais inconscientes.
Por ser virtual, o pensamento
dialético tem limitações. Agora, precisamos entender que, por ser virtual, o
pensamento e, conseqüentemente, toda a ciência se tornam inesgotáveis. E
inesgotáveis porque, na esfera da virtualidade, os pensamentos ganham uma
plasticidade construtiva e uma liberdade criativa indescritível. Posso pensar o
que quero, quando quero, da maneira que quero, sem respeitar nenhuma limitação.
A ciência é inesgotável
porque o mundo das idéias é inesgotável, pois ele é construído na esfera da
virtualidade. Devido à inesgotabilidade da ciência, toda teoria, toda tese,
necessita invariavelmente ser revista e/ou expandida ao longo do tempo. Daqui a
um século, grande parte do conhecimento que hoje consideramos como verdade
científica perderá sua validade ou terá sua validade questionada. Desconhecer
os limites e o alcance do conhecimento faz com que a transmissibilidade do
conhecimento na educação seja, freqüentemente, autoritária e unifocal,
suscitando raramente o debate intelectual e o intercâmbio das idéias na
relação professor-aluno. Esse autoritarismo pode ocorrer em todas as esferas
das relações humanas.
Terceiro, o fato de o
universo microessencial ser infinito também elucida essa inesgotabilidade. Se
por um lado os cientistas da Física descobriram que o universo macroessencial é
composto de dezenas de bilhões de galáxias — portanto finito — por outro lado,
o universo microessencial é infinito, pois, se assim não fosse, dar-se-ia que
a infinita unidade da microessência (matéria ou energia) atingiria o nada.
Nesse caso, teríamos o paradoxo tudo-nada, pois o tudo seria constituído do
nada. Assim, o mundo que somos e em que estamos seriam universos inexistentes.
A consciência da existência é
um autotestemunho da existência. A consciência da existência, embora virtual,
nasce, como comentarei, da realidade essencial das matrizes dos pensamentos.
Se é paradoxalmente impossível que a microessência atinja o nada, não há
partícula microessencial fundamental, indivisível, seja ela matéria ou
energia. Se a microessência jamais atinge o nada, ela é infinita em si mesma.
Os físicos dizem que o universo é finito; mas quando fazemos uma análise
filosófica dos fenômenos, descobrimos que o universo microessencial é
infinito. Nessa análise, a Filosofia e a Física fundem-se.
Qualquer área da ciência,
mesmo a Física Quântica, circunscreve as dimensões essenciais inesgotáveis dos
fenômenos que estuda e dos sistemas de relações existentes entre eles aos
limites estreitos e autoritários de uma teoria. Até os conhecimentos
cientificamente comprovados (as verdades científicas) são autoritários, pois
revelam apenas uma seqüência de, no máximo, meia dúzia de respostas na cadeia
interminável do conhecimento sobre os fenômenos. Exemplo: os tecidos são
formados de células, as células de moléculas, as moléculas de átomos, os
átomos de prótons, nêutrons, elétrons e de outras partículas subatômicas,
projetando, assim, uma seqüência interminável de indagações desconhecidas sobre
o universo microessencial.
Se o universo microessencial
é infinito, os sistemas de micro e macrorrelações existentes entre os
fenômenos microessenciais também o são e, conseqüentemente, o conhecimento
sobre eles também o é, evidenciando, portanto, a inesgotabilidade da ciência. A
infinidade da microessência revela que a ciência é infinita. Os cientistas são
finitos, mas as possibilidades da ciência são infinitas.
Diante da infinidade da
microessência e de suas relações e, conseqüentemente, da inesgotabilidade da
ciência, por mais que tenhamos cultura e produzamos conhecimento, ninguém é de
fato um mestre ou um doutor (Ph.D.) em qualquer área da ciência. Todos os
cientistas são eternos aprendizes. Os títulos acadêmicos honram os cientistas,
mas não honram a inesgotabilidade da ciência. Por isso, se na atual estrutura
acadêmica os títulos são inevitáveis, eles deveriam ser usados como uma
referência de pouco valor, e não para estabelecer hierarquia entre os cientistas.
Não há hierarquia entre os que pensam, sejam eles pesquisadores científicos ou
não.
O valor de um pensador não
está na grandeza dos seus títulos, mas na grandeza das suas idéias. Por isso,
nos congressos científicos, os títulos acadêmicos de um cientista, e mesmo a
procedência de uma universidade ou o instituto de pesquisa, não deveriam ser
pronunciados em voz altissonante, tampouco deveriam figurar nos livros em
letras garrafais. Não sendo assim, contamina-se o processo de interpretação do
ouvinte ou do leitor e fere-se a democracia das idéias. Nos bastidores da
psique humana há muitas variáveis que podem contaminar excessivamente o
julgamento crítico das idéias. A estética socioeducacional, se supervalorizada,
pode ser uma delas.
Os discípulos de uma teoria,
seja ela científica, política ou educacional, deveriam tomar cuidado com tudo
aquilo que pode levá-los a supervalorizar as idéias de um teórico, tais como
imagem social, imagem histórica, influência política, títulos acadêmicos,
admiração pessoal, procedência etc; caso contrário, eles podem manipular a
teoria de maneira autoritária, praticando a ditadura do discurso teórico no
exercício profissional.
OS PIORES INIMIGOS DAS TEORIAS
A antiessencialidade da
consciência existencial, o sistema de encadeamento distorcido da construção de
pensamentos e a infinidade dos fenômenos microessenciais revelam que a ciência
é invariavelmente inesgotável. Por isso, todo conhecimento, toda teoria
científica, toda verdade científica, produzida em livros, gravada em
disquetes, debatida nas universidades, aplicada nos laboratórios e nas
empresas é intensamente restritiva em relação à inesgotabilidade da própria
ciência.
Se a ciência é infinita e as
teorias, limitadas, logo se conclui que elas deveriam ser continuamente
revistas e expandidas ao longo do tempo. Por isso, reitero que os piores
inimigos de uma teoria não são os seus críticos, mas seus discípulos radicais,
ou seja, os que aderem rigidamente a elas, como se elas incorporassem a verdade
essencial, aqueles que são incapazes de criticá-la, reciclá-la e expandi-la.
Há diversas teorias
psicológicas perdendo espaço e credibilidade porque seus discípulos se sentem
culpados de tentar reciclá-las. Às vezes, o que é pior, o receio de reciclar
uma teoria não é devido à culpabilidade que possam ter, mas à falta de
honestidade intelectual consigo mesmo, ao medo da crítica de seus pares, dos
membros de sua sociedade psicoterapêutica. Tais entraves ocorrem fartamente
também em outras ciências. Muitos têm medo de fazer um motim teórico. Aqueles
que criticam e reescrevem uma teoria não a jogam no lixo nem desconsideram a
capacidade intelectual do seu autor, mas acabam apreciando-a mais, usando-a
como canteiro das idéias, embora não mais gravitem rigidamente em sua Órbita.
É inadmissível que a
Psicologia, a Filosofia, a Sociologia, a Educação, se fechem em torno de
convenções exclusivistas, pois elas nunca atingem a verdade real, essencial,
pois possuem fenômenos de estudos essencialmente inacessíveis e sensorialmente
intangíveis, e uma produção de conhecimento que sofre um sistema de
encadeamento distorcido. Essa rigidez compromete a democracia das idéias e a
expansão da própria ciência.
AS TEORIAS NA MATEMÁTICA TAMBÉM SÃO LIMITADAS
De fato a ciência é
inesgotável, mas as teorias, ainda que importantíssimas, são redutoras dela.
Até na Matemática as teorias são limitadas. Até nas indiscutíveis operações de
soma há limitações, pois 1 mais 1 só é 2 se o primeiro 1 é, em todos os níveis
microessenciais, exatamente igual ao segundo 1. Porém, como tudo no universo é
essencialmente distinto, justamente pelo fato de que dois elementos não ocupam
o mesmo espaço num mesmo período de tempo, conclui-se que a Matemática, que
parece a única ciência imutável, só é realmente imutável por artifícios
intelectuais que não se verificam no universo essencial.
Filósofos como Descartes,2
embora fossem de indiscutível inteligência, quiseram aplicar as leis da
Matemática na Filosofia, na produção de conhecimento, visando expandir sua
lógica. Porém, não compreenderam que a verdade da Matemática é antiessencial,
ou seja, possui uma distância infinita com relação à verdade essencial, ainda
que produza aplicabilidades e previsibilidades.
A compreensão lenta e gradual
da inesgotabilidade da ciência e os limites da teoria, que mescla a Filosofia
com a Psicologia, me incitou a pesquisar sem utilizar uma teoria de outro
pensador como suporte da interpretação.
A restrita seqüência de fatos
comprovados cientificamente diante da cadeia interminável de conhecimentos
sobre os fenômenos já é em si mesma uma atitude autoritária da ciência. Como a
cadeia do conhecimento com que a ciência lida é pequena e unidirecional, e como
a própria consciência não incorpora a essência real do fenômeno que discursa,
os fatos hoje comprovados cientificamente poderão deixar de ser verdades
científicas no futuro ou sofrer grandes evoluções no seu discurso.
A ciência e a verdade
"real" moram na mesma casa, mas estão em dois mundos distintos. Por
isso, a ciência deveria ser uma amiga inseparável da democracia das idéias.
USANDO O CAOS INTELECTUAL PARA DESORGANIZAR AS DISTORÇÕES PRECONCEITUOSAS
O caos intelectual é um
procedimento multifocal importante no processo de investigação e produção de
conhecimento sobre a mente. Embora a busca do caos intelectual seja
inalcançável em sua plenitude e pureza, sua busca pode ser uma ferramenta de
pesquisa fundamental para investigarmos as variáveis sensorialmente
intangíveis que co-interferem para fazer a leitura da memória e a produção dos
pensamentos, da consciência existencial e das reações emocionais.
A busca do caos intelectual
significa a busca da pureza no processo de observação, a busca da análise sem
contaminação dos conceitos e preconceitos que temos daquilo que investigamos.
O caos intelectual representa uma profunda revisão dos parâmetros do
conhecimento, dos referenciais e dos paradigmas socioculturais arquivados na
memória. A sua busca pode ser importantíssima para expandir as possibilidades
de compreensão e de construção do conhecimento sobre os fenômenos de estudo,
que no meu caso estão contidos na própria psique humana. Por que o caos
intelectual — ou seja, a desorganização dos conceitos que temos sobre
determinado objeto para o investigarmos de maneira mais pura, mais concernente
ao que ele é e não ao que achamos que ele seja — é impossível de ser alcançado?
Por que todo cientista tende a contaminar suas pesquisas com seus preconceitos?
Porque a leitura da memória e a construção dos pensamentos são automáticas e
realizadas, como estudaremos, por múltiplos fenômenos e não apenas pelo eu.
Por isso a construção da inteligência é multifocal.
A busca do caos intelectual
leva-nos a uma postura continuamente crítica e aberta no processo de
observação e interpretação e um questionamento de nossa história intrapsíquica,
que gera, momentaneamente, um estado de desorganização intelectual que nos
imerge num mar de dúvidas sobre os fenômenos que investigamos e estudamos,
fazendo-nos enfrentar nossos próprios limites intelectuais e perceber a
facilidade com que contaminamos o processo de interpretação e distorcemos a
construtividade do conhecimento sobre esses fenômenos. Devido à revisão
crítica dos conceitos, idéias e pensamentos contidos nas nossas histórias
intrapsíquicas e à postura crítica e continuamente aberta no processo de
observação e interpretação, ocorre uma filtragem das contaminações da
interpretação.
Ao mesmo tempo que se
processa uma filtragem das contaminações da interpretação, ocorrerá uma
expansão das possibilidades de compreensão e de construção do conhecimento
sobre os fenômenos. Assim, os fenômenos serão observados e interpretados de
maneira mais completa, pura, profunda, aberta. Portanto, a busca do caos
intelectual gera pelo menos duas grandes conseqüências no processo de pesquisa
e produção de conhecimento: a filtragem das contaminações da interpretação e a
expansibilidade das possibilidades de compreensão e de construção do
conhecimento. Esses dois procedimentos, derivados da busca do caos
intelectual, contraem o autoritarismo das idéias e a ditadura do discurso
teórico e contribuem para promover e redirecionar continuamente a produção de
conhecimento científico.
O exercício da procura do
caos intelectual é um procedimento de pesquisa e, mais do que isso, é uma
postura intelectual aberta que destrói nossa rigidez e nos coloca como um
eterno aprendiz na ciência e na trajetória existencial. Grande parte dos
cientistas que, com o passar do tempo, deixam de exercitar, ainda que
inconscientemente, a busca do caos intelectual, bem como a arte da pergunta,
da dúvida e da crítica, se tornam estéreis. Os cientistas, os pensadores, os
artistas que permanecem continuamente criativos e produtivos em sua trajetória
existencial tomaram o caminho oposto, ainda que não chegassem a compreender
teoricamente o caos intelectual e a "tríade de arte da pesquisa".
Qualquer comportamento,
qualquer reação emocional ou qualquer fenômeno físico que observamos,
procurando exercitar a busca do caos intelectual, irão se apresentar de
maneira muito mais rica do que a simples exposição intelectual que possamos ter
diante dos mesmos.
Uma pessoa pode contemplar um
objeto de ferro atirado pelas ruas e, automaticamente, produzir o conceito de
que está diante de um pedaço de ferro que não tem mais utilidade. Porém, se ele
exercitar a busca do caos intelectual, criticar os conceitos, idéias e
pensamentos que tem sobre esse objeto e se colocar de maneira profundamente
crítica e aberta para interpretá-lo, certamente deixará de ver esse objeto apenas
como um pedaço de ferro e expandirá as possibilidades de construção e de
compreensão do conhecimento sobre ele.
Talvez, poderá enxergar
naquele desprezível pedaço de ferro a história humana, o desespero humano, a
comunicação interpessoal, a necessidade humana de poder e de contemplação do
belo, o caos físico-químico. Talvez, no processo de expansão das
possibilidades de construção do conhecimento, fique deslumbrado ao questionar
sobre os séculos necessários para o homem dominar a tecnologia do ferro; sobre
a energia psíquica e o sofrimento humano consumidos no aprimoramento da arte
de fundir os minérios; sobre as angústias existenciais, a troca de informações
e o debate de idéias gerados para se produzir materiais a partir do ferro;
sobre a busca de prazer acompanhando o desenvolvimento da técnica, expressa
pelas formas, estilos e cores dados a esses materiais para que os seus
usuários não apenas os utilizassem, mas também contemplassem o belo a partir
deles; sobre a utilização do ferro como instrumento de poder e de
destrutividade; sobre as variáveis extrínsecas e intrínsecas que contribuem
para a oxidação do ferro e conduzi-lo, ao longo dos anos, ao caos
físico-químico; sobre os destinos que terão as partículas imersas no caos
físico-químico nos ecossistemas.
Esse exemplo simples
demonstra que a utilização do caos intelectual se choca com o autoritarismo das
idéias e expande as possibilidades de construção e de compreensão do
conhecimento sobre os objetos e fenômenos. Nesse exemplo, a busca do caos
intelectual leva as ciências físicas a encontrar as ciências da cultura,
principalmente a Psicologia e a Filosofia.
A TEORIA MULTIFOCAL E A FENOMENOLOGIA DE HUSSERL
Após ter desenvolvido idéias
sobre os processos de construção dos pensamentos, da consciência existencial,
da história intrapsíquica e do processo de transformação da energia psíquica,
a partir dos procedimentos e das mesclagens intelectuais que utilizei, tive
contato com alguns textos da fenomenologia de Husserl.3
Husserl foi um pensador de
alta qualidade. Ele advoga a tese de que o observador deveria se colocar diante
do fenômeno de estudo de maneira pura, ingênua. Portanto, não deveria utilizar
uma teoria como suporte da interpretação, pois sua utilização contaminaria o
processo de interpretação, reduzindo o fenômeno a elemento da teoria,
circunscrevendo-o apenas dentro das possibilidades da teoria, contraindo seu
caráter original.
Quando abordei o
autoritarismo das idéias e a ditadura dos discursos teóricos, evidenciei que,
apesar de uma teoria poder catalisar e promover a produção de conhecimento de
um observador (ex., cientista, psicoterapeuta), ela também pode reduzir essa
produção, principalmente se o observador gravitar em torno dela, utilizá-la
como verdade irrefutável, desconhecer seus limites, alcance, lógica e validade.
Nesse caso, o observador circunscreveria autoritária e ditatorialmente o
fenômeno observado apenas dentro dos limites da teoria que abraça, não se
abrindo a inúmeras outras possibilidades que o fenômeno revela.
Nesse sentido, a
fenomenologia tem fundamento. Porém, discordo da fenomenologia de que a
utilização de uma teoria é invariavelmente reducionista da produção de
conhecimento, embora macule a originalidade do fenômeno, pois se utilizada
dentro do campo da democracia das idéias e levando em consideração os processos
de construção dos pensamentos e os limites e alcance básicos do conhecimento
teórico, ela pode contribuir para expandir a produção do conhecimento, da
cultura, do mundo das idéias. A teoria pode tanto embotar os pensamentos como
pode catalisar, provocar e enriquecer a pesquisa científica, depende de quem a
utiliza.
Apesar de a fenomenologia ter
o brilhantismo filosófico de teorizar sobre o processo de contaminação das
teorias formais, ela desconsidera que a maior de todas as teorias utilizadas no
processo de interpretação não é a teoria formal (científica), mas a teoria
histórico-existencial, ou seja, a história intrapsíquica arquivada na memória
de cada ser humano, de cada observador.
Quando estudarmos os
fenômenos que lêem a memória e constroem os pensamentos, constataremos que ler
e utilizar as riquíssimas matrizes de informações não é uma opção do
"eu", mas uma inevitabilidade. Ler e utilizar a memória independe da
determinação do "eu". Podemos, no máximo, selecionar a leitura e a
utilização da memória. Se fosse possível abortar a leitura da memória em um
determinado momento, perderíamos a consciência de quem somos e de onde estamos.
A morte da história
intrapsíquica implica a morte da consciência humana, a morte do homem como ser
pensante. A história social, contida nos livros, é o leme intelectual que
direciona a trajetória sociopolitica de uma sociedade, e a história
intrapsíquica, contida na memória, é o leme intelectual que direciona a trajetória
da produção de pensamentos de um indivíduo.
É possível abster-se de
utilizar uma teoria formal (científica) como suporte da interpretação na
investigação dos fenômenos, mas não é possível livrar-se da teoria
histórico-existencial na investigação dos mesmos, pois o caos da energia
psíquica é reorganizado a partir da leitura da memória.
Dessa leitura se produzem as
matrizes dos pensamentos essenciais históricos, que sofrerão um misterioso
processo de leitura virtual, gerando os pensamentos dialéticos e
antidialéticos. Portanto, o maior desafio não é se precaver contra as
contaminações da interpretação da teoria formal, mas contra as contaminações da
teoria histórico-existencial. Deveríamos aprender a descontaminar o processo
de observação e interpretação, tanto quanto possível, das distorções
preconceituosas contidas na memória e, ao mesmo tempo, expandir as
possibilidades de construção e compreensão do conhecimento dos estímulos
pesquisados.
Provavelmente, muitos
cientistas, intelectuais, pensadores, psicoterapeutas, executivos e qualquer
tipo de pessoa que realiza algum tipo de trabalho intelectual, contaminam e
reduzem excessivamente sua produção de conhecimento com as teorias que
utilizam, principalmente com a teoria histórica.
É inevitável que todo
pensamento, por ser gerado pelo processo de interpretação, reduza as dimensões
dos fenômenos observados. A leitura da história intrapsíquica, se não for
revisada, produz toda sorte de distorções da interpretação e, conseqüentemente,
distorções na produção de conhecimento, além de produzir toda sorte de
discriminações e de atitudes superficiais que induzem a um excesso de
explicações psicológicas superficiais.
Todo homem lê sua memória e
torna-se um exímio engenheiro quantitativo de idéias, embora nem sempre
qualitativo; até as pessoas tímidas o são. Aliás, as pessoas tímidas falam
pouco, mas pensam muito. Pensar não é uma opção do homem; pensar é o destino do
homem; pensar é uma inevitabilidade.
UMA POSTURA CONTINUAMENTE ABERTA
Todos temos fenômenos
intrapsíquicos que vivem num fluxo vital e que reorganizam o caos da energia
psíquica, através da leitura multifocal da história intrapsíquica; por isso,
todos somos grandes engenheiros de idéias, ainda que estas sejam superficiais.
Por ser um exímio engenheiro de idéias, o homem tem tendência para produzir
idéias e pensamentos superficiais sobre os problemas existenciais, sobre as
relações humanas, sobre os problemas sociopolíticos, sobre os fenômenos
científicos e até sobre Deus, sem muita consciência crítica, sem muito respeito
à própria inteligência, sem realizar uma análise crítica dos fundamentos que
embasam seus julgamentos da interpretação, sem se colocar de maneira aberta e
crítica no processo de observação e interpretação.
É possível usar teorias para
catalisar e promover a revolução das idéias em todas as áreas das ciências e,
como disse, também é possível contaminar a revolução das idéias pelo uso
dessas teorias, por não usá-las criticamente, por gravitar em torno delas.
Não usei nenhuma teoria
existente na ciência para pesquisar o funcionamento da mente e produzir a
teoria contida neste livro. Porém, mesmo tendo a ousadia de não usar textos de
outros autores não estou livre de contaminar os processos de observação,
interpretação e produção de conhecimento, pois posso contaminá-los pela
leitura do meu passado. Assim, quando observo, interpreto e produzo
conhecimento, sem uma crítica multifocal e sem uma postura continuamente
aberta, posso comprometê-los com um conjunto de experiências arquivadas na
minha memória, experiências que chamo de RPSs (representações psicossemânticas
diretivas e associativas). Por isso, há anos tenho desenvolvido e utilizado a
busca do caos intelectual para dessensibilizar-me das contaminações da minha
história intrapsíquica, das contaminações das RPSs diretivas e associativas, e
para expandir as possibilidades de construção do conhecimento.
Muitos críticos de arte,
psicólogos, professores, promotores, pesquisadores científicos etc, não têm
consciência de que contaminam excessivamente seus julgamentos críticos através
da leitura das suas histórias intrapsíquicas. Eles interpretam os estímulos
baseados muito mais em suas histórias intrapsíquicas do que nas possibilidades
que eles apresentam.
Como realizar o desafio
intelectual de procurar descontaminar-se da teoria histórica e, ao mesmo tempo,
de abrir as possibilidades de construção do conhecimento? Para isso,
precisamos usar sistematicamente a "tríade de arte da pesquisa" e a
busca do caos intelectual. Precisamos procurar intensamente a busca do caos
intelectual para desorganizar, tanto quanto possível, os referenciais
históricos, os paradigmas socioculturais, os estereótipos sociais e os padrões
de reações intelectuais que estão contidos na história intrapsíquica.
Procurei fazer continuamente,
ao longo dos anos, um questionamento sistemático dos conceitos contidos na
minha história intrapsíquica. Procurei também exercitar uma postura
continuamente aberta no processo de observação e interpretação dos fenômenos
que participam e co-interferem para gerar os processos de construção da
inteligência. Em tese, fui aprendendo a aplicar a "tríade de arte da
pesquisa" e a busca do caos intelectual diante de cada comportamento do
"outro" e em cada fenômeno ou variável intrapsíquica que observava em
minha própria mente.
A busca do caos intelectual
jamais desorganiza totalmente a história intrapsíquica e, conseqüentemente, os
conceitos, as idéias, os pensamentos, as informações, os parâmetros etc,
contidos nela; caso contrário, não conseguiríamos pensar e desenvolver a
consciência existencial; portanto, ela não faz um cientista se livrar de todas
as contaminações no processo de interpretação, mas o faz constantemente
reorientar e redirecionar o processo de observação, interpretação e produção
de conhecimento.
Quando nos colocamos diante
de um estímulo, objeto ou fenômeno, buscando o caos intelectual, ele se
apresenta, como disse, totalmente novo para nós, mais condizente com suas
potencialidades. Se os educadores, os promotores, os juízes de direito, os
psicoterapeutas, os médicos e os cientistas aprenderem a ter uma postura
aberta no processo de observação e interpretação, certamente darão um salto
qualitativo e quantitativo em suas produções de conhecimento.
Procurar desorganizar, tanto
quanto possível, os conceitos prévios que possuímos, através da busca do caos
intelectual pode criar em nós grande confusão intelectual na fase inicial do
processo de observação, interpretação e produção do conhecimento, mas pouco a
pouco nos descontaminará interpretativamente, tanto quanto possível, dos
autoritarismos das idéias e das ditaduras dos discursos teóricos, e expandirá
as possibilidades de construção e de compreensão dos objetos e fenômenos que
contemplamos.
Há enormes lacunas nas teorias
psicológicas, psiquiátricas, sociológicas, psicopedagógicas, porque muitos
teóricos não conheceram e, portanto, não desenvolveram a busca do caos
intelectual em sua trajetória de pesquisa e produção de conhecimentos. Muitos
deles também não utilizaram a "tríade de arte da pesquisa" e a
análise das variáveis da interpretação e dos sistemas de co-interferências
dessas variáveis. A não-utilização desses procedimentos gerou uma redução na
reorganização e expansão contínua destas teorias.
Encorajo os leitores a se
interiorizar e a não ficar receosos com as dúvidas e inseguranças geradas pela
busca do caos intelectual. A arte da dúvida e da crítica são os princípios
básicos da sabedoria existencial. As pessoas que mais causaram danos à
humanidade foram as que nunca aprenderam a duvidar e a criticar a si mesmas.
Por outro lado, os pensadores, cientistas e teóricos que mais contribuíram com
a expansão da ciência e das idéias humanísticas foram os que apreciaram a arte
da dúvida (incluindo a arte da formulação das perguntas) e da crítica e, mesmo
que não tenham produzido conhecimento sobre o caos intelectual, vivenciaram
alguns dos seus efeitos psicodinâmicos.
O caos intelectual pode ser
um precioso estágio no processo de aprimoramento do conhecimento e de
desenvolvimento da inteligência. É provável que uma grande parte dos
profissionais e dos pesquisadores não fazem uma escalada introspectiva em busca
do caos intelectual e, conseqüentemente, das duas possibilidades geradas por
ele (descontaminação da interpretação e expansão do conhecimento); por isso se
tornam, freqüentemente, retransmissores do conhecimento e, raramente,
pensadores que promovem a ciência e as idéias humanistas.
Muitos médicos e psicólogos
clínicos não exercem suas profissões como pensadores humanistas, pois estão
sempre querendo submeter o homem e, o que é pior, a própria doença humana, aos
limites da teoria que abraçam, e não, ao contrário, submeter as teorias que
utilizam à complexidade e à variabilidade humana. Por isso, nem sempre os
melhores estudantes, os que mais incorporam conhecimento e armazenam cultura,
se tornam os melhores profissionais, pois, era vez de serem pensadores
versáteis, que expandem o mundo das idéias e as soluções inteligentes, eles se
comportam como retransmissores da cultura, engessados intelectualmente.
Quem não conhece minimamente
os limites e o alcance de uma teoria formal e da teoria histórico-existencial
arquivada na memória, quem não exercita minimamente a "tríade de arte da
pesquisa" e a busca do caos interpretativamente, tanto quanto possível,
dos autoritarismos das idéias e das ditaduras dos discursos teóricos, e
expandirá as possibilidades de construção e de compreensão dos objetos e
fenômenos que contemplamos.
Há enormes lacunas nas
teorias psicológicas, psiquiátricas, sociológicas, psicopedagógicas, porque
muitos teóricos não conheceram e, portanto, não desenvolveram a busca do caos
intelectual em sua trajetória de pesquisa e produção de conhecimentos. Muitos
deles também não utilizaram a "tríade de arte da pesquisa" e a
análise das variáveis da interpretação e dos sistemas de co-interferências
dessas variáveis. A não-utilização desses procedimentos gerou uma redução na
reorganização e expansão contínua destas teorias.
Encorajo os leitores a se interiorizar
e a não ficar receosos com as dúvidas e inseguranças geradas pela busca do
caos intelectual. A arte da dúvida e da crítica são os princípios básicos da
sabedoria existencial. As pessoas que mais causaram danos à humanidade foram as
que nunca aprenderam a duvidar e a criticar a si mesmas. Por outro lado, os
pensadores, cientistas e teóricos que mais contribuíram com a expansão da
ciência e das idéias humanísticas foram os que apreciaram a arte da dúvida
(incluindo a arte da formulação das perguntas) e da crítica e, mesmo que não
tenham produzido conhecimento sobre o caos intelectual, vivenciaram alguns dos
seus efeitos psicodinâmicos.
O caos intelectual pode ser
um precioso estágio no processo de aprimoramento do conhecimento e de
desenvolvimento da inteligência. É provável que uma grande parte dos
profissionais e dos pesquisadores não fazem uma escalada introspectiva em busca
do caos intelectual e, conseqüentemente, das duas possibilidades geradas por
ele (descontaminação da interpretação e expansão do conhecimento); por isso se
tornam, freqüentemente, retransmissores do conhecimento e, raramente,
pensadores que promovem a ciência e as idéias humanistas.
Muitos médicos e psicólogos
clínicos não exercem suas profissões como pensadores humanistas, pois estão
sempre querendo submeter o homem e, o que é pior, a própria doença humana, aos
limites da teoria que abraçam, e não, ao contrário, submeter as teorias que
utilizam à complexidade e à variabilidade humana. Por isso, nem sempre os
melhores estudantes, os que mais incorporam conhecimento e armazenam cultura,
se tornam os melhores profissionais, pois, era vez de serem pensadores
versáteis, que expandem o mundo das idéias e as soluções inteligentes, eles se
comportam como retransmissores da cultura, engessados intelectualmente.
Quem não conhece minimamente
os limites e o alcance de uma teoria formal e da teoria histórico-existencial
arquivada na memória, quem não exercita minimamente a "tríade de arte da
pesquisa" e a busca do caos intelectual, ainda que desconheça teoricamente
estes procedimentos, e, além disso, quem tem dificuldade para questionar e
reorganizar continuamente sua produção de conhecimento, engessa sua
inteligência e pratica um controle intelectual autoritário contra esses
fenômenos. Essas pessoas, ainda que tenham feito uma brilhante carreira
acadêmica, não contribuem com a expansão das ciências, não alargam as
fronteiras do conhecimento, pois reduzem ou até mesmo abortam as possibilidades
de compreensão expressas pelos próprios fenômenos.
Um bom pensador, do meu ponto
de vista, não é apenas alguém que produz uma teoria eloqüente, com brilhantismo
literário, mas, principalmente, aquele que recicla criticamente os
procedimentos que utiliza, o conhecimento que produz (postulados, hipóteses,
sistemas de conceitos), bem como o que procura colocar à prova as derivações da
sua teoria e, mais ainda, o que investiga e indaga os limites, o alcance, a
lógica, a validade e a práxis da sua própria teoria. Enfim, um bom pensador é
um "eterno" insatisfeito com a teoria que produz, um
"eterno" aprendiz, uma "eterna" gestante de idéias.
A NATUREZA, LIMITES E ALCANCE DOS PENSAMENTOS
A natureza do conhecimento
possui em si mesma uma indescritível complexidade. O conhecimento sobre a
essência intrínseca dos objetos e fenômenos, embora nem sempre seja achista,
mas às vezes assuma um discurso teórico científico importante, jamais incorpora
a realidade essencial dos mesmos. O conhecimento é um sistema de intenções que
define e discursa virtualmente o universo investigável.
O conhecimento sobre os
átomos não é a essência intrínseca dos átomos, mas um sistema de intenções que
tenta defini-los e conceituá-los. O conhecimento sobre o humor deprimido ou a
ansiedade do "outro" não é a essência intrínseca da energia emocional
deprimida ou ansiosa dele, mas um sistema de intenções que tenta defini-la,
conceituá-la, descrevê-la, compreendê-la, enfim, acusá-la e discursá-la
teoricamente.
O pensamento dialético e o
antidialético são os dois tipos básicos de pensamentos conscientes. Eles são
produzidos a partir da leitura virtual das matrizes dos códigos dos pensamentos
essenciais históricos. Os pensamentos essenciais históricos são fruto de
finíssimas e instantâneas leituras da história intrapsíquica. As matrizes de
pensamentos essenciais históricos são produzidas, em milésimos de segundos, por
quatro fenômenos que utilizam a história intrapsíquica arquivada na memória: o
fenômeno da autochecagem da memória, a âncora da memória, o fenômeno do
autofluxo e o eu. Os pensamentos dialéticos e antidialéticos são usados como a
ferramenta intelectual para construção do conhecimento consciente, seja na
científicidade seja na coloquialidade.
Os pensamentos dialéticos e
antidialéticos produzem os limites, o alcance e a lógica do conhecimento
consciente. Entre o conhecimento consciente e a realidade essencial dos
objetos e fenômenos há uma distância infinita, um antiespaço entre o virtual
(consciência) e o real (fenômeno essencial). Entre as interpretações de um
psicoterapeuta e a realidade essencial da ansiedade de seu paciente há, ainda
que ele não perceba, uma distância "infinita", separadas pelo
intransponível fosso entre a consciência virtual do psicoterapeuta e a
realidade essencial do paciente. Essa distância se reproduz em todos os níveis
das relações interpessoais: nas relações entre pais e filhos, nas relações
profissionais, entre jurados e o réu, entre amigos etc. Porém, embora as
relações interpessoais tenham a separá-las um fosso intransponível, não
deveríamos imaginar que elas são pobres por causa disso; pelo contrário, são
arquiteturas psicodinâmicas riquíssimas, produzidas pelo processo de construção
da consciência existencial.
Apesar das limitações da
consciência virtual, as relações interpessoais serão riquíssimas se aprendermos
a reconstruir interpretativamente o "outro", com mais justiça em
relação ao que ele é, ainda que essa reconstrução seja sempre devedora à sua
realidade essencial. Conhecemos o outro a partir de nós mesmos; daí a imensa
responsabilidade de reconstruirmos o "outro" condizente ao que o
"outro é" e não em relação ao que "nós somos".
Infelizmente, muito do que falamos do "outro" diz mais a nosso
respeito do que a ele mesmo. Há muitos pais, executivos, intelectuais,
psicoterapeutas, professores que criticam, acusam, descrevem, julgam o
"outro" (filhos, alunos, subordinados, pacientes), porém não percebem
que esse "outro" não é a realidade essencial do "outro",
mas o "outro virtual" que reconstruíram interpretativamente em suas
mentes. O grande problema é que, muitas vezes, essa reconstrução dá-se
restritivamente, gerando um preconceituosismo histórico e um processo de
compreensão superficial que criam enormes distorções e injustiças na
interpretação em relação ao que o "outro" realmente é.
A essência intrínseca dos
objetos e dos fenômenos só pertence a eles mesmos, pois ela é inconsciente para
si mesma, vive a dramática condição da inconsciência existencial. O
conhecimento, por sua vez, não tem existência própria nem é dado pela simples
sensação ou percepção sensorial; ele é produzido pelo processo de interpretação
a cada momento da interpretação. O conhecimento consciente, enquanto
"natureza virtual consciente", que acusa e discursa a realidade
essencial do mundo intra e extra-psíquico, nem mesmo tem essência própria,
pois, como foi dito, sua natureza e o eu. Os pensamentos dialéticos e
antidialéticos são usados como a ferramenta intelectual para construção do
conhecimento consciente, seja na científicidade seja na coloquialidade.
Os pensamentos dialéticos e
antidialéticos produzem os limites, o alcance e a lógica do conhecimento
consciente. Entre o conhecimento consciente e a realidade essencial dos
objetos e fenômenos há uma distância infinita, um antiespaço entre o virtual
(consciência) e o real (fenômeno essencial). Entre as interpretações de um
psicoterapeuta e a realidade essencial da ansiedade de seu paciente há, ainda
que ele não perceba, uma distância "infinita", separadas pelo
intransponível fosso entre a consciência virtual do psicoterapeuta e a
realidade essencial do paciente. Essa distância se reproduz em todos os níveis
das relações interpessoais: nas relações entre pais e filhos, nas relações
profissionais, entre jurados e o réu, entre amigos etc. Porém, embora as
relações interpessoais tenham a separá-las um fosso intransponível, não
deveríamos imaginar que elas são pobres por causa disso; pelo contrário, são
arquiteturas psicodinâmicas riquíssimas, produzidas pelo processo de construção
da consciência existencial.
Apesar das limitações da
consciência virtual, as relações interpessoais serão riquíssimas se aprendermos
a reconstruir interpretativamente o "outro", com mais justiça em
relação ao que ele é, ainda que essa reconstrução seja sempre devedora à sua
realidade essencial. Conhecemos o outro a partir de nós mesmos; daí a imensa
responsabilidade de reconstruirmos o "outro" condizente ao que o
"outro é" e não em relação ao que "nós somos".
Infelizmente, muito do que falamos do "outro" diz mais a nosso
respeito do que a ele mesmo. Há muitos pais, executivos, intelectuais,
psicoterapeutas, professores que criticam, acusam, descrevem, julgam o
"outro" (filhos, alunos, subordinados, pacientes), porém não percebem
que esse "outro" não é a realidade essencial do "outro",
mas o "outro virtual" que reconstruíram interpretativamente em suas
mentes. O grande problema é que, muitas vezes, essa reconstrução dá-se
restritivamente, gerando um preconceituosismo histórico e um processo de
compreensão superficial que criam enormes distorções e injustiças na
interpretação em relação ao que o "outro" realmente é.
A essência intrínseca dos
objetos e dos fenômenos só pertence a eles mesmos, pois ela é inconsciente para
si mesma, vive a dramática condição da inconsciência existencial. O conhecimento,
por sua vez, não tem existência própria nem é dado pela simples sensação ou
percepção sensorial; ele é produzido pelo processo de interpretação a cada
momento da interpretação. O conhecimento consciente, enquanto "natureza
virtual consciente", que acusa e discursa a realidade essencial do mundo
intra e extra-psíquico, nem mesmo tem essência própria, pois, como foi dito,
sua natureza Devemos nos lembrar de que, assim como podemos reconstruir o
"outro" de maneira distorcida, podemos construir as "verdades
científicas" sobre as avenidas do autoritarismo das idéias, sem um
sistema de relação com a verdade essencial dos objetos e fenômenos de estudo.
Isso tem acontecido com freqüência na ciência. Nas relações humanas, elas
também têm ocorrido com grande freqüência até os dias de hoje, o que se
expressa, por exemplo, pelo discurso da superioridade dos brancos em relação
aos negros, pelo discurso nazista da superioridade da raça ariana em relação à
raça judia e demais povos, pelo discurso dos povos do primeiro mundo em relação
aos trabalhadores clandestinos em suas sociedades. Esses discursos
intelectualmente superficiais maculam a história, deixam profundas cicatrizes
anti-humanísticas.
O processo de interpretação
se constitui dos sistemas de co-interferências de variáveis presentes, a cada
momento existencial, nos bastidores inconscientes da inteligência. O processo
de interpretação se constitui de cinco importantes etapas da interpretação, das
quais as três primeiras são inconscientes e as duas últimas conscientes. Nas
etapas iniciais se formam as matrizes dos pensamentos essenciais históricos,
que são inconscientes. Os conhecimentos científicos e coloquiais são formados
na quarta e quinta etapas da interpretação.
A complexidade dos sistemas
de variáveis da interpretação que atuam no âmago da psique faz com que a
construção do conhecimento sofra, em todas as etapas da interpretação,
complexos e sofisticados sistemas de encadeamentos distorcidos, que leva essa
construção a ultrapassar os limites da lógica. Assim, pelo fato de o
conhecimento ser produzido pelo processo de interpretação, ele facilmente pode
ser distorcido, contaminado. Por isso, como eu já disse, as verdades
científicas podem possuir pouca ou nenhuma relação com a verdade essencial, o que
as fazem ser revisadas e modificadas ao longo das gerações.
Devido ao sistema de
encadeamento distorcido, ocorrido no processo de construção do conhecimento, o
homem não apenas pode distorcer com facilidade a verdade essencial, mas também
entrar facilmente no território das contradições intelecto-emocionais. Ele é
capaz de experimentar intensas reações fóbicas diante de pequenos e
inofensivos animais e de antecipar situações do futuro e vivenciá-las como se
fossem reais, embora o futuro ainda seja uma irrealidade. Ele também é capaz
de se preocupar intensamente com sua imagem social, ou seja, com o que os
outros pensam e falam de si, embora o "outro" jamais penetre
essencialmente dentro do seu próprio universo intrapsíquico.
Concluindo, todo conhecimento
é produzido invariavelmente pelo processo de interpretação multifocal, advindo
da leitura e utilização da história intrapsíquica, debaixo da influência dos
sistemas de co-interferências das variáveis da interpretação. Todos os objetos
e fenômenos de estudos intrapsíquicos e extrapsíquicos não são acessíveis
essencialmente à consciência existencial ou intelectual, pois esta é virtual,
antiessencial. Por isso, o processo de interpretação tem a complexa tarefa de
reconstruí-los interpretativamente através da construção de pensamentos
dialéticos e antidialéticos. A construção desses pensamentos produz a
consciência existencial, que nos tira da dramática e indescritível condição da
solidão da inconsciência existencial.
A consciência existencial
discursa sobre os fenômenos e objetos intrapsíquicos e extrapsíquicos. Porém,
ela não incorpora a realidade essencial dos fenômenos e dos objetos, mas é uma
interpretação deles na esfera da virtualidade. Por um lado, a consciência
existencial, além de ser devedora da realidade essencial, pode ser
excessivamente distorcida pela flutuabilidade das variáveis intrapsíquicas e
contaminada pelos julgamentos prévios contidos na história intrapsíquica e
socioeducacional, bem como pela ação psicotrópica de determinadas drogas e das
substâncias psicoativas neuroendócrinas determinadas geneticamente. Por outro
lado, quanto mais a consciência existencial mantém um sistema de relação com a
verdade essencial, mais ela conquista um status de verdade científica,
capaz de resultar em aplicabilidade e previsibilidade de fenômenos.
Se a verdade essencial é um
objetivo a ser procurado ansiosamente pela ciência, mas nunca atingido pela
consciência existencial, e se a universalidade científica (a verdade
científica universal), principalmente no terreno da construção dos pensamentos
dialéticos, fonte de construção da própria ciência, submete-se ao campo da
flutuabilidade e evolutividade de determinadas variáveis intrapsíquicas, então
por que o sistema acadêmico possui, na prática, ainda que não admita no
discurso teórico, uma postura universal rígida, como se fosse idêntica à
inalcançável verdade essencial, de ser o centro da produção de intelectuais?
Nunca na história uma instituição teve a função de ser um canteiro da
inteligência, mas paradoxalmente engessou a arte de pensar. Essa frase,
derivada da relação da verdade científica com a verdade essencial, é uma
síntese do meu pensamento crítico-epistemológico dessa postura das
universidades. Muitas universidades se fecharam em torno de determinadas
convenções, comprometendo, assim, a nobilíssima vocação de serem uma
universidade de idéias, uma usina do pensamento.
Quais as conseqüências disto?
Entre elas está a incapacidade que a ciência tem de resolver os problemas
essenciais da sociedade. Faltam idéias e pensadores brilhantes que possam
contribuir para dar soluções para os problemas humanos fundamentais.
No século XIX e
principalmente no século XX, a ciência teve um desenvolvimento explosivo.
Alicerçado na ciência, o homem se tornou ousado em seu sonho de progresso e
modernidade. A ciência se tornou o deus do homem. Ela prometia conduzi-lo a dar
um salto nos amplos aspectos da prosperidade biológica, psicológica e social. A
solidariedade cresceria, a cidadania floresceria, a solidariedade seria a
tônica das relações sociais, a riqueza material se expandiria e atingiria todo
ser humano, a miséria social seria extinta. As guerras, as discriminações e as
demais violações dos direitos humanos seriam lembradas apenas nas páginas da
história.
A ciência fazia uma grande e
espetacular promessa. Era uma promessa não expressa por palavras, mas, ainda
assim, era forte e arrebatadora. Era uma promessa sentida a cada momento que a
ciência dava um salto espetacular na engenharia civil, na mecânica, na
eletrônica, na medicina, na genética, na química, na física. A expansão do
conhecimento se tornava incontrolável. Cada ciência se multiplicava em novas
ciências. Cada viela do conhecimento se expandia e se tornava bairros inteiros
de informações. Encontrava-se um microcosmo dentro das células. Descobria-se um
mundo dentro dos átomos. Compreendia-se um mundo com bilhões de galáxias que
pulsava no espaço.
As universidades foram
fundamentais nesse processo. Elas se tornaram a força motriz do desenvolvimento
humano. Porém, com o passar do tempo, como aconteceu com as grandes
instituições que atingiram o topo do sucesso, as universidades entraram em
decadência, ainda que a maioria das pessoas não consigam perceber. O
conhecimento foi institucionalizado, os grandes teóricos se tornaram escassos,
a hierarquia acadêmica substituiu o livre pensamento, as grandes teorias
desapareceram. O resultado é que a ciência, embora tenha-se expandido como
nunca na história, frustrou o homem.
De um lado ela fez muito e
continua fazendo muito. Ela causou uma revolução tecnológica no mundo
extrapsíquico e até mesmo no corpo humano, através dos avanços da medicina.
Ela revolucionou o mundo exterior, o mundo de fora do homem, mas não
revolucionou o mundo intrapsíquico, o mundo de dentro do homem, o cerne da sua
alma. Ela levou o homem a conhecer o imenso espaço, mas não sabe como prevenir
as doenças psíquicas e psicossomáticas, bem como os homicídios e os suicídios.
Ela produziu veículos automotores facilmente dirigíveis, mas não produziu
veículos psíquicos capazes de levar o homem a gerenciar seus pensamentos
negativos e a proteger sua emoção nos focos de tensão. Ela produziu máquinas
para arar a terra e cultivar alimentos, mas não produziu princípios
psicológicos e sociológicos para "arar" a rigidez intelectual humana
e cultivar a tolerância, a preocupação com o outro, o prazer de viver, o
sentido No século XIX e principalmente no século XX, a ciência teve um desenvolvimento
explosivo. Alicerçado na ciência, o homem se tornou ousado em seu sonho de
progresso e modernidade. A ciência se tornou o deus do homem. Ela prometia
conduzi-lo a dar um salto nos amplos aspectos da prosperidade biológica,
psicológica e social. A solidariedade cresceria, a cidadania floresceria, a
solidariedade seria a tônica das relações sociais, a riqueza material se
expandiria e atingiria todo ser humano, a miséria social seria extinta. As
guerras, as discriminações e as demais violações dos direitos humanos seriam
lembradas apenas nas páginas da história.
A ciência fazia uma grande e
espetacular promessa. Era uma promessa não expressa por palavras, mas, ainda
assim, era forte e arrebatadora. Era uma promessa sentida a cada momento que a
ciência dava um salto espetacular na engenharia civil, na mecânica, na
eletrônica, na medicina, na genética, na química, na física. A expansão do
conhecimento se tornava incontrolável. Cada ciência se multiplicava em novas
ciências. Cada viela do conhecimento se expandia e se tornava bairros inteiros
de informações. Encontrava-se um microcosmo dentro das células. Descobria-se um
mundo dentro dos átomos. Compreendia-se um mundo com bilhões de galáxias que
pulsava no espaço.
As universidades foram
fundamentais nesse processo. Elas se tornaram a força motriz do desenvolvimento
humano. Porém, com o passar do tempo, como aconteceu com as grandes
instituições que atingiram o topo do sucesso, as universidades entraram em
decadência, ainda que a maioria das pessoas não consigam perceber. O
conhecimento foi institucionalizado, os grandes teóricos se tornaram escassos,
a hierarquia acadêmica substituiu o livre pensamento, as grandes teorias
desapareceram. O resultado é que a ciência, embora tenha-se expandido como
nunca na história, frustrou o homem.
De um lado ela fez muito e continua
fazendo muito. Ela causou uma revolução tecnológica no mundo extrapsíquico e
até mesmo no corpo humano, através dos avanços da medicina. Ela revolucionou o
mundo exterior, o mundo de fora do homem, mas não revolucionou o mundo
intrapsíquico, o mundo de dentro do homem, o cerne da sua alma. Ela levou o
homem a conhecer o imenso espaço, mas não sabe como prevenir as doenças
psíquicas e psicossomáticas, bem como os homicídios e os suicídios. Ela
produziu veículos automotores facilmente dirigíveis, mas não produziu veículos
psíquicos capazes de levar o homem a gerenciar seus pensamentos negativos e a
proteger sua emoção nos focos de tensão. Ela produziu máquinas para arar a
terra e cultivar alimentos, mas não produziu princípios psicológicos e sociológicos
para "arar" a rigidez intelectual humana e cultivar a tolerância, a
preocupação com o outro, o prazer de viver, o sentido da vida. Ela produziu
máquinas computadorizadas que executam tarefas intelectuais rápidas e
brilhantes, mas não produziu mecanismos para que o diálogo e a solidariedade
sejam usados como ferramentas para solucionar as crises humanas e prevenir não
apenas os conflitos interpessoais que vertem as lágrimas, mas também as guerras
que vertem o sangue.
A ciência não causou a tão sonhada
revolução da qualidade de vida e da preservação dos direitos humanos. O homem
do terceiro milênio se sentiu frustrado, perdido, confuso, sem âncora
intelectual para se segurar. Se as universidades não revirem seus pilares e
paradigmas fundamentais continuaremos a não multiplicar a arte de pensar e o
mundo das idéias, continuaremos a ter um conceito deturpado sobre o que é um
ser que pensa, o que é ser um intelectual, o que é ser uma pessoa inteligente e
quais as funções mais importantes da inteligência.
A PESQUISA EMPÍRICA ABERTA GEROU A TEORIA MULTIFOCAL
Pesquisa empírica é a
pesquisa que interpreta os seus objetos de estudo. Neste livro, toda pesquisa
científica é chamada de "empírica", pois todos os objetos e fenômenos
de estudos das ciências, tanto das ciências físicas, químicas e biológicas
como das ciências da cultura (Psicologia, Educação, Direito) são essencialmente
inacessíveis à consciência intelectual e, portanto, precisam ser interpretados
para serem conscientizados nos palcos conscientes da mesma.
Os objetos e fenômenos
intrapsíquicos (idéias, reações fóbicas, humor deprimido) e extrapsíquicos
(células, reações químicas, materiais) são sempre inacessíveis essencialmente.
Porém, a grande maioria dos objetos e fenômenos extrapsíquicos têm uma grande
vantagem em relação aos intrapsíquicos, ou seja, são tangíveis ou perceptíveis
sensorialmente, seja pela simples observação ou por utilização de técnicas e
instrumentos, por isso são passíveis de serem controlados. Chamo as pesquisas
nas ciências físicas, químicas e biológicas de "pesquisas empíricas
controladas". São "empíricas" porque são frutos do processo de
interpretação e, conseqüentemente, a produção de conhecimento decorrente das
mesmas apenas acusa e discursa dialeticamente sobre os fenômenos e os objetos
interpretados, mas não os incorpora essencialmente. São controladas porque são
tangíveis sensorialmente, e as variáveis que norteiam seus objetos e fenômenos,
tais como luminosidade, temperatura, umidade etc, são passíveis de ser controladas
por técnicas e instrumentos no processo de pesquisa.
Nas ciências da cultura, as
pesquisas são chamadas de "pesquisas empíricas abertas". São
"empíricas" porque são frutos do processo de interpretação e,
conseqüentemente, a produção de conhecimento derivada das mesmas apenas
discorre teoricamente sobre os fenômenos psíquicos e psicossociais
interpretados, mas não os incorpora essencialmente. São "abertas"
porque seus fenômenos de estudo, além de ser imperceptíveis sensorialmente, as
variáveis que os envolvem não são controladas no processo da pesquisa. Não há
técnicas nem instrumentos que possam investigar a essência intrínseca da
ansiedade, do desespero, da insegurança, dos sentimentos de prazer, das idéias
etc, nem que possam controlar as variáveis que participam da construção delas.
No máximo, pode-se observar sistemática e criteriosamente o comportamento
humano; mas eles são expressões pobres, restritivas, das complexas
experiências psíquicas; ou então fazer um processo de introspecção aberta e
crítica para observar, também criteriosa e sistematicamente, os processos e
fenômenos envolvidos na construção dos pensamentos.
Hoje é também possível fazer
pesquisas sobre bioquímica e fisiologia cerebral dentro dos limites da
bioética, principalmente com pacientes portadores de patologias neurológicas e
psiquiátricas ou com animais, visando transpor o conhecimento do sistema
nervoso central deles para o homem. Ainda é possível fazer o mapeamento
cerebral pela cintílografia computadorizada e por outras técnicas de ponta.
Porém, todas essas técnicas trazem pouquíssimas evidências sobre o complexo
campo de energia psíquica e a sofisticada operacionalidade multifocal dos
fenômenos que promovem o funcionamento da mente.
A construtividade dos
pensamentos e da consciência existencial é complexa e multivariável. A
inteligência não sofre apenas uma influência da carga genética, do metabolismo
dos neurotransmissores, dos fatores socioculturais e emocionais; sua
construtividade é muito mais complexa do que até hoje a ciência tem descoberto.
Há mais de três dezenas de
variáveis que co-interferem na construção da inteligência, dificílimas de ser
investigadas, e que fazem mesmo o mais simples pensamento ter uma arquitetura
psicodinâmica indescritível. Diante de todos esses entraves no processo de
pesquisa sobre a psique humana, é possível ter uma idéia de por que há tantas
teorias psicológicas, filosóficas, sociológicas, psicopedagógicas tão
diferentes umas das outras.
Todos esses entraves
evidenciam a necessidade de usar na "pesquisa empírica aberta"
procedimentos mais amplos e complexos do que os procedimentos ortodoxos usados
na pesquisa acadêmica, tais como a simples utilização de uma teoria como
suporte da interpretação, os levantamentos bibliográficos, o estabelecimento de
postulados prévios, as aplicações metodológicas, a seletividade de dados e a
análise unifocal dos mesmos.
Precisamos usar
procedimentos, tais como a "tríade de arte da pesquisa", a análise
das variáveis da interpretação, a análise dos sistemas das variáveis, que
co-interferem para gerar os processos de construção da inteligência, a busca
do caos intelectual, para que possamos expandir o mundo das idéias sobre o
funcionamento da mente e o processo de construção dos pensamentos. A pesquisa
empírica aberta abre as janelas de nossa inteligência.
Capítulo 3
A Memória e os Três Tipos de Pensamentos
O HOMO INTERPRES E O INTELLIGENS
Homo interpres é o homem inconsciente, representado pelos territórios
da memória e pelo conjunto de fenômenos inconscientes que produzem o
funcionamento da mente humana, dos quais destaco os fenômenos RAM, da
psicoadaptação, da autochecagem, da âncora da memória, do autofluxo. Como
estudaremos, eles são responsáveis pelo registro das informações na memória,
pela leitura da mesma e pela construção das cadeias de pensamentos e das
reações emocionais.
Homo intelligens é o homem consciente, representado pelo eu, o grande
fenômeno consciente da inteligência. Através do eu, temos a consciência
existencial, ou seja, a consciência de que existimos e de que há um mundo que
existe e pulsa ao nosso redor. Além disso, temos a consciência de que pensamos
e nos emocionamos e podemos administrar os pensamentos e as emoções.
O Homo intelligens é
resultado do Homo interpres, pois todos os fenômenos que produzem a
nossa consciência são inconscientes. Para confirmar esse fato, basta citar que
não sabemos como penetramos nos labirintos da memória e resgatamos as
informações que constituem os pensamentos conscientes.
O eu faz leitura da memória e
constrói cadeias de pensamentos, porém, ao contrário daquilo em que até hoje a
psicologia acreditou, a maioria dos pensamentos que diariamente produzimos não
é produzida debaixo do controle consciente do eu, mas pelos complexos fenômenos
que estão imersos no campo de energia inconsciente da alma humana.
O Homo interpres faz com
que, freqüentemente, os processos de construção dos pensamentos e da
consciência existencial ultrapassem os limites da lógica. Por que o homem
consciente é freqüentemente ilógico? Por que diante de pequenos problemas ele
sofre grande impacto emocional e, as vezes, diante de grandes problemas mantém
sua coerência e lucidez? Por que diante de uma pequena barata ou diante de
elevador algumas pessoas têm reações fóbicas inadministráveis? O grande motivo
desses paradoxos é que no seu território inconsciente há uma série de variáveis
e fenômenos que ele não controla.
Quem controla todos os
pensamentos produzidos no palco de nossa mente? E as emoções, quem consegue
submetê-las plenamente ao governo de sua vontade? Podemos gerenciar o mundo mas
é muito difícil administrar a colcha de retalhos que constituem a nossa
inteligência. A partir de agora, vamos estudar o cerne do funcionamento da
mente e, talvez, o maior de todos os espetáculos do universo: o espetáculo da
construção dos pensamentos.
A MEMÓRIA
A memória é uma das
estruturas mais misteriosas e fundamentais da inteligência humana. Grande parte
dos textos que produzi sobre a memória não será abordada neste livro. A localização
anatômica da memória no córtex cerebral, bem como a fisiologia e bioquímica da
mesma não pertencem à minha área de pesquisa, mas às neurociências. Aqui
estudaremos algo mais importante do que sua anatomia. Analisaremos os seus
papéis, investigaremos a memória como suporte da construção da racionalidade,
do mundo intelectual.
O senso comum confunde
erroneamente memória com inteligência. Para ele, quem tem melhor memória ou
melhor capacidade de lembrança é mais inteligente. Esse conceito é desprovido
de fundamento, pois estudaremos que, ao contrário do que milhões de educadores
pensam, não existe lembrança. Não há lembrança das informações contidas na
memória, mas reconstrução das mesmas. Esse fato rompe com um dos mais sólidos
paradigmas que sustenta a educação clássica. Os professores enfileiram os
alunos durante toda a vida escolar para lhes transmitir informações, tendo a
falsa crença de que a memória é um depósito delas. Todavia, a memória
simplesmente não tem essa função.
A memória armazena a história
intrapsíquica, que é composta de milhões de experiências de prazer, medo,
apreensão, tranqüilidade, raiva, que temos durante toda nossa vida, iniciando
pela vida intra-uterina. Entretanto, pelo fato de a memória armazenar os
segredos de nossa história, pensamos ingenuamente que a função dela é funcionar
como depósito de informações. Assim, cremos falsamente que a hora que quisermos
poderemos usá-las de maneira pura — como retirar uma roupa do armário ou um
alimento da dispensa. Armazenamos as informações na memória, mas, quando as
lemos e utilizamos, elas não são mais exatamente as mesmas informações. É como
você colocar uma peça de roupa no armário e depois de uma semana, quando for
utilizá-la, ela mudou de cor, encolheu ou aumentou.
Temos de ter consciência de
que a leitura da memória é uma das mais importantes variáveis que participam da
construção da inteligência. Existem dezenas de outras variáveis que também
participam dessa leitura. Por isso, o resgate das informações, principalmente
das experiências do passado carregadas de emoções, nunca é uma lembrança pura,
mas uma reconstrução distinta, ainda que minimamente, dessas experiências.
Retomaremos esse assunto adiante.
O REGISTRO DAS INFORMAÇÕES
Como as informações se
armazenam na memória? Como as complexas experiências emocionais, tais como a
insegurança, o prazer e as reações fóbicas, se registram na memória e ficam
disponíveis para serem resgatadas? Essas questões são fundamentais.
Cada informação ou
experiência psíquica é armazenada na memória como um sistema de código
físico-químico, que chamo de representação psicossemântica, RPS. As RPSs são
sistemas de códigos físico-quimicos que representam o significado (semântica)
ou conteúdo das experiências psíquicas (pensamentos, idéias, raciocínios
analíticos, ansiedades, angústias existenciais, prazeres) e das informações
psíquicas (nomes, números, símbolos lingüísticos, símbolos visuais, fórmulas
matemáticas).
As "informações
psíquicas" são mais objetivas; por isso, as RPSs que as representam na
memória são mais bem organizadas. Essas condições facilitam a leitura e a
recordação ou interpretação das mesmas, que normalmente são realizadas com
menos distorções.
As "experiências
psíquicas" são mais subjetivas e complexas; portanto, são menos
organizadas, e sua reconstrução pela interpretação é realizada com mais
distorção. Dentre as experiências psíquicas, os pensamentos existenciais, as
idéias, os raciocínios analíticos, enfim, as construções psicodinâmicas dos
pensamentos são mais organizadas do que as transformações da energia emocional,
o que facilita a leitura e a interpretação das mesmas com mais fidelidade em
relação às experiências psíquicas originais, ou seja, em relação às
experiências psíquicas que deram origem às RPSs iniciais.
As experiências emocionais e
motivacionais são complexas e difíceis de ser organizadas em sistemas de
códigos físico-químicos; por isso, suas leituras e reconstrução pela
interpretação são passíveis de ser recordadas ou reconstruídas
interpretativamente com muitas distorções. Como organizar adequadamente, em
sistemas de códigos físico-químicos, uma complexa experiência fóbica, uma
angústia decorrente de algum problema existencial ou uma experiência de
prazer? As RPSs das experiências emocionais e motivacionais são sempre
redutoras e simplistas em relação às mesmas.
A trajetória de pesquisa e
produção de conhecimento sobre a memória, do ponto de vista psicológico,
psicodinâmico e psicossocial, inclui:
1. A qualidade e quantidade
das RPSs, representações psicossemânticas das experiências psíquicas,
arquivadas na memória.
2. As RPSs diretivas, ou
seja, relacionadas diretamente com o estímulo interpretado.
3. As RPSs associativas, ou
seja, relacionadas associadamente com o estímulo interpretado.
4. A lógica do processo de
arquivamento das matrizes dos pensamentos essenciais.
5. As dificuldades de
organização lógica do processo de arquivamento das experiências emocionais e
motivacionais.
6. A morte do "eu
sou" gerando o "fui histórico", ou seja, o caos psicodinâmico
descaracterizando as experiências psíquicas do passado e arquivando-as na
memória, para formar a história intrapsíquica.
7. A atuação do fenômeno RAM
— registro automático da memória — produzindo um processo espontâneo e
inevitável de formação da história intrapsíquica. A preferência do fenômeno RAM
por registrar privilegiadamente as experiências que tenham mais tensão.
8. A redutibilidade da
complexidade das experiências psíquicas, tais como as idéias, as análises, as
angústias existenciais, as inseguranças, as reações fóbicas, etc, no processo
de arquivamento fisico-químico das mesmas na memória e na conseqüente produção
das RPSs. Por exemplo, uma RPS físico-química que representa uma angústia existencial,
vivenciada num determinado período histórico, é muito pobre era relação à
realidade da experiência em si.
9. Os mecanismos
psicodinâmicos que promovem os níveis de estabilidade e de disponibilidade
histórica das RPSs, tais como: a qualidade dos estímulos da interpretação; a
qualidade do processo de interpretação do observador num determinado momento;
a qualidade dos impactos psicodinâmicos intelecto-emocionais das experiências
resultantes do processo de interpretação; as condições psicodinâmicas de
arquivamento dessas experiências como RPSs na memória e freqüência dos resgates
da construção das RPSs, etc.
10. A descaracterização das
RPSs na memória.
11. A interpretação das RPSs.
12. Os sistemas de relações
existentes entre os códigos físico-químicos das RPSs e as experiências
psíquicas.
13. Os sistemas de relações
existentes entre os códigos físico-químicos da memória e os estímulos
extrapsíquicos.
14. O processo de construção
da história intrapsíquica na memória do feto.
15. O processo de construção
da história intrapsíquica na memória na vida extra-uterina.
16. A leitura da memória
pelos quatro fenômenos que fazem a leitura da mesma.
17. Os deslocamentos
psicodinâmicos da âncora da memória nos seus territórios permitem a leitura,
numa determinada circunstância psicossocial, de um grupo de RPSs diretivas e
associativas para o fenômeno da autochecagem, do autofluxo e o eu construírem
as matrizes dos pensamentos essenciais históricos.
Os pontos psicológicos,
psicodinâmicos e psicossociais relativos à memória são muito complexos,
semelhantemente aos pontos relativos aos processos de construção dos
pensamentos. Por isso, seriam necessários muitos livros para abrangê-los todos.
Como podemos perceber através
de todos estes pontos, a abordagem da memória é muito mais complexa do que os
conceitos neurocientíficos relacionados com a memória de curto prazo e a
memória de longo prazo.4 Deixarei de lado o uso da memória de longo
prazo e de curto prazo por não considerá-lo adequado.
A MEMÓRIA EXISTENCIAL E A MEMÓRIA DE USO CONTÍNUO FORMANDO A HISTÓRIA INTRAPSÍQUICA
Existem dois tipos de
memória. A memória existencial (ME) e a memória de uso contínuo (MUC). Essas
duas memórias formam a totalidade da história intrapsíquica de um ser humano,
contendo, portanto, todos os segredos de sua vida. A memória existencial
representa as experiências que vão sendo registradas ao longo da vida e a
memória de uso contínuo representa as informações que vão sendo usadas e
rearquivadas continuamente, tais como os endereços das residências e dos
e-mails, os números telefônicos, as fórmulas matemáticas, as palavras que
compõe uma língua. Por que conseguimos nos "lembrar" de maneira mais
exata de determinadas informações? Porque elas são usadas continuamente e,
conseqüentemente, são novamente arquivadas, ficando mais disponíveis para serem
lidas. Se deixarmos de usar determinadas informações, elas vão sendo
substituídas e arquivadas na memória em zonas de acesso mais difícil.
Na base do desenvolvimento da
dependência de drogas, das fobias, dos transtornos obsessivos e da síndrome do
pânico existe uma produção contínua de idéias e experiências emocionais
semelhantes, que vão sendo arquivadas em zonas privilegiadas da memória de uso
contínuo, ficando, assim, mais disponíveis para serem lidas e,
conseqüentemente, para reproduzir novamente um desejo compulsivo por usar a
droga, uma reação fóbica, uma idéia obsessiva ou precipitar um novo ataque de
pânico.
O processo de arquivamento da
memória humana não é segmentado como nos computadores. Nestes, os arquivos são
segmentados e as informações são arquivadas em sistemas de códigos ou
endereços. Nos computadores procuramos as informações através de rígidos e
engessados sistemas de códigos, da mesma forma como procuramos um livro numa
biblioteca. Na memória humana não ocorre assim, sua leitura não é
unidirecional, mas multifocal. Nela, ao contrário dos computadores, os arquivos
têm canais de comunicação entre si. Além disso, o registro das informações é
feito por um complexo sistema de significado ou conteúdo (representação
psicossemântica- RPS). É como se pudéssemos entrar em diversos livros de uma
biblioteca e utilizarmos o conteúdo deles ao mesmo tempo.
O sistema de leitura da
história intrapsíquica é tão complexo, que uma pequena flor, um estímulo tão
simples, pode nos levar ao passado e nos fazer resgatar momentos ricos de nossa
infância que, aparentemente, não têm nada a ver com a anatomia da flor que está
diante dos nossos olhos. Nos computadores, o estímulo da flor nos induziria a
resgatar apenas a fauna, mas na memória humana ela pode nos induzir a resgatar
as brincadeiras, os momentos ingênuos, os passeios singelos e despreocupados.
Do mesmo modo, um pequeno gesto de uma pessoa pode nos levar a ter reações de
alegria, apreensão ou ansiedade, pois nos remete à leitura da memória que
resgata conteúdos importantes de nossa história.
Lembro-me de duas educadoras
que tinham reações fóbicas intensas diante de uma lagartixa. Uma delas tinha
reações psicossomáticas dramáticas diante deste animal, desencadeava crises de
vômitos. O problema não era mais a lagartixa, mas o monstro que ela criou
dentro dela, ou seja, a representação ou significado deste animal que ela criou
na sua memória.
O PASSADO NÃO É LEMBRADO, MAS RECONSTRUÍDO
Os processos de construção da
inteligência desencadeados pela leitura da história intrapsíquica,
principalmente pela memória existencial, são tão complexos que, ao estudá-los,
compreendemos que não existe a "recordação" ou "lembrança"
original das experiências do passado, mas uma interpretação em que
reconstruímos essas experiências no palco de nossas mentes.
Não nos lembramos das
experiências originais do passado; sempre reconstruímos interpretativamente
essas experiências a partir da leitura multifocal da história intrapsíquica e
dos sistemas de variáveis intrapsíquicas do presente que atuam
psicodinamicamente nessas experiências.
Nunca recordamos nem nos
lembramos da essência das nossas dores emocionais, das nossas angústias
existenciais, das nossas idéias etc, mas, como disse, as reconstruímos na
mente. A história existencial (intrapsíquica) está morta essencialmente na
memória. Para que ela possa ser utilizada na confecção das cadeias de
pensamentos, nas transformações da energia emocional, ela tem de ser
reconstituída (reconstruída) essencialmente. Tais reconstruções pela
interpretação são passíveis de inúmeras distorções.
A realidade essencial das
experiências psíquicas do passado sofreram o caos psicodinâmico. A medida que
isso aconteceu, elas sofreram, ao mesmo tempo, um processo de registro
físico-químico na memória, gerando as RPSs. Quem registra automaticamente as
experiências do passado? O fenômeno RAM. Ele, à medida que os pensamentos e as
emoções são construídos no palco de nossas mentes, registra-os na memória do
córtex cerebral, em forma de sistemas de códigos físico-químicos. Assim surgem
as RPSs, que são representações físicas das experiências psíquicas. As RPSs são
sistemas de códigos decorrentes, provavelmente, de arranjos eletrônicos ou
atômicos em determinados sítios do córtex cerebral, onde se localiza a
memória, tais como complexo amigdalóide, o hipocampo, o sistema límbico,5
etc.
As RPSs são sistemas de
códigos físico-químicos que representam semanticamente as experiências
psíquicas que sofreram o caos psicodinâmico ao longo do processo de formação da
personalidade. Porém, as RPSs, como arranjo físico-químico, seja atômico,
eletrônico ou qualquer outro sistema de código, são e serão sempre
"pobres", restritivas, em relação à experiência original.
O primeiro beijo, o primeiro
diploma, o primeiro desafio, o primeiro salário, a primeira derrota, nunca mais
são resgatados de maneira pura, de maneira tão intensa. Toda
"recordação" tem um débito emocional em relação à experiência
original. Embora esse assunto talvez nunca tenha sido estudado na psicologia,
ele está no âmago do processo de formação da personalidade.
Os melhores momentos de
prazer, bem como as mais amargas experiências de dor emocional, de solidão, de
desespero e de ansiedade, foram registradas como sistemas de códigos físicos
"frios", que precisarão dos fenômenos que lêem a memória para serem
reconstruídos interpretativamente no campo da energia psíquica e assim
ganharem "vida", realidade psíquica. Assim, tais sistemas de códigos
saem da condição física do córtex cerebral para conquistar energia psíquica.
Por que a memória é redutora e contraidora das experiências do passado, da
história existencial? Porque o objetivo fundamental da memória é ser utilizado
para produzir continuamente novas experiências, idéias, pensamentos e emoções,
e, assim, promover e até provocar a evolução psicossocial, o desenvolvimento
da personalidade, da construção da inteligência como um todo.
Já pensou se pudéssemos
resgatar o passado exatamente como ele é e se tivéssemos, ainda, a capacidade
plena de lembrar de todas as experiências contidas na memória? Isso poderia
paralisar a produção de novas experiências, o que engessaria o desenvolvimento
da inteligência.
Tem de haver a morte ou o
caos do "eu sou", ou seja, da realidade das experiências psíquicas do
presente, tais como os raciocínios analíticos, as idéias, as angústias
existenciais, as ansiedades, os prazeres, etc, para que surja o "fui
histórico", ou seja, para que ocorra o processo de registro dessas
experiências e se produza, conseqüentemente, a formação da história passada. A
experiência mais bela que temos hoje tem de morrer, se desorganizar e ser
armazenada fisicamente no córtex cerebral. Notem que nem mesmo o momento mais
feliz de nossa vida dura mais do que horas ou dias.
O caos do "eu sou"
expande a história intrapsíquica, ou seja, a descaracterização das experiências
do presente expande o registro da memória. Para que possamos enriquecer nossa
capacidade de pensar e de sentir do presente, precisamos enriquecer nossa
memória. Todavia, para enriquecer a memória, os pensamentos e as emoções do
presente têm que "morrer" e se registrar nela. "Morrendo",
descaracterizando-se, eles abrem espaços para novas leituras da memória e para
a produção de novos pensamentos e emoções.
A morte do presente é a única
possibilidade de expansão do próprio presente, de enriquecimento do "eu
sou", pois o presente se alimenta das informações. Se essas não forem
acumuladas na memória, se paralisaria a evolutividade intelecto-emocional.
Notem que aprendemos milhões
de informações na escola, mas quando adultos somos capazes de, no máximo,
lembrar de milhares delas. O objetivo da memória não é dar um excelente suporte
para que se processe a lembrança pura das experiências e das informações
passadas, mas suporte para produzir novas experiências e informações a partir
da leitura do passado. Por isso, grande parte das informações se perde, o que
fica é seu conteúdo, seu significado, que funcionarão como tijolos para novas
construções intelectuais.
O "eu sou" (as experiências
do presente) sofre o caos psicodinâmico, desorganiza sua essência e
simultaneamente registra-se na memória, tornando-se o "fui
histórico", ou seja, a história intrapsíquica. Num processo de retorno ou
rebote existencial, o "fui histórico" influencia o "eu
sou", ou seja, os processos de construção da inteligência no momento
existencial do presente. Porém, o "eu sou" tem dimensões distintas em
relação ao fui histórico (o passado); ele representa o fui histórico somado às
variáveis intrapsíquicas do presente. Assim, a cada momento da existência, o
"eu sou" está experimentando o caos e se tomando o fui histórico, e
renascendo ou reorganizando-se como um "novo eu sou", expandindo as
possibilidades de construção das experiências e promovendo o processo de evolução
psicossocial do homem.
A realidade das dores,
alegrias e ansiedades do passado findou-se e se tornou a história; a história,
uma vez lida, renasce e participa da realidade do presente. Essa abordagem,
mais uma vez, expressa a importância da união da Psicologia com a Filosofia num
mesmo corpo teórico para compreendermos o homem total.
Nossas idéias, emoções,
análises estão sempre evoluindo no processo existencial, ainda que essa
evolução não seja qualitativa. Na gênese das ansiedades há uma leitura contínua
de determinadas zonas da memória que produzem reações ansiosas, que são
descaracterizadas e registradas novamente, retroalimentando as áreas doentias
de nossa história.
Ao contrário dos
computadores, uma das mais marcantes características da mente humana não é a
lógica, nem a mesmice intelectual nem a estabilidade intocável, mas a
evolução, a distinção, a diferenciação na produção intelectual. Todos
gostaríamos de ter a lógica e a habilidade dos computadores em resgatar
informações da memória, mas se tivéssemos tal habilidade os computadores não
existiriam, pois a inteligência humana não se desenvolveria e, portanto, não
seria capaz de construí-los. O grande paradoxo é que só uma mente que não é
estritamente lógica, como é a mente humana, poderia construir máquinas lógicas
como a dos computadores.
Se a energia psíquica não
estivesse num fluxo vital de transformações essenciais, em que se organiza,
desorganiza e reorganiza continuamente, não haveria o homem pensante, não
haveria a evolução intelectual da espécie humana.
A leitura das RPSs contidas
na memória e a organização instantânea dessas RPSs na formação das cadeias das
matrizes dos pensamentos essenciais e, conseqüentemente, na produção das
experiências emocionais e na construção de pensamentos conscientes (dialéticos
e antidialéticos) não é uma reprodução das experiências originais, não é uma
recordação ou lembrança essencial dessas experiências, mas uma interpretação
do passado.
As cadeias de pensamentos
essenciais, dialéticos e antidialéticos, bem como as experiências emocionais e
motivacionais produzidas pelo resgate das RPSs, podem ter grande ou pouca
relacionalidade com a realidade das experiências psíquicas vivenciadas no
passado.
A cada momento em que
resgatamos e reconstruímos uma experiência do passado, nós o fazemos de maneira
diferente, com proximidade ou grande distanciamento em relação às dimensões
intelecto-emocionais da experiência original. É por esse motivo que nossas
recordações da interpretação reproduzem de maneira diferente as experiências
do passado nos diversos momentos em que as recordamos. Em determinado momento,
podemos recordar uma experiência de angústia existencial vivenciada no passado,
ligada a uma perda, a uma frustração psicossocial ou a uma dificuldade
socioprofissional etc, e ficarmos comovidos com ela e, em outro momento,
podemos recordá-la sem grandes emoções. Uma mãe pode recordar a perda de um
filho com grande sofrimento num determinado momento e, em outro momento,
recordá-la sem grandes dores emocionais.
A experiência original e a
freqüência da reconstrução das experiências passadas e a qualidade desses
resgates formam as complexas tramas de RPSs que influenciarão na qualidade das
novas recordações a serem produzidas no futuro. Esse complexo mecanismo
psicodinâmico e psicossocial, associado à atuação do fenômeno da psicoadaptação
(a ser estudado), gera a diminuição dos níveis de intensidade emocional, seja
de sofrimento ou de prazer, dos resgates das experiências emocionais. Assim,
com o passar do tempo, todos os prazeres decorrentes das premiações (Oscar,
Nobel, Grammy, títulos acadêmicos, títulos esportivos etc), dos elogios e dos
bons momentos da vida, bem como todos os sofrimentos e todas as angústias
decorrentes das perdas, frustrações, estímulos estressantes etc, diminuem de
intensidade à medida que se processam os resgates da construção dessas
experiências. Se não ocorressem esses mecanismos, gravitaríamos em torno das
experiências do passado e não promoveríamos uma revolução na construção de
novas idéias que estimulariam o processo de formação da personalidade e o
processo de evolução da história social do homem.
Quando uso neste livro a
expressão "recordar o passado" ela não deve ser entendida, como foi
dito, como uma reprodução original das experiências do passado, mas uma
reconstrução da interpretação, ou melhor, uma interpretação realizada a partir
da leitura e manipulação das RPSs, contidas na história intrapsiquica que
formam as matrizes dos pensamentos essenciais. A leitura da história
intrapsiquica, a formação das matrizes dos pensamentos essenciais e a atuação
psicodinâmica dessas matrizes sofrem influência das variáveis intrapsíquicas
do presente, tais como o fenômeno da psicoadaptação, a energia emocional e
motivacional presente no momento da leitura da história intrapsiquica, o
fenômeno da credibilidade autógena.
A história intrapsiquica,
contida na memória, e a história social, contida nos livros, nos museus, na
arquitetura, são irrevogáveis na sua essência original; ambas são
invariavelmente interpretadas e reconstruídas nos bastidores da psique humana.
Embora os conceitos e
postulados da neuroanatomia, da neurofisiologia e da bioquímica cerebral das
neurociências, referentes à memória, sejam importantes e passíveis de serem
usados na compreensão de algumas variáveis que participam do processo de
construção da história intrapsiquica e dos demais processos da inteligência, é
preciso avançar muito na compreensão da memória. Precisamos pesquisar e
procurar compreender as complexas e sofisticadas esferas psicológicas,
psicodinâmicas e psicossociais ligadas à memória.
Todo ser humano que possui
uma memória preservada, capaz de armazenar as experiências psíquicas
(construções psicodinâmicas) produzidas pelos processos de construção da
psique em forma de RPS (representações psicossemânticas) desenvolverá,
paulatinamente, ao longo do seu processo existencial, sua história
intrapsiquica.
A qualidade da história
intrapsiquica dependerá "diretamente" da qualidade das RPSs, que dependerá
"diretamente" da qualidade das construções psicodinâmicas, que
dependerá "parcialmente" da qualidade dos estímulos
socioeducacionais e do gerenciamento do eu sobre os processos de construção da
inteligência.
Analisaremos que o
gerenciamento do eu sobre os processos de construção dos pensamentos possui
limitações. Agora, a respeito dos estímulos socioeducacionais nos processos de
construção dos pensamentos, a relação qualitativa entre eles com as construções
psicodinâmicas (experiências psíquicas) e, conseqüentemente, com a formação da
história intrapsiquica, não é completa, mas parcial, pois dependerá da ação
psicodinâmica de múltiplas variáveis intrapsíquicas. Por isso, um pai
alcoólatra, agressivo e socialmente alienado poderá gerar dois filhos com
personalidades totalmente distintas, pois a cada momento da interpretação eles
possuem variáveis intrapsíquicas qualitativamente diferentes, que
interpretarão os estímulos advindos do pai de maneira diferente, gerando
construções psico-dinâmicas diferentes; que se arquivarão em suas memórias como
RPSs diferentes; que produzirão histórias diferentes; que sofrerão leituras
multifocais e financiarão a produção de matrizes de pensamentos essenciais
diferentes; que sofrerão um processo de leitura virtual e produzirão
pensamentos dialéticos e antidialéticos diferentes; que, finalmente, estimularão
e redirecionarão o desenvolvimento da personalidade por trajetórias diferentes.
Todos esses complexos
mecanismos ocorridos nos bastidores da mente poderão levar um filho a
desenvolver uma personalidade que reproduz algumas características do pai
alcoólatra, tais como o alcoolismo, reações agressivas, indiferença quanto às
responsabilidades socioprofissionais etc, e outro filho a desenvolver uma
personalidade totalmente diferente da dele, podendo ser avesso a bebidas
alcoólicas ou ingeri-las com controle e ser emocionalmente dócil e tranqüilo.
O processo de interpretação,
os processos de construção dos pensamentos, o processo de leitura da memória e
os sistemas de variáveis intrapsíquicas existentes nos bastidores da mente são
tão complexos que podem reduzir, abortar ou mesmo redirecionar as possíveis
influências genéticas que poderiam contribuir para o desenvolvimento do
alcoolismo e demais doenças psíquicas, tais como a depressão, a psicose
maníaco-depressiva, os transtornos obsessivo-compulsivos etc.
OS PENSAMENTOS DIALÉTICOS
Os pensamentos dialéticos são
conscientes, lógicos (embora possam, ser usados em análises ilógicas), bem
organizados em cadeias psicodinâmicas, bem definidos psicolingüisticamente,
gerenciados com facilidade pelo eu e, por isso, são utilizados com freqüência
na análise, na síntese das idéias, nos discursos teóricos, na produção
científica, na produção tecnológica, nas relações sociais. Os pensamentos
dialéticos são expressos com facilidade na comunicação social e interpessoal,
pois são facilmente codificados pelo sistema nervoso central e pelo aparelho
fonador; por isso são chamados aqui de "pensamentos dialéticos". Os
pensamentos dialéticos, no entanto, têm dimensões muito maiores do que a
expressa pela comunicação social e interpessoal através da verbalização. Por
isso, freqüentemente, temos a sensação de que as palavras não conseguem
expressar o conteúdo dos nossos pensamentos, das nossas idéias. A dimensão das
idéias é maior do que a dimensão das palavras.
Os pensamentos dialéticos são
psicolingüisticamente organizados e definidos porque a mente utiliza, ao longo
do processo de formação da personalidade, os símbolos sonoros da linguagem
verbalizada para constituí-los em códigos, para mimetizá-los
psicolingüisticamente. A psicolingüística dos pensamentos dialéticos, que, as
vezes, se parece com um som inaudível na mente, não é obviamente um som e nem
tem a restritividade física dos símbolos sonoros produzidos pelas ondas sonoras
mecânicas.
Os pensamentos dialéticos
surgem a partir do processo de leitura virtual das matrizes dos pensamentos
essenciais, que são pensamentos inconscientes. Assim, o nascedouro dos
pensamentos dialéticos, que são os pensamentos mais conscientes da mente,
ocorre a partir dos pensamentos essenciais inconscientes.
O processo de leitura virtual
das matrizes dos pensamentos essenciais é realizado por um fenômeno
intrapsíquico, chamado de fenômeno LVD ou fenômeno da leitura virtual
dialética. A leitura das matrizes de pensamentos essenciais pelo fenômeno LVD
gera as cadeias psicodinâmicas dos pensamentos dialéticos, conferindo-lhes um
formato psicolingüístico consciente que mimetiza psicodinamicamente os símbolos
sonoros. Desse fato, podemos inferir que as matrizes dos pensamentos
essenciais, ao serem construídas, já trazem na sua "estrutura
psicodinâmica" arquivados na memória um sistema de relação lógica com os
símbolos sonoros, que facilita o processo de leitura virtual do fenômeno LVD.
Por isso, os pensamentos dialéticos possuem linearidade lógica, possibilitando
sua utilização no desenvolvimento da ciência e da racionalidade, embora seus
processos de construção ultrapassem paradoxalmente os limites da lógica.
Falaremos sobre esses sistemas de relação lógica quando estudarmos adiante os
pensamentos essenciais.
Lemos em milésimos de
segundos a memória e produzimos as matrizes dos pensamentos essenciais
inconscientes. Em milésimos de segundos depois, o fenômeno LVD faz um processo
de leitura virtual dessas matrizes e gera os pensamentos dialéticos utilizados
na comunicação interpessoal, na mídia, na literatura, na ciência. Tudo se passa
tão rápido na mente, que não nos damos conta de como é que conseguimos ler a
memória e produzir milhares de pensamentos dialéticos diariamente. Como já
comentei, incorporamos nas cadeias de pensamentos dialéticos sujeitos, verbos,
substantivos, adjetivos etc, antes que tenhamos consciência deles. Como é possível
tal incorporação? Através das matrizes dos pensamentos essenciais
inconscientes, o que prova a sua existência. Porém, diante disso, podemos
inferir uma importantíssima pergunta psicossocial e filosófica: Pensamos o que
queremos pensar ou apenas fazemos leituras virtuais dos pensamentos
inconscientes, que são produzidos previamente sem a consciência crítica do
"eu"? Se o pensamento consciente tem seu nascedouro no pensamento
inconsciente, como o pensamento consciente tem controle sobre si mesmo? Até
onde somos agentes históricos ou vítimas de processos que lêem a memória e
constroem cadeias inconscientes de pensamentos sem a autorização do
"eu"? É provável que as teorias psicológicas e filosóficas não entraram
nessas questões fundamentais. Creio que é impossível ter uma resposta completa
sobre esses assuntos, mas uma resposta parcial se encontrará nos meandros dos
textos posteriores.
Quando pensamos sobre os
mistérios que envolvem os processos de construção da ciência, ficamos
estarrecidos com a nossa pobre e limitada ciência. Esta existe porque o homem
pensa; mas quando a ciência resolve investigar a si mesma, sua origem como
pensamento, ela enfrenta sua própria debilidade e limitações.
Enquanto as cadeias de
pensamentos essenciais são lidas pelo processo de leitura virtual, também é
realizada uma leitura que identifica os símbolos lingüísticos a serem usados
na mimetização dialética. Os poliglotas têm que fazer, inclusive, uma opção de
escolha do tipo de símbolos lingüísticos (língua) que usam em seus pensamentos.
Por isso, afirmei que a leitura da história intrapsíquica arquivada na memória
é multifocal. Porém, a versatilidade, a liberdade criativa e a plasticidade
construtiva das matrizes dos pensamentos essenciais, e das leituras virtuais
dos pensamentos dialéticos, são muito mais expansivas, sofisticadas e complexas
do que as produzidas pelas ondas mecânicas que constituem os símbolos sonoros.
Nas pessoas surdas, a
mimetização psicolingüistica dialética é feita, ou pode ser feita, por símbolos
visuais. Teoricamente, é possível produzir uma mimetização psicodinâmica a
partir de estímulos mais "plásticos", "livres" e menos
restritivos do que os produzidos a partir da linguagem verbalizada (símbolos
sonoros) e da linguagem visual (símbolos visuais), pois o que importa no
processo de leitura virtual é produzir uma mimetização psicodinâmica que possa
dar uma movimentação psicolingüistica consciente aos pensamentos dialéticos.
Quero dizer com isso, que é teoricamente possível ter uma psicolingüistica dos
pensamentos dialéticos mais eficiente do que a que temos produzido e usado até
hoje nas relações humanas e na produção científica. Seria bom que outros
pesquisadores se dedicassem a descobertas de linguagens supradialéticas.
A mimetização psicodinâmica
dos pensamentos dialéticos não é dada em si por eles, mas pelas matrizes de
pensamentos essenciais históricos. A psicolingüistica dos pensamentos
dialéticos é produzida a partir de uma sofisticada leitura virtual dessas
matrizes.
Os pensamentos dialéticos são
produzidos por uma leitura lógica das matrizes dos pensamentos essenciais e
pela mimetização psicodinâmica dos símbolos físicos; por isso, são
psicolingüisticamente bem-definidos e bem-traduzidos na verbalização. Os
pensamentos antidialéticos são produzidos por uma leitura virtual mais difusa,
provavelmente por outro fenômeno que não o LVD, ou então por um processo de
leitura difusa desse fenômeno. Por isso, pensamentos antidialéticos são
psicolingüisticamente indefinidos ou pouco definidos. Devido à psicolinguagem lógica
dos pensamentos dialéticos e à facilidade com que o eu gerencia sua
construtividade, elas são usadas na produção do conhecimento científico, do
conhecimento coloquial, da comunicação verbal, na produção literária etc. De
outro lado, devido à psicolinguagem dos pensamentos antidialéticos ser difusa,
pouco definida e pouco administrada logicamente pelo eu, ela é utilizada mais
para desenvolver as fantasias, a consciência do tempo, a consciência das dores
emocionais, a consciência das inspirações, a consciência das angústias existenciais,
a consciência dos prazeres etc.
O pensamento antidialético
define o indefinível, produz a consciência dos fenômenos que escapam à
definição lógica dos pensamentos dialéticos. A produção de pensamentos
antidialéticos freqüentemente fica "represada" na mente ou, às
vezes, é traduzida pelas artes, pela pintura, escultura, música, teatro etc.
Os pensamentos antidialéticos
também podem ser traduzidos pela comunicação verbal; porém, nesse caso, as
imagens mentais, as fantasias, as "esculturas tempo-espaciais", a
consciência das emoções etc, têm que ser formatadas pelos pensamentos
dialéticos para depois serem verbalizadas. Nessa situação, dá para termos uma
idéia da redutibilidade intelectual que os pensamentos dialéticos realizam
quando tentam traduzir os pensamentos antidialéticos sobre as angústias
existenciais, o prazer, a insegurança, a inspiração etc. Os pensamentos
dialéticos reduzem as dimensões dos pensamentos antidialéticos quando os
traduzem dialeticamente e os canalizam pela verbalização. Essa abordagem
evidencia que a consciência humana é construída por um intrincado sistema de
códigos psicolingüísticos, um sofisticado sistema de leitura desses códigos e
um complexo processo de cointerferência entre os tipos de pensamentos.
Todos temos dificuldade para
expressar dialeticamente os sofisticados e quase indescritíveis pensamentos
antidialéticos. Freqüentemente, as "cadeias psicodinâmicas dos
pensamentos antidialéticos" são associadas e até mesmo
"mescladas" com as "cadeias psicodinâmicas dos pensamentos
dialéticos". Por isso, temos dificuldade para expressar toda a arquitetura
psicodinâmica dos pensamentos que produzimos. Por isso também temos
freqüentemente a sensação de que, apesar de termos abordado dialeticamente,
com tanto empenho, um determinado assunto, ainda ficou algo para dizer. Essa
sensação de "algo não dito" é produzida, muitas vezes, pelos
pensamentos antidialéticos que são difíceis de ser expressos. As pessoas que
vivenciam quadros dramáticos de depressão, síndromes do pânico, transtornos
obsessivo-compulsivos etc, geralmente se frustram ao tentar expressar as
dimensões da sua dor emocional e da sua angústia existencial, pois, além de
conseguirem expressar dialeticamente muito pouco a consciência antidialética
de suas emoções, seus ouvintes, freqüentemente, re-constroem
interpretativamente essas dores emocionais e angústias existenciais de maneira
reduzida e distorcida.
Os pensamentos dialéticos
podem ser gerados tanto à deriva do eu, ou seja, sem a autorização do
"eu" , sem a leitura desta pela história intrapsíquica, como podem
ser construídos pelo determinismo do eu, pelo gerenciamento que ela exerce
sobre os processos de construção dos pensamentos. Os pensamentos dialéticos
construídos psicodinamicamente sob a autorização, determinismo lógico e
controle do eu são mais organizados, mais administrados, possuem uma base
analítica mais profunda, têm uma cadeia psicodinâmica que considera mais os
parâmetros da lógica e os referenciais históricos.
Os pensamentos dialéticos
produzidos pelos demais fenômenos da mente são mais restritivos do ponto de
vista analítico e dos parâmetros histórico-críticos. Os sonhos, produzidos pelo
fenômeno do autofluxo (a ser estudado), possuem uma liberdade criativa e uma
plasticidade construtiva riquíssima, mas sem uma base analítica sólida, sem
parâmetros históricos passíveis de sofrer uma reciclagem crítica durante a
construção das cadeias psicodinâmicas dos pensamentos dialéticos e
antidialéticos.
Há uma rica interconexão
entre os pensamentos dialéticos e antidialéticos produzidos pelos fenômenos
inconscientes da mente e os pensamentos dialéticos e antidialéticos produzidos
pelo gerenciamento do eu. Um pensamento dialético e um antidialético
produzidos pelo fenômeno do autofluxo ou pelo fenômeno da autochecagem da
memória podem desencadear uma administração do eu, levando a uma continuidade
da produção da cadeia psicodinâmica dos pensamentos. Porém, quando o eu dá
continuidade às cadeias psicodinâmicas produzidas pelos demais fenômenos que
lêem a memória, ele o faz através de uma construção mais analítica e
histórico-crítica, ou seja, que considera mais os parâmetros da lógica e os
referenciais históricos. Por exemplo, o fenômeno do autofluxo pode fazer uma
leitura da memória e resgatar matrizes de pensamentos essenciais que, em última
análise, poderão ser traduzidas dialeticamente e antidialeticamente como
situações existenciais do passado, tais como uma experiência discriminatória,
um grande elogio ou uma situação fóbica vivenciada na infância. Esses
pensamentos dialéticos e antidialéticos podem desencadear a ação administrativa
do eu que "atua construtivamente" nas cadeias psicodinâmicas dos
pensamentos produzidos pelo fenômeno do autofluxo e, assim, acrescentar a elas
a produção de novas idéias dialéticas e pensamentos antídialéticos, tais como
crítica sobre os fatos envolvidos, resgate de causas, imaginação de personagens
e circunstâncias etc.
Os processos de construção
dos pensamentos envolvem, como enumerei, pelo menos cerca de três dezenas de
pontos sofisticados e complexos, muitos dos quais não poderão ser aqui
comentados.
OS PENSAMENTOS ANTÍDIALÉTICOS
Os pensamentos antídialéticos
são conscientes, embora nem sempre plenamente conscientes. Eles não são bem
formatados psicolingüisticamente, ultrapassam freqüentemente os limites da
lógica e necessitam da participação estreita do fenômeno de uma credibilidade
autógena para dar crédito conceituai aos mesmos. Devido à sua linguagem
psíquica difusa, que advém mais da perceptividade da consciência do que da
mimetização psicodinâmica dos símbolos sonoros e visuais, eu digo que eles têm
uma antipsicolinguagem. Como disse, os pensamentos antídialéticos se expressam
através de imagens mentais, conceitos difusos, fantasias, consciência das
experiências emocionais e motivacionais.
No processo de formação da
personalidade, primeiro se desenvolvem os pensamentos antídialéticos e, depois,
pouco a pouco, o eu vai se organizando e aprendendo a produzir e gerenciar a
construção de pensamentos dialéticos e exercer a difícil tarefa de traduzir e
expressar dialeticamente o pool de pensamentos antídialéticos produzidos
diariamente na mente. Toda criança deficiente mental que tem preservadas
algumas áreas da memória tem uma rica construção de pensamentos antídialéticos;
mas ela, dependendo do grau de comprometimento da memória e, conseqüentemente,
do desenvolvimento da história intrapsíquica, poderá ter grande dificuldade
para organizar o eu e desenvolver o processo de gerenciamento sobre a
construção de pensamentos dialéticos.
O grande desafio
socioeducacional em relação às crianças deficientes mentais, que merecem o
nosso mais profundo respeito e dedicação, é levá-las a organizar as cadeias
psicodinâmicas dos pensamentos dialéticos segundo os critérios existentes nos
parâmetros da realidade extrapsíquica e nos referenciais histórico-críticos
contidos na memória. Os profissionais que cuidam de crianças deficientes
mentais precisam catalisar as microrrevoluções das idéias existentes nos
bastidores da mente das mesmas, visando expandir a formação da história
intrapsíquica e o processo de construção dos pensamentos.
Os pensamentos antídialéticos
são úteis para produzir complexas e difusas antecipações de situações do
futuro, resgates de experiências passadas, imaginar circunstâncias existenciais
e tempo-espaciais, desenvolver consciência sobre as angústias existenciais, a
insegurança, as reações fóbicas, o prazer. Quando vivemos uma experiência
fóbica ou sentimos angústia devido a algum problema existencial, temos
consciência antídialética sobre essas experiências, mas não conseguimos
descrevê-las dialeticamente com facilidade, ou seja, não conseguimos
traduzi-las com facilidade pela linguagem psíquica dialética e, muito menos,
traduzi-las pela verbalização; por isso, como disse, é comum termos a sensação
de que não conseguimos nos expressar para os nossos ouvintes.
Há um verdadeiro
"truncamento da comunicação" na tradução dialética dos pensamentos
antidialéticos e na tradução antídialética das experiências emocionais e
motivacionais. O "truncamento da comunicação" entre as experiências
emocionais, a consciência antídialética dessas experiências e a tradução
reduzida da consciência antídialética pelos pensamentos dialéticos e, conseqüentemente,
pela verbalização e gesticulação, ocorre em todos os níveis das relações
humanas, gerando as mais variadas incompreensões e até as mais variadas
atitudes anti-humanísticas dos ouvintes. Os ouvintes freqüentemente não
conseguem, através do processo de subjetivação derivado do processo de
interpretação, reconstruir interpretativamente as dimensões das idéias, da
insegurança, da angústia existencial, das dores emocionais e do prazer que o
"outro" vivência realmente dentro de si mesmo. Por isso, uma dramática
experiência emocional, tais como um ataque de pânico ou uma reação
claustrofóbica, pode ser compreendida pelo ouvinte ou pelo observador como se
fosse uma banalidade emocional e não como uma reação de grande sofrimento.
O truncamento da comunicação
ocorre também nas artes. Nelas, as obras dos artistas são sempre reduzidas em
relação às obras antidialéticas arquitetadas psicodinamicamente nos bastidores
e palcos conscientes das suas mentes. A construção dos pensamentos do autor é
maior do que a expressão dessa construção, ou seja, do que sua obra, mesmo da
sua obra-prima. Porém, costuma-se admirar mais a obra do que o autor porque a
obra, construída nos meandros da mente do autor, logo experimenta o caos
psicodinâmico, enquanto que a obra exterior do artista (escultura, pintura,
obra literária etc.) resiste ao tempo e permanece em museus, em exposições. Por
isso, tem-se a sensação de que a obra contemplada é mais sofisticada e completa
do que a obra produzida nos meandros da psique humana.
O "truncamento da
comunicação dialética-antidialética" ocorre também na relação
psicoterapeuta-paciente. Muitos psicoterapeutas, pelo fato de não conhecerem as
complexas relações entre a experiência emocional, a consciência antídialética e
a consciência dialética, não conseguem desenvolver um processo de interpretação
e, conseqüentemente, um processo de subjetivação da experiência do paciente
mais condizente com o que ele é. Assim, não conseguem avaliar as dimensões da
dor emocional e da angústia existencial do paciente, o que dificulta sua
atuação como psicoterapeuta, catalisador e redirecionador do gerenciamento do
eu do paciente sobre os processos de construção da inteligência e sobre os
conflitos psicossociais e estímulos estressantes que vivência.
As relações médico-paciente,
executivo-empregado, professor-aluno, pai-filho etc, estão saturadas de
desencontros, de "truncamentos da comunicação
dialética-antidialética". Já é uma tarefa difícil formatar os pensamentos
antidialéticos que não têm uma psicolingüística definida e traduzi-los na
linguagem dialética verbal; agora, imagine o leitor se o processo de interpretação
do "outro", como geralmente acontece, for realizado superficialmente...
Essa é uma das maiores causas da violação histórica dos direitos humanos.
Na comunicação interpessoal,
há uma redução e distorção nas dimensões da reconstrução do outro mais intensa
e complexa do que podemos imaginar. Por isso, muitos pais, professores,
executivos, psicoterapeutas etc, por não questionarem e reorganizarem continuamente
seus processos de subjetivação decorrentes de seus processos de interpretação,
pensam que estão dialogando com o "outro" e conhecendo-o, quando, na
realidade, estão dialogando com eles mesmos, conhecendo a si mesmos. Por isso,
o que falam ou pensam do outro se relaciona muito mais com o que são do que com
o que o outro é.
OS PENSAMENTOS ESSENCIAIS
Os pensamentos essenciais são
os pensamentos inconscientes que dão origem aos conscientes, ou seja, aos
dialéticos e aos antidialéticos. Se os pensamentos conscientes são virtuais,
portanto, destituídos de realidade, quem é que os forma? São os pensamentos
essenciais. Uma vez que eles sofrem um processo de leitura virtual, eles dão
origem a um dos mais fantásticos fenômenos da ciência: aos pensamentos conscientes.
Os pensamentos essenciais
recebem esse nome porque se constituem da essência intrínseca da energia
psíquica. Portanto, diferentemente dos pensamentos dialéticos e antidialéticos,
que são de natureza virtual, eles são de natureza real, são constituídos de
matrizes de códigos de energia psíquica. Só podemos investigá-los indiretamente
através da pesquisa empírica aberta.
Hoje, talvez, já tenhamos
pensado nos compromissos que teremos amanhã ou nos problemas que enfrentamos
ontem. O tempo não existe, o amanhã e o ontem são produtos imaginários,
virtuais, de nossas mentes. O que é virtual não pode ser produzido por si
mesmo, pois é desprovido de realidade; como, então, produzimos os pensamentos
imaginários? Na realidade, eles foram produzidos porque fizemos uma leitura da
memória, geramos os pensamentos essenciais, que são sistemas de códigos
"reais" de energia psíquica. Esses sistemas de códigos sofreram uma
leitura virtual que, por sua vez, gerou os fantásticos pensamentos imaginários
sobre os problemas de ontem e de amanhã.
Os pensamentos essenciais são
produzidos através da leitura da história intrapsíquica realizada pelos
fenômenos da autochecagem, do autofluxo, da âncora da memória e pelo eu. Toda
vez que a memória é lida, ocorre a formação das matrizes dos pensamentos
essenciais.
É um erro científico achar
que os pensamentos dialéticos e antidialéticos sejam formados diretamente da
leitura da memória. A leitura da memória não é simplesmente um resgate de
informações, mas uma organização dessas informações, e essa organização não é
virtual, mas essencial, real. Portanto, as matrizes dos pensamentos
essenciais, que são de natureza essencial, é que são formadas através das
milhares de leituras da memória realizadas diariamente.
Comentei que as experiências
psíquicas (idéias, raciocínios analíticos, angústia existencial, ansiedade,
insegurança etc.) e as informações psíquicas (símbolos lingüísticos, símbolos
visuais, nomes, números etc.) são arquivadas como sofisticados sistemas de
códigos fisico-químicos na memória, que chamo de representação psicossemântica
(RPS). A leitura das RPSs geram as matrizes dos códigos dos pensamentos
essenciais históricos.
A leitura das RPSs, que
representam as informações simples (os números de telefone, endereço residencial
etc.) e os nomes (de pessoas, livros, animais etc.) contidas na memória de uso
contínuo, gera matrizes de pensamentos essenciais que representam com
determinada fidelidade os sistemas de códigos fisico-químicos das RPSs, as
quais, por sua vez, representam com mais fidelidade as informações do passado
que deram origem às mesmas. De outro lado, a leitura das RPSs, que representam
as experiências psíquicas contidas na memória existencial, não representam com
fidelidade os códigos fisico-químicos das mesmas na memória, pois tal leitura
não é uma simples lembrança das experiências do passado, mas, como disse, uma
interpretação das mesmas que é influenciada por diversos sistemas de variáveis
intrapsíquicas.
Além disso, a leitura das
RPSs que representam as experiências existenciais não é apenas uma sofisticada
interpretação das mesmas, mas uma nova reorganização das mesmas, gerando
complexas e particulares cadeias de matrizes de pensamentos essenciais
históricos, que darão origem às complexas e particulares experiências
emocionais e às complexas e particulares cadeias psicodinâmicas de pensamentos
dialéticos e antidialéticos.
As cadeias das matrizes dos
pensamentos essenciais não são, portanto, apenas originárias da leitura das
RPSs contidas na memória, mas também de rapidíssimas e refinadíssimas
manipulações psicodinâmicas inconscientes das mesmas. Todos os dias,
reconstruímos diversas experiências psíquicas ligadas ao nosso passado, tais
como um elogio, uma ofensa, as palavras de um amigo, um momento de excitação,
uma situação conflitante.
As RPSs que representam essas
experiências na memória são sistemas de códigos físico-químicos frios, sem vida
intelecto-emocional. A leitura dessas RPSs desencadeia uma interpretação que
reorganiza o caos da energia psíquica e dá "cores" e
"sabores" intelecto-emocionais a elas. Além disso, a leitura das RPSs
são reorganizadas de modo particular, gerando não apenas resgates das
experiências psíquicas do passado passíveis de distorções, mas reconstruções
pela interpretação que geram novas cadeias das matrizes dos pensamentos
essenciais e novas experiências emocionais.
Quando uma mãe perde um
filho, as reconstruções pela interpretação das RPSs, ao longo do tempo, que
representam psicossemanticamente esse filho na memória, geram cadeias de
matrizes de pensamentos essenciais e, conseqüentemente, pensamentos dialéticos
e antidialéticos sobre o mesmo, bem como transformações da energia emocional e
motivacional. Por isso, ela tem emoções diferentes em momentos em que se lembra
do filho.
Se a memória fosse um
"baú que armazenasse a energia psíquica" das experiências
existenciais, e as recordações não fossem, como afirmei, reconstruções pela
interpretação das RPSs que representam essas experiências na memória, mas
fossem resgates das experiências originais, então, toda vez que essa mãe
recordasse a perda do filho, ela teria que sentir o sofrimento vivenciado no
momento da consciência da perda do mesmo, nos mesmos níveis, o que, felizmente,
não ocorre; caso contrário, as angústias existenciais se perpetuariam na mesma
intensidade ao longo de toda a trajetória de vida.
A recordação das experiências
relativas às perdas, aos elogios, às ofensas, aos momentos de hesitação, às
reações fóbicas, ao prazer, às frustrações psicossociais etc, não apenas são
resgates das RPSs, mas reconstruções psicodinâmicas que manipulam
rapidissimamente essas RPSs, gerando novas cadeias psicodinâmicas dos
pensamentos essenciais, dialéticos e antidialéticos, bem como novas
experiências emocionais. Parece que nossas recordações nos remetem à
reprodução original das experiências psíquicas do passado; porém, se formos
analisar qualitativa e quantitativamente as "arestas psicodinâmicas"
das idéias e emoções produzidas nessas recordações, verificaremos que elas,
freqüentemente, são micro ou macrodistintas.
As reconstruções pela
interpretação priorizam o processo evolutivo da personalidade e da história
psicossocial, que, por sua vez, rompe com a reprodução idêntica e paralisante
das experiências psíquicas do passado. A personalidade humana e a história
psicossocial evoluem não apenas pela determinação consciente do "eu",
mas também por processos intrapsíquicos inevitáveis.
As reconstruções pela
interpretação das experiências passadas produzem inevitáveis micro ou
macrotraições da interpretação que promovem a revolução das idéias e o
desenvolvimento psicossocial do homem, estabelecendo um dos mais importantes
princípios da evolução da personalidade humana e das sociedades como um todo.
A personalidade humana e as
sociedades evoluem, não apenas porque o homem é capaz de realizar uma produção
de conhecimento científico e socioeducacional com coerência e lógica, mas
também porque a fonte que gera essa produção é sustentada por processos que
ultrapassam os limites da lógica. Até na física e nas demais ciências naturais
a produção de conhecimento é sustentada por processos que ultrapassam os
limites da lógica. Essa é uma das áreas mais importantes da teoria da
interpretação; por isso ela deveria ser incorporada por todas as teorias.
As matrizes dos pensamentos
essenciais produzidas pelos fenômenos da mente nem sempre sofrem ação do
fenômeno responsável por realizar o processo de leitura virtual e,
conseqüentemente, nem sempre geram pensamentos dialéticos e antidialéticos.
Embora muitas dessas matrizes não sofram uma leitura virtual consciente, elas
geram reações emocionais, instintivas e reações motoras (musculares)
inconscientes. As teorias do "condicionamento" e de
"estímulo-resposta" que dão suporte teórico às psicoterapias
comportamentais e cognitivas, embora desconheçam os processos de construção dos
pensamentos, estão ligadas invariavelmente à construção, à práxis e ao registro
contínuo das matrizes de pensamentos essenciais na memória.
Os fenômenos inconscientes
que lêem a história intrapsíquica produzem continuamente inúmeras cadeias
psicodinâmicas das matrizes dos pensamentos essenciais, que geram diariamente
tanto uma revolução das idéias dialéticas e antidialéticas como centenas ou
milhares de reações emocionais, reações instintivas e movimentos musculares
que não são apreendidos conscientemente.
As matrizes dos pensamentos
essenciais têm de produzir diversos sistemas de relação lógica para financiar
o desenvolvimento dos processos de construção dos pensamentos e da consciência
existencial.
Sem a existência dos sistemas
de relações lógicas produzidas pelas matrizes dos pensamentos essenciais, não
seria possível organizar as cadeias psicodinâmicas dos pensamentos e produzir
idéias, análises, inferências, sínteses, reconstrução da interpretação do
passado, e relacioná-las com o mundo extrapsíquico, intrapsíquico e com a
história intrapsíquica.
A dialética dos conceitos,
das idéias, não é produzida pela contrapartida da negação. Pensei durante anos
que a contrapartida da negação produzisse os conceitos e definições dos
fenômenos e objetos que contemplamos. Eu pensava que um objeto, tal como um
sofá, distinto de milhares de outras coisas, ou seja, de uma casa, de um
astro, de um caderno, de uma janela, era definido pela contrapartida da
negação, gerando os conceitos, as idéias. Porém, na medida em que pesquisei os
sistemas de relações dos pensamentos essenciais, percebi que são eles que
desencadeiam o financiamento dialético das idéias, produzem as diretrizes
lógicas dos pensamentos, dos conceitos, das definições. Destacarei, no
momento, três importantes sistemas de relação produzidos pelas matrizes dos
pensamentos essenciais.
Primeiro, as matrizes dos
pensamentos essenciais têm de manter um sistema de relação com os códigos
físico-químicos do cérebro captados pelo sistema sensorial e, por extensão,
elas têm de manter um sistema de relação com os estímulos extrapsíquicos
contidos no meio ambiente, tais como os fenômenos físicos, o comportamento humano,
o comportamento dos animais.
Sem esse sistema de relação,
não seria possível fazer uma ponte de ligação entre os complexos estímulos
extrapsíquicos, que se constituem de milhares ou milhões de detalhes visuais,
sonoros, táteis, gustativos, e as matrizes dos pensamentos essenciais. Sem a
ponte de ligação entre as matrizes de pensamentos essenciais históricos e os
sistemas de códigos dos estímulos extrapsíquicos não seria possível produzir
pensamentos dialéticos e antidialéticos capazes de gerar uma consciência
existencial sobre o mundo extrapsíquico, não seria possível identificar e
discriminar os estímulos contidos nesse mundo.
Segundo, as matrizes dos
pensamentos essenciais têm de manter um sistema de relação com as RPSs
arquivadas na memória, ou seja, com as representações psicossemânticas das
experiências e das informações psíquicas contidas na história intrapsíquica.
Sem esse sistema de relação, não seria possível identificar na memória do
córtex cerebral um estímulo extrapsíquico (elogio, ofensa, rejeição, apoio
etc.) e nem um estímulo intrapsíquico (reações fóbicas, prazer, angústia
existencial, idéias).
A ponte de ligação entre as
matrizes dos pensamentos essenciais históricos e os sistemas de códigos
físico-químicos dos estímulos extrapsíquicos, comentada no "primeiro
sistema de relação", passa invariavelmente pela mediação desse segundo
sistema de relação. Os sistemas de relações entre as matrizes dos pensamentos
essenciais e as RPSs arquivadas na memória financiam a ponte de ligação entre essas
matrizes e os sistemas de códigos físico-químicos. Sem esses sistemas de
relação, o mundo extrapsiquico e a nossa história intrapsíquica não teriam
conexão. Não teríamos consciência do mundo; estaríamos mergulhados num
indescritível vácuo da inconsciência existencial.
Terceiro, as matrizes de
pensamentos essenciais têm de manter um sistema de relação com o processo de
leitura virtual que produz as cadeias psicodinâmicas dos pensamentos dialéticos
e antidialéticos. Sem esse sistema de relação, não seria possível haver uma
relacionalidade entre os pensamentos dialéticos e antidialéticos e os
fenômenos físicos, o comportamento das pessoas e todos os elementos do mundo
extrapsiquico. Não seria possível nem mesmo haver uma consciência antidialética
sobre as emoções que vivenciamos no passado e uma consciência dialética sobre
as inúmeras idéias, raciocínios analíticos, intempéries existenciais, relações
interpessoais etc, também vivenciadas no passado.
Sem os sistemas de relação
das matrizes dos pensamentos essenciais com os estímulos extrapsíquicos, com a
história intrapsíquica e com o processo de leitura virtual que formam as
cadeias psicodinâmicas dos pensamentos dialéticos e antidialéticos, não seria
possível produzir os processos de construção dos pensamentos e da consciência
existencial. Com isso, não haveria a construção da consciência do mundo
intrapsíquico e do mundo extrapsiquico. Identificamos as expressões faciais das
pessoas e percebemos que elas estão tristes, alegres, apreensivas. Como temos
segurança nesta identificação? Através do sistema de relação lógica entre o
estímulo físico e as etapas do processo de construção de pensamentos.
O eu, ao produzir as cadeias
psicodinâmicas das matrizes dos pensamentos essenciais, não tem consciência de
como se processa essa produção, porque a leitura da memória, o impressionante
resgate das informações, em meio a bilhões de opções existentes, e a
manipulação psicodinâmica das RPSs são processos realizados inconscientemente.
As matrizes de pensamentos essenciais são produzidas inconscientemente e em
milésimos de segundos; depois de serem produzidas, elas sofrem um processo de
leitura virtual que gera os pensamentos dialéticos e antidialéticos na esfera
da virtualidade, desencadeando a formação da consciência existencial num
determinado momento.
Precisamos procurar aprender
não apenas a utilizar os pensamentos, mas a compreender os processos de
construção dos pensamentos, os fenômenos e as variáveis que neles atuam, em
frações de segundos, para gerar os três tipos fundamentais de pensamentos, e a
indescritível e sofisticada consciência existencial. Precisamos ir além da
produção de conhecimento explicacionista e psicologista sobre o comportamento
humano, e do discurso teórico superficial sobre o inconsciente, para
investigar os processos de construção dos pensamentos, que nascem e se
desenvolvem clandestinamente nos bastidores da psique humana.
Sem investigar os processos
de construção da inteligência não compreenderemos a formação da consciência
humana, da identidade psicossocial, nem entenderemos quais são os limites do
gerenciamento do eu sobre os pensamentos. Sem tal investigação não
compreenderemos também os paradoxos que envolvem a única espécie pensante
desse planeta. Embora sejamos detentores do espetáculo da inteligência, as
cenas de guerras e violação dos direitos humanos macularam as principais
páginas de nossa história.
É preciso compreender os
fenômenos que estão na base do funcionamento da mente para enxergarmos por que
nos tornamos gigantes na ciência e na tecnologia, mas pequenos no
desenvolvimento das funções mais altruístas da inteligência, tais como a
tolerância, a solidariedade, a capacidade de pensar antes de reagir, de expor
e não impor as idéias.
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