sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Augusto Cury - Inteligência multifocal - Parte 1


Copyright © 1998 Dr. Augusto Jorge Cury.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
(CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Cury, Augusto Jorge, 1958- .
Inteligência multifocal: análise da construção dos pensamentos e da formação de pensadores/ Augusto Jorge Cury. — 8. ed. rev. — São Paulo : Cultrix, 2006.
Bibliografia.
ISBN 85-316-0159-2
1. Conhecimento — Teoria 2. Inteligência 3. Memória 4. Pensamento I. Titulo.
Índices para catálogo sistemático: 1. Inteligência multifocal: Psicologia

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O livro impresso tem 335 páginas.


Contracapa:

"Espero que este livro possa tanto expandir o mundo das idéias na Ciência como estimular a formação de pensadores, de engenheiros de idéias, de poetas da existência, de pessoas que consideram a procura da maturidade da inteligência e a conquista da sabedoria como tesouros de inestimável valor."

* * *

Há livros que nos inspiram, que nos emocionam, mas que não modificam a nossa história pessoal. Mas há alguns que revolucionam a ciência, estilhaçam os paradigmas intelectuais e modificam para sempre a nossa maneira de pensar o mundo a nós mesmos.
Inteligência Multifocal enquadra-se nesta última categoria. Seu autor, o dr. Augusto Jorge Cury, é um cientista teórico, pensador humanista da Psicologia e da -Filosofia, psiquiatra, psicoterapeuta e consultor de universidades para o desenvolvimento da inteligência multifocal. Suasx idéias são originais, profundas, eloqüentes e críticas. Unindo a Psicologia com a Filosofia, ele abre as janelas da nossa inteligência, estimula-nos a desenvolver a arte de pensar e desvenda-nos o complexo funcionamento da mente humana.
Atualmente, as teorias de maior impacto que enfatizam a área do desenvolvimento da inteligência são a de Daniel Goleman, com a Inteligência Emocional, e a teoria das Inteligências Múltiplas, de Howard Gardner.
Levando em conta o fato de que todos os processos de construção da inteligência são multifocais, a teoria proposta pelo dr. Cury tem sobre essas duas teorias e sobre todas as outras a vantagem de ser muito mais abrangente, pois envolve toda produção intelectual, histórica, cultural, emocional e social criada na trajetória da existência humana.
Inteligência Multifocal traz uma nova, original e revolucionária teoria que, além de ampliar os horizontes da Psicologia, da Filosofia, da Psiquiatria e da Educação, muda nossos paradigmas e estimula a formação do homem como pensador e engenheiro de idéias.

Primeira Aba:
Algumas particularidades que fazem de Inteligência Multifocal um livro instigante:
- O livro traz a primeira teoria ampla sobre o funcionamento da mente humana criada por um cientista brasileiro e uma das poucas produzidas em termos mundiais.
- A primeira teoria científica a afirmar que não apenas o eu faz a leitura da mémoria, mas que há três outros fenômenos nos bastidores inconscientes da mente humana que também lêem a memória e constroem cadeias de pensamentos sem a autorização do eu.
- A primeira teoria a estudar o fluxo vital da energia psíquica, que é o princípio dos princípios que regem o processo de formação da personalidade. Esse princípio incorpora o princípio do prazer, de Freud, do self criador, de Jung, da busca de proteção e segurança, de Erich Fromm, da busca de sentido existencial, de Viktor Frankl, etc.
- A primeira teoria a estudar e defender a tese de que pensar é mais do que uma opção do homo sapiens. Pensar é o seu destino inevitável, evidenciando que é impossível interromper o processo de construção de pensamentos.
- Uma das poucas teorias que não apenas produzem conhecimento psicológico, mas também descrevem os procedimentos utilizados no seu processo de construção, tais como a arte da observação, a análise multifocal, a arte da pergunta, a arte da dúvida, a arte da crítica, a busca do processo de descontaminação itnerpretativa, etc.
- A primeira teoria a descrever duas graves doenças psicossociais da modernidade: a síndrome da exteriorização existencial, caracterizada pela incapacidade de se interiorizar, repensar, reorganizar, etc., e o mal do logos estéril, caracterizado pela incorporação do conhecimento sem deleite, sem desafio, sem crítica, sem conhecer seu processo de construção, sem compromisso social, etc.

Segunda Aba:
Ao se ler o livro Inteligência Multifocal compreenderemos que, para explicar certas aberrações do comportamento humano, como a violação dos direitos humanos, bem como tantas outras formas de autoritarismo que ocorrem em ambientes que estão acima da auspeição de qualquer tipo de violência — tais como nas universidades, no sistema político, nos consultórios de psicoterapia, nos sistemas de discipulado científico —, é necessário conhecer as origens da inteligência humana, o nascedouro das idéias, os limites e alcance dos pensamentos. Este livro ampliará os horizontes da Psicologia, da Filosofia, da Neurociência e da Educação e faz críticas sérias ao processo educacional, que tem gerado uma crise de formação de pensadores que estenderá por todoo século XXI.
Seu autor, o dr. Augusto Jorge Cury, escreveu pacientemente, durante 17 anos, milhares de páginas para delas extrair o texto deste livro. Ele provoca a nossa inteligência e leva-nos a fazer uma das mais ricas viagens intelectuais que alguém possa empreeender: uma viagem para dentro de nós mesmos, para os complexos bastidores da mente humana.
Revela-nos que uma pessoa multifocamente inteligente desenvolve a arte de ouvir, a arte da dúvida, a arte da crítica, a arte de pensar antes de reagir, a arte de expor, e não de impor as idéias, e, além disso, trabalha com maturidade suas dores e perdas, transformando seus problemas em desafios, destilando sabedoria dos seus erros, aprendendo a se colocar no lugar do outro e a perceber suas dores e necessidades psicossociais, além de valorizar a cidadania, o humanismo e a democracia das idéias.
(final da aba)
* * *









Ofereço esta obra a todos aqueles que desejam ser caminhantes na trajetória do seu próprio ser, àqueles que, mais do que usar o pensamento, desejam investigar a construção do pensamento e se tornar pensadores humanistas.



Sumário

 

Prefácio

Há um mundo a ser descoberto nos bastidores da mente humana; um mundo rico, sofisticado e interessante; um mundo além da massificação da cultura, do consumismo, da cotação do dólar, da tecnologia, da moda, do estereótipo da estética. Procurar conhecer este mundo é uma aventura indescritível.
A jornada mais interessante que um homem pode fazer não é a que ele faz quando viaja pelo espaço ou quando navega pela Internet. Não! A via­gem mais interessante é a que ele empreende quando se interioriza, cami­nha pelas avenidas do seu próprio ser e procura as origens da sua inteligên­cia e os fenômenos que realizam o espetáculo da construção de pensamen­tos e da "usina das emoções".
A espécie humana está no topo da inteligência de milhões de espécies na natureza. Imagine como deve ser complexa a atuação dos fenômenos psíquicos responsáveis pela nossa capacidade de amar, de chorar, de sentir medo, de ter esperança, de antecipar situações do futuro, de resgatar expe­riências passadas. Investigar as origens e os limites da inteligência não é um dever, mas um direito fundamental do homem.
Este livro objetiva conduzir o leitor a caminhar para dentro de si mes­mo e expandir o mundo das idéias sobre a mente humana, a construção de pensamentos e a formação de pensadores. Quando realizamos essa jorna­da intelectual, nunca mais somos os mesmos, pois começamos a repensar e reciclar nossas posturas intelectuais, nossas verdades, nossos paradigmas socioculturais, nossos preconceitos existenciais. Passamos a compreender o homem numa perspectiva humanística: psicológica, filosófica e sociológica. Nossa visão sobre os direitos humanos sofre uma revolução intelectual, pois começamos a compreender e a apreciar a teoria da igualdade a partir da construção da inteligência. Começamos a enxergar que todos os seres humanos possuem a mesma dignidade intelectual, pois mesmo um africa­no, vivendo em dramática miséria, possui a mesma complexidade nos processos de construção da inteligência que os intelectuais mais brilhantes das universidades.
Somos diferentes? Sim, o material genético apresenta diferenças em cada ser humano; o ambiente social, econômico e cultural também apre­senta inúmeras variáveis na história de cada um. Porém, todas essas dife­renças estão na ponta do grande iceberg da inteligência. Na imensa base desse iceberg somos mais iguais do que imaginamos. Todos penetramos com indescritível habilidade na memória e resgatamos com extremo acer­to, em frações de segundos e em meio a bilhões de opções, as informações que constituirão as cadeias dos pensamentos.
Construir idéias, pensamentos, inferências, sínteses, resgates de expe­riências passadas, são atividades sofisticadíssimas da inteligência. Se não fôssemos seres pensantes não teríamos a "consciência existencial": a cons­ciência de que existimos e de que o mundo existe. Não poderíamos amar, desconfiar, nos alegrar, conferir, ter medo, sonhar, pois tudo o que fizésse­mos seria apenas reações instintivas e não frutos da vontade consciente. Ter uma consciência nos faz, embora fisicamente pequenos, distintos de todo o universo. Sem a consciência, que é o fruto mais espetacular da construção de pensamentos, nós e o universo inteiro seríamos a mesma coisa.
Demorei muitos anos para redigir estes textos. Isso ocorreu porque eles não abordam um assunto científico comum, mas desenvolvem uma nova e original teoria sobre o funcionamento da mente humana e o processo de construção da inteligência. Uma teoria é uma fonte de pesquisas. Uma teoria bem elaborada abre as janelas da mente daqueles que a utilizam, expandindo, assim, os horizontes da ciência.
Estamos, agora, numa nova edição. Os textos da primeira edição foram reorganizados e novas idéias foram acrescentadas. Alguns capítulos cen­trais do livro foram mudados de posição, passando para o início, para que os leitores tomem, logo nos primeiros capítulos, contato com os fenômenos que constituem o cerne da teoria. Encorajo os leitores a utilizarem constan­temente o glossário para se familiarizarem com os termos.
Vivemos num mundo onde o pensamento está massificado, o consu­mismo se tornou uma droga coletiva, a paranóia da estética controla o comportamento, as cotações do dólar e das ações nas bolsas de valores ocupam excessivamente o palco de nossa mente. Um mundo onde as pes­soas buscam o prazer imediato, têm pouco interesse em repensar sua ma­neira de ver a vida e reagir ao mundo e principalmente em investigar os mistérios que norteiam a sua capacidade de pensar.
Espero que este livro provoque uma pausa na vida dos leitores, que os estimule a se interiorizarem. Desejo que ele contribua não apenas para expandir o mundo das idéias na psicologia e na filosofia e se tornar fonte de pesquisa nas ciências, mas também possa funcionar como estimulador da formação de pensadores humanistas, de engenheiros de idéias, de poe­tas existenciais, de pessoas que consideram a procura da maturidade da inteligência e a conquista da sabedoria existencial tesouros intelectuais de inestimável valor.


Capítulo 1

Minha Trajetória de Pesquisa: Princípios da Formação de Pensadores


O HOMEM MODERNO E A CRISE DE INTERIORIZAÇÃO

Uma das mais importantes explorações do homem, se não a maior delas, é a exploração de si mesmo, do seu próprio mundo intrapsíquico. Aprender a se interiorizar; a criar raízes mais profun­das dentro de si mesmo; a explorar a história intrapsíquica arquivada na memória; a questionar os paradigmas socioculturais; a trabalhar com matu­ridade as dores, perdas e frustrações psicossociais; aprender a desenvolver consciência crítica, a conhecer os processos básicos que constroem os pen­samentos e que constituem a consciência existencial são direitos fundamen­tais do homem. Porém, freqüentemente, esses direitos são exercidos com superficialidade na trajetória da vida humana. Um dos principais motivos do aborto desses direitos é que o homem moderno tem vivido uma dramá­tica crise de interiorização.
O ser humano, como complexo ser pensante, é um exímio explorador. Ele explora, ainda>que sem a consciência exploratória, até mesmo o meio ambiente intra-uterino, através dos malabarismos fetais e da deglutição do líquido amniótico. E, ao nascer, em toda a sua trajetória existencial, ex­plora o mundo que o envolve, o rico pool de estímulos sensoriais e in­terpreta-os.
Pelo fato de experimentar, desde sua mais tenra história existencial, os estímulos sensoriais que esquadrinham a arquitetura do mundo extra-psíquico, o homem tem a tendência natural de desenvolver uma trajetória exploratória exteriorizante. Nessa trajetória, ele se torna cada vez mais ínti­mo do mundo em que está, o extrapsíquico, mas, ao mesmo tempo, torna-se um estranho para si mesmo.
O homem moderno, em detrimento dos avanços da ciência e da tecnicidade, vive a mais angustiante e paradoxal de todas as solidões psicossociais, expressa pelo abandono de si mesmo na trajetória existen­cial. A pior solidão é aquela em que nós mesmos nos abandonamos, e não aquela em que nos sentimos abandonados pelo mundo. É possível nos abandonarmos na trajetória existencial? Veremos que sim. Quando o ho­mem não se repensa, não se questiona, não se recicla, não se reorganiza, ele abandona a si mesmo, pois não se interioriza, ainda que tenha cultura e múltiplas atividades sociais.
Os livros de auto-ajuda, embora não tenham grande profundidade inte­lectual, são procurados com desespero nas sociedades atuais, como tentati­va de superar, ainda que ineficientemente, a grave crise de interiorização que satura as pessoas. O homem que não se interioriza é algoz de si mes­mo, sofre de uma solidão intransponível e incurável, ainda que viva em multidões.
"O homem que não se interioriza dança a valsa da vida engessado intelectualmente." Sua flexibilidade intelectual fica profundamente reduzi­da para solucionar seus conflitos psicossociais, superar suas contrariedades, frustrações e perdas.
E mais fácil explorar os fenômenos do mundo que nos envolve do que aprender a nos interiorizar e ser caminhantes na trajetória de nosso próprio ser e explorar os fenômenos contidos em nosso mundo intrapsíquico. É mais fácil e confortável explorar os estímulos extrapsíquicos, que sensibilizam nos­so sistema sensorial, do que explorar os sofisticados processos de construção dos pensamentos, o nascedouro e desenvolvimento das idéias, a organização da consciência existencial, as causas psicodinâmicas e histórico-existenciais de nossas misérias, fragilidades, contradições emocionais, etc.
Mergulhado num processo socioeducacional que se ancora na transmissibilidade e no construtivismo do conhecimento exteriorizante, o ho­mem se torna um profissional que aprende a usar, com determinados ní­veis de eficiência, o conhecimento como ferramenta ou instrumento de trabalho. Porém, tem grandes dificuldades para usar o conhecimento para desenvolver a inteligência: aprender a percorrer as avenidas da sua própria mente, conhecer os limites e alcance básicos da construção de pensamen­tos, regular seu processo de interpretação através da democracia das idéias e tornar-se um pensador humanista, que trabalha com dignidade seus er­ros, dores, perdas e frustrações, e aprende a se colocar no lugar do "outro" e a perceber suas dores e necessidades psicossociais.

A SÍNDROME DA EXTERIORIZAÇÃO EXISTENCIAL

Infelizmente, como veremos, a tendência intelectual natural do Homo sapiens, desde a aurora da vida fetal até o seu último suspiro existencial, é seguir uma trajetória de construção intelectual superficial. Uma trajetória socioeducacional em que ele pouco se interioriza, pouco procura por si mesmo e pouco conhece a si mesmo.
Procurar a si mesmo é explorar e produzir conhecimento sobre os pro­cessos de construção da inteligência, ou seja, sobre os processos de constru­ção dos pensamentos, sua natureza, cadeias psicodinâmicas, limites, alcan­ce, lógica, práxis, bem como sobre a formação da consciência existencial, da história intrapsíquica arquivada na memória, as bases que sustentam o processo de interpretação e as variáveis que participam do processo de transformação da energia emocional.
Quem sai do discurso intelectual superficial e procura "velejar" para dentro de si mesmo, e vive a aventura ímpar de explorar sua própria men­te, nunca mais será o mesmo, ainda que fique perturbado num emaranha­do de dúvidas sobre o seu próprio ser. Aliás, ao contrário do que dizem os livros de auto-ajuda, a dúvida é o primeiro degrau da sabedoria.
Quem não duvida e critica a si mesmo nunca se posiciona como apren­diz diante da vida e, conseqüentemente, nunca explora com profundidade seu próprio mundo intrapsíquico. Quem aprendeu a vivenciar a arte da dúvida e da crítica na sua trajetória existencial se posiciona como aprendiz diante da vida e, por isso, tem condições intelectuais de repensar seus paradigmas socioculturais e expandir continuamente suas idéias e maturi­dade psicossocial. Todos os pensadores, filósofos, teóricos e cientistas que, de alguma forma, promoveram a ciência, as artes e as idéias humanistas foram, ainda que minimamente, caminhantes nas trajetórias do seu próprio ser e amantes da arte da dúvida e da crítica, enquanto produziam conheci­mento sobre os fenômenos que contemplavam.
O homem que aprende a se interiorizar e a criticar suas "verdades", seus dogmas e seus paradigmas socioculturais estimula a revolução da cons­trução das idéias nos bastidores clandestinos de sua mente. Assim, sai do superficialismo intelectual e, no mínimo, aprende a concluir que os proces­sos de construção da inteligência, dos quais se destacam a produção das cadeias psicodinâmicas dos pensamentos e a formação da consciência exis­tencial do "eu", são intrinsecamente mais complexos que uma explicação psicológica e filosófica meramente especulativa e superficial, que chamo de explicacionismo, psicologismo, filosofismo.
O homem moderno tem vivenciado, com freqüência, uma importante síndrome psicossocial doentia, a qual chamo de "síndrome da exteriorização O ser humano, nos dias atuais, freqüentemente só tem coragem de falar de si mesmo quando vai a um psicólogo ou a um psiquiatra. Tem uma necessidade vital de que o mundo gravite em torno de si mesmo. Para ele, doar-se para o outro sem esperar a contrapartida do retorno é um absurdo existencial, um jargão intelectual, um delírio humanístico. O mundo das idéias dos portadores da síndrome da exteriorização existencial tem pouco espaço para uma compreensão psicossocial e filosófica da existência humana.
Aprender a interiorizar-se é uma arte complexa e difícil de ser conseguida no terreno da existência. O homem moderno tem sido um ávido consumi­dor de idéias positivistas misticistas, psicologistas, como se tal consumo cumprisse, por ele, o papel inalienável e intransferível de caminhar nas trajetórias sinuosas do seu próprio ser e de aprender a expandir sua cons­ciência crítica e maturidade intelecto-emocional.

PESQUISANDO E ESCREVENDO COMO UM ENGENHEIRO DE IDÉIAS

A complexidade da mente, associada às deficiências do discurso literá­rio para esquadrinhar os fenômenos e processos envolvidos na construtividade de pensamentos, na formação da consciência existencial e na transformação da energia psíquica, fizeram-me rever, criticar e reescrever continuamente os textos deste livro. Por isso, passei mais de dezessete anos de intensa dedicação a escrevê-los, bem como aos demais textos que com­põem o arcabouço teórico da minha produção de conhecimento e que ainda não foram publicados, objetivando que esses textos não sejam efêmeros na ciência, mas que criem raízes e sejam úteis em diversas áreas psicossociais.
A maioria das idéias contidas nas frases que escrevi foram, dentro das minhas limitações, cuidadosamente elaboradas para que expressem com um pouco mais de justiça intelectual alguns fenômenos sofisticados que atuam nos bastidores inconscientes e nos palcos conscientes da inteligên­cia. Por trás de diversas frases se escondem mecanismos psicodinâmicos sofisticados. Seria possível escrever um estudo à parte sobre algumas delas, o que escapa aos objetivos deste livro. Além disso, um problema aconteceu inevitavelmente com a fraseologia ou construção das frases; elas se torna­ram freqüentemente longas, devido à complexidade das idéias nelas cir­cunscritas, diferente das frases jornalísticas, que são curtas, de fácil entendi­mento, porque encerram normalmente assuntos sem muita complexidade.
Escrevi este livro não apenas como um escritor, mas como um enge­nheiro de idéias... Cada idéia nele contida sofreu uma engenharia dialética. Por isso, até aquelas que estão nos labirintos dos textos e que, às vezes, passam despercebidas à compreensão, são importantes.
Na construção das idéias, tive de me tornar inevitavelmente um "neologista", ou seja, um construtor e empregador de diversas palavras ou ex­pressões novas — não existentes na linguagem científica e coloquial — tais como psicoadaptação, Homo interpres, fenômeno do "autofluxo", ou de palavras antigas com um sentido novo, tais como "autochecagem da me­mória" e "âncora da memória", pois a linguagem científica e coloquial se mostraram insuficientes para definir, conceituar e discursar teoricamente a construção dos fundamentos da inteligência. Além disso, uso freqüentemente o sufixo latino "dade", tais como circunstancialidade, construtividade, evolutividade, com o objetivo de romper a condição estática das palavras.
Ao usar esse sufixo, quero resgatar o conteúdo filosófico da palavra, quero que ela expresse a dimensão, a qualidade e a continuidade de um fenômeno ou de um processo (conjunto de fenômenos). Por exemplo, ao escrever "construtividade de pensamentos", quero dizer mais do que uma simples construção de pensamentos, mas a essência dessa construção, ou seja, um processo de construção psicodinamicamente ativo, evolutivo, que experimenta o caos para, em seguida, se reorganizar em novas constru­ções. Quando falo era "circunstancialidades psicossociais" quero dizer não apenas algumas circunstâncias particulares, mas a essência e o movimento das circunstâncias psicossociais vivenciadas no processo existencial. Quan­do comento a "evolutividade psicossocial", estou-me referindo a evoluções que ocorrem continuamente no processo de construção do pensamento de cada ser humano e que contribuem para a evolução da cultura. Porém, apesar desse zelo teórico, as deficiências do discurso literário para expres­sar o processo de construção do pensamento e o universo psicossocial como um todo do homem ainda são grandes.
As letras deveriam servir às idéias e não as idéias às letras e às regras gramaticais, como não poucas vezes acontece. As letras e a gramática deve­riam libertar o pensamento; ser um canal de veiculação das idéias. Porém, nem sempre as frases e os textos mais compreensíveis são mais justos para expressar as idéias de um autor, embora facilitem a vida do leitor. As letras reduzem inevitavelmente as idéias; os labirintos gramaticais, às vezes, apri­sionam os pensamentos. A linguagem tem um grande débito com o pensa­mento, principalmente com o pensamento psicológico e filosófico.
Para termos uma idéia da deficiência do discurso literário para expres­sar a ciência, basta dizer que os pontos finais das frases, embora úteis para a compreensão da linguagem, são uma mentira científica. Na ciência, não há pontos finais. Tudo é uma seqüência interminável de eventos que mu­tuamente co-interferem. Por isso, não há resposta completa em ciência e, muito menos, há resposta completa na aplicação dos pensamentos procu­rando examinar suas próprias origens, seus próprios processos de constru­ção, limites, alcance, práxis, enfim, compreender a própria fonte que os gera. Na ciência, cada resposta é o começo de novas perguntas...
O pensamento, quando é aplicado para discursar sobre o mundo extrapsíquico, facilmente ganha altivez; mas, usado para discursar dialeticamente sobre a própria fonte que o concebe, ele se abate. Quando o pensamento é utilizado para esquadrinhar o pré-pensamento e os proces­sos de construção que se envolvem na sua própria construção, ele se per­turba diante das suas limitações.
A psique (em grego = alma) é constituída de um complexo campo de energia psíquica. Nela ocorrem todos os processos que constroem as cadeias de pensamentos, transformam a energia psíquica e escrevem os segredos da memória. Investigar os fenômenos que estão na base da inteligência é uma grande empreitada a que todos os que pensam não devem se furtar.

MINHA TRAJETÓRIA DE PESQUISA

O homem vive um dramático paradoxo exploratório. Ele pensa, explo­ra e conhece cada vez mais o mundo que o envolve, mas pouco pensa sobre seu próprio ser, sobre a riquíssima construção de pensamentos que explode num espetáculo indescritível a cada momento da existência. O homem moderno, com as devidas exceções, perdeu o apreço pelo mundo das idéias.
Apesar de ter escrito este livro principalmente para pesquisadores, pro­fissionais e estudantes da Psicologia, da Psiquiatria, da Filosofia, da Educa­ção e das demais áreas cuja ferramenta fundamental seja o trabalho intelec­tual, eu gostaria que ele também atingisse o leitor que não se considera um intelectual nessas áreas. O direito de pensar com liberdade e consciência crítica é um direito fundamental de todo ser humano; e este livro objetiva contribuir para esse direito.
Aprender a apreciar o mundo das idéias, percorrendo as avenidas da arte da dúvida e da crítica, estimula o processo de interiorização, expande a inteligência e contribui para a prevenção da síndrome da exteriorização existencial e das doenças psíquicas.
Nestes textos, comentarei alguns elementos psicossociais que contri­buíram para promover minha trajetória de pesquisa. Esses dados são bem sintéticos e não visam ser uma autobiografia. Meu objetivo é fornecer algu­mas informações para evidenciar algumas causas psicossociais que me fize­ram, desde minha época de estudante de Medicina, me apaixonar pelo mundo das idéias e, ao mesmo tempo, criticar diversas convenções existen­tes na Psicologia e na Psiquiatria e evidenciar a crise de formação de pensa­dores.
Este texto objetiva também dar um "rosto histórico" à minha produção de conhecimento, pois creio que o processo de produção é tão ou mais importante do que o próprio conhecimento produzido. Um dos maiores erros da educação clássica, que bloqueia a formação de pensadores, foi e tem sido o de transmitir o conhecimento pronto, acabado, sem evidenciar o seu processo de produção, o seu rosto histórico.
No VII Congresso Internacional de Educação * ministrei uma conferên­cia sobre "O funcionamento da mente e a formação de pensadores no terceiro milênio". Na ocasião, comentei que no mundo atual, apesar de termos multiplicado como nunca na história as informações, não multiplicamos a formação dos homens que pensam. Estamos na era da informação e da informatização, mas as funções mais importantes da inteligência não estão sendo desenvolvidas.
Ao que tudo indica, o homem do século XXI será menos criativo do que o homem do século XX. Há um clima no ar que denuncia que os homens do futuro serão mais cultos, mas, ao mesmo tempo, mais frágeis emocionalmente, terão mais informação, contudo serão menos íntimos da sabedoria.
A cultura acadêmica não os libertará do cárcere intelectual. Será um homem com mais capacidade de respostas lógicas, mas com menos capaci­dade de dar respostas para a vida, com menos capacidade de superar seus desafios, de lidar com suas dores e enfrentar as contradições dá existência. Infelizmente, será um homem com menos capacidade de proteger a sua emoção nos focos de tensão e com mais possibilidade de se expor a doen­ças psíquicas e psicossomáticas. Será um homem livre por fora, mas prisio­neiro no território da emoção.
O sistema educacional que se arrasta por séculos, embora possua pro­fessores com elevada dignidade, possui teorias que não compreendem muito nem o funcionamento multifocal da mente humana nem o processo de construção dos pensamentos. Por isso, enfileira os alunos nas salas de aula e os transforma em espectadores passivos do conhecimento e não em agen­tes do processo educacional.
Nos primeiros dois capítulos, fornecerei alguns princípios psicológicos e filosóficos relevantes para o desenvolvimento da arte de pensar. Poste­riormente, do capítulo terceiro ao nono, entrarei no cerne da teoria da construção da inteligência. A partir do décimo capítulo retomo o processo.
de formação de pensadores e aplico alguns elementos da teoria neste pro­cesso.

ALGUMAS CONVENÇÕES: A MENTE HUMANA, A INTELIGÊNCIA E A PERSONALIDADE

Usarei o termo "mente" como o ambiente onde se processam as facul­dades intelectuais, onde se desenvolve a inteligência. A mente humana possui, nestes textos, alguns termos equivalentes: a psique, a alma ou cam­po de energia psíquica.
A inteligência é um conjunto de estruturas psicodinâmicas derivadas do amplo funcionamento da mente. E a capacidade de pensar, se emocio­nar, ter consciência. Ela é constituída de quatro grandes processos, tais como construção de pensamentos, transformação da energia emocional, formação da consciência existencial (quem sou, como estou, onde estou) e formação da história existencial arquivada na memória.
Este livro trata muito mais da construção da inteligência do que das suas funções. Todo ser humano constrói uma inteligência, mas nem todos desenvolvem qualitativamente as funções mais importantes, tais como pen­sar antes de reagir, expor e não impor as idéias, gerenciar os pensamentos, resgatar a liderança do eu nos focos de tensão, filtrar estímulos estressantes.
A inteligência e a personalidade representam, aqui, termos equivalen­tes. Todos os dias esses processos de construção da inteligência estão em atividade. Portanto, a inteligência ou a personalidade não pára de evoluir, embora seu ritmo de evolução possa diminuir na vida adulta.
Quando as pessoas dizem que alguém é pouco ou muito inteligente ou que possui uma boa ou má característica de personalidade, elas estão na realidade apenas se referindo a manifestação exterior das funções da inteli­gência ou da personalidade e não sobre sua construção. Elas não têm cons­ciência dos surpreendentes dos fenômenos e dos processos que produzem o homem como ser inteligente.
Outra convenção importante está relacionada ao "eu". Aqui, o "eu" ou o "self" não é um termo vago conceitualmente. Ele se refere a "consciência de si mesmo", a consciência de que existimos e que possuímos uma "iden­tidade" única e exclusiva, a consciência de que pensamos e que podemos administrar os pensamentos e as emoções. O adequado seria chamarmos o "eu" de a "consciência do eu" ou "a vontade consciente do eu", porque ele está relacionado aos amplos aspectos da consciência e da vontade humana, mas por questões literárias o chamarei apenas de "eu".
O grande desafio do "eu" é gerenciar os processos de construção da inteligência, expandindo as suas funções mais importantes. Contudo, estuda­remos que o homem tem um grande problema universal. Ele tem facilidade de ser líder no mundo que o cerca, mas tem enorme dificuldade de ser líder no mundo psíquico, de controlar o funcionamento da sua própria mente.


A SEDE DE CONHECIMENTO. RESPIRANDO A PESQUISA EMPÍRICA

Todo cientista que não seja estéril é um aventureiro nas trajetórias do desconhecido, um aprendiz contumaz no processo existencial, um rebelde das convenções do conhecimento.
Na minha trajetória de pesquisa, o fascínio pela exploração dos proces­sos de construção da inteligência e a opção por produzir uma teoria total­mente original me estimularam a desenvolver e utilizar procedimentos de pesquisa que expandiram meu processo de observação, interpretação e produção de conhecimento.
Os procedimentos que usei na pesquisa, tais como a "tríade de arte da pesquisa"(arte da pergunta, arte da dúvida e arte da crítica), a análise multifocal das variáveis que participam da construção dos pensamentos, levaram meu processo de observação, seleção e interpretação dos dados a não ser unidirecional, visando um tipo específico de comportamento pro­duzido por um tipo específico de pessoa, proveniente da mesma faixa etária e condições socioeconômicas semelhantes, mas multidirecional. Eles leva­ram a explorar o máximo possível das variáveis presentes em cada com­portamento observado. Procurava descobrir até as variáveis que estavam presentes nas entrelinhas dos pensamentos e no tom e na velocidade de voz das pessoas que me rodeavam.
Devido à abrangência e complexidade do projeto de pesquisa sobre os quatro grandes processos de construção da inteligência, todas as pessoas que me eram próximas se tornavam alvos das minhas observações e inter­pretações, pois eu precisava de dados com as mesmas dimensões de abrangência. Mesmo as mínimas reações da minha mente se tornavam um material precioso para observações e interpretações.
Em qualquer ambiente, nos corredores da faculdade de Medicina, nas salas de aula, no leito dos pacientes, nos ambientes sociais, nas ruas e, posteriormente, nos anos em que exercia a Psicoterapia e a Psiquiatria, nos cursos que ministrava etc, eu observava contínua e prazerosamente o com­portamento das pessoas. Tinha sede de conhecimento, vivia como se respi­rasse a investigação da personalidade, da inteligência, da mente humana.
Uma revolução intelectual foi provocada no cerne da minha alma. Não podia contê-la. Quando começamos a nos interiorizar e a rever nossa ma­neira de pensar e nossos paradigmas socioculturais nunca mais somos os mesmos... Por isso, procurava ser não apenas um profissional que trabalha­va com a personalidade, mas um engenheiro de idéias, alguém que valori­zava e construía idéias mesmo diante dos pequenos e desprezíveis detalhes do comportamento. Percebi paulatinamente que na mente ocorre um con­junto de processos de construção da inteligência, tais como o processo de construção dos pensamentos, da formação da consciência existencial, da formação da história intrapsíquica e da transformação da energia emocio­nal e motivacional.
Comecei a desejar produzir não apenas um conhecimento psicológico qualquer, mas uma teoria sobre os processos de construção presentes no campo de energia psíquica, embora esse desejo fosse uma empreitada ou­sada e crítica das convenções do conhecimento.
Lembro-me de que o desejo de produzir uma teoria original sobre os processos de construção da inteligência estava me dominando tanto, que, antes de me casar, há mais de 16 anos, chamei minha futura esposa de lado, que também era estudante de Medicina, e lhe disse que se ela quises­se se casar comigo, teria que saber que grande parte do meu tempo seria dedicada à pesquisa e à escrita. Na época, como estava no começo de minhas pesquisas, eu não conseguia explicar a ela o conteúdo das minhas idéias, meus objetivos e os resultados que poderia alcançar. Nem a mim mesmo eu conseguia dar essas explicações. Parecia que eu estava numa sinuosa e estimulante aventura. Só sabia que não conseguia conter a revo­lução das idéias que se operava dentro de mim. Por isso, quanto mais falava a ela, mais a deixava confusa.
Ela considerava tudo aquilo estranho, pois ia se casar com um médico e sabia que um médico deveria estudar doenças neurológicas, psiquiátri­cas, psicossomáticas etc, mas nunca tinha ouvido falar que um médico tivesse preocupação em pesquisar os mistérios do funcionamento da mente humana. Não entendia que o meu objetivo principal não era exercer a Psiquiatria e a Psicoterapia, mas ser um "filósofo da Psicologia", um teóri­co, um produtor de ciência. Ela entendia menos ainda e se sentia insegura quando eu lhe dizia que estava sendo um crítico de diversas convenções do conhecimento na Psicologia, que minha produção de conhecimento era original e que demoraria muito tempo para que ela fosse absorvida nos centros de pesquisas.
Ela pensava que eu estava vivendo uma "febre" científica e acreditava que essa febre seria passageira. Por fim, felizmente, ela se casou comigo. Passados mais de 17 anos, desde quando iniciei minha trajetória de pesquisa

ESTIMULANDO A PESQUISA: OS FATORES PSICOSSOCIAIS E A DOR DA DEPRESSÃO

A sede de conhecimento e o desejo de "respirar" a pesquisa científica não foram estimulados pelos meus professores de Psicologia, Psiquiatria e Sociologia na faculdade de Medicina, nem por qualquer pessoa com quem convivi.
O embrião dessa sede surgiu, talvez, por viver num país com imensas desigualdades sociais, mas que, ao mesmo tempo, possui um rico caldeirão de raças, de cultura e de afetividade e por ser filho de imigrantes de origem multirracial, árabe, espanhol e ítalo-judia. Há dúvida quanto à minha ori­gem ítalo-judia, pois há possibilidade de que meus antepassados tenham sido judeus que fugiram para a Itália e da Itália migraram para o Brasil.
Meu desejo ardente de pesquisar e de conhecer a mente humana tam­bém surgiu por ter vivido uma infância rica afetivamente e próxima interpessoalmente, pois dormíamos em oito pessoas, meus pais e seis filhos, num pequeno quarto de não mais do que 15 metros quadrados. Apesar de esses fatores psicossociais terem sido o embrião do meu processo de interiorização, creio que o fator mais importante que impulsionou minha trajetória de pesquisa foi uma crise de depressão por que passei. Há mais de dezessete anos, vivi silenciosamente, por cerca de dois meses, um intenso inverno emocional, a dor indescritível da depressão. A tentativa desesperadora de superar esse intenso inverno emocional me estimulou a me interiorizar.
O humor deprimido, a ansiedade, a perda de energia biopsíquica, a insônia, a perda do sentido existencial, os pensamentos de conteúdo nega­tivo, os pensamentos antecipatórios, associados a outros sintomas torna­ram-se o cenário da minha depressão. Não vou entrar em detalhes sobre este período existencial nem sobre as causas da minha depressão, pois não é esse o objetivo deste livro. Porém, quero dizer que minha crise depressiva se tornou uma das mais belas e importantes ferramentas para me interiorizar e me estimular a procurar as origens dos meus pensamentos de conteúdo negativo e as origens da transformação da minha energia emocional depressiva.
Em síntese, a dor da depressão, que considero o último estágio da dor humana, me conduziu a ser um pensador da Psicologia e da Filosofia. Ela me levou não apenas a repensar minha trajetória existencial e expandir a minha maneira de ver a vida e reagir ao mundo, mas também me estimu­lou a iniciar uma pesquisa sobre o funcionamento da mente, a natureza dos pensamentos e os processos de construção da inteligência. O processo de interiorização foi uma tentativa desesperadora de tentar me explicar e de superar minha miséria emocional.
Para muitos, a dor é um fator de destruição; para outros, ela destila sabedoria, é um fator de crescimento. Ninguém que deseja conquistar ma­turidade em sua inteligência, adquirir sabedoria intelectual e tornar-se um pensador e um poeta da existência pode se furtar de usar suas dores, per­das e frustrações que, às vezes, são imprevisíveis e inevitáveis, como alicer­ces de crescimento humano.
Procurei, apesar de todas as minhas limitações, investigar, analisar e criticar empiricamente os fundamentos dos postulados biológicos da de­pressão, a psicodinâmica da construção dos pensamentos de conteúdo ne­gativo, os processos da transformação da energia emocional depressiva etc. Esse caminho, no começo, foi um salto no escuro da minha mente, um mergulho no caos intelectual, que desmoronou os conceitos e paradigmas de vida. Esse mergulho interior me ajudou a reorganizar o caos emocional, a dor da minha alma. Contudo, no início, me envolvi mais num caldeirão de dúvidas do que de soluções. Porém, foi um bom começo.
O caos emocional da depressão, se bem trabalhado, não é um fim em si mesmo, mas um precioso estágio em que se expandem os horizontes da vida. Eu nunca havia percebido que, embora produzisse muitas idéias, co­nhecia muito pouco o mundo das idéias, a construção dos pensamentos e o processo de transformação da energia emocional.
Muitos psiquiatras não têm idéia da dramaticidade da dor da depressão e das dificuldades de gerenciamento dos pensamentos negativos que a pro­movem. Entretanto, o eu pode administrá-los e, conseqüentemente, resolvê-la. Costumo dizer que se o eu der as costas para a depressão e para os mecanismos subjacentes que a envolvem, ela se torna um monstro insupe­rável, mas se a enfrentarmos com crítica e inteligência, ela se torna uma doença fácil de ser superada. No capítulo sobre o gerenciamento do eu este assunto ficará claro.
Meu inverno emocional gerou uma bela primavera de vida, pois esti­mulou-me a sair da superfície intelectual, da condição de ser um passante existencial, de alguém que passa pela vida e não cria raízes dentro de si mesmo, para alguém que conseguiu se encantar com o espetáculo da cons­trução de pensamentos.
Não há gigantes no território da emoção. Todos passamos por períodos dolorosos. Ninguém consegue controlar todas as variáveis dentro e fora de si. Por isso, a vida humana é sinuosa, turbulenta e bela. A sabedoria de um homem não está em não errar, chorar, se angustiar e se fragilizar, mas em usar seu sofrimento como alicerce de sua maturidade.

PESQUISANDO COM CRITÉRIO PARA EXPANDIR O MUNDO DAS IDÉIAS

Cada ser humano é um mundo complexo e sofisticado a ser descober­to. Apesar da frustração que possamos ter com o declínio do humanismo, com a epidemia psicossocial da síndrome da exteriorização existencial, com as multiformes práticas discriminatórias e com a baixa capacidade de trabalhar dores, perdas e frustrações que acometem muitos consócios das sociedades modernas, quando procuramos contemplar e compreender o espetáculo da construção dos pensamentos, não podemos deixar de nos encantar com a obra-prima da mente humana.
A medida que eu procurava investigar os processos de construção que ocorriam na minha mente, comecei também, pouco a pouco, a me trans­portar para investigar o universo social. Observar o homem, procurar inda­gar sobre os fenômenos intrapsíquicos que produziam seus comportamen­tos me fascinavam.
A ousadia em querer investigar o funcionamento da mente e a desco­berta da arte da pergunta, da arte da dúvida e da arte da crítica me faziam tão crítico, que, ainda nos tempos de faculdade, por diversas vezes, eu formulava de maneira diferente o conhecimento de Psicologia, de Psiquiatria e de Sociologia que me ensinavam. Esse procedimento não derivava da falta de cultura dos meus professores; pelo contrário, eu os considerava cultos. O problema era que a "tríade de arte da pesquisa" que eu usava para analisar o que me ensinavam me impedia de ser um espectador passi­vo do conhecimento.
Durante meu curso de Medicina, comecei silenciosamente minha traje­tória de pesquisa e a apreciar o funcionamento da mente; por isso no final desse curso eu havia escrito diversos cadernos sobre minhas observações e análises. Nesse período eu já começava a ter algumas críticas contra a rigi­dez do sistema acadêmico.
Essas críticas aumentaram, ao longo dos anos, à medida que fui produ­zindo conhecimento sobre a construção dos pensamentos, os limites e a lógica do conhecimento, os limites das teorias, as relações entre a verdade científica e a verdade essencial, o autoritarismo das idéias.
Comentarei, sucintamente, uma experiência que passei por me contra­por às regras do sistema acadêmico e que, apesar de ter me angustiado, me estimulou a arte de pensar.
Lembro-me de que, há cerca de 16 anos, após ter-me formado em Medicina, procurei ingressar em uma conceituada universidade para fazer pós-graduação. Ao me apresentar, peguei um texto que havia escrito e o acrescentei em meu curriculum para mostrá-lo à banca examinadora forma­da por ilustres professores doutores em Psiquiatria e Psicologia.
Eu acreditava que eles iriam ler algo da minha produção de conheci­mento e, ainda que a criticassem, esperava que, pelo menos, valorizassem minha capacidade de pensar. Pensava até que os examinadores fariam algumas perguntas sobre o conhecimento que havia produzido, apesar de estar consciente de que, na época, ele carecia de profundidade. Porém, mesmo assim, acreditava que eles valorizariam e incentivariam o ímpeto de pesquisar fenômenos tão complexos, por isso estava animado com a possi­bilidade de discutir algumas das minhas idéias. Porém, para minha frustra­ção, os membros da banca examinadora pegaram aqueles textos e, com uma postura intelectual autoritária, me perguntaram o que significava aqui­lo. Respondi em poucas palavras que se referia a uma pesquisa que eu estava realizando.
Perguntaram-me quem era o orientador e qual era a teoria e a biblio­grafia usada. Respondi, educadamente, que era uma pesquisa original; por isso não tinha nem orientador nem bibliografia. Senti, pelo semblante dos examinadores, que os incomodei muito, que minhas palavras soaram como um insulto à inteligência deles. Por isso se negaram a analisar minha produ­ção de conhecimento. Eles estavam tão enclausurados dentro dos muros da sua universidade, que parecia uma heresia alguém produzir uma pes­quisa totalmente nova sobre o funcionamento da mente.
Eles usavam a ciência, mas desconheciam a história e a lógica da ciên­cia. Pareciam ser os senhores da verdade, embora provavelmente não co­nhecessem a Filosofia da verdade, as complexas relações entre a verdade científica e a verdade essencial, que serão expostas no capítulo seguinte. Percebi que, no momento em que disse que minha pesquisa era original, eles passaram a me ver como um rebelde ao sistema de pesquisa que co­nheciam. Assim, exercendo o autoritarismo das idéias, pegaram meu texto e, com a maior indiferença, me devolveram sem sequer manuseá-lo.
Seria mais digno e democrático se eles o lessem e, após criticá-lo, me dissessem que eu era um sonhador, que aquelas idéias eram tolas. A dor da crítica acusa a existência de alguém e abre caminhos para amadurecê-lo, enquanto a dor da discriminação anula sua existência. As universidades estão pouco preparadas para financiar pesquisas abertas que objetivem a produção de teorias amplas, por isso grande parte delas foram produzidas fora dos seus muros. Tal é o exemplo da teoria psicanalítica de Freud e da relatividade de Einstein.
Após devolverem meu texto, aqueles ilustres professores me pediram que eu retornasse à minha faculdade de Medicina e procurasse meus pro­fessores de Psicologia e Psiquiatria, para que produzisse pesquisa sob a orientação deles. Eles não imaginavam que, embora respeitasse a cultura e a inteligência dos meus professores, estava-me tornando íntimo da arte da dúvida e da crítica e, por isso, diversas vezes escrevia o conteúdo das aulas de maneira diferente de como eles me ensinavam.
Não imaginavam que eu não conseguia conter meu ímpeto indepen­dente de pesquisar. Catalogava cada comportamento das pessoas ao meu redor e cada pensamento que transitava pela minha mente e gastava tempo analisando-os. Meus bolsos viviam cheios de anotações sobre minhas obser­vações e interpretações e eu já havia perdido algumas noites de sono pelas inúmeras dúvidas que tinha sobre os fenômenos que atuam na complexa construção das cadeias de pensamentos.
Hoje, passados tantos anos, os tempos mudaram. Minhas idéias têm sido cada vez mais conhecidas, respeitadas e utilizadas por pesquisadores e profissionais não apenas no Brasil, mas em outros países. Tenho proferido diversas conferências, inclusive em congressos internacionais. A teoria da inteligência multifocal não apenas tem sido aplicada na Psiquiatria e na Psicologia, mas também na Educação. Todavia, se no começo de minhas pesquisas não tivesse vivido uma intensa paixão pelo mundo das idéias, aqueles membros da banca examinadora teriam destruído meu interesse pela investigação do funcionamento da mente.
Ao olhar para o passado, tenho a consciência de que os "invernos" que passei no início das pesquisas produziram minhas raízes intelectuais mais profundas. O fato de ter aprendido a ser fiel a minha consciência fez com que os obstáculos temporários que enfrentei se transformassem em alguns dos principais pilares da minha capacidade de pensar e de pesquisar. Como estudaremos, esses obstáculos me estimularam a produzir não apenas uma teoria, mas também, diferente da grande maioria dos cientistas teóricos, criteriosos procedimentos de pesquisas na produção dessa teoria.
Fico imaginando quantos pensadores ilustres não tiveram sua produção de conhecimento abortada pela postura autoritária do sistema acadêmico se impondo como o centro da produção e da validação do conhecimento e como o centro exclusivo da produção de intelectuais, de cientistas, de pen­sadores, de teóricos.
Parece paradoxal, mas o sistema acadêmico não apenas forma intelec­tuais, mas também sufoca pensadores, mesmo dentro da sua esfera. Muitos cientistas que estão dentro das universidades sabem disso, pois de alguma forma sofrem restrição na sua liberdade de pensar e de pesquisar.
A dor da depressão me estimulou a conhecer o mundo das idéias e a dor da rejeição me incentivou a expandir esse mundo com consciência crítica.
Se eu não tivesse passado por tais dificuldades não teria, provavelmen­te, produzido uma nova e ampla teoria sobre o processo de construção dos pensamentos com diversas implicações na ciência.
Muitos pensadores foram discriminados, considerados rebeldes e perturbadores da ordem ao longo da história. Sócrates foi condenado a beber a cicuta, a morrer envenenado, pelo incômodo que suas idéias cau­savam na época. Porém, ele considerou ser mais digno tomar a cicuta do que ser infiel às suas idéias e ter uma dívida impagável com sua própria consciência. Giordano Bruno, filósofo italiano, errou por muitos países, procurando uma universidade para expor suas idéias, e por isso experi­mentou diversos tipos de perseguição e sofrimento, culminando na sua morte. Baruch Spinoza, um dos pais da Filosofia moderna, foi banido dra­maticamente pelos membros de sua sinagoga por causa das suas idéias, que chegaram, inclusive, a amaldiçoá-lo, dizendo: "Que ele sej,a maldito durante o dia, e maldito durante a noite; que seja maldito deitado, e maldi­to ao se levantar; maldito ao sair, e maldito ao entrar...". Immanuel Kant foi tratado como um cão pelo incômodo que suas idéias causavam no clero da época. Voltaire, devido às suas idéias humanistas, passou por perseguições na sua época. A lista de pensadores que foram discriminados ou sofreram perseguições é enorme.
As universidades, com as devidas exceções, monopolizaram o conheci­mento, se fecharam numa redoma, como o clero nos séculos passados. Elas têm uma função humanística, sociopolítica e socioeducacional importantís­sima na sociedade, porém essas funções não têm sido exercidas adequada­mente. Embora possam não conhecer a teoria da democracia das idéias, exposta nos capítulos finais, elas deveriam ser, ao menos, albergues dos seus princípios universais.
Hoje é raro encontrar pensadores fora da instituição acadêmica, como ocorreu nos séculos passados.

A ARTE DA OBSERVAÇÃO E DA ANÁLISE MULTIFOCAL

Eu vivia a arte da observação e da análise multifocal. Observar a ex­pressão de cada idéia, mesmo das mais débeis, era uma aventura estimu­lante, pois provocava a minha ambição de conhecer as variáveis que parti­cipavam do espetáculo da construção dos pensamentos.
Ficava, como disse, observando, anotando, interpretando e produzindo conhecimento sobre o comportamento de determinadas pessoas. Ficava assombrado ao contemplar atenta e embevecidamente pequenos detalhes do comportamento humano. Procurava compreender os fenômenos que os produziam. Essa atitude me proporcionava um prazer indescritível, mes­mo quando eu ficava confuso diante de tanta complexidade. Perguntava-me continuamente: quais fenômenos estão por detrás desse comportamen­to? Como se processou a leitura da memória para que se produzisse essa cadeia de pensamento? Por que os pensamentos fluem no palco da mente num processo espontâneo e inevitável?
Até um mendigo era para mim uma pessoa complexa, rica intelectual­mente e interessante de ser observada e analisada. Conversei com vários deles. Muitos deles, quando se aproximam uns dos outros, logo estabele­cem uma relação interpessoal e trocam diálogos, pois não têm preconceitos socioculturais, não precisam ostentar status ou provar qualquer coisa para estabelecer confiabilidade. A mercadoria de troca interpessoal entre os mendigos é o que eles são e não o que eles têm, diferentemente de grande parte das relações nas sociedades modernas. Assim, aprendi que até entre as pessoas que vivem em condições miseráveis e que são totalmente desprotegidas socialmente é possível apreciar o espetáculo da construção de pensamentos e contemplar lições existenciais.
Uma pessoa psicótica também é uma pessoa que possui um admirável funcionamento da mente, ainda que desorganizado. Como veremos, na esquizofrenia, o "eu" perde o controle da leitura da memória e da utiliza­ção dos parâmetros psicossociais na construtividade das cadeias dos pensa­mentos, o que gera a produção de delírios e alucinações. Apesar disso, as pessoas portadoras de psicoses são seres humanos altamente complexos e que deveriam ser valorizadas, ajudadas e acolhidas.
Pelo fato de começar a procurar, após os primeiros anos de pesquisa, as variáveis da interpretação que estão na base dos processos de construção da inteligência, e de começar a perceber que elas contaminam inevitavel­mente o processo de interpretação, eu adquiria, pouco a pouco, a consciên­cia crítica sobre a necessidade de revisão e reorganização contínua do meu processo de observação, interpretação e produção de conhecimento. Fica­va preocupado com as contaminações da interpretação ligadas aos referenciais contidos na minha história intrapsíquica que poderiam promo­ver uma produção de conhecimento sem fundamento.
Nos primeiros anos, eu não tinha uma compreensão tão clara do pro­cesso de interpretação como a descrita na frase anterior, mas, pouco a pouco, à medida que produzia conhecimento sobre a mente, sobre os pro­cedimentos utilizados na sua investigação e sobre os limites e alcance dos pensamentos, começava a entendê-lo. A arte da formulação de pergun­tas, da dúvida e da crítica inauguravam pouco a pouco minha aurora inte­lectual.
À medida que eu observava cada pessoa, cada pensamento verbalizado e cada expressão facial, formulava sistematicamente inúmeras perguntas sobre cada fenômeno observado e, ao mesmo tempo, criticava continua­mente a produção de conhecimento que realizava sobre elas, consideran­do-as, freqüentemente, reducionistas e insuficientes. Por isso, procurava novamente o caos intelectual, agora, não apenas para filtrar algumas conta­minações da interpretação, mas também para expandir as possibilidades de compreensão e de construção do conhecimento sobre os fenômenos psíquicos. Assim, eu expandia o mundo das idéias e reorganizava minha produção de conhecimento.
Esse processo me custou muitas noites maldormidas ou de plena insônia, por causa do turbilhão de dúvidas que vivia. Algumas dúvidas demo­ravam
serem resolvidas, ainda que vivesse continua­mente a "tríade de arte da pesquisa" e a busca do caos intelectual.
Apesar de toda ousadia que desenvolvi, apesar de viver a pesquisa psicológica como um grande e contínuo desafio intelectual, como uma aventura indecifrável, eu hesitava algumas vezes em continuar a pesquisar e produzir conhecimento, quando percebia que minhas idéias se encontra­vam num labirinto intelectual sem progressão.
Cada fenômeno que estudava, cada variável da interpretação, cada tex­to que produzia passava por um processo contínuo de montagem e desmontagem intelectual. Assim, eu expandia as possibilidades de constru­ção do conhecimento.

OS COMPUTADORES JAMAIS CONSEGUIRÃO TER A CONSCIÊNCIA EXISTENCIAL

A maioria dos seres humanos elogia as maravilhas da tecnologia, mas não conseguem se encantar com o espetáculo da construção de pensamen­tos que corre na psique humana. Não conseguem compreender que a cons­ciência existencial expressa, por exemplo, pela consciência da solidão e das dores emocionais, os tornam mais sofisticados do que milhões de compu­tadores interligados.
Os computadores jamais passarão de escravos de estímulos programa­dos, ainda que incorporem um processo de auto-aprendizagem e levem em consideração a "lógica paraconsistente", ou seja, que admitam contradi­ções das informações.1 É cientificamente ingênuo dizer que os computado­res produzem uma realidade virtual, pois eles não têm consciência existen­cial de si mesmos, eles não existem para si mesmos e, portanto, não têm consciência da organização das informações que expressam nas telas de vídeo.
Quando estudarmos a leitura da memória, a construção das cadeias de pensamentos e a formação da consciência existencial do eu, entenderemos que será impossível que um dia os computadores conquistem essa cons­ciência, por isso, eles jamais existirão para si mesmos, jamais conquistarão conscientemente uma identidade psicossocial, jamais experimentarão con­flitos, insegurança, ansiedade, tranqüilidade, dor, prazer. Para os computa­dores, o tudo e o nada, o ter e o ser, um segundo e a eternidade, serão inevitavelmente sempre a mesma coisa.

A NECESSIDADE DE NOVOS CIENTISTAS TEÓRICOS

A falta do conhecimento sobre os processos de construção dos pensa­mentos, sobre o processo de interpretação e sobre os limites e o alcance de uma teoria pode conduzir os pesquisadores que procuram defender teses acadêmicas a fechar as janelas do pensamento.
Seria importante que os usuários de uma teoria não a utilizassem como se ela incorporasse a verdade essencial, mas como um suporte limitado do processo de observação e interpretação. Seria importante, também, que na ortodoxia da pesquisa acadêmica os pesquisadores fossem estimulados a fazer uma intentona teórica, um motim intelectual, ou seja, fazer uma revo­lução contra as convenções do conhecimento e o sistema rígido de pesqui­sa, capaz de torná-los ousados na produção de um corpo teórico próprio, uma teoria inovadora, e nem sempre se submeterem às idéias de Freud, Jung, Roger, Moreno, Erich Fromm, Viktor Frankl, Piaget ou de filósofos tais como Kant, Hegel, Marx, Husserl, Heidegger etc.
Sem se adotar essa postura... contra as convenções do conhecimento vigente não se produzirão pensadores e cientistas teóricos, não haverá a produção de teorias originais, inovadoras. Uma intentona teórica, alicerçada nos princípios da democracia das idéias, deveria ser feita com ousadia, criatividade, arte da observação, arte da formulação de perguntas, arte da dúvida, arte da crítica, análise multifocal, entre outros procedimentos, uma postura intelectual que não oferece resistência para reciclar e reorganizar continuamente todo o conhecimento produzido. Esses procedimentos são fundamentais para romper os paradigmas culturais, o continuísmo das idéias, a mesmice do conhecimento e, conseqüentemente, para produzir cientistas teóricos e pensadores.
Esses procedimentos também podem ser aplicados nas artes, nas ciên­cias naturais, na educação, na economia, no desenvolvimento empresarial, no exercício da profissão liberal para produzirem pensadores que expan­dam com originalidade o mundo das idéias.
Todos os teóricos e pensadores são revolucionários. Aliás, todo cientis­ta é um revolucionário, pois recicla o continuísmo das idéias. É claro que grande parte dos cientistas, embora não sejam teóricos, utilizam as teorias e prestam um grande serviço à ciência. Porém, a ciência precisa avançar não apenas na utilização das teorias vigentes, mas também na produção de novas teorias. As teorias funcionam como fonte de pesquisa e suporte do processo de observação, interpretação analítica e produção de conheci­mento.
Uma grande teoria pode catalisar a produção de idéias, desde que os que a abraçam não gravitem em torno dela, não sejam meros retransmissores do conhecimento que ela encerra e não sejam rígidos defensores, incapa­zes de criticá-la, reciclá-la ou expandi-la. Por isso, prejudicam o desenvolvi­mento da ciência os que aderem rigidamente a ela. Qualquer usuário de uma teoria que é incapaz de criticá-la será um mero reprodutor das suas idéias, traindo-a interpretativamente sem o saber e praticando uma ditadu­ra intelectual no exercício da sua profissão ou na sua produção de conheci­mento científico. Esse processo é passível de ocorrer não apenas nas ciên­cias da cultura, mas também nas ciências físicas, biológicas e correlatas.
Penso que é raro uma universidade incentivar a "intentona teórica", o "motim intelectual" entre seus estudantes, levando-os à procura de novas possibilidades de construção e de compreensão do conhecimento, à pro­dução de novas teorias a partir da busca da desorganização dos conceitos e da arte da formulação de perguntas, da dúvida e da crítica, bem como de outros instrumentos empíricos.
O sistema acadêmico é excessivamente organizado, institucionalizado e preocupado com a transmissibilidade unifocal do conhecimento. Tais atitudes limitam a formação de pensadores. As grandes idéias surgiram a partir do caos intelectual. Todos os que contribuíram com a expansão da ciência e com as idéias humanistas romperam com os paradigmas intelec­tuais, vivenciaram micro ou macro motins intelectuais. Não estou estimu­lando o caos das idéias, a ruptura pela ruptura dos paradigmas intelectuais. Não! As idéias vigentes devem ser valorizadas, mas também filtradas e revisadas. As idéias, mesmo as que são consideradas verdades científicas, não são fins em si mesmas, pois não são coincidentes com a verdade essen­cial, que é inatingível.
Produzir ciência não é uma tarefa simples. A falta de conhecimento dos processos de construção dos pensamentos, dos limites e do alcance de uma teoria, bem como dos sistemas de encadeamentos distorcidos, passíveis de ocorrer no processo de interpretação, faz com que muitos tenham o conceito errado de que, para produzir ciência ou se tornar um cientista, basta defender uma tese acadêmica. Muitos orientadores das teses sabem que isso é totalmente insuficiente. Ao longo dos anos, estudei mais de vinte possibilidades que podem comprometer a produção de conhecimento de uma tese acadêmica e a formação de pensadores. Infelizmente, por não ser esse o objetivo deste livro, não as comentarei. Todavia, quando abordar os procedimentos de pesquisas multifocais, algumas dessas possibilidades se­rão evidenciadas.
Devemos repensar o processo de formação de pensadores antes de pensar na produção da própria ciência. Devemos nos preocupar com a qualidade da inteligência dos pensadores. Os procedimentos de pesquisa multifocais que utilizei, tais como a arte da formulação de perguntas, da dúvida e da crítica, a busca do caos intelectual e os dois instrumentos empíricos ligados à análise dos processos de construção dos pensamentos e das variáveis que atuam na construção das cadeias de pensamentos, po­dem contribuir com essa tarefa intelectual.
Nas ciências da cultura, na qual se inclui a Psicologia, a Filosofia, a Educação, a Sociologia etc, não há muitos recursos financeiros para incen­tivar a formação de pensadores e a expansão das idéias psicossociais, como o têm as ciências naturais, que incluem a Computação, a Biologia, a Quími­ca, cujas pesquisas resultam em produtos industriais. Se o capital é peque­no nas ciências da cultura, deveria haver, então, um processo de compen­sação, através da expansão da qualidade dos pensadores pelo uso de pro­cedimentos que estimulam a plasticidade construtiva e a liberdade criativa do conhecimento. Caso contrário, o contraste do desenvolvimento entre as ciências naturais e as ciências da cultura continuará e aumentará. A Física sabe como penetrar nas entranhas do átomo e distinguir as partículas atô­micas, tão ocultas aos olhos, e a Psicologia educacional não sabe como prevenir eficientemente a discriminação racial dos negros, tão visível aos olhos, nem como prevenir o uso de drogas que acomete milhões de jovens. Se esse contraste se perpetuar, seremos cada vez mais gigantes na tecnologia e anões na prevenção das doenças psíquicas, psicossomáticas, psicossociais, bem como na expansão do humanismo, da cidadania e da democracia das idéias. Nessa situação, o homem do século XXI, que navegará cada vez mais pelo espaço e pela Internet, terá infelizmente cada vez mais dificulda­de de navegar para dentro de si mesmo, de se interiorizar e de se repensar, de superar seus estímulos estressantes e de falar de si mesmo. Talvez ele só consiga se interiorizar e falar de si mesmo, como já tem acontecido, quan­do estiver diante de um psiquiatra ou de um psicoterapeuta.

APLICAÇÃO DA TERAPIA MULTIFOCAL

As experiências que passei por ser crítico do academicismo me abate­ram temporariamente o ânimo. Naquela época, eu estava nos meus primei­ros anos de pesquisa; por isso, apesar de ser crítico, rebelde e determinado, também era frágil e, às vezes, inseguro. Minhas inseguranças não deriva­vam apenas dos fatores externos, mas também dos fatores internos, ligados ao exercício da arte da dúvida e da crítica, bem como da iniciação do procedimento da busca do caos intelectual no processo de pesquisa, que será comentado posteriormente.
Os fatores internos me deixavam freqüentemente confuso diante da complexidade da mente humana. Produzir conhecimento sem utilizar uma teoria preexistente como suporte da interpretação e, ainda por cima, exer­citando a arte da pergunta, da dúvida e da crítica e a busca do caos intelec­tual para descontaminar meu processo de interpretação, me deixava não apenas confuso, mas perturbado nos primeiros anos. Por isso, naquela épo­ca, apesar de produzir conhecimento sobre muitos assuntos relativos à mente humana, eu vivia continuamente criticando minhas próprias idéias. Assim, quando os fatores internos se associaram aos fatores externos, realmente meu ânimo foi abatido temporariamente, afetando minha paixão pelo mundo das idéias. Entretanto essa paixão flutua, mas não morre.
Parte do meu tempo exerço a Psiquiatria e a Psicoterapia multifocal. O uso da teoria dos processos de construção da inteligência no tratamento das doenças psíquicas faz com que a Psicoterapia multifocal seja realizada dentro dos princípios da democracia das idéias e da arte de pensar. Os resultados são. animadores. Muitos casos de doenças psíquicas de difícil tratamento, inclusive de pacientes autistas, têm sido resolvidos. A teoria multifocal, devido as suas variáveis universais, pode ser aplicada em qual­quer outra corrente psicoterapêutica: psicanálise, psicoterapia cognitiva, logoterapia, psicodrama, psicoterapia analítica, etc.

EXEMPLO DE UM CASO INSOLÚVEL NA PSIQUIATRIA CLÁSSICA

Lembro-me de uma cliente de 82 anos de idade que tinha transtornos graves da personalidade e sofria de uma depressão crônica e resistente que já durava mais de três décadas. Ela era inteligente, mas também mal-humorada, negativista, agressiva e insociável. Queria a todo custo separar-se do marido, pois me dizia que tinha aversão dramática por ele. Essa aversão era tão intensa, que, quando o marido passava por ela e encosta­va a mão no seu braço, ela sentia tanta repulsa por ele que ia correndo lavar essa parte do corpo. Quando o marido tomava banho, ela só conse­guia tomar banho se mandasse desinfetar o banheiro. Viveu por cinqüen­ta anos um casamento falido, transformou a relação com seu marido numa praça de guerra. Falava dele com ódio e dizia que não podia olhar para seu rosto e, não apenas isso, raramente conseguia expressar qualquer palavra de elogio a qualquer pessoa. Mesmo com os filhos ela era crítica e agressiva.
O que pode a psiquiatria fazer para uma pessoa que jamais admitiu que estivesse doente, que sempre quis que o mundo gravitasse em torno de si mesma? O que pode a psicologia, com todas as suas técnicas psicoterapêuticas, fazer para uma pessoa que sempre se recusou a se interiorizar e revisar os pilares fundamentais de sua personalidade?
Muitos membros de sua família não acreditavam que uma pessoa nessa idade, com uma depressão tão grave e resistente e que tinha diversos trans­tornos de personalidade, pudesse ter alguma melhoria. Porém, o processo psicoterapêutico é ura canteiro onde florescem as funções mais importan­tes da inteligência, um ambiente que pode, se bem conduzido, estimular a produção de um oásis no mais causticante deserto emocional. Apesar de todas as dificuldades iniciais, da sua recusa de penetrar dentro de si mes­ma, pouco a pouco aquela rocha humana foi sendo demolida. Olhava para sua postura rígida e para seu olhar fadigado pelo tempo e pensava comigo mesmo: "Deve haver algo belo por detrás dessa rigidez que nunca foi ex­plorado, deve haver algumas funções nobres da personalidade que estão embotadas".
Levei-a a ser uma caminhante nas trajetórias do seu próprio ser, a re­pensar sua rigidez intelectual, a analisar as origens de suas angústias e de suas reações insociáveis. Procurei provocar sua inteligência e estimular sua compreensão sobre alguns fundamentos do processo de construção dos pensamentos e da transformação da energia emocional. Acreditava, mes­mo com sua idade avançada, nas suas possibilidades intelectuais e procura­va fazer do processo psicoterapêutico um debate de idéias, criando um clima que promovia o desenvolvimento da arte da dúvida e da crítica con­tra seus próprios paradigmas intelectuais. Meu objetivo não era de que ela apenas resolvesse sua doença psíquica e superasse a sua dor, mas que se tornasse uma pensadora, uma poeta existencial, alguém capaz de expandir tanto a arte de pensar como a arte da contemplação do belo.
Depois do tratamento, que durou cerca de quatro meses, ninguém acre­ditava no que havia acontecido com ela. Tornara-se uma pessoa dócil, amável, sociável, tolerante. Começou a tratar o marido com ternura, inclusive passou a chamá-lo de "meu bem" e constantemente lhe pedia que a beijasse e lhe fizesse carinho.
Ela me dizia que passou a amar seu marido como nunca ocorreu em toda a sua história conjugal. Seu marido, também com 82 anos, um ex-professor universitário, estava, antes da sua melhora, abatido fisicamente, com dificuldades de se locomover e de organizar seu raciocínio. Porém, com o grande salto da qualidade de vida da sua esposa, ele passou a se alimentar mais, ganhou peso, melhorou a deficiência da memória e seu rendimento intelectual. Marido e esposa mudaram tanto que passaram, mesmo diante das suas limitações físicas, a cantar e a dançar juntos na sala de seu apartamento.
Algumas vezes eles choravam por ter a consciência de que atravessa­ram um imenso deserto existencial, saturado de angústias e discórdias. Contudo, queriam recuperar o tempo perdido, queriam viver intensamen­te cada minuto que lhes restava de vida, por isso, algumas vezes, eles acor­davam um ao outro de madrugada para conversar e ficar mais tempo jun­tos. A afetividade entre os dois floresceu como na primavera mais rica da adolescência.
Minha paciente me dizia que havia encontrado um sentido para sua vida e que, no final de sua existência, começou a trabalhar suas contrariedades e a aprender a ter prazer nos pequenos estímulos. Por isso, até os sons dos pássaros que eram imperceptíveis aos seus ouvidos, se tornaram músicas para eles. Comovido com essa melhora acentuada e estável, escre­vi um bilhete para ela e para o marido, dizendo: "Parabéns; vocês se torna­ram poetas da existência, souberam encontrar ternura e dignidade no final de suas vidas; descobriram que a sabedoria se conquista quando aprende­mos a superar nossos invernos existenciais..." Eles ampliaram os dizeres deste bilhete e o colocaram na sala do apartamento deles.
Ela deu um salto qualitativo na sua saúde emocional e intelectual. Re­solveu sua depressão crônica, sua insociabilidade, agressividade e tornou-se uma pessoa encantadora aos 82 anos de idade. Viveu uma rica história de amor com seu marido por mais dois anos, até que ele morreu. O último pedido dele, no leito de sua morte, é que ela o acariciasse até que ele morresse. Foi assim que findou este romance.
A história dessa paciente é um exemplo vivo que evidencia que, mes­mo nos casos aparentemente insolúveis pela psiquiatria e pela psicologia, é sempre possível reescrever os capítulos fundamentais da personalidade.
O homem, independentemente de sua idade, personalidade e transtor­nos psíquicos, pode e tem o direito de se tornar um engenheiro de idéias que constrói e reconstrói a sua história psicossocial. Ao aplicar os princí­pios psicoterapêuticos derivados do processo de construção da inteligência, estimulamos o resgate da liderança do eu e fazemos com que os pa­cientes deixem de ser espectadores passivos de misérias psíquicas e passem a ser agentes modificadores de sua personalidade. Onde a psiquiatria clás­sica não consegue pisar os procedimentos psicoterapêuticos multifocais pode, em diversos casos, alcançar.


Capítulo 2

A Metodologia e os Procedimentos Usados na Construção da Teoria da Inteligência Multifocal


O AUTORITARISMO DAS IDÉIAS E A DITADURA DO DISCURSO TEÓRICO

As idéias, como um "conjunto organizado de pensamentos", servem para definir, conceituar e caracterizar os fenômenos que observa­mos. Por sua vez, o discurso teórico, como um "conjunto organiza­do de idéias", serve como instrumento intelectual para teorizar, discorrer, descrever um conhecimento mais complexo e abrangente desses fenôme­nos, bem como das micro e macro-relações que eles mantêm com outros fenômenos. As idéias, expressas por conceitos, hipóteses e postulados (con­venções), são os tijolos de uma teoria. Uma teoria se expressa através de um discurso, que chamo de discurso teórico.
As idéias e os discursos teóricos são instrumentos fundamentais da ciên­cia. Através das idéias podemos desenvolver relações interpessoais, nos comunicar, desenvolver atividades de trabalho. Por sua vez, através dos discursos teóricos, ou seja, pela manipulação de uma teoria, podemos pro­duzir conhecimento, construir argumentações científicas, organizar postu­lados, derivar hipóteses, predizer fenômenos. Porém, apesar de as idéias e discursos teóricos definirem, conceituarem e descreverem os estímulos psí­quicos, sociais, biológicos, físicos, químicos, enfim, todos os fenômenos e objetos de estudo etc, elas são e serão sempre devedoras de suas realida­des essenciais.
Por exemplo, podemos produzir enciclopédias inteiras sobre as causas, sintomas e mecanismos psicológicos presentes nos transtornos depressivos, mas essas enciclopédias serão apenas um corpo de conhecimento que definem, através das idéias, e discursam, através das teorias, sobre os transtor­nos depressivos. Entretanto, o processo de leitura da memória, a constru­ção de pensamentos e transformação da energia emocional, presentes nos transtornos depressivos, são maiores do que todo o conhecimento que pos­samos produzir sobre eles. Além dessa limitação, temos um outro grande problema. Todo o conhecimento que produzimos sobre as depressões nunca é em si mesmo a essência da energia do humor deprimido, mas apenas um sistema teórico que tentará defini-lo, conceituá-lo. Portanto, temos duas gran­des limitações científicas que não poucos cientistas desconhecem.
Primeira, o conhecimento sobre os transtornos depressivos, por mais avançado que seja, terá sempre uma dívida com os mistérios que envolvem essas doenças e que ainda não foram descobertos. Segundo, o conheci­mento, mesmo se a civilização humana vivesse milhões de anos, terá sem­pre uma dívida com a realidade intrínseca da energia contida nos transtor­nos depressivos ou de qualquer outro fenômeno estudado pela ciência. Por isso, podemos falar da miséria dos outros sem nenhuma emoção, sem con­seguir nos colocar no lugar deles nem enxergar minimamente o mundo com os seus olhos. Por inferência, podemos dizer que a ciência é sempre menor do que o universo dos fenômenos que estuda e sempre solitária em relação à realidade essencial destes fenômenos.
Um milhão de idéias e discursos teóricos sobre um determinado fenô­meno não resgata a essência intrínseca do próprio fenômeno, pois o fenô­meno continua sendo essencialmente ele mesmo, e as idéias e os discursos continuam sendo sistemas de intenções conscientes (virtuais) do observa­dor que tentam descrevê-lo na sua mente. Há uma distância infinita entre a consciência da essência e a essência em si mesma. Há uma distância infini­ta entre o pensamento de um químico sobre os átomos e os átomos em si. Por que as ciências evoluem? Por que a cada dez anos grandes verdades científicas se tornam grandes enganos? Um dos grandes motivos se deve ao fato de que o conhecimento, composto de idéias e de teorias não expressa a realidade essencial dos fenômenos que estuda, mas a realidade virtual, intencional, sobre eles.
As idéias e os discursos teóricos não podem ser fechados dentro de si mesmos. Veremos que "trancar" uma teoria numa redoma intelectual, como Freud fez, é um grande perigo contra a evolução da ciência, pois podemos confinar os fenômenos apenas dentro dos limites de nossas idéias e de nossas teorias. As idéias e os discursos teóricos geram paradigmas e estereó­tipos socioculturais que, se não forem revisados criticamente, podem levar a uma grave distorção na produção científica.
A utilização autoritária das idéias e a manipulação ditatorial dos discur­sos teóricos são ferramentas que desfiguram a produção de conhecimento de um fenômeno em relação à sua realidade essencial. Os que assim proce­dem não percebem que, além das idéias e dos conceitos serem sempre uma expressão reducionista da verdade essencial, a verdade essencial é inatingível em si mesma, pois todo conhecimento, ainda que tenha sido produzido com os mais rigorosos métodos e procedimentos científicos, e que possua as mais importantes conseqüências científicas é um sistema de intenções dialéticas antiessenciais. Estudaremos estes assuntos.
Quem tem uma postura intelectual autoritária não apenas fere a demo­cracia das idéias, mas fere a si mesmo, porque é usado, manipulado, con­trolado intelectualmente pela rigidez das próprias idéias e do discurso teó­rico produzidos pela leitura da sua memória.
Uma pessoa autoritária agride e fere os direitos do "outro", mas, antes disso, fere seu próprio direito de ser livre, de pensar com liberdade. Por isso toda pessoa agressiva é auto-agressiva. Os profissionais liberais que exercem o autoritarismo das idéias vivenciam dentro de si mesmos o "auto-autoritarismo", punem a si mesmos, encerram-se dentro de um cárcere intelectual. Do mesmo modo, os pesquisadores que exercem a ditadura do discurso teórico, que se fecham exclusivamente dentro da teoria que abra­çam, aprisionam sua capacidade de pensar dentro dos limites da sua teoria. Para entender o "autoritarismo" das idéias, bem como da "ditadura" do discurso teórico, precisamos estudar os fenômenos que promovem o fun­cionamento da mente e a construção dos pensamentos.

A TEORIA MULTIFOCAL DO CONHECIMENTO

Muitas pessoas consideram raríssimo, nos dias atuais, alguém produzir uma teoria científica sem a influência geral ou parcial de outra teoria preexistente e que, além disso, seja consistente e fundamentada em argu­mentos criteriosos. Pois é uma realidade; é muito difícil reunir num mesmo trabalho intelectual a originalidade e a coerência.
O conhecimento se tornou muito vasto em todos os campos da ciência, o que dificulta pesquisas originais. Na psicologia, quase não há mais espaço para a produção de uma teoria totalmente nova sobre o funcionamento da mente e o desenvolvimento da personalidade, pois as teorias existentes se entrelaçam em diversas áreas e os milhares de pesquisas, realizadas anual­mente, por cientistas de todo o mundo se apóiam freqüentemente em uma dessas teorias. Por isto, este livro representa um grande desafio. Sob os alicerces da metodologia e dos procedimentos que utilizei, que serão co­mentados neste capítulo, apresentarei não apenas uma teoria psicológica, mas uma teoria completamente nova, original. Ela é tão original como foi a teoria da psicanálise na época que Freud a lançou. Entretanto, a qualidade desta teoria e de seus fundamentos deve ser julgada pelos leitores.
Ao longo de mais de dezessete anos desenvolvi a teoria multifocal do conhecimento (TMC). A teoria multifocal do conhecimento, como o pró­prio nome expressa, é uma teoria abrangente, que inclui diversas teorias que se inter-relacionam no campo da Psicologia, Filosofia, Educação, tais como a teoria do funcionamento psicodinâmico da mente, a teoria da inte­ligência multifocal, a teoria da interpretação, a teoria do caos intelectual, a teoria do fluxo vital da energia psíquica, a teoria da evolução psicossocial do homem, a teoria da personalidade, a teoria da lógica do conhecimento, a teoria da interpretação.
Neste capítulo desenvolverei alguns pilares da teoria da lógica do co­nhecimento e da teoria da interpretação. Nos capítulos seguintes abordarei a teoria da inteligência multifocal e do funcionamento da mente e no décimo terceiro capítulo retomarei a teoria da interpretação e continuarei desenvolvendo-a. Por que a teoria da interpretação será retomada depois da exposição da teoria da inteligência multifocal? Porque ela foi desenvolvida paralelamente à descoberta dos fenômenos que estão inseridos no proces­so de construção de pensamentos. Portanto, a teoria da inteligência me ajudou a construir a teoria da interpretação e, à medida que esta ia sendo expandida, me ajudava a reciclar a teoria da inteligência e do funciona­mento da mente.
A teoria multifocal do conhecimento não é uma teoria que procura anular as demais teorias, tais como a psicanalítica, cognitiva, comportamental; pelo contrário, procura contribuir para explicá-las, criticá-las, reciclá-las e abrir novas avenidas de pesquisas para elas. As teorias psicológicas, filosó­ficas, psicopedagógicas, sociológicas etc, foram produzidas usando o pen­samento como alicerces, enquanto a teoria multifocal do conhecimento estuda as variáveis universais que estão presentes nos próprios alicerces, ou seja, estuda os fenômenos que promovem a própria construção dos pensa­mentos.
A teoria da inteligência multifocal ultrapassa a abordagem da "teoria da Inteligência Emocionar, pois, além da variável emocional, ela estuda mais de trinta outras variáveis que participam da construção da inteligência hu­mana; por isso ela é chamada de inteligência multifocal.
Muitas perguntas importantes procurarão ser respondidas, tais como: Os fetos pensam? Como se desenvolve o eu? Por que o homem é um grande líder do mundo extrapsíquico, mas não é um grande líder dos seus pensamentos e das suas emoções? Todos os pensamentos que produzimos são determinados pelo eu ou existem fenômenos psíquicos que constroem pensamentos sem a autorização do eu? Como penetramos na memória e construímos as cadeias de pensamentos? Quantos tipos de pensamentos são produzidos na mente humana e quais são as suas funções? Como se organiza, desorganiza e reorganiza a energia psíquica? Qual a relação entre as cadeias de pensamentos e as emoções? Como construímos as relações humanas?
Após ter desenvolvido a estrutura básica da teoria que estou produzin­do, a Teoria Multifocal do Conhecimento (TMC), comecei a ler, a apreciar e a criticar, dentro das minhas limitações intelectuais e de tempo, as idéias filosóficas, psicológicas, sociológicas e psiquiátricas de outros pensadores. Por isso, embora a teoria desenvolvida neste livro seja totalmente original, ele contém uma pequena bibliografia, pois faço alguns pequenos comentá­rios sobre algumas teorias. A utilização de uma teoria no processo de ex­pansão de conhecimento científico é legítima e pode ser muito útil se usada com critério. Uma teoria bem produzida é uma fonte de pesquisa, tem mais valor do que milhares de livros. O papel principal das teorias é abrir as avenidas do conhecimento na ciência.
Os assuntos aqui tratados serão importantes aos que querem algumas pistas para desenvolver a arte de pensar e se tornar um pensador original, um engenheiro de idéias que se coloca em contínuo processo de aprendi­zagem. A "tríade de arte da pesquisa" e a busca do caos intelectual, como veremos, serão os ingredientes básicos para se formarem pensadores em qualquer área da ciência e em qualquer área da sociedade, incluindo a política e a economia. Esses assuntos também interessam àqueles que que­rem entender o que é a "verdade" e se é possível atingi-la na ciência, bem como o que é uma teoria, qual a melhor maneira de aplicá-la e quais as suas relações com a inesgotabilidade da ciência.
Faremos uma viagem intelectual interessante. Navegaremos pelos ma­res da ciência, romperemos alguns tabus. Compreenderemos os motivos pelos quais a ciência, tão bela e importante para a civilização humana, tem grandes limites para encontrar aquilo que mais ama: a verdade.

OS SETE PROCEDIMENTOS MULTIFOCAL E AS CINCO MESCLAGENS DE CONTRAPONTOS INTELECTUAIS

Para que possamos gerenciar uma construção criteriosa de pensamen­tos, capaz de conquistar o status de "conhecimento científico", não basta processarmos a leitura da memória e produzir cadeias de pensamentos dialéticos, pois essa produção de pensamentos poderá ser meramente especulativa, o que resultará numa ciência sem fundamento. Para fugir dessa situação, procurei desenvolver pelo menos sete procedimentos multifocais, alguns dos quais complexos e difíceis de ser aplicados. Estes procedimentos não são utilizados, em sua maioria, na pesquisa acadêmica, mesmo nas teses de doutorado. Os grandes teóricos da psicologia também não os utilizaram na produção de suas teorias, o que gerou um grande prejuízo para esta ciência.
Os procedimentos utilizados na pesquisa acadêmica normalmente são bem conhecidos no mundo todo, tais como: seletividade de dados, análise de dados, levantamento bibliográfico, uso de uma teoria como suporte da interpretação. Além dos procedimentos que desenvolvi, também utilizei esses procedimentos clássicos. Somente não usei os levantamentos biblio­gráficos nem uma teoria prévia como suporte da interpretação, pois a teo­ria que desenvolvo é, como disse, totalmente original.
O levantamento bibliográfico, contido rio final dos textos, foi feito de­pois que a teoria que eu desenvolvia estava elaborada. Ele foi feito com o objetivo de evidenciar alguns pensamentos de outros teóricos em relação à teoria aqui exposta.
Os setes procedimentos que utilizei são: a arte da formulação de per­guntas; a arte da dúvida; a arte da crítica; a busca do caos intelectual para se processar a descontaminação da interpretação; a busca do caos intelec­tual para expandir as possibilidades de construção do conhecimento; a análise das causalidades históricas e das circunstancialidades biopsicossociais; e a análise dos processos de construção das variáveis de interpretação na mente.
Além desses setes procedimentos, também utilizei na minha trajetória de pesquisa cinco "mesclagens de contrapontos intelectuais" (MCI), que me estimularam a revisar criticamente e reorganizar continuamente a pro­dução de conhecimento sobre os processos de construção do pensamento. Essas mesclagens referem-se a uma mistura entre pontos intelectuais opos­tos ou eqüidistantes, tais como: a liberdade em observar e a disciplina na observação, a livre produção de pensamento e a revisão crítica dessa pro­dução. Algumas dessas mesclagens resultaram do processo de co-interferência dos sete procedimentos de pesquisa que utilizei. As cinco "mesclagens de contrapontos intelectuais" (MCI) que utilizei foram: 1. Mesclagem entre a liberdade contemplativa de observar os fenômenos com a disciplina empírica no processo de observação e seleção dos mesmos. 2. Mesclagem entre a liberdade de interpretar os fenômenos com a reorganização e reorientação contínua do processo de interpretação. 3. Mesclagem entre a utilização do caos intelectual para esvaziar, tanto quanto possível, as distorções preconceituosas e os referenciais históricos contidos no processo de formação da personalidade com a utilização desse caos para expandir as possibilidades de compreensão dos fenômenos e de construção do conhecimento. 4. Mesclagem entre a liberdade da produção do conhecimen­to com a reciclagem crítica e contínua da mesma. 5. Mesclagem entre a análise das variáveis da interpretação (fenômenos) com a análise dos siste­mas de cointerferências que elas organizam para gerar o funcionamento da mente e a construção das cadeias de pensamentos.

A ARTE DA PERGUNTA, DA DÚVIDA E DA CRÍTICA

Não é objetivo deste livro dar ênfase aos sete procedimentos e às cinco "mesclagens de contrapontos intelectuais" que utilizei em minha trajetória de pesquisa, embora toda a minha produção de conhecimento resulte de­les. Vou dar ênfase apenas ao quarto e quinto procedimento, ou seja, aos procedimentos que se referem à busca do caos intelectual. Porém, quero também fazer uma síntese dos três primeiros procedimentos: a arte da for­mulação de perguntas, a arte da dúvida e a arte da crítica, pois eles foram fundamentais na minha produção intelectual.
Aprendi que a arte de perguntar é mais importante do que a arte de responder. Aliás, a maneira como se pergunta pode produzir um auto­ritarismo das idéias, pois estabelece as diretrizes das respostas. Antes da busca das respostas, antes da produção de conhecimento, é necessário fa­zer não apenas algumas perguntas, mas múltiplas perguntas sobre os fenô­menos que estamos observando e interpretando. Devemos ainda não ape­nas formular perguntas multifocais sobre os fenômenos e suas micro e macrorrelações, mas perguntas sobre as próprias perguntas, suas dimen­sões, seus limites e alcance. A função da arte da formulação das perguntas não é, inicialmente, fornecer respostas, pois as respostas são ditadoras das perguntas, mas expandir a dúvida. Quanto mais dúvida e confusão intelec­tual, mais profunda poderá ser a resposta, mais rica será a produção de conhecimento; quanto menos dúvida, mais pobre será a produção de co­nhecimento.
Os três grandes inimigos de um pensador são: as dificuldades de ex­pandir a arte da pergunta e da crítica, a dificuldade de conviver com a dúvida e a ansiedade por produzir respostas. A fertilidade das idéias de um pensador não está na sua capacidade de produzir respostas, mas na sua intimidade com a arte da formulação das perguntas, a arte da dúvida, arte da crítica e do quanto procura e suporta a experiência do caos intelectual.
A palavra arte associada à palavra "dúvida" ou "crítica" não quer dizer uma simples dúvida ou crítica esporádica, mas um processo contínuo de duvidar e criticar, um sistema contínuo de aprimoramento da observação, interpretação e questionamento do conhecimento. A arte da formulação de perguntas me levou a fazer centenas e, em alguns casos, milhares de perguntas sobre cada fenômeno intrapsíquico que observava. Mesmo dian­te da mais simples idéia que eu produzia na minha mente, eu questionava intensamente suas origens, construtividade, natureza, alcance etc. Eu obser­vava atentamente não apenas o comportamento das pessoas, mas era um contínuo viajante na trajetória do meu próprio ser. Assim, durante o pro­cesso de observação dos fenômenos psíquicos, eu expandia, através da arte da formulação de perguntas, a arte da dúvida. Esta estimulava meu proces­so de interpretação e, conseqüentemente, minha produção de conhecimento. Através da expansão da produção de conhecimento, aprimorava a arte da crítica. Com isso, aprendi pouco a pouco a usar a arte da crítica, não ape­nas para criticar todo conhecimento que previamente eu tinha sobre os fenômenos psíquicos que observava, mas também para criticar toda inter­pretação e produção de conhecimento que extraía deles.
Vivi intensamente a arte da formulação de perguntas, a arte da dúvida e da crítica, que chamo de "tríade de arte da pesquisa". Elas são fundamen­tais na produção da pesquisa científica e até na convivência social. Elas foram para mim a fonte motivadora do processo de produção de conheci­mento sobre os complexos e sofisticados processos de construção dos pen­samentos.
O exercício contínuo da "tríade de arte da pesquisa" foi-me levando, ao longo dos anos, a desenvolver dois procedimentos sofisticados ligados à busca do "caos intelectual" que objetivavam tanto processar a descon­taminação da interpretação quanto expandir as possibilidades de constru­ção do conhecimento. A busca do caos intelectual também me levou pou­co a pouco a aprimorar dois instrumentos de observação e análise (instru­mentos empíricos), que é a análise das causas históricas (variáveis ligadas à memória) e das circunstancialidades biopsicossociais (variáveis intrapsíquicas, intraorgânicas e sociais presentes no ato da interpretação) e a análise dos processos de construção das variáveis da interpretação na mente ou campo de energia psíquica.
Tenho consciência de que abordar sucintamente esse emaranhado de procedimentos pode gerar mais confusão do que esclarecimento. Minha intenção é evidenciar que um pensador precisa pesquisar com critério e rejeitar determinadas atitudes especulativas e teoricistas. Penso que um teó­rico da Filosofia não precisa evidenciar seus procedimentos, pois a grande­za das suas idéias está no conteúdo do seu discurso teórico; mas um teórico da Psicologia precisa, embora muitos deles não o tenham feito, pois ele estuda fenômenos intrapsíquicos específicos e sua produção de conheci­mento objetiva alcançar uma aplicabilidade psicossocial na educação, nas relações sociais e no campo das doenças psicossociais e psíquicas. Como procurei pesquisar o homem na perspectiva psicossocial e filosófica, bem como com outras ciências, sinto a necessidade de fazer uma exposição sucinta desses procedimentos que desenvolvi na trajetória da minha pes­quisa.

OS PROCEDIMENTOS MULTIFOCAIS USADOS COMO VACINA INTELECTUAL
A busca do caos intelectual no processo de observação e interpretação dos fenômenos psíquicos abre algumas janelas psicossociais e filosóficas para expandirmos as possibilidades de compreensão sobre as origens, limi­tes, alcance, práxis, natureza dos pensamentos (incluindo o conhecimento científico) e da consciência existencial.
É mais fácil desenvolver o autoritarismo do que a democracia das idéias, do que redirecionar o processo de observação, interpretação e produção de conhecimentos através do exercício da "consciência crítica do eu". Não me refiro apenas ao macroautoritarismo e à macroditadura política, mas aos microautoritarismos e às microditaduras sociais que freqüentemente ocorrem na relação pai-filho, professor-aluno, policial-cidadão, executivo-empregado, psicoterapeuta-paciente, médico-paciente, político-eleitor, líder espiritual-fiel, palestrante-ouvinte etc. O respeito e o estímulo à capacidade de pensar do "outro" deveriam saturar todos os níveis das relações huma­nas, inclusive a pesquisa científica.
Os "antídotos" intelectuais contra o autoritarismo nas relações huma­nas são multifocais: a) compreender que a democracia das idéias é uma inevitabilidade; b) respeitar o ser humano na sua integralidade; c) considerá-lo capaz de pensar e escolher seus próprios caminhos; d) estimular a revo­lução das idéias que ocorre na sua mente e procurar contribuir para que ela seja redirecionada para desenvolver a revolução do humanismo, da cidadania e da capacidade crítica de pensar. Por sua vez, as "vacinas" e "antídotos" intelectuais contra os autoritarismos das idéias e as ditaduras dos discursos teóricos produzidos na pesquisa científica também são multifocais: exercitar a arte da formulação de perguntas, da dúvida, da crítica; a busca do caos intelectual, a reciclagem e reorganização contínua do processo de interpretação; a postura constantemente aberta no proces­so de observação, interpretação e produção de conhecimento, capaz de se abrir sempre às novas possibilidades dos fenômenos que contempla­mos etc.
Os procedimentos derivados da busca do caos intelectual se tornaram importantes "vacinas" contra o autoritarismo das idéias e a ditadura do discurso teórico na minha trajetória de pesquisa e produção de conheci­mento. Porém, não há procedimentos totalmente seguros; por isso a minha produção de conhecimento possui limites, além de ser, como disse, apenas uma ilha no mar inesgotável da ciência.
O uso de uma teoria pode ser importante para um pesquisador estimu­lar sua trajetória de pesquisa e produção de conhecimento, mas pode tam­bém reduzir a revolução das idéias e produzir, como eu disse, a ditadura dos discursos teóricos. Porém, embora pesquisasse sem a utilização de uma teoria psicológica, filosófica, sociológica ou de qualquer outra teoria cientí­fica, aprendi que não apenas uma teoria científica pode gerar a ditadura do discurso teórico, mas também a nossa própria história intrapsíquica, arqui­vada em nossa memória, pode provocá-las.
A história intrapsíquica funciona como uma importante teoria; a teoria histórica, e sua leitura sem crítica gera um confinamento da liberdade de pensar, pois só conseguimos enxergar o mundo que nos envolve apenas de acordo com o "nosso mundo". A medida que fui expandindo essa compre­ensão, comecei, através da tríade de arte da pesquisa empírica, a buscar mais intensamente o caos intelectual, para me "vacinar", tanto quanto possí­vel, contra essas formas sofisticadas de controle intelectual contidas na minha história intrapsíquica. Foram anos de dúvidas e de insegurança intelectual; porém a luz que emerge do caos tem uma beleza e claridade ímpar.
As dificuldades do "eu" de fazer uma revisão crítica das idéias e dos discursos do conhecimento são grandes, mas essa revisão é imperativa para estudarmos os fenômenos da mente, essencialmente inacessíveis e sensorialmente intangíveis (imperceptíveis).
Produzir conhecimento pode ser aparentemente simples, mas a construtividade de pensamentos é altamente sofisticada. Há uma arte psicodinâmica sofisticadíssima nos bastidores da mente que precisamos explorar e com­preender, que é responsável por toda produção de pensamento conscien­te expressa nos quadros de pintura, na literatura, nas relações humanas, nos discursos dialético-científicos, enfim, nos palcos conscientes da exis­tência.
Falar da natureza e construtividade do conhecimento é falar de um dos mais importantes mistérios da ciência. Compreender a natureza do conhe­cimento abrirá algumas janelas para compreendermos os limites, alcance, lógica e práxis do próprio conhecimento, seja nas ciências físicas, seja nas ciências da cultura.
A palavra "empírico" tem uma definição particular neste livro. Ela se refere ao processo psicossocial e filosófico de produção de conhecimento dos fenômenos psíquicos. Neste livro, esses fenômenos estão relacionados com a construção dos amplos aspectos da inteligência. A produção de conhecimento é realizada através das etapas do processo de interpretação e conduzida através do corpo de procedimentos de pesquisas que utilizei, inclusive os ortodoxos, tais como a arte da observação e o levantamento de dados.
As cinco etapas do processo de interpretação, já comentadas, sofre a influência de múltiplas variáveis, o que compromete a "pureza" da produ­ção de pensamentos e, conseqüentemente, macula a produção de conheci­mento, inclusive a construção das teorias científicas. Diferente da grande maioria dos cientistas teóricos, procurei usar um corpo de procedimentos na minha produção de conhecimento, para que pudesse ampliar as dimen­sões da teoria que estava criando.
Criar uma teoria foi e ainda é uma aventura complexa e sinuosa para mim. Os teóricos produziram conhecimento usando o pensamento como ferramenta — eu procurei produzir conhecimento sobre a ferramenta que eles utilizaram, ou seja, sobre o próprio pensamento, sobre os fenômenos que o constrói, sobre os elementos que dão origem às idéias.
As teorias científicas, além de possuir limites ligados à sua construção, possuem limites ligados às suas dimensões. A seguir, farei uma breve e importante abordagem dos limites gerais de uma teoria em relação à inesgotabilidade da ciência.

A INESGOTABILIDADE DA CIÊNCIA. AS TEORIAS PODEM EXPANDIR OU CONTRAIR O MUNDO DAS IDÉIAS

A utilização das teorias é importante, pois elas podem funcionar como um canteiro de idéias, capazes de expandir a produção de conhecimento; mas elas são invariavelmente limitadas e redutoras diante da inesgotabilidade da ciência. Quem utiliza inadequadamente as teorias pode provocar o macroautoritarismo das idéias e a macroditadura dos discursos teóricos; por isso o exercício da democracia das idéias, a ser estudado, torna-se im­perativo.
Não há teoria completa; todas precisam ser reescritas e expandidas, porque a ciência é inesgotável. A ciência é inesgotável pelo menos por três grandes fatores: 1. Pelo fato de os processos de construção dos pensamen­tos ultrapassarem os limites da lógica. 2. Pelo fato de a consciência existen­cial ser virtual. 3. Pelo fato de o universo microessencial ser infinito.
Primeiro, comentei que, nos bastidores da mente humana, o processo de interpretação sofre um processo de influência contínua de um conjunto de variáveis, que nos leva a produzir pensamentos distintos diante dos mesmos fenômenos e objetos que interpretamos. A construção dos pensa­mentos sofre um sistema de encadeamento distorcido que ultrapassa os limites da lógica. Portanto, diante da mesma ofensa, do mesmo elogio, do mesmo foco de tensão, da mesma notícia, da mesma imagem, do mesmo fenômeno físico, que interpretamos em dois tempos distintos, produzimos pensamentos micro ou macro distintos. O sistema de encadeamento distorcido, que ocorre espontaneamente no processo de construção de pen­samentos, leva a ciência a ser inesgotável, pois ela não é fruto do fenômeno em si, mas do fenômeno interpretado.
Segundo, a consciência existencial jamais atinge a realidade essencial dos fenômenos, pois a consciência é virtual, antiessencial, ou seja, um siste­ma de intenções que discursa incansavelmente sobre a realidade essencial, mas nunca a incorpora intrinsecamente. A consciência existencial, ainda que seja sustentada por uma produção de conhecimento, capaz de gerar aplicabilidades e previsibilidades de fenômenos, nunca incorpora em si mesma a realidade essencial dos fenômenos (a verdade essencial).
Há uma distância infinita entre a consciência existencial (virtual) e a realidade intrínseca dos fenômenos (essencial). Porém, quando o corpo de conhecimentos, que constitui a consciência existencial, se torna aplicável e gera previsões de fenômenos, ele se torna comprovável e ganha o status de verdade científica. Porém, a verdade científica nunca é a verdade essencial; nunca é, portanto, completa e absoluta; por isso ela está invariavelmente, ao longo dos séculos e das gerações, se reorganizando e se expandindo.
A criatividade da consciência existencial, produzida na esfera da virtualidade, torna a ciência inesgotável. O conhecimento, ainda que utilize milhões de idéias, por ser de natureza virtual, ao tentar descrever e dar significado à realidade essencial dos fenômenos, nunca a incorpora. O co­nhecimento e a realidade essencial estão em mundos distintos, possuem naturezas diferentes.
Os cientistas são andejos da virtualidade, pois percorrem continuamen­te, através dos órgãos do sentido e do mundo das idéias, os territórios da realidade, sem de fato nunca encontrá-los na sua essência. Os cientistas são limitados, mas a ciência é inesgotável.
Provavelmente, são muitos os professores universitários que não conhe­cem os limites entre a verdade científica e a verdade essencial. Não com­preendem que, pelo fato de a natureza do conhecimento ser virtual e sua construção ultrapassar os limites da lógica, geram-se tanto limitações na práxis do conhecimento (pensamento dialético) como paradoxalmente uma inesgotabilidade nas dimensões do próprio conhecimento científico.
As limitações ocorrem devido ao fato de o pensamento ser virtual. Por ser virtual, o pensamento, além de não incorporar a realidade do objeto sobre o qual discursa, tem dificuldade para se materializar, pois sua nature­za é virtual. Embora esse fato seja difícil de se entender, ele atinge toda a nossa história de vida. Por exemplo, eu posso pensar sobre a minha ansie­dade, mas o pensamento não incorpora a realidade da energia da ansieda­de, pois ele é um discurso virtual sobre a ansiedade, mas não a ansiedade em si. Além disso, por ser de natureza virtual, o pensamento tem dificulda­de para se materializar no campo de energia psíquica e transformar minha ansiedade em prazer ou tranqüilidade. Notem que o homem é líder do mundo, mas não é líder de si mesmo. Sua construção de pensamentos não transforma facilmente suas emoções. Se os pensamentos tivessem plena liberdade de transformar o mundo psíquico, seria fácil tratar das depres­sões, superar o stress, transformar os psicopatas em pessoas humanistas e nos fazer viver num oásis de prazer mesmo diante das nossas misérias soci­ais. Vimos que o pensamento dialético, de natureza virtual, não é materia­lizado através de si mesmo, mas através das matrizes de pensamentos es­senciais inconscientes.
Por ser virtual, o pensamento dialético tem limitações. Agora, precisa­mos entender que, por ser virtual, o pensamento e, conseqüentemente, toda a ciência se tornam inesgotáveis. E inesgotáveis porque, na esfera da virtualidade, os pensamentos ganham uma plasticidade construtiva e uma liberdade criativa indescritível. Posso pensar o que quero, quando quero, da maneira que quero, sem respeitar nenhuma limitação.
A ciência é inesgotável porque o mundo das idéias é inesgotável, pois ele é construído na esfera da virtualidade. Devido à inesgotabilidade da ciência, toda teoria, toda tese, necessita invariavelmente ser revista e/ou expandida ao longo do tempo. Daqui a um século, grande parte do conhe­cimento que hoje consideramos como verdade científica perderá sua vali­dade ou terá sua validade questionada. Desconhecer os limites e o alcance do conhecimento faz com que a transmissibilidade do conhecimento na educação seja, freqüentemente, autoritária e unifocal, suscitando raramen­te o debate intelectual e o intercâmbio das idéias na relação professor-aluno. Esse autoritarismo pode ocorrer em todas as esferas das relações humanas.
Terceiro, o fato de o universo microessencial ser infinito também elucida essa inesgotabilidade. Se por um lado os cientistas da Física descobriram que o universo macroessencial é composto de dezenas de bilhões de galá­xias — portanto finito — por outro lado, o universo microessencial é infini­to, pois, se assim não fosse, dar-se-ia que a infinita unidade da microessência (matéria ou energia) atingiria o nada. Nesse caso, teríamos o paradoxo tudo-nada, pois o tudo seria constituído do nada. Assim, o mundo que somos e em que estamos seriam universos inexistentes.
A consciência da existência é um autotestemunho da existência. A cons­ciência da existência, embora virtual, nasce, como comentarei, da realida­de essencial das matrizes dos pensamentos. Se é paradoxalmente impossí­vel que a microessência atinja o nada, não há partícula microessencial fun­damental, indivisível, seja ela matéria ou energia. Se a microessência ja­mais atinge o nada, ela é infinita em si mesma. Os físicos dizem que o universo é finito; mas quando fazemos uma análise filosófica dos fenôme­nos, descobrimos que o universo microessencial é infinito. Nessa análise, a Filosofia e a Física fundem-se.
Qualquer área da ciência, mesmo a Física Quântica, circunscreve as dimensões essenciais inesgotáveis dos fenômenos que estuda e dos sistemas de relações existentes entre eles aos limites estreitos e autoritários de uma teoria. Até os conhecimentos cientificamente comprovados (as verdades científicas) são autoritários, pois revelam apenas uma seqüência de, no máximo, meia dúzia de respostas na cadeia interminável do conhecimento sobre os fenômenos. Exemplo: os tecidos são formados de células, as célu­las de moléculas, as moléculas de átomos, os átomos de prótons, nêutrons, elétrons e de outras partículas subatômicas, projetando, assim, uma seqüência interminável de indagações desconhecidas sobre o universo microessencial.
Se o universo microessencial é infinito, os sistemas de micro e macrorre­lações existentes entre os fenômenos microessenciais também o são e, con­seqüentemente, o conhecimento sobre eles também o é, evidenciando, portanto, a inesgotabilidade da ciência. A infinidade da microessência re­vela que a ciência é infinita. Os cientistas são finitos, mas as possibilidades da ciência são infinitas.
Diante da infinidade da microessência e de suas relações e, conseqüen­temente, da inesgotabilidade da ciência, por mais que tenhamos cultura e produzamos conhecimento, ninguém é de fato um mestre ou um doutor (Ph.D.) em qualquer área da ciência. Todos os cientistas são eternos apren­dizes. Os títulos acadêmicos honram os cientistas, mas não honram a inesgotabilidade da ciência. Por isso, se na atual estrutura acadêmica os títulos são inevitáveis, eles deveriam ser usados como uma referência de pouco valor, e não para estabelecer hierarquia entre os cientistas. Não há hierarquia entre os que pensam, sejam eles pesquisadores científicos ou não.
O valor de um pensador não está na grandeza dos seus títulos, mas na grandeza das suas idéias. Por isso, nos congressos científicos, os títulos aca­dêmicos de um cientista, e mesmo a procedência de uma universidade ou o instituto de pesquisa, não deveriam ser pronunciados em voz altissonante, tampouco deveriam figurar nos livros em letras garrafais. Não sendo assim, contamina-se o processo de interpretação do ouvinte ou do leitor e fere-se a democracia das idéias. Nos bastidores da psique humana há mui­tas variáveis que podem contaminar excessivamente o julgamento crítico das idéias. A estética socioeducacional, se supervalorizada, pode ser uma delas.
Os discípulos de uma teoria, seja ela científica, política ou educacional, deveriam tomar cuidado com tudo aquilo que pode levá-los a supervalorizar as idéias de um teórico, tais como imagem social, imagem histórica, in­fluência política, títulos acadêmicos, admiração pessoal, procedência etc; caso contrário, eles podem manipular a teoria de maneira autoritária, prati­cando a ditadura do discurso teórico no exercício profissional.

OS PIORES INIMIGOS DAS TEORIAS

A antiessencialidade da consciência existencial, o sistema de encadeamento distorcido da construção de pensamentos e a infinidade dos fenô­menos microessenciais revelam que a ciência é invariavelmente inesgotá­vel. Por isso, todo conhecimento, toda teoria científica, toda verdade cien­tífica, produzida em livros, gravada em disquetes, debatida nas universida­des, aplicada nos laboratórios e nas empresas é intensamente restritiva em relação à inesgotabilidade da própria ciência.
Se a ciência é infinita e as teorias, limitadas, logo se conclui que elas deveriam ser continuamente revistas e expandidas ao longo do tempo. Por isso, reitero que os piores inimigos de uma teoria não são os seus críticos, mas seus discípulos radicais, ou seja, os que aderem rigidamente a elas, como se elas incorporassem a verdade essencial, aqueles que são incapazes de criticá-la, reciclá-la e expandi-la.
Há diversas teorias psicológicas perdendo espaço e credibilidade por­que seus discípulos se sentem culpados de tentar reciclá-las. Às vezes, o que é pior, o receio de reciclar uma teoria não é devido à culpabilidade que possam ter, mas à falta de honestidade intelectual consigo mesmo, ao medo da crítica de seus pares, dos membros de sua sociedade psicoterapêutica. Tais entraves ocorrem fartamente também em outras ciências. Muitos têm medo de fazer um motim teórico. Aqueles que criticam e rees­crevem uma teoria não a jogam no lixo nem desconsideram a capacidade intelectual do seu autor, mas acabam apreciando-a mais, usando-a como canteiro das idéias, embora não mais gravitem rigidamente em sua Órbita.
É inadmissível que a Psicologia, a Filosofia, a Sociologia, a Educação, se fechem em torno de convenções exclusivistas, pois elas nunca atingem a verdade real, essencial, pois possuem fenômenos de estudos essencialmen­te inacessíveis e sensorialmente intangíveis, e uma produção de conheci­mento que sofre um sistema de encadeamento distorcido. Essa rigidez com­promete a democracia das idéias e a expansão da própria ciência.

AS TEORIAS NA MATEMÁTICA TAMBÉM SÃO LIMITADAS

De fato a ciência é inesgotável, mas as teorias, ainda que importantíssi­mas, são redutoras dela. Até na Matemática as teorias são limitadas. Até nas indiscutíveis operações de soma há limitações, pois 1 mais 1 só é 2 se o primeiro 1 é, em todos os níveis microessenciais, exatamente igual ao se­gundo 1. Porém, como tudo no universo é essencialmente distinto, justa­mente pelo fato de que dois elementos não ocupam o mesmo espaço num mesmo período de tempo, conclui-se que a Matemática, que parece a úni­ca ciência imutável, só é realmente imutável por artifícios intelectuais que não se verificam no universo essencial.
Filósofos como Descartes,2 embora fossem de indiscutível inteligência, quiseram aplicar as leis da Matemática na Filosofia, na produção de conhe­cimento, visando expandir sua lógica. Porém, não compreenderam que a verdade da Matemática é antiessencial, ou seja, possui uma distância infini­ta com relação à verdade essencial, ainda que produza aplicabilidades e previsibilidades.
A compreensão lenta e gradual da inesgotabilidade da ciência e os limites da teoria, que mescla a Filosofia com a Psicologia, me incitou a pesquisar sem utilizar uma teoria de outro pensador como suporte da inter­pretação.
A restrita seqüência de fatos comprovados cientificamente diante da cadeia interminável de conhecimentos sobre os fenômenos já é em si mes­ma uma atitude autoritária da ciência. Como a cadeia do conhecimento com que a ciência lida é pequena e unidirecional, e como a própria cons­ciência não incorpora a essência real do fenômeno que discursa, os fatos hoje comprovados cientificamente poderão deixar de ser verdades científi­cas no futuro ou sofrer grandes evoluções no seu discurso.
A ciência e a verdade "real" moram na mesma casa, mas estão em dois mundos distintos. Por isso, a ciência deveria ser uma amiga inseparável da democracia das idéias.

USANDO O CAOS INTELECTUAL PARA DESORGANIZAR AS DISTORÇÕES PRECONCEITUOSAS

O caos intelectual é um procedimento multifocal importante no proces­so de investigação e produção de conhecimento sobre a mente. Embora a busca do caos intelectual seja inalcançável em sua plenitude e pureza, sua busca pode ser uma ferramenta de pesquisa fundamental para investigar­mos as variáveis sensorialmente intangíveis que co-interferem para fazer a leitura da memória e a produção dos pensamentos, da consciência existen­cial e das reações emocionais.
A busca do caos intelectual significa a busca da pureza no processo de observação, a busca da análise sem contaminação dos conceitos e precon­ceitos que temos daquilo que investigamos. O caos intelectual representa uma profunda revisão dos parâmetros do conhecimento, dos referenciais e dos paradigmas socioculturais arquivados na memória. A sua busca pode ser importantíssima para expandir as possibilidades de compreensão e de construção do conhecimento sobre os fenômenos de estudo, que no meu caso estão contidos na própria psique humana. Por que o caos intelectual — ou seja, a desorganização dos conceitos que temos sobre determinado objeto para o investigarmos de maneira mais pura, mais concernente ao que ele é e não ao que achamos que ele seja — é impossível de ser alcan­çado? Por que todo cientista tende a contaminar suas pesquisas com seus preconceitos? Porque a leitura da memória e a construção dos pensamen­tos são automáticas e realizadas, como estudaremos, por múltiplos fenô­menos e não apenas pelo eu. Por isso a construção da inteligência é multifocal.
A busca do caos intelectual leva-nos a uma postura continuamente crí­tica e aberta no processo de observação e interpretação e um questionamento de nossa história intrapsíquica, que gera, momentaneamente, um estado de desorganização intelectual que nos imerge num mar de dúvidas sobre os fenômenos que investigamos e estudamos, fazendo-nos enfrentar nossos próprios limites intelectuais e perceber a facilidade com que contamina­mos o processo de interpretação e distorcemos a construtividade do conhe­cimento sobre esses fenômenos. Devido à revisão crítica dos conceitos, idéias e pensamentos contidos nas nossas histórias intrapsíquicas e à postu­ra crítica e continuamente aberta no processo de observação e interpreta­ção, ocorre uma filtragem das contaminações da interpretação.
Ao mesmo tempo que se processa uma filtragem das contaminações da interpretação, ocorrerá uma expansão das possibilidades de compreensão e de construção do conhecimento sobre os fenômenos. Assim, os fenôme­nos serão observados e interpretados de maneira mais completa, pura, profunda, aberta. Portanto, a busca do caos intelectual gera pelo menos duas grandes conseqüências no processo de pesquisa e produção de conheci­mento: a filtragem das contaminações da interpretação e a expansibilidade das possibilidades de compreensão e de construção do conhecimento. Es­ses dois procedimentos, derivados da busca do caos intelectual, contraem o autoritarismo das idéias e a ditadura do discurso teórico e contribuem para promover e redirecionar continuamente a produção de conhecimento cien­tífico.
O exercício da procura do caos intelectual é um procedimento de pesquisa e, mais do que isso, é uma postura intelectual aberta que destrói nossa rigidez e nos coloca como um eterno aprendiz na ciência e na trajetó­ria existencial. Grande parte dos cientistas que, com o passar do tempo, deixam de exercitar, ainda que inconscientemente, a busca do caos intelec­tual, bem como a arte da pergunta, da dúvida e da crítica, se tornam esté­reis. Os cientistas, os pensadores, os artistas que permanecem continua­mente criativos e produtivos em sua trajetória existencial tomaram o cami­nho oposto, ainda que não chegassem a compreender teoricamente o caos intelectual e a "tríade de arte da pesquisa".
Qualquer comportamento, qualquer reação emocional ou qualquer fe­nômeno físico que observamos, procurando exercitar a busca do caos inte­lectual, irão se apresentar de maneira muito mais rica do que a simples exposição intelectual que possamos ter diante dos mesmos.
Uma pessoa pode contemplar um objeto de ferro atirado pelas ruas e, automaticamente, produzir o conceito de que está diante de um pedaço de ferro que não tem mais utilidade. Porém, se ele exercitar a busca do caos intelectual, criticar os conceitos, idéias e pensamentos que tem sobre esse objeto e se colocar de maneira profundamente crítica e aberta para interpretá-lo, certamente deixará de ver esse objeto apenas como um pedaço de ferro e expandirá as possibilidades de construção e de compreensão do conheci­mento sobre ele.
Talvez, poderá enxergar naquele desprezível pedaço de ferro a história humana, o desespero humano, a comunicação interpessoal, a necessidade humana de poder e de contemplação do belo, o caos físico-químico. Tal­vez, no processo de expansão das possibilidades de construção do conheci­mento, fique deslumbrado ao questionar sobre os séculos necessários para o homem dominar a tecnologia do ferro; sobre a energia psíquica e o sofri­mento humano consumidos no aprimoramento da arte de fundir os minéri­os; sobre as angústias existenciais, a troca de informações e o debate de idéias gerados para se produzir materiais a partir do ferro; sobre a busca de prazer acompanhando o desenvolvimento da técnica, expressa pelas for­mas, estilos e cores dados a esses materiais para que os seus usuários não apenas os utilizassem, mas também contemplassem o belo a partir deles; sobre a utilização do ferro como instrumento de poder e de destrutividade; sobre as variáveis extrínsecas e intrínsecas que contribuem para a oxidação do ferro e conduzi-lo, ao longo dos anos, ao caos físico-químico; sobre os destinos que terão as partículas imersas no caos físico-químico nos ecossistemas.
Esse exemplo simples demonstra que a utilização do caos intelectual se choca com o autoritarismo das idéias e expande as possibilidades de cons­trução e de compreensão do conhecimento sobre os objetos e fenômenos. Nesse exemplo, a busca do caos intelectual leva as ciências físicas a encon­trar as ciências da cultura, principalmente a Psicologia e a Filosofia.

A TEORIA MULTIFOCAL E A FENOMENOLOGIA DE HUSSERL

Após ter desenvolvido idéias sobre os processos de construção dos pen­samentos, da consciência existencial, da história intrapsíquica e do proces­so de transformação da energia psíquica, a partir dos procedimentos e das mesclagens intelectuais que utilizei, tive contato com alguns textos da fenomenologia de Husserl.3
Husserl foi um pensador de alta qualidade. Ele advoga a tese de que o observador deveria se colocar diante do fenômeno de estudo de maneira pura, ingênua. Portanto, não deveria utilizar uma teoria como suporte da interpretação, pois sua utilização contaminaria o processo de interpretação, reduzindo o fenômeno a elemento da teoria, circunscrevendo-o apenas dentro das possibilidades da teoria, contraindo seu caráter original.
Quando abordei o autoritarismo das idéias e a ditadura dos discursos teóricos, evidenciei que, apesar de uma teoria poder catalisar e promover a produção de conhecimento de um observador (ex., cientista, psicoterapeuta), ela também pode reduzir essa produção, principalmente se o observador gravitar em torno dela, utilizá-la como verdade irrefutável, desconhecer seus limites, alcance, lógica e validade. Nesse caso, o observador circuns­creveria autoritária e ditatorialmente o fenômeno observado apenas dentro dos limites da teoria que abraça, não se abrindo a inúmeras outras possibi­lidades que o fenômeno revela.
Nesse sentido, a fenomenologia tem fundamento. Porém, discordo da fenomenologia de que a utilização de uma teoria é invariavelmente reducionista da produção de conhecimento, embora macule a originalida­de do fenômeno, pois se utilizada dentro do campo da democracia das idéias e levando em consideração os processos de construção dos pensamentos e os limites e alcance básicos do conhecimento teórico, ela pode contribuir para expandir a produção do conhecimento, da cultura, do mundo das idéias. A teoria pode tanto embotar os pensamentos como pode catalisar, provocar e enriquecer a pesquisa científica, depende de quem a utiliza.
Apesar de a fenomenologia ter o brilhantismo filosófico de teorizar sobre o processo de contaminação das teorias formais, ela desconsidera que a maior de todas as teorias utilizadas no processo de interpretação não é a teoria formal (científica), mas a teoria histórico-existencial, ou seja, a história intrapsíquica arquivada na memória de cada ser humano, de cada observador.
Quando estudarmos os fenômenos que lêem a memória e constroem os pensamentos, constataremos que ler e utilizar as riquíssimas matrizes de informações não é uma opção do "eu", mas uma inevitabilidade. Ler e utilizar a memória independe da determinação do "eu". Podemos, no má­ximo, selecionar a leitura e a utilização da memória. Se fosse possível abor­tar a leitura da memória em um determinado momento, perderíamos a consciência de quem somos e de onde estamos.
A morte da história intrapsíquica implica a morte da consciência huma­na, a morte do homem como ser pensante. A história social, contida nos livros, é o leme intelectual que direciona a trajetória sociopolitica de uma sociedade, e a história intrapsíquica, contida na memória, é o leme intelec­tual que direciona a trajetória da produção de pensamentos de um indiví­duo.
É possível abster-se de utilizar uma teoria formal (científica) como su­porte da interpretação na investigação dos fenômenos, mas não é possível livrar-se da teoria histórico-existencial na investigação dos mesmos, pois o caos da energia psíquica é reorganizado a partir da leitura da memória.
Dessa leitura se produzem as matrizes dos pensamentos essenciais his­tóricos, que sofrerão um misterioso processo de leitura virtual, gerando os pensamentos dialéticos e antidialéticos. Portanto, o maior desafio não é se precaver contra as contaminações da interpretação da teoria formal, mas contra as contaminações da teoria histórico-existencial. Deveríamos apren­der a descontaminar o processo de observação e interpretação, tanto quan­to possível, das distorções preconceituosas contidas na memória e, ao mes­mo tempo, expandir as possibilidades de construção e compreensão do conhecimento dos estímulos pesquisados.
Provavelmente, muitos cientistas, intelectuais, pensadores, psicoterapeutas, executivos e qualquer tipo de pessoa que realiza algum tipo de trabalho intelectual, contaminam e reduzem excessivamente sua produção de conhecimento com as teorias que utilizam, principalmente com a teoria histórica.
É inevitável que todo pensamento, por ser gerado pelo processo de interpretação, reduza as dimensões dos fenômenos observados. A leitura da história intrapsíquica, se não for revisada, produz toda sorte de distorções da interpretação e, conseqüentemente, distorções na produção de conheci­mento, além de produzir toda sorte de discriminações e de atitudes super­ficiais que induzem a um excesso de explicações psicológicas superficiais.
Todo homem lê sua memória e torna-se um exímio engenheiro quanti­tativo de idéias, embora nem sempre qualitativo; até as pessoas tímidas o são. Aliás, as pessoas tímidas falam pouco, mas pensam muito. Pensar não é uma opção do homem; pensar é o destino do homem; pensar é uma inevitabilidade.

UMA POSTURA CONTINUAMENTE ABERTA

Todos temos fenômenos intrapsíquicos que vivem num fluxo vital e que reorganizam o caos da energia psíquica, através da leitura multifocal da história intrapsíquica; por isso, todos somos grandes engenheiros de idéias, ainda que estas sejam superficiais. Por ser um exímio engenheiro de idéias, o homem tem tendência para produzir idéias e pensamentos super­ficiais sobre os problemas existenciais, sobre as relações humanas, sobre os problemas sociopolíticos, sobre os fenômenos científicos e até sobre Deus, sem muita consciência crítica, sem muito respeito à própria inteligência, sem realizar uma análise crítica dos fundamentos que embasam seus julga­mentos da interpretação, sem se colocar de maneira aberta e crítica no processo de observação e interpretação.
É possível usar teorias para catalisar e promover a revolução das idéias em todas as áreas das ciências e, como disse, também é possível contami­nar a revolução das idéias pelo uso dessas teorias, por não usá-las critica­mente, por gravitar em torno delas.
Não usei nenhuma teoria existente na ciência para pesquisar o funcio­namento da mente e produzir a teoria contida neste livro. Porém, mesmo tendo a ousadia de não usar textos de outros autores não estou livre de contaminar os processos de observação, interpretação e produção de co­nhecimento, pois posso contaminá-los pela leitura do meu passado. Assim, quando observo, interpreto e produzo conhecimento, sem uma crítica multifocal e sem uma postura continuamente aberta, posso comprometê-los com um conjunto de experiências arquivadas na minha memória, expe­riências que chamo de RPSs (representações psicossemânticas diretivas e associativas). Por isso, há anos tenho desenvolvido e utilizado a busca do caos intelectual para dessensibilizar-me das contaminações da minha história intrapsíquica, das contaminações das RPSs diretivas e associativas, e para expandir as possibilidades de construção do conhecimento.
Muitos críticos de arte, psicólogos, professores, promotores, pesquisa­dores científicos etc, não têm consciência de que contaminam excessiva­mente seus julgamentos críticos através da leitura das suas histórias intrapsíquicas. Eles interpretam os estímulos baseados muito mais em suas histórias intrapsíquicas do que nas possibilidades que eles apresentam.
Como realizar o desafio intelectual de procurar descontaminar-se da teoria histórica e, ao mesmo tempo, de abrir as possibilidades de constru­ção do conhecimento? Para isso, precisamos usar sistematicamente a "tríade de arte da pesquisa" e a busca do caos intelectual. Precisamos procurar intensamente a busca do caos intelectual para desorganizar, tanto quanto possível, os referenciais históricos, os paradigmas socioculturais, os estereó­tipos sociais e os padrões de reações intelectuais que estão contidos na história intrapsíquica.
Procurei fazer continuamente, ao longo dos anos, um questionamento sistemático dos conceitos contidos na minha história intrapsíquica. Procurei também exercitar uma postura continuamente aberta no processo de obser­vação e interpretação dos fenômenos que participam e co-interferem para gerar os processos de construção da inteligência. Em tese, fui aprendendo a aplicar a "tríade de arte da pesquisa" e a busca do caos intelectual diante de cada comportamento do "outro" e em cada fenômeno ou variável intrapsíquica que observava em minha própria mente.
A busca do caos intelectual jamais desorganiza totalmente a história intrapsíquica e, conseqüentemente, os conceitos, as idéias, os pensamentos, as informações, os parâmetros etc, contidos nela; caso contrário, não con­seguiríamos pensar e desenvolver a consciência existencial; portanto, ela não faz um cientista se livrar de todas as contaminações no processo de interpretação, mas o faz constantemente reorientar e redirecionar o proces­so de observação, interpretação e produção de conhecimento.
Quando nos colocamos diante de um estímulo, objeto ou fenômeno, buscando o caos intelectual, ele se apresenta, como disse, totalmente novo para nós, mais condizente com suas potencialidades. Se os educadores, os promotores, os juízes de direito, os psicoterapeutas, os médicos e os cientis­tas aprenderem a ter uma postura aberta no processo de observação e interpretação, certamente darão um salto qualitativo e quantitativo em suas produções de conhecimento.
Procurar desorganizar, tanto quanto possível, os conceitos prévios que possuímos, através da busca do caos intelectual pode criar em nós grande confusão intelectual na fase inicial do processo de observação, interpreta­ção e produção do conhecimento, mas pouco a pouco nos descontaminará interpretativamente, tanto quanto possível, dos autoritarismos das idéias e das ditaduras dos discursos teóricos, e expandirá as possibilidades de cons­trução e de compreensão dos objetos e fenômenos que contemplamos.
Há enormes lacunas nas teorias psicológicas, psiquiátricas, sociológicas, psicopedagógicas, porque muitos teóricos não conheceram e, portanto, não desenvolveram a busca do caos intelectual em sua trajetória de pesquisa e produção de conhecimentos. Muitos deles também não utilizaram a "tríade de arte da pesquisa" e a análise das variáveis da interpretação e dos siste­mas de co-interferências dessas variáveis. A não-utilização desses procedi­mentos gerou uma redução na reorganização e expansão contínua destas teorias.
Encorajo os leitores a se interiorizar e a não ficar receosos com as dúvi­das e inseguranças geradas pela busca do caos intelectual. A arte da dúvida e da crítica são os princípios básicos da sabedoria existencial. As pessoas que mais causaram danos à humanidade foram as que nunca aprenderam a duvidar e a criticar a si mesmas. Por outro lado, os pensadores, cientistas e teóricos que mais contribuíram com a expansão da ciência e das idéias humanísticas foram os que apreciaram a arte da dúvida (incluindo a arte da formulação das perguntas) e da crítica e, mesmo que não tenham produzi­do conhecimento sobre o caos intelectual, vivenciaram alguns dos seus efeitos psicodinâmicos.
O caos intelectual pode ser um precioso estágio no processo de aprimo­ramento do conhecimento e de desenvolvimento da inteligência. É prová­vel que uma grande parte dos profissionais e dos pesquisadores não fazem uma escalada introspectiva em busca do caos intelectual e, conseqüente­mente, das duas possibilidades geradas por ele (descontaminação da inter­pretação e expansão do conhecimento); por isso se tornam, freqüentemente, retransmissores do conhecimento e, raramente, pensadores que promovem a ciência e as idéias humanistas.
Muitos médicos e psicólogos clínicos não exercem suas profissões como pensadores humanistas, pois estão sempre querendo submeter o homem e, o que é pior, a própria doença humana, aos limites da teoria que abraçam, e não, ao contrário, submeter as teorias que utilizam à complexidade e à variabilidade humana. Por isso, nem sempre os melhores estudantes, os que mais incorporam conhecimento e armazenam cultura, se tornam os melhores profissionais, pois, era vez de serem pensadores versáteis, que expandem o mundo das idéias e as soluções inteligentes, eles se compor­tam como retransmissores da cultura, engessados intelectualmente.
Quem não conhece minimamente os limites e o alcance de uma teoria formal e da teoria histórico-existencial arquivada na memória, quem não exercita minimamente a "tríade de arte da pesquisa" e a busca do caos interpretativamente, tanto quanto possível, dos autoritarismos das idéias e das ditaduras dos discursos teóricos, e expandirá as possibilidades de cons­trução e de compreensão dos objetos e fenômenos que contemplamos.
Há enormes lacunas nas teorias psicológicas, psiquiátricas, sociológicas, psicopedagógicas, porque muitos teóricos não conheceram e, portanto, não desenvolveram a busca do caos intelectual em sua trajetória de pesquisa e produção de conhecimentos. Muitos deles também não utilizaram a "tríade de arte da pesquisa" e a análise das variáveis da interpretação e dos siste­mas de co-interferências dessas variáveis. A não-utilização desses procedi­mentos gerou uma redução na reorganização e expansão contínua destas teorias.
Encorajo os leitores a se interiorizar e a não ficar receosos com as dúvi­das e inseguranças geradas pela busca do caos intelectual. A arte da dúvida e da crítica são os princípios básicos da sabedoria existencial. As pessoas que mais causaram danos à humanidade foram as que nunca aprenderam a duvidar e a criticar a si mesmas. Por outro lado, os pensadores, cientistas e teóricos que mais contribuíram com a expansão da ciência e das idéias humanísticas foram os que apreciaram a arte da dúvida (incluindo a arte da formulação das perguntas) e da crítica e, mesmo que não tenham produzi­do conhecimento sobre o caos intelectual, vivenciaram alguns dos seus efeitos psicodinâmicos.
O caos intelectual pode ser um precioso estágio no processo de aprimo­ramento do conhecimento e de desenvolvimento da inteligência. É prová­vel que uma grande parte dos profissionais e dos pesquisadores não fazem uma escalada introspectiva em busca do caos intelectual e, conseqüente­mente, das duas possibilidades geradas por ele (descontaminação da inter­pretação e expansão do conhecimento); por isso se tornam, freqüentemente, retransmissores do conhecimento e, raramente, pensadores que promovem a ciência e as idéias humanistas.
Muitos médicos e psicólogos clínicos não exercem suas profissões como pensadores humanistas, pois estão sempre querendo submeter o homem e, o que é pior, a própria doença humana, aos limites da teoria que abraçam, e não, ao contrário, submeter as teorias que utilizam à complexidade e à variabilidade humana. Por isso, nem sempre os melhores estudantes, os que mais incorporam conhecimento e armazenam cultura, se tornam os melhores profissionais, pois, era vez de serem pensadores versáteis, que expandem o mundo das idéias e as soluções inteligentes, eles se compor­tam como retransmissores da cultura, engessados intelectualmente.
Quem não conhece minimamente os limites e o alcance de uma teoria formal e da teoria histórico-existencial arquivada na memória, quem não exercita minimamente a "tríade de arte da pesquisa" e a busca do caos intelectual, ainda que desconheça teoricamente estes procedimentos, e, além disso, quem tem dificuldade para questionar e reorganizar continuamente sua produção de conhecimento, engessa sua inteligência e pratica um con­trole intelectual autoritário contra esses fenômenos. Essas pessoas, ainda que tenham feito uma brilhante carreira acadêmica, não contribuem com a expansão das ciências, não alargam as fronteiras do conhecimento, pois reduzem ou até mesmo abortam as possibilidades de compreensão expres­sas pelos próprios fenômenos.
Um bom pensador, do meu ponto de vista, não é apenas alguém que produz uma teoria eloqüente, com brilhantismo literário, mas, principal­mente, aquele que recicla criticamente os procedimentos que utiliza, o co­nhecimento que produz (postulados, hipóteses, sistemas de conceitos), bem como o que procura colocar à prova as derivações da sua teoria e, mais ainda, o que investiga e indaga os limites, o alcance, a lógica, a validade e a práxis da sua própria teoria. Enfim, um bom pensador é um "eterno" insatisfeito com a teoria que produz, um "eterno" aprendiz, uma "eterna" gestante de idéias.

A NATUREZA, LIMITES E ALCANCE DOS PENSAMENTOS

A natureza do conhecimento possui em si mesma uma indescritível complexidade. O conhecimento sobre a essência intrínseca dos objetos e fenômenos, embora nem sempre seja achista, mas às vezes assuma um discurso teórico científico importante, jamais incorpora a realidade essen­cial dos mesmos. O conhecimento é um sistema de intenções que define e discursa virtualmente o universo investigável.
O conhecimento sobre os átomos não é a essência intrínseca dos áto­mos, mas um sistema de intenções que tenta defini-los e conceituá-los. O conhecimento sobre o humor deprimido ou a ansiedade do "outro" não é a essência intrínseca da energia emocional deprimida ou ansiosa dele, mas um sistema de intenções que tenta defini-la, conceituá-la, descrevê-la, compreendê-la, enfim, acusá-la e discursá-la teoricamente.
O pensamento dialético e o antidialético são os dois tipos básicos de pensamentos conscientes. Eles são produzidos a partir da leitura virtual das matrizes dos códigos dos pensamentos essenciais históricos. Os pensamen­tos essenciais históricos são fruto de finíssimas e instantâneas leituras da história intrapsíquica. As matrizes de pensamentos essenciais históricos são produzidas, em milésimos de segundos, por quatro fenômenos que utili­zam a história intrapsíquica arquivada na memória: o fenômeno da autochecagem da memória, a âncora da memória, o fenômeno do autofluxo e o eu. Os pensamentos dialéticos e antidialéticos são usados como a ferra­menta intelectual para construção do conhecimento consciente, seja na científicidade seja na coloquialidade.
Os pensamentos dialéticos e antidialéticos produzem os limites, o al­cance e a lógica do conhecimento consciente. Entre o conhecimento cons­ciente e a realidade essencial dos objetos e fenômenos há uma distância infinita, um antiespaço entre o virtual (consciência) e o real (fenômeno essencial). Entre as interpretações de um psicoterapeuta e a realidade essen­cial da ansiedade de seu paciente há, ainda que ele não perceba, uma distância "infinita", separadas pelo intransponível fosso entre a consciência virtual do psicoterapeuta e a realidade essencial do paciente. Essa distância se reproduz em todos os níveis das relações interpessoais: nas relações en­tre pais e filhos, nas relações profissionais, entre jurados e o réu, entre amigos etc. Porém, embora as relações interpessoais tenham a separá-las um fosso intransponível, não deveríamos imaginar que elas são pobres por causa disso; pelo contrário, são arquiteturas psicodinâmicas riquíssimas, produzidas pelo processo de construção da consciência existencial.
Apesar das limitações da consciência virtual, as relações interpessoais serão riquíssimas se aprendermos a reconstruir interpretativamente o "ou­tro", com mais justiça em relação ao que ele é, ainda que essa reconstrução seja sempre devedora à sua realidade essencial. Conhecemos o outro a partir de nós mesmos; daí a imensa responsabilidade de reconstruirmos o "outro" condizente ao que o "outro é" e não em relação ao que "nós so­mos". Infelizmente, muito do que falamos do "outro" diz mais a nosso respeito do que a ele mesmo. Há muitos pais, executivos, intelectuais, psicoterapeutas, professores que criticam, acusam, descrevem, julgam o "outro" (filhos, alunos, subordinados, pacientes), porém não percebem que esse "outro" não é a realidade essencial do "outro", mas o "outro virtual" que reconstruíram interpretativamente em suas mentes. O grande proble­ma é que, muitas vezes, essa reconstrução dá-se restritivamente, gerando um preconceituosismo histórico e um processo de compreensão superficial que criam enormes distorções e injustiças na interpretação em relação ao que o "outro" realmente é.
A essência intrínseca dos objetos e dos fenômenos só pertence a eles mesmos, pois ela é inconsciente para si mesma, vive a dramática condição da inconsciência existencial. O conhecimento, por sua vez, não tem exis­tência própria nem é dado pela simples sensação ou percepção sensorial; ele é produzido pelo processo de interpretação a cada momento da inter­pretação. O conhecimento consciente, enquanto "natureza virtual conscien­te", que acusa e discursa a realidade essencial do mundo intra e extra-psíquico, nem mesmo tem essência própria, pois, como foi dito, sua natureza e o eu. Os pensamentos dialéticos e antidialéticos são usados como a ferra­menta intelectual para construção do conhecimento consciente, seja na científicidade seja na coloquialidade.
Os pensamentos dialéticos e antidialéticos produzem os limites, o al­cance e a lógica do conhecimento consciente. Entre o conhecimento cons­ciente e a realidade essencial dos objetos e fenômenos há uma distância infinita, um antiespaço entre o virtual (consciência) e o real (fenômeno essencial). Entre as interpretações de um psicoterapeuta e a realidade essen­cial da ansiedade de seu paciente há, ainda que ele não perceba, uma distância "infinita", separadas pelo intransponível fosso entre a consciência virtual do psicoterapeuta e a realidade essencial do paciente. Essa distância se reproduz em todos os níveis das relações interpessoais: nas relações en­tre pais e filhos, nas relações profissionais, entre jurados e o réu, entre amigos etc. Porém, embora as relações interpessoais tenham a separá-las um fosso intransponível, não deveríamos imaginar que elas são pobres por causa disso; pelo contrário, são arquiteturas psicodinâmicas riquíssimas, produzidas pelo processo de construção da consciência existencial.
Apesar das limitações da consciência virtual, as relações interpessoais serão riquíssimas se aprendermos a reconstruir interpretativamente o "ou­tro", com mais justiça em relação ao que ele é, ainda que essa reconstrução seja sempre devedora à sua realidade essencial. Conhecemos o outro a partir de nós mesmos; daí a imensa responsabilidade de reconstruirmos o "outro" condizente ao que o "outro é" e não em relação ao que "nós so­mos". Infelizmente, muito do que falamos do "outro" diz mais a nosso respeito do que a ele mesmo. Há muitos pais, executivos, intelectuais, psicoterapeutas, professores que criticam, acusam, descrevem, julgam o "outro" (filhos, alunos, subordinados, pacientes), porém não percebem que esse "outro" não é a realidade essencial do "outro", mas o "outro virtual" que reconstruíram interpretativamente em suas mentes. O grande proble­ma é que, muitas vezes, essa reconstrução dá-se restritivamente, gerando um preconceituosismo histórico e um processo de compreensão superficial que criam enormes distorções e injustiças na interpretação em relação ao que o "outro" realmente é.
A essência intrínseca dos objetos e dos fenômenos só pertence a eles mesmos, pois ela é inconsciente para si mesma, vive a dramática condição da inconsciência existencial. O conhecimento, por sua vez, não tem exis­tência própria nem é dado pela simples sensação ou percepção sensorial; ele é produzido pelo processo de interpretação a cada momento da inter­pretação. O conhecimento consciente, enquanto "natureza virtual conscien­te", que acusa e discursa a realidade essencial do mundo intra e extra-psíquico, nem mesmo tem essência própria, pois, como foi dito, sua natureza Devemos nos lembrar de que, assim como podemos reconstruir o "ou­tro" de maneira distorcida, podemos construir as "verdades científicas" so­bre as avenidas do autoritarismo das idéias, sem um sistema de relação com a verdade essencial dos objetos e fenômenos de estudo. Isso tem acon­tecido com freqüência na ciência. Nas relações humanas, elas também têm ocorrido com grande freqüência até os dias de hoje, o que se expressa, por exemplo, pelo discurso da superioridade dos brancos em relação aos ne­gros, pelo discurso nazista da superioridade da raça ariana em relação à raça judia e demais povos, pelo discurso dos povos do primeiro mundo em relação aos trabalhadores clandestinos em suas sociedades. Esses discursos intelectualmente superficiais maculam a história, deixam profundas cicatri­zes anti-humanísticas.
O processo de interpretação se constitui dos sistemas de co-interferências de variáveis presentes, a cada momento existencial, nos bastidores incons­cientes da inteligência. O processo de interpretação se constitui de cinco importantes etapas da interpretação, das quais as três primeiras são incons­cientes e as duas últimas conscientes. Nas etapas iniciais se formam as ma­trizes dos pensamentos essenciais históricos, que são inconscientes. Os co­nhecimentos científicos e coloquiais são formados na quarta e quinta eta­pas da interpretação.
A complexidade dos sistemas de variáveis da interpretação que atuam no âmago da psique faz com que a construção do conhecimento sofra, em todas as etapas da interpretação, complexos e sofisticados sistemas de encadeamentos distorcidos, que leva essa construção a ultrapassar os limites da lógica. Assim, pelo fato de o conhecimento ser produzido pelo processo de interpretação, ele facilmente pode ser distorcido, contaminado. Por isso, como eu já disse, as verdades científicas podem possuir pouca ou nenhuma relação com a verdade essencial, o que as fazem ser revisadas e modifica­das ao longo das gerações.
Devido ao sistema de encadeamento distorcido, ocorrido no processo de construção do conhecimento, o homem não apenas pode distorcer com facilidade a verdade essencial, mas também entrar facilmente no território das contradições intelecto-emocionais. Ele é capaz de experimentar inten­sas reações fóbicas diante de pequenos e inofensivos animais e de anteci­par situações do futuro e vivenciá-las como se fossem reais, embora o futu­ro ainda seja uma irrealidade. Ele também é capaz de se preocupar intensa­mente com sua imagem social, ou seja, com o que os outros pensam e falam de si, embora o "outro" jamais penetre essencialmente dentro do seu próprio universo intrapsíquico.
Concluindo, todo conhecimento é produzido invariavelmente pelo pro­cesso de interpretação multifocal, advindo da leitura e utilização da história intrapsíquica, debaixo da influência dos sistemas de co-interferências das variáveis da interpretação. Todos os objetos e fenômenos de estudos intrapsíquicos e extrapsíquicos não são acessíveis essencialmente à cons­ciência existencial ou intelectual, pois esta é virtual, antiessencial. Por isso, o processo de interpretação tem a complexa tarefa de reconstruí-los interpretativamente através da construção de pensamentos dialéticos e antidialéticos. A construção desses pensamentos produz a consciência exis­tencial, que nos tira da dramática e indescritível condição da solidão da inconsciência existencial.
A consciência existencial discursa sobre os fenômenos e objetos intrapsíquicos e extrapsíquicos. Porém, ela não incorpora a realidade essen­cial dos fenômenos e dos objetos, mas é uma interpretação deles na esfera da virtualidade. Por um lado, a consciência existencial, além de ser devedora da realidade essencial, pode ser excessivamente distorcida pela flutuabilidade das variáveis intrapsíquicas e contaminada pelos julgamen­tos prévios contidos na história intrapsíquica e socioeducacional, bem como pela ação psicotrópica de determinadas drogas e das substâncias psicoativas neuroendócrinas determinadas geneticamente. Por outro lado, quanto mais a consciência existencial mantém um sistema de relação com a verdade essencial, mais ela conquista um status de verdade científica, capaz de re­sultar em aplicabilidade e previsibilidade de fenômenos.
Se a verdade essencial é um objetivo a ser procurado ansiosamente pela ciência, mas nunca atingido pela consciência existencial, e se a univer­salidade científica (a verdade científica universal), principalmente no terre­no da construção dos pensamentos dialéticos, fonte de construção da pró­pria ciência, submete-se ao campo da flutuabilidade e evolutividade de determinadas variáveis intrapsíquicas, então por que o sistema acadêmico possui, na prática, ainda que não admita no discurso teórico, uma postura universal rígida, como se fosse idêntica à inalcançável verdade essencial, de ser o centro da produção de intelectuais? Nunca na história uma institui­ção teve a função de ser um canteiro da inteligência, mas paradoxalmente engessou a arte de pensar. Essa frase, derivada da relação da verdade cien­tífica com a verdade essencial, é uma síntese do meu pensamento crítico-epistemológico dessa postura das universidades. Muitas universidades se fecharam em torno de determinadas convenções, comprometendo, assim, a nobilíssima vocação de serem uma universidade de idéias, uma usina do pensamento.
Quais as conseqüências disto? Entre elas está a incapacidade que a ciência tem de resolver os problemas essenciais da sociedade. Faltam idéias e pensadores brilhantes que possam contribuir para dar soluções para os problemas humanos fundamentais.
No século XIX e principalmente no século XX, a ciência teve um de­senvolvimento explosivo. Alicerçado na ciência, o homem se tornou ousa­do em seu sonho de progresso e modernidade. A ciência se tornou o deus do homem. Ela prometia conduzi-lo a dar um salto nos amplos aspectos da prosperidade biológica, psicológica e social. A solidariedade cresceria, a cidadania floresceria, a solidariedade seria a tônica das relações sociais, a riqueza material se expandiria e atingiria todo ser humano, a miséria social seria extinta. As guerras, as discriminações e as demais violações dos direi­tos humanos seriam lembradas apenas nas páginas da história.
A ciência fazia uma grande e espetacular promessa. Era uma promessa não expressa por palavras, mas, ainda assim, era forte e arrebatadora. Era uma promessa sentida a cada momento que a ciência dava um salto espe­tacular na engenharia civil, na mecânica, na eletrônica, na medicina, na genética, na química, na física. A expansão do conhecimento se tornava incontrolável. Cada ciência se multiplicava em novas ciências. Cada viela do conhecimento se expandia e se tornava bairros inteiros de informações. Encontrava-se um microcosmo dentro das células. Descobria-se um mundo dentro dos átomos. Compreendia-se um mundo com bilhões de galáxias que pulsava no espaço.
As universidades foram fundamentais nesse processo. Elas se tornaram a força motriz do desenvolvimento humano. Porém, com o passar do tem­po, como aconteceu com as grandes instituições que atingiram o topo do sucesso, as universidades entraram em decadência, ainda que a maioria das pessoas não consigam perceber. O conhecimento foi institucionalizado, os grandes teóricos se tornaram escassos, a hierarquia acadêmica substituiu o livre pensamento, as grandes teorias desapareceram. O resultado é que a ciência, embora tenha-se expandido como nunca na história, frustrou o homem.
De um lado ela fez muito e continua fazendo muito. Ela causou uma revolução tecnológica no mundo extrapsíquico e até mesmo no corpo hu­mano, através dos avanços da medicina. Ela revolucionou o mundo exte­rior, o mundo de fora do homem, mas não revolucionou o mundo intrapsíquico, o mundo de dentro do homem, o cerne da sua alma. Ela levou o homem a conhecer o imenso espaço, mas não sabe como prevenir as doenças psíquicas e psicossomáticas, bem como os homicídios e os suicí­dios. Ela produziu veículos automotores facilmente dirigíveis, mas não pro­duziu veículos psíquicos capazes de levar o homem a gerenciar seus pensa­mentos negativos e a proteger sua emoção nos focos de tensão. Ela produ­ziu máquinas para arar a terra e cultivar alimentos, mas não produziu prin­cípios psicológicos e sociológicos para "arar" a rigidez intelectual humana e cultivar a tolerância, a preocupação com o outro, o prazer de viver, o sentido No século XIX e principalmente no século XX, a ciência teve um de­senvolvimento explosivo. Alicerçado na ciência, o homem se tornou ousa­do em seu sonho de progresso e modernidade. A ciência se tornou o deus do homem. Ela prometia conduzi-lo a dar um salto nos amplos aspectos da prosperidade biológica, psicológica e social. A solidariedade cresceria, a cidadania floresceria, a solidariedade seria a tônica das relações sociais, a riqueza material se expandiria e atingiria todo ser humano, a miséria social seria extinta. As guerras, as discriminações e as demais violações dos direi­tos humanos seriam lembradas apenas nas páginas da história.
A ciência fazia uma grande e espetacular promessa. Era uma promessa não expressa por palavras, mas, ainda assim, era forte e arrebatadora. Era uma promessa sentida a cada momento que a ciência dava um salto espe­tacular na engenharia civil, na mecânica, na eletrônica, na medicina, na genética, na química, na física. A expansão do conhecimento se tornava incontrolável. Cada ciência se multiplicava em novas ciências. Cada viela do conhecimento se expandia e se tornava bairros inteiros de informações. Encontrava-se um microcosmo dentro das células. Descobria-se um mundo dentro dos átomos. Compreendia-se um mundo com bilhões de galáxias que pulsava no espaço.
As universidades foram fundamentais nesse processo. Elas se tornaram a força motriz do desenvolvimento humano. Porém, com o passar do tem­po, como aconteceu com as grandes instituições que atingiram o topo do sucesso, as universidades entraram em decadência, ainda que a maioria das pessoas não consigam perceber. O conhecimento foi institucionalizado, os grandes teóricos se tornaram escassos, a hierarquia acadêmica substituiu o livre pensamento, as grandes teorias desapareceram. O resultado é que a ciência, embora tenha-se expandido como nunca na história, frustrou o homem.
De um lado ela fez muito e continua fazendo muito. Ela causou uma revolução tecnológica no mundo extrapsíquico e até mesmo no corpo hu­mano, através dos avanços da medicina. Ela revolucionou o mundo exte­rior, o mundo de fora do homem, mas não revolucionou o mundo intrapsíquico, o mundo de dentro do homem, o cerne da sua alma. Ela levou o homem a conhecer o imenso espaço, mas não sabe como prevenir as doenças psíquicas e psicossomáticas, bem como os homicídios e os suicí­dios. Ela produziu veículos automotores facilmente dirigíveis, mas não pro­duziu veículos psíquicos capazes de levar o homem a gerenciar seus pensa­mentos negativos e a proteger sua emoção nos focos de tensão. Ela produ­ziu máquinas para arar a terra e cultivar alimentos, mas não produziu prin­cípios psicológicos e sociológicos para "arar" a rigidez intelectual humana e cultivar a tolerância, a preocupação com o outro, o prazer de viver, o sentido da vida. Ela produziu máquinas computadorizadas que executam tare­fas intelectuais rápidas e brilhantes, mas não produziu mecanismos para que o diálogo e a solidariedade sejam usados como ferramentas para solu­cionar as crises humanas e prevenir não apenas os conflitos interpessoais que vertem as lágrimas, mas também as guerras que vertem o sangue.
A ciência não causou a tão sonhada revolução da qualidade de vida e da preservação dos direitos humanos. O homem do terceiro milênio se sentiu frustrado, perdido, confuso, sem âncora intelectual para se segurar. Se as universidades não revirem seus pilares e paradigmas fundamentais continuaremos a não multiplicar a arte de pensar e o mundo das idéias, continuaremos a ter um conceito deturpado sobre o que é um ser que pensa, o que é ser um intelectual, o que é ser uma pessoa inteligente e quais as funções mais importantes da inteligência.

A PESQUISA EMPÍRICA ABERTA GEROU A TEORIA MULTIFOCAL

Pesquisa empírica é a pesquisa que interpreta os seus objetos de estudo. Neste livro, toda pesquisa científica é chamada de "empírica", pois todos os objetos e fenômenos de estudos das ciências, tanto das ciências físicas, quí­micas e biológicas como das ciências da cultura (Psicologia, Educação, Direito) são essencialmente inacessíveis à consciência intelectual e, portan­to, precisam ser interpretados para serem conscientizados nos palcos cons­cientes da mesma.
Os objetos e fenômenos intrapsíquicos (idéias, reações fóbicas, humor deprimido) e extrapsíquicos (células, reações químicas, materiais) são sem­pre inacessíveis essencialmente. Porém, a grande maioria dos objetos e fenômenos extrapsíquicos têm uma grande vantagem em relação aos intrapsíquicos, ou seja, são tangíveis ou perceptíveis sensorialmente, seja pela simples observação ou por utilização de técnicas e instrumentos, por isso são passíveis de serem controlados. Chamo as pesquisas nas ciências físicas, químicas e biológicas de "pesquisas empíricas controladas". São "empíricas" porque são frutos do processo de interpretação e, conseqüen­temente, a produção de conhecimento decorrente das mesmas apenas acu­sa e discursa dialeticamente sobre os fenômenos e os objetos interpretados, mas não os incorpora essencialmente. São controladas porque são tangíveis sensorialmente, e as variáveis que norteiam seus objetos e fenômenos, tais como luminosidade, temperatura, umidade etc, são passíveis de ser con­troladas por técnicas e instrumentos no processo de pesquisa.
Nas ciências da cultura, as pesquisas são chamadas de "pesquisas empíricas abertas". São "empíricas" porque são frutos do processo de inter­pretação e, conseqüentemente, a produção de conhecimento derivada das mesmas apenas discorre teoricamente sobre os fenômenos psíquicos e psicossociais interpretados, mas não os incorpora essencialmente. São "aber­tas" porque seus fenômenos de estudo, além de ser imperceptíveis sensorialmente, as variáveis que os envolvem não são controladas no processo da pesquisa. Não há técnicas nem instrumentos que possam investigar a essência intrínseca da ansiedade, do desespero, da insegurança, dos senti­mentos de prazer, das idéias etc, nem que possam controlar as variáveis que participam da construção delas. No máximo, pode-se observar siste­mática e criteriosamente o comportamento humano; mas eles são expres­sões pobres, restritivas, das complexas experiências psíquicas; ou então fazer um processo de introspecção aberta e crítica para observar, também criteriosa e sistematicamente, os processos e fenômenos envolvidos na cons­trução dos pensamentos.
Hoje é também possível fazer pesquisas sobre bioquímica e fisiologia cerebral dentro dos limites da bioética, principalmente com pacientes por­tadores de patologias neurológicas e psiquiátricas ou com animais, visando transpor o conhecimento do sistema nervoso central deles para o homem. Ainda é possível fazer o mapeamento cerebral pela cintílografia com­putadorizada e por outras técnicas de ponta. Porém, todas essas técnicas trazem pouquíssimas evidências sobre o complexo campo de energia psí­quica e a sofisticada operacionalidade multifocal dos fenômenos que pro­movem o funcionamento da mente.
A construtividade dos pensamentos e da consciência existencial é com­plexa e multivariável. A inteligência não sofre apenas uma influência da carga genética, do metabolismo dos neurotransmissores, dos fatores socioculturais e emocionais; sua construtividade é muito mais complexa do que até hoje a ciência tem descoberto.
Há mais de três dezenas de variáveis que co-interferem na construção da inteligência, dificílimas de ser investigadas, e que fazem mesmo o mais simples pensamento ter uma arquitetura psicodinâmica indescritível. Dian­te de todos esses entraves no processo de pesquisa sobre a psique humana, é possível ter uma idéia de por que há tantas teorias psicológicas, filosófi­cas, sociológicas, psicopedagógicas tão diferentes umas das outras.
Todos esses entraves evidenciam a necessidade de usar na "pesquisa empírica aberta" procedimentos mais amplos e complexos do que os pro­cedimentos ortodoxos usados na pesquisa acadêmica, tais como a simples utilização de uma teoria como suporte da interpretação, os levantamentos bibliográficos, o estabelecimento de postulados prévios, as aplicações metodológicas, a seletividade de dados e a análise unifocal dos mesmos.
Precisamos usar procedimentos, tais como a "tríade de arte da pesqui­sa", a análise das variáveis da interpretação, a análise dos sistemas das variáveis, que co-interferem para gerar os processos de construção da inte­ligência, a busca do caos intelectual, para que possamos expandir o mundo das idéias sobre o funcionamento da mente e o processo de construção dos pensamentos. A pesquisa empírica aberta abre as janelas de nossa inteli­gência.


Capítulo 3

A Memória e os Três Tipos de Pensamentos


O HOMO INTERPRES E O INTELLIGENS

Homo interpres é o homem inconsciente, representado pelos territó­rios da memória e pelo conjunto de fenômenos inconscientes que produzem o funcionamento da mente humana, dos quais destaco os fenômenos RAM, da psicoadaptação, da autochecagem, da âncora da memória, do autofluxo. Como estudaremos, eles são responsáveis pelo re­gistro das informações na memória, pela leitura da mesma e pela constru­ção das cadeias de pensamentos e das reações emocionais.
Homo intelligens é o homem consciente, representado pelo eu, o grande fenômeno consciente da inteligência. Através do eu, temos a consciência existencial, ou seja, a consciência de que existimos e de que há um mundo que existe e pulsa ao nosso redor. Além disso, temos a consciência de que pensamos e nos emocionamos e podemos administrar os pensamentos e as emoções.
O Homo intelligens é resultado do Homo interpres, pois todos os fenôme­nos que produzem a nossa consciência são inconscientes. Para confirmar esse fato, basta citar que não sabemos como penetramos nos labirintos da memória e resgatamos as informações que constituem os pensamentos cons­cientes.
O eu faz leitura da memória e constrói cadeias de pensamentos, porém, ao contrário daquilo em que até hoje a psicologia acreditou, a maioria dos pensamentos que diariamente produzimos não é produzida debaixo do controle consciente do eu, mas pelos complexos fenômenos que estão imersos no campo de energia inconsciente da alma humana.
O Homo interpres faz com que, freqüentemente, os processos de cons­trução dos pensamentos e da consciência existencial ultrapassem os limites da lógica. Por que o homem consciente é freqüentemente ilógico? Por que diante de pequenos problemas ele sofre grande impacto emocional e, as vezes, diante de grandes problemas mantém sua coerência e lucidez? Por que diante de uma pequena barata ou diante de elevador algumas pessoas têm reações fóbicas inadministráveis? O grande motivo desses paradoxos é que no seu território inconsciente há uma série de variáveis e fenômenos que ele não controla.
Quem controla todos os pensamentos produzidos no palco de nossa mente? E as emoções, quem consegue submetê-las plenamente ao governo de sua vontade? Podemos gerenciar o mundo mas é muito difícil adminis­trar a colcha de retalhos que constituem a nossa inteligência. A partir de agora, vamos estudar o cerne do funcionamento da mente e, talvez, o maior de todos os espetáculos do universo: o espetáculo da construção dos pensa­mentos.

A MEMÓRIA

A memória é uma das estruturas mais misteriosas e fundamentais da inteligência humana. Grande parte dos textos que produzi sobre a memó­ria não será abordada neste livro. A localização anatômica da memória no córtex cerebral, bem como a fisiologia e bioquímica da mesma não perten­cem à minha área de pesquisa, mas às neurociências. Aqui estudaremos algo mais importante do que sua anatomia. Analisaremos os seus papéis, investigaremos a memória como suporte da construção da racionalidade, do mundo intelectual.
O senso comum confunde erroneamente memória com inteligência. Para ele, quem tem melhor memória ou melhor capacidade de lembrança é mais inteligente. Esse conceito é desprovido de fundamento, pois estuda­remos que, ao contrário do que milhões de educadores pensam, não existe lembrança. Não há lembrança das informações contidas na memória, mas reconstrução das mesmas. Esse fato rompe com um dos mais sólidos paradigmas que sustenta a educação clássica. Os professores enfileiram os alunos durante toda a vida escolar para lhes transmitir informações, tendo a falsa crença de que a memória é um depósito delas. Todavia, a memória simplesmente não tem essa função.
A memória armazena a história intrapsíquica, que é composta de mi­lhões de experiências de prazer, medo, apreensão, tranqüilidade, raiva, que temos durante toda nossa vida, iniciando pela vida intra-uterina. Entretanto, pelo fato de a memória armazenar os segredos de nossa história, pensamos ingenuamente que a função dela é funcionar como depósito de informações. Assim, cremos falsamente que a hora que quisermos podere­mos usá-las de maneira pura — como retirar uma roupa do armário ou um alimento da dispensa. Armazenamos as informações na memória, mas, quando as lemos e utilizamos, elas não são mais exatamente as mesmas informações. É como você colocar uma peça de roupa no armário e depois de uma semana, quando for utilizá-la, ela mudou de cor, encolheu ou au­mentou.
Temos de ter consciência de que a leitura da memória é uma das mais importantes variáveis que participam da construção da inteligência. Exis­tem dezenas de outras variáveis que também participam dessa leitura. Por isso, o resgate das informações, principalmente das experiências do passa­do carregadas de emoções, nunca é uma lembrança pura, mas uma recons­trução distinta, ainda que minimamente, dessas experiências. Retomare­mos esse assunto adiante.

O REGISTRO DAS INFORMAÇÕES

Como as informações se armazenam na memória? Como as complexas experiências emocionais, tais como a insegurança, o prazer e as reações fóbicas, se registram na memória e ficam disponíveis para serem resgata­das? Essas questões são fundamentais.
Cada informação ou experiência psíquica é armazenada na memória como um sistema de código físico-químico, que chamo de representação psicossemântica, RPS. As RPSs são sistemas de códigos físico-quimicos que representam o significado (semântica) ou conteúdo das experiências psí­quicas (pensamentos, idéias, raciocínios analíticos, ansiedades, angústias existenciais, prazeres) e das informações psíquicas (nomes, números, sím­bolos lingüísticos, símbolos visuais, fórmulas matemáticas).
As "informações psíquicas" são mais objetivas; por isso, as RPSs que as representam na memória são mais bem organizadas. Essas condições facili­tam a leitura e a recordação ou interpretação das mesmas, que normalmen­te são realizadas com menos distorções.
As "experiências psíquicas" são mais subjetivas e complexas; portanto, são menos organizadas, e sua reconstrução pela interpretação é realizada com mais distorção. Dentre as experiências psíquicas, os pensamentos exis­tenciais, as idéias, os raciocínios analíticos, enfim, as construções psicodinâmicas dos pensamentos são mais organizadas do que as transformações da energia emocional, o que facilita a leitura e a interpretação das mesmas com mais fidelidade em relação às experiências psíquicas originais, ou seja, em relação às experiências psíquicas que deram origem às RPSs iniciais.
As experiências emocionais e motivacionais são complexas e difíceis de ser organizadas em sistemas de códigos físico-químicos; por isso, suas leituras e reconstrução pela interpretação são passíveis de ser recordadas ou reconstruídas interpretativamente com muitas distorções. Como organi­zar adequadamente, em sistemas de códigos físico-químicos, uma comple­xa experiência fóbica, uma angústia decorrente de algum problema exis­tencial ou uma experiência de prazer? As RPSs das experiências emocionais e motivacionais são sempre redutoras e simplistas em relação às mesmas.
A trajetória de pesquisa e produção de conhecimento sobre a memó­ria, do ponto de vista psicológico, psicodinâmico e psicossocial, inclui:
1. A qualidade e quantidade das RPSs, representações psicossemânticas das experiências psíquicas, arquivadas na memória.
2. As RPSs diretivas, ou seja, relacionadas diretamente com o estímulo interpretado.
3. As RPSs associativas, ou seja, relacionadas associadamente com o estímulo interpretado.
4. A lógica do processo de arquivamento das matrizes dos pensamen­tos essenciais.
5. As dificuldades de organização lógica do processo de arquivamento das experiências emocionais e motivacionais.
6. A morte do "eu sou" gerando o "fui histórico", ou seja, o caos psicodinâmico descaracterizando as experiências psíquicas do passa­do e arquivando-as na memória, para formar a história intrapsíquica.
7. A atuação do fenômeno RAM — registro automático da memória — produzindo um processo espontâneo e inevitável de formação da história intrapsíquica. A preferência do fenômeno RAM por registrar privilegiadamente as experiências que tenham mais tensão.
8. A redutibilidade da complexidade das experiências psíquicas, tais como as idéias, as análises, as angústias existenciais, as inseguranças, as reações fóbicas, etc, no processo de arquivamento fisico-químico das mesmas na memória e na conseqüente produção das RPSs. Por exemplo, uma RPS físico-química que representa uma angústia exis­tencial, vivenciada num determinado período histórico, é muito po­bre era relação à realidade da experiência em si.
9. Os mecanismos psicodinâmicos que promovem os níveis de estabili­dade e de disponibilidade histórica das RPSs, tais como: a qualidade dos estímulos da interpretação; a qualidade do processo de interpre­tação do observador num determinado momento; a qualidade dos impactos psicodinâmicos intelecto-emocionais das experiências re­sultantes do processo de interpretação; as condições psicodinâmicas de arquivamento dessas experiências como RPSs na memória e freqüência dos resgates da construção das RPSs, etc.
10. A descaracterização das RPSs na memória.
11. A interpretação das RPSs.
12. Os sistemas de relações existentes entre os códigos físico-químicos das RPSs e as experiências psíquicas.
13. Os sistemas de relações existentes entre os códigos físico-químicos da memória e os estímulos extrapsíquicos.
14. O processo de construção da história intrapsíquica na memória do feto.
15. O processo de construção da história intrapsíquica na memória na vida extra-uterina.
16. A leitura da memória pelos quatro fenômenos que fazem a leitura da mesma.
17. Os deslocamentos psicodinâmicos da âncora da memória nos seus territórios permitem a leitura, numa determinada circunstância psicossocial, de um grupo de RPSs diretivas e associativas para o fenômeno da autochecagem, do autofluxo e o eu construírem as matrizes dos pensamentos essenciais históricos.
Os pontos psicológicos, psicodinâmicos e psicossociais relativos à me­mória são muito complexos, semelhantemente aos pontos relativos aos pro­cessos de construção dos pensamentos. Por isso, seriam necessários muitos livros para abrangê-los todos.
Como podemos perceber através de todos estes pontos, a abordagem da memória é muito mais complexa do que os conceitos neurocientíficos relacionados com a memória de curto prazo e a memória de longo prazo.4 Deixarei de lado o uso da memória de longo prazo e de curto prazo por não considerá-lo adequado.

A MEMÓRIA EXISTENCIAL E A MEMÓRIA DE USO CONTÍNUO FORMANDO A HISTÓRIA INTRAPSÍQUICA

Existem dois tipos de memória. A memória existencial (ME) e a memó­ria de uso contínuo (MUC). Essas duas memórias formam a totalidade da história intrapsíquica de um ser humano, contendo, portanto, todos os se­gredos de sua vida. A memória existencial representa as experiências que vão sendo registradas ao longo da vida e a memória de uso contínuo representa as informações que vão sendo usadas e rearquivadas continuamente, tais como os endereços das residências e dos e-mails, os números telefôni­cos, as fórmulas matemáticas, as palavras que compõe uma língua. Por que conseguimos nos "lembrar" de maneira mais exata de determinadas infor­mações? Porque elas são usadas continuamente e, conseqüentemente, são novamente arquivadas, ficando mais disponíveis para serem lidas. Se dei­xarmos de usar determinadas informações, elas vão sendo substituídas e arquivadas na memória em zonas de acesso mais difícil.
Na base do desenvolvimento da dependência de drogas, das fobias, dos transtornos obsessivos e da síndrome do pânico existe uma produção contínua de idéias e experiências emocionais semelhantes, que vão sendo arquivadas em zonas privilegiadas da memória de uso contínuo, ficando, assim, mais disponíveis para serem lidas e, conseqüentemente, para repro­duzir novamente um desejo compulsivo por usar a droga, uma reação fóbica, uma idéia obsessiva ou precipitar um novo ataque de pânico.
O processo de arquivamento da memória humana não é segmentado como nos computadores. Nestes, os arquivos são segmentados e as infor­mações são arquivadas em sistemas de códigos ou endereços. Nos compu­tadores procuramos as informações através de rígidos e engessados siste­mas de códigos, da mesma forma como procuramos um livro numa biblio­teca. Na memória humana não ocorre assim, sua leitura não é unidirecional, mas multifocal. Nela, ao contrário dos computadores, os arquivos têm ca­nais de comunicação entre si. Além disso, o registro das informações é feito por um complexo sistema de significado ou conteúdo (representação psicossemântica- RPS). É como se pudéssemos entrar em diversos livros de uma biblioteca e utilizarmos o conteúdo deles ao mesmo tempo.
O sistema de leitura da história intrapsíquica é tão complexo, que uma pequena flor, um estímulo tão simples, pode nos levar ao passado e nos fazer resgatar momentos ricos de nossa infância que, aparentemente, não têm nada a ver com a anatomia da flor que está diante dos nossos olhos. Nos computadores, o estímulo da flor nos induziria a resgatar apenas a fauna, mas na memória humana ela pode nos induzir a resgatar as brinca­deiras, os momentos ingênuos, os passeios singelos e despreocupados. Do mesmo modo, um pequeno gesto de uma pessoa pode nos levar a ter reações de alegria, apreensão ou ansiedade, pois nos remete à leitura da memória que resgata conteúdos importantes de nossa história.
Lembro-me de duas educadoras que tinham reações fóbicas intensas diante de uma lagartixa. Uma delas tinha reações psicossomáticas dramáti­cas diante deste animal, desencadeava crises de vômitos. O problema não era mais a lagartixa, mas o monstro que ela criou dentro dela, ou seja, a representação ou significado deste animal que ela criou na sua memória.

O PASSADO NÃO É LEMBRADO, MAS RECONSTRUÍDO

Os processos de construção da inteligência desencadeados pela leitura da história intrapsíquica, principalmente pela memória existencial, são tão complexos que, ao estudá-los, compreendemos que não existe a "recor­dação" ou "lembrança" original das experiências do passado, mas uma interpretação em que reconstruímos essas experiências no palco de nos­sas mentes.
Não nos lembramos das experiências originais do passado; sempre re­construímos interpretativamente essas experiências a partir da leitura multifocal da história intrapsíquica e dos sistemas de variáveis intrapsíquicas do presente que atuam psicodinamicamente nessas experiências.
Nunca recordamos nem nos lembramos da essência das nossas dores emocionais, das nossas angústias existenciais, das nossas idéias etc, mas, como disse, as reconstruímos na mente. A história existencial (intrapsíquica) está morta essencialmente na memória. Para que ela possa ser utilizada na confecção das cadeias de pensamentos, nas transformações da energia emocional, ela tem de ser reconstituída (reconstruída) essencialmente. Tais reconstruções pela interpretação são passíveis de inúmeras distorções.
A realidade essencial das experiências psíquicas do passado sofreram o caos psicodinâmico. A medida que isso aconteceu, elas sofreram, ao mes­mo tempo, um processo de registro físico-químico na memória, gerando as RPSs. Quem registra automaticamente as experiências do passado? O fe­nômeno RAM. Ele, à medida que os pensamentos e as emoções são construídos no palco de nossas mentes, registra-os na memória do córtex cerebral, em forma de sistemas de códigos físico-químicos. Assim surgem as RPSs, que são representações físicas das experiências psíquicas. As RPSs são sistemas de códigos decorrentes, provavelmente, de arranjos eletrôni­cos ou atômicos em determinados sítios do córtex cerebral, onde se locali­za a memória, tais como complexo amigdalóide, o hipocampo, o sistema límbico,5 etc.
As RPSs são sistemas de códigos físico-químicos que representam semanticamente as experiências psíquicas que sofreram o caos psicodinâmico ao longo do processo de formação da personalidade. Porém, as RPSs, como arranjo físico-químico, seja atômico, eletrônico ou qualquer outro sistema de código, são e serão sempre "pobres", restritivas, em relação à experiên­cia original.
O primeiro beijo, o primeiro diploma, o primeiro desafio, o primeiro salário, a primeira derrota, nunca mais são resgatados de maneira pura, de maneira tão intensa. Toda "recordação" tem um débito emocional em rela­ção à experiência original. Embora esse assunto talvez nunca tenha sido estudado na psicologia, ele está no âmago do processo de formação da personalidade.
Os melhores momentos de prazer, bem como as mais amargas expe­riências de dor emocional, de solidão, de desespero e de ansiedade, foram registradas como sistemas de códigos físicos "frios", que precisarão dos fenômenos que lêem a memória para serem reconstruídos interpre­tativamente no campo da energia psíquica e assim ganharem "vida", reali­dade psíquica. Assim, tais sistemas de códigos saem da condição física do córtex cerebral para conquistar energia psíquica. Por que a memória é redutora e contraidora das experiências do passado, da história existen­cial? Porque o objetivo fundamental da memória é ser utilizado para pro­duzir continuamente novas experiências, idéias, pensamentos e emoções, e, assim, promover e até provocar a evolução psicossocial, o desenvolvi­mento da personalidade, da construção da inteligência como um todo.
Já pensou se pudéssemos resgatar o passado exatamente como ele é e se tivéssemos, ainda, a capacidade plena de lembrar de todas as experiên­cias contidas na memória? Isso poderia paralisar a produção de novas ex­periências, o que engessaria o desenvolvimento da inteligência.
Tem de haver a morte ou o caos do "eu sou", ou seja, da realidade das experiências psíquicas do presente, tais como os raciocínios analíticos, as idéias, as angústias existenciais, as ansiedades, os prazeres, etc, para que surja o "fui histórico", ou seja, para que ocorra o processo de registro des­sas experiências e se produza, conseqüentemente, a formação da história passada. A experiência mais bela que temos hoje tem de morrer, se de­sorganizar e ser armazenada fisicamente no córtex cerebral. Notem que nem mesmo o momento mais feliz de nossa vida dura mais do que horas ou dias.
O caos do "eu sou" expande a história intrapsíquica, ou seja, a descaracterização das experiências do presente expande o registro da me­mória. Para que possamos enriquecer nossa capacidade de pensar e de sentir do presente, precisamos enriquecer nossa memória. Todavia, para enriquecer a memória, os pensamentos e as emoções do presente têm que "morrer" e se registrar nela. "Morrendo", descaracterizando-se, eles abrem espaços para novas leituras da memória e para a produção de novos pensa­mentos e emoções.
A morte do presente é a única possibilidade de expansão do próprio presente, de enriquecimento do "eu sou", pois o presente se alimenta das informações. Se essas não forem acumuladas na memória, se paralisaria a evolutividade intelecto-emocional.
Notem que aprendemos milhões de informações na escola, mas quan­do adultos somos capazes de, no máximo, lembrar de milhares delas. O objetivo da memória não é dar um excelente suporte para que se processe a lembrança pura das experiências e das informações passadas, mas supor­te para produzir novas experiências e informações a partir da leitura do passado. Por isso, grande parte das informações se perde, o que fica é seu conteúdo, seu significado, que funcionarão como tijolos para novas cons­truções intelectuais.
O "eu sou" (as experiências do presente) sofre o caos psicodinâmico, desorganiza sua essência e simultaneamente registra-se na memória, tor­nando-se o "fui histórico", ou seja, a história intrapsíquica. Num processo de retorno ou rebote existencial, o "fui histórico" influencia o "eu sou", ou seja, os processos de construção da inteligência no momento existencial do presente. Porém, o "eu sou" tem dimensões distintas em relação ao fui histórico (o passado); ele representa o fui histórico somado às variáveis intrapsíquicas do presente. Assim, a cada momento da existência, o "eu sou" está experimentando o caos e se tomando o fui histórico, e renascen­do ou reorganizando-se como um "novo eu sou", expandindo as possibili­dades de construção das experiências e promovendo o processo de evolu­ção psicossocial do homem.
A realidade das dores, alegrias e ansiedades do passado findou-se e se tornou a história; a história, uma vez lida, renasce e participa da realidade do presente. Essa abordagem, mais uma vez, expressa a importância da união da Psicologia com a Filosofia num mesmo corpo teórico para com­preendermos o homem total.
Nossas idéias, emoções, análises estão sempre evoluindo no processo existencial, ainda que essa evolução não seja qualitativa. Na gênese das ansiedades há uma leitura contínua de determinadas zonas da memória que produzem reações ansiosas, que são descaracterizadas e registradas novamente, retroalimentando as áreas doentias de nossa história.
Ao contrário dos computadores, uma das mais marcantes características da mente humana não é a lógica, nem a mesmice intelectual nem a estabili­dade intocável, mas a evolução, a distinção, a diferenciação na produção intelectual. Todos gostaríamos de ter a lógica e a habilidade dos computado­res em resgatar informações da memória, mas se tivéssemos tal habilidade os computadores não existiriam, pois a inteligência humana não se desenvolve­ria e, portanto, não seria capaz de construí-los. O grande paradoxo é que só uma mente que não é estritamente lógica, como é a mente humana, poderia construir máquinas lógicas como a dos computadores.
Se a energia psíquica não estivesse num fluxo vital de transformações essenciais, em que se organiza, desorganiza e reorganiza continuamente, não haveria o homem pensante, não haveria a evolução intelectual da espé­cie humana.
A leitura das RPSs contidas na memória e a organização instantânea dessas RPSs na formação das cadeias das matrizes dos pensamentos essen­ciais e, conseqüentemente, na produção das experiências emocionais e na construção de pensamentos conscientes (dialéticos e antidialéticos) não é uma reprodução das experiências originais, não é uma recordação ou lem­brança essencial dessas experiências, mas uma interpretação do passado.
As cadeias de pensamentos essenciais, dialéticos e antidialéticos, bem como as experiências emocionais e motivacionais produzidas pelo resgate das RPSs, podem ter grande ou pouca relacionalidade com a realidade das experiências psíquicas vivenciadas no passado.
A cada momento em que resgatamos e reconstruímos uma experiência do passado, nós o fazemos de maneira diferente, com proximidade ou grande distanciamento em relação às dimensões intelecto-emocionais da experiência original. É por esse motivo que nossas recordações da interpre­tação reproduzem de maneira diferente as experiências do passado nos diversos momentos em que as recordamos. Em determinado momento, podemos recordar uma experiência de angústia existencial vivenciada no passado, ligada a uma perda, a uma frustração psicossocial ou a uma difi­culdade socioprofissional etc, e ficarmos comovidos com ela e, em outro momento, podemos recordá-la sem grandes emoções. Uma mãe pode re­cordar a perda de um filho com grande sofrimento num determinado mo­mento e, em outro momento, recordá-la sem grandes dores emocionais.
A experiência original e a freqüência da reconstrução das experiências passadas e a qualidade desses resgates formam as complexas tramas de RPSs que influenciarão na qualidade das novas recordações a serem pro­duzidas no futuro. Esse complexo mecanismo psicodinâmico e psicossocial, associado à atuação do fenômeno da psicoadaptação (a ser estudado), gera a diminuição dos níveis de intensidade emocional, seja de sofrimento ou de prazer, dos resgates das experiências emocionais. Assim, com o passar do tempo, todos os prazeres decorrentes das premiações (Oscar, Nobel, Grammy, títulos acadêmicos, títulos esportivos etc), dos elogios e dos bons momentos da vida, bem como todos os sofrimentos e todas as angústias decorrentes das perdas, frustrações, estímulos estressantes etc, diminuem de intensidade à medida que se processam os resgates da construção des­sas experiências. Se não ocorressem esses mecanismos, gravitaríamos em torno das experiências do passado e não promoveríamos uma revolução na construção de novas idéias que estimulariam o processo de formação da personalidade e o processo de evolução da história social do homem.
Quando uso neste livro a expressão "recordar o passado" ela não deve ser entendida, como foi dito, como uma reprodução original das experiên­cias do passado, mas uma reconstrução da interpretação, ou melhor, uma interpretação realizada a partir da leitura e manipulação das RPSs, contidas na história intrapsiquica que formam as matrizes dos pensamentos essen­ciais. A leitura da história intrapsiquica, a formação das matrizes dos pensa­mentos essenciais e a atuação psicodinâmica dessas matrizes sofrem in­fluência das variáveis intrapsíquicas do presente, tais como o fenômeno da psicoadaptação, a energia emocional e motivacional presente no momento da leitura da história intrapsiquica, o fenômeno da credibilidade autógena.
A história intrapsiquica, contida na memória, e a história social, contida nos livros, nos museus, na arquitetura, são irrevogáveis na sua essência original; ambas são invariavelmente interpretadas e reconstruídas nos bas­tidores da psique humana.
Embora os conceitos e postulados da neuroanatomia, da neurofisiologia e da bioquímica cerebral das neurociências, referentes à memória, sejam importantes e passíveis de serem usados na compreensão de algumas va­riáveis que participam do processo de construção da história intrapsiquica e dos demais processos da inteligência, é preciso avançar muito na compre­ensão da memória. Precisamos pesquisar e procurar compreender as com­plexas e sofisticadas esferas psicológicas, psicodinâmicas e psicossociais li­gadas à memória.
Todo ser humano que possui uma memória preservada, capaz de ar­mazenar as experiências psíquicas (construções psicodinâmicas) produzi­das pelos processos de construção da psique em forma de RPS (representa­ções psicossemânticas) desenvolverá, paulatinamente, ao longo do seu pro­cesso existencial, sua história intrapsiquica.
A qualidade da história intrapsiquica dependerá "diretamente" da qua­lidade das RPSs, que dependerá "diretamente" da qualidade das constru­ções psicodinâmicas, que dependerá "parcialmente" da qualidade dos estí­mulos socioeducacionais e do gerenciamento do eu sobre os processos de construção da inteligência.
Analisaremos que o gerenciamento do eu sobre os processos de cons­trução dos pensamentos possui limitações. Agora, a respeito dos estímulos socioeducacionais nos processos de construção dos pensamentos, a relação qualitativa entre eles com as construções psicodinâmicas (experiências psí­quicas) e, conseqüentemente, com a formação da história intrapsiquica, não é completa, mas parcial, pois dependerá da ação psicodinâmica de múltiplas variáveis intrapsíquicas. Por isso, um pai alcoólatra, agressivo e socialmente alienado poderá gerar dois filhos com personalidades total­mente distintas, pois a cada momento da interpretação eles possuem variá­veis intrapsíquicas qualitativamente diferentes, que interpretarão os estímu­los advindos do pai de maneira diferente, gerando construções psico-dinâmicas diferentes; que se arquivarão em suas memórias como RPSs diferentes; que produzirão histórias diferentes; que sofrerão leituras multifocais e financiarão a produção de matrizes de pensamentos essen­ciais diferentes; que sofrerão um processo de leitura virtual e produzirão pensamentos dialéticos e antidialéticos diferentes; que, finalmente, estimu­larão e redirecionarão o desenvolvimento da personalidade por trajetórias diferentes.
Todos esses complexos mecanismos ocorridos nos bastidores da mente poderão levar um filho a desenvolver uma personalidade que reproduz algumas características do pai alcoólatra, tais como o alcoolismo, reações agressivas, indiferença quanto às responsabilidades socioprofissionais etc, e outro filho a desenvolver uma personalidade totalmente diferente da dele, podendo ser avesso a bebidas alcoólicas ou ingeri-las com controle e ser emocionalmente dócil e tranqüilo.
O processo de interpretação, os processos de construção dos pensa­mentos, o processo de leitura da memória e os sistemas de variáveis intrapsíquicas existentes nos bastidores da mente são tão complexos que podem reduzir, abortar ou mesmo redirecionar as possíveis influências ge­néticas que poderiam contribuir para o desenvolvimento do alcoolismo e demais doenças psíquicas, tais como a depressão, a psicose maníaco-depressiva, os transtornos obsessivo-compulsivos etc.

OS PENSAMENTOS DIALÉTICOS

Os pensamentos dialéticos são conscientes, lógicos (embora possam, ser usados em análises ilógicas), bem organizados em cadeias psicodinâmicas, bem definidos psicolingüisticamente, gerenciados com facilidade pelo eu e, por isso, são utilizados com freqüência na análise, na síntese das idéias, nos discursos teóricos, na produção científica, na produção tecnológica, nas relações sociais. Os pensamentos dialéticos são expressos com facilida­de na comunicação social e interpessoal, pois são facilmente codificados pelo sistema nervoso central e pelo aparelho fonador; por isso são chama­dos aqui de "pensamentos dialéticos". Os pensamentos dialéticos, no en­tanto, têm dimensões muito maiores do que a expressa pela comunicação social e interpessoal através da verbalização. Por isso, freqüentemente, te­mos a sensação de que as palavras não conseguem expressar o conteúdo dos nossos pensamentos, das nossas idéias. A dimensão das idéias é maior do que a dimensão das palavras.
Os pensamentos dialéticos são psicolingüisticamente organizados e de­finidos porque a mente utiliza, ao longo do processo de formação da personalidade, os símbolos sonoros da linguagem verbalizada para constituí-los em códigos, para mimetizá-los psicolingüisticamente. A psicolingüística dos pensamentos dialéticos, que, as vezes, se parece com um som inaudível na mente, não é obviamente um som e nem tem a restritividade física dos símbolos sonoros produzidos pelas ondas sonoras mecânicas.
Os pensamentos dialéticos surgem a partir do processo de leitura vir­tual das matrizes dos pensamentos essenciais, que são pensamentos incons­cientes. Assim, o nascedouro dos pensamentos dialéticos, que são os pensa­mentos mais conscientes da mente, ocorre a partir dos pensamentos essen­ciais inconscientes.
O processo de leitura virtual das matrizes dos pensamentos essenciais é realizado por um fenômeno intrapsíquico, chamado de fenômeno LVD ou fenômeno da leitura virtual dialética. A leitura das matrizes de pensamen­tos essenciais pelo fenômeno LVD gera as cadeias psicodinâmicas dos pen­samentos dialéticos, conferindo-lhes um formato psicolingüístico conscien­te que mimetiza psicodinamicamente os símbolos sonoros. Desse fato, po­demos inferir que as matrizes dos pensamentos essenciais, ao serem construídas, já trazem na sua "estrutura psicodinâmica" arquivados na me­mória um sistema de relação lógica com os símbolos sonoros, que facilita o processo de leitura virtual do fenômeno LVD. Por isso, os pensamentos dialéticos possuem linearidade lógica, possibilitando sua utilização no de­senvolvimento da ciência e da racionalidade, embora seus processos de construção ultrapassem paradoxalmente os limites da lógica. Falaremos sobre esses sistemas de relação lógica quando estudarmos adiante os pen­samentos essenciais.
Lemos em milésimos de segundos a memória e produzimos as matrizes dos pensamentos essenciais inconscientes. Em milésimos de segundos de­pois, o fenômeno LVD faz um processo de leitura virtual dessas matrizes e gera os pensamentos dialéticos utilizados na comunicação interpessoal, na mídia, na literatura, na ciência. Tudo se passa tão rápido na mente, que não nos damos conta de como é que conseguimos ler a memória e produ­zir milhares de pensamentos dialéticos diariamente. Como já comentei, incorporamos nas cadeias de pensamentos dialéticos sujeitos, verbos, subs­tantivos, adjetivos etc, antes que tenhamos consciência deles. Como é pos­sível tal incorporação? Através das matrizes dos pensamentos essenciais inconscientes, o que prova a sua existência. Porém, diante disso, podemos inferir uma importantíssima pergunta psicossocial e filosófica: Pensamos o que queremos pensar ou apenas fazemos leituras virtuais dos pensamentos inconscientes, que são produzidos previamente sem a consciência crítica do "eu"? Se o pensamento consciente tem seu nascedouro no pensamento inconsciente, como o pensamento consciente tem controle sobre si mesmo? Até onde somos agentes históricos ou vítimas de processos que lêem a memória e constroem cadeias inconscientes de pensamentos sem a autori­zação do "eu"? É provável que as teorias psicológicas e filosóficas não en­traram nessas questões fundamentais. Creio que é impossível ter uma res­posta completa sobre esses assuntos, mas uma resposta parcial se encontra­rá nos meandros dos textos posteriores.
Quando pensamos sobre os mistérios que envolvem os processos de construção da ciência, ficamos estarrecidos com a nossa pobre e limitada ciência. Esta existe porque o homem pensa; mas quando a ciência resolve investigar a si mesma, sua origem como pensamento, ela enfrenta sua pró­pria debilidade e limitações.
Enquanto as cadeias de pensamentos essenciais são lidas pelo processo de leitura virtual, também é realizada uma leitura que identifica os símbo­los lingüísticos a serem usados na mimetização dialética. Os poliglotas têm que fazer, inclusive, uma opção de escolha do tipo de símbolos lingüísticos (língua) que usam em seus pensamentos. Por isso, afirmei que a leitura da história intrapsíquica arquivada na memória é multifocal. Porém, a versati­lidade, a liberdade criativa e a plasticidade construtiva das matrizes dos pensamentos essenciais, e das leituras virtuais dos pensamentos dialéticos, são muito mais expansivas, sofisticadas e complexas do que as produzidas pelas ondas mecânicas que constituem os símbolos sonoros.
Nas pessoas surdas, a mimetização psicolingüistica dialética é feita, ou pode ser feita, por símbolos visuais. Teoricamente, é possível produzir uma mimetização psicodinâmica a partir de estímulos mais "plásticos", "livres" e menos restritivos do que os produzidos a partir da linguagem verbalizada (símbolos sonoros) e da linguagem visual (símbolos visuais), pois o que importa no processo de leitura virtual é produzir uma mimetização psicodinâmica que possa dar uma movimentação psicolingüistica conscien­te aos pensamentos dialéticos. Quero dizer com isso, que é teoricamente possível ter uma psicolingüistica dos pensamentos dialéticos mais eficiente do que a que temos produzido e usado até hoje nas relações humanas e na produção científica. Seria bom que outros pesquisadores se dedicassem a descobertas de linguagens supradialéticas.
A mimetização psicodinâmica dos pensamentos dialéticos não é dada em si por eles, mas pelas matrizes de pensamentos essenciais históricos. A psicolingüistica dos pensamentos dialéticos é produzida a partir de uma sofisticada leitura virtual dessas matrizes.
Os pensamentos dialéticos são produzidos por uma leitura lógica das matrizes dos pensamentos essenciais e pela mimetização psicodinâmica dos símbolos físicos; por isso, são psicolingüisticamente bem-definidos e bem-traduzidos na verbalização. Os pensamentos antidialéticos são produzidos por uma leitura virtual mais difusa, provavelmente por outro fenômeno que não o LVD, ou então por um processo de leitura difusa desse fenôme­no. Por isso, pensamentos antidialéticos são psicolingüisticamente indefini­dos ou pouco definidos. Devido à psicolinguagem lógica dos pensamentos dialéticos e à facilidade com que o eu gerencia sua construtividade, elas são usadas na produção do conhecimento científico, do conhecimento coloqui­al, da comunicação verbal, na produção literária etc. De outro lado, devido à psicolinguagem dos pensamentos antidialéticos ser difusa, pouco defini­da e pouco administrada logicamente pelo eu, ela é utilizada mais para desenvolver as fantasias, a consciência do tempo, a consciência das dores emocionais, a consciência das inspirações, a consciência das angústias exis­tenciais, a consciência dos prazeres etc.
O pensamento antidialético define o indefinível, produz a consciência dos fenômenos que escapam à definição lógica dos pensamentos dialéticos. A produção de pensamentos antidialéticos freqüentemente fica "represa­da" na mente ou, às vezes, é traduzida pelas artes, pela pintura, escultura, música, teatro etc.
Os pensamentos antidialéticos também podem ser traduzidos pela co­municação verbal; porém, nesse caso, as imagens mentais, as fantasias, as "esculturas tempo-espaciais", a consciência das emoções etc, têm que ser formatadas pelos pensamentos dialéticos para depois serem verbalizadas. Nessa situação, dá para termos uma idéia da redutibilidade intelectual que os pensamentos dialéticos realizam quando tentam traduzir os pensamen­tos antidialéticos sobre as angústias existenciais, o prazer, a insegurança, a inspiração etc. Os pensamentos dialéticos reduzem as dimensões dos pen­samentos antidialéticos quando os traduzem dialeticamente e os canalizam pela verbalização. Essa abordagem evidencia que a consciência humana é construída por um intrincado sistema de códigos psicolingüísticos, um so­fisticado sistema de leitura desses códigos e um complexo processo de cointerferência entre os tipos de pensamentos.
Todos temos dificuldade para expressar dialeticamente os sofisticados e quase indescritíveis pensamentos antidialéticos. Freqüentemente, as "ca­deias psicodinâmicas dos pensamentos antidialéticos" são associadas e até mesmo "mescladas" com as "cadeias psicodinâmicas dos pensamentos dialéticos". Por isso, temos dificuldade para expressar toda a arquitetura psicodinâmica dos pensamentos que produzimos. Por isso também temos freqüentemente a sensação de que, apesar de termos abordado dialetica­mente, com tanto empenho, um determinado assunto, ainda ficou algo para dizer. Essa sensação de "algo não dito" é produzida, muitas vezes, pelos pensamentos antidialéticos que são difíceis de ser expressos. As pes­soas que vivenciam quadros dramáticos de depressão, síndromes do pânico, transtornos obsessivo-compulsivos etc, geralmente se frustram ao tentar expressar as dimensões da sua dor emocional e da sua angústia existencial, pois, além de conseguirem expressar dialeticamente muito pouco a cons­ciência antidialética de suas emoções, seus ouvintes, freqüentemente, re-constroem interpretativamente essas dores emocionais e angústias exis­tenciais de maneira reduzida e distorcida.
Os pensamentos dialéticos podem ser gerados tanto à deriva do eu, ou seja, sem a autorização do "eu" , sem a leitura desta pela história intrapsíquica, como podem ser construídos pelo determinismo do eu, pelo gerenciamento que ela exerce sobre os processos de construção dos pensamentos. Os pensamentos dialéticos construídos psicodinamicamente sob a autorização, determinismo lógico e controle do eu são mais organizados, mais adminis­trados, possuem uma base analítica mais profunda, têm uma cadeia psicodinâmica que considera mais os parâmetros da lógica e os referenciais históricos.
Os pensamentos dialéticos produzidos pelos demais fenômenos da mente são mais restritivos do ponto de vista analítico e dos parâmetros histórico-críticos. Os sonhos, produzidos pelo fenômeno do autofluxo (a ser estuda­do), possuem uma liberdade criativa e uma plasticidade construtiva riquíssima, mas sem uma base analítica sólida, sem parâmetros históricos passíveis de sofrer uma reciclagem crítica durante a construção das cadeias psicodinâmicas dos pensamentos dialéticos e antidialéticos.
Há uma rica interconexão entre os pensamentos dialéticos e antidialéticos produzidos pelos fenômenos inconscientes da mente e os pensamentos dialéticos e antidialéticos produzidos pelo gerenciamento do eu. Um pen­samento dialético e um antidialético produzidos pelo fenômeno do autofluxo ou pelo fenômeno da autochecagem da memória podem desencadear uma administração do eu, levando a uma continuidade da produção da cadeia psicodinâmica dos pensamentos. Porém, quando o eu dá continuidade às cadeias psicodinâmicas produzidas pelos demais fenômenos que lêem a memória, ele o faz através de uma construção mais analítica e histórico-crítica, ou seja, que considera mais os parâmetros da lógica e os referenciais históricos. Por exemplo, o fenômeno do autofluxo pode fazer uma leitura da memória e resgatar matrizes de pensamentos essenciais que, em última análise, poderão ser traduzidas dialeticamente e antidialeticamente como situações existenciais do passado, tais como uma experiência discriminatória, um grande elogio ou uma situação fóbica vivenciada na infância. Esses pensamentos dialéticos e antidialéticos podem desencadear a ação admi­nistrativa do eu que "atua construtivamente" nas cadeias psicodinâmicas dos pensamentos produzidos pelo fenômeno do autofluxo e, assim, acres­centar a elas a produção de novas idéias dialéticas e pensamentos antídialéticos, tais como crítica sobre os fatos envolvidos, resgate de causas, imaginação de personagens e circunstâncias etc.
Os processos de construção dos pensamentos envolvem, como enume­rei, pelo menos cerca de três dezenas de pontos sofisticados e complexos, muitos dos quais não poderão ser aqui comentados.

OS PENSAMENTOS ANTÍDIALÉTICOS

Os pensamentos antídialéticos são conscientes, embora nem sempre plenamente conscientes. Eles não são bem formatados psicolingüisticamente, ultrapassam freqüentemente os limites da lógica e necessitam da participa­ção estreita do fenômeno de uma credibilidade autógena para dar crédito conceituai aos mesmos. Devido à sua linguagem psíquica difusa, que advém mais da perceptividade da consciência do que da mimetização psicodinâmica dos símbolos sonoros e visuais, eu digo que eles têm uma antipsicolinguagem. Como disse, os pensamentos antídialéticos se expressam através de ima­gens mentais, conceitos difusos, fantasias, consciência das experiências emocionais e motivacionais.
No processo de formação da personalidade, primeiro se desenvolvem os pensamentos antídialéticos e, depois, pouco a pouco, o eu vai se organi­zando e aprendendo a produzir e gerenciar a construção de pensamentos dialéticos e exercer a difícil tarefa de traduzir e expressar dialeticamente o pool de pensamentos antídialéticos produzidos diariamente na mente. Toda criança deficiente mental que tem preservadas algumas áreas da memória tem uma rica construção de pensamentos antídialéticos; mas ela, depen­dendo do grau de comprometimento da memória e, conseqüentemente, do desenvolvimento da história intrapsíquica, poderá ter grande dificulda­de para organizar o eu e desenvolver o processo de gerenciamento sobre a construção de pensamentos dialéticos.
O grande desafio socioeducacional em relação às crianças deficientes mentais, que merecem o nosso mais profundo respeito e dedicação, é levá-las a organizar as cadeias psicodinâmicas dos pensamentos dialéticos se­gundo os critérios existentes nos parâmetros da realidade extrapsíquica e nos referenciais histórico-críticos contidos na memória. Os profissionais que cuidam de crianças deficientes mentais precisam catalisar as microrrevoluções das idéias existentes nos bastidores da mente das mesmas, visando expandir a formação da história intrapsíquica e o processo de construção dos pensamentos.
Os pensamentos antídialéticos são úteis para produzir complexas e difusas antecipações de situações do futuro, resgates de experiências passadas, imaginar circunstâncias existenciais e tempo-espaciais, desenvolver consciência sobre as angústias existenciais, a insegurança, as reações fóbicas, o prazer. Quando vivemos uma experiência fóbica ou sentimos angústia devido a algum problema existencial, temos consciência antídialética sobre essas experiências, mas não conseguimos descrevê-las dialeticamente com facilidade, ou seja, não conseguimos traduzi-las com facilidade pela lingua­gem psíquica dialética e, muito menos, traduzi-las pela verbalização; por isso, como disse, é comum termos a sensação de que não conseguimos nos expressar para os nossos ouvintes.
Há um verdadeiro "truncamento da comunicação" na tradução dialética dos pensamentos antidialéticos e na tradução antídialética das experiências emocionais e motivacionais. O "truncamento da comunicação" entre as experiências emocionais, a consciência antídialética dessas experiências e a tradução reduzida da consciência antídialética pelos pensamentos dialéticos e, conseqüentemente, pela verbalização e gesticulação, ocorre em todos os níveis das relações humanas, gerando as mais variadas incompreensões e até as mais variadas atitudes anti-humanísticas dos ouvintes. Os ouvintes freqüentemente não conseguem, através do processo de subjetivação deri­vado do processo de interpretação, reconstruir interpretativamente as di­mensões das idéias, da insegurança, da angústia existencial, das dores emo­cionais e do prazer que o "outro" vivência realmente dentro de si mesmo. Por isso, uma dramática experiência emocional, tais como um ataque de pânico ou uma reação claustrofóbica, pode ser compreendida pelo ouvinte ou pelo observador como se fosse uma banalidade emocional e não como uma reação de grande sofrimento.
O truncamento da comunicação ocorre também nas artes. Nelas, as obras dos artistas são sempre reduzidas em relação às obras antidialéticas arquitetadas psicodinamicamente nos bastidores e palcos conscientes das suas mentes. A construção dos pensamentos do autor é maior do que a expressão dessa construção, ou seja, do que sua obra, mesmo da sua obra-prima. Porém, costuma-se admirar mais a obra do que o autor porque a obra, construída nos meandros da mente do autor, logo experimenta o caos psicodinâmico, enquanto que a obra exterior do artista (escultura, pintura, obra literária etc.) resiste ao tempo e permanece em museus, em exposições. Por isso, tem-se a sensação de que a obra contemplada é mais sofisticada e completa do que a obra produzida nos meandros da psique humana.
O "truncamento da comunicação dialética-antidialética" ocorre tam­bém na relação psicoterapeuta-paciente. Muitos psicoterapeutas, pelo fato de não conhecerem as complexas relações entre a experiência emocional, a consciência antídialética e a consciência dialética, não conseguem desenvolver um processo de interpretação e, conseqüentemente, um proces­so de subjetivação da experiência do paciente mais condizente com o que ele é. Assim, não conseguem avaliar as dimensões da dor emocional e da angústia existencial do paciente, o que dificulta sua atuação como psicoterapeuta, catalisador e redirecionador do gerenciamento do eu do pacien­te sobre os processos de construção da inteligência e sobre os conflitos psicossociais e estímulos estressantes que vivência.
As relações médico-paciente, executivo-empregado, professor-aluno, pai-filho etc, estão saturadas de desencontros, de "truncamentos da comunica­ção dialética-antidialética". Já é uma tarefa difícil formatar os pensamentos antidialéticos que não têm uma psicolingüística definida e traduzi-los na linguagem dialética verbal; agora, imagine o leitor se o processo de interpre­tação do "outro", como geralmente acontece, for realizado superficial­mente... Essa é uma das maiores causas da violação histórica dos direitos humanos.
Na comunicação interpessoal, há uma redução e distorção nas dimen­sões da reconstrução do outro mais intensa e complexa do que podemos imaginar. Por isso, muitos pais, professores, executivos, psicoterapeutas etc, por não questionarem e reorganizarem continuamente seus processos de subjetivação decorrentes de seus processos de interpretação, pensam que estão dialogando com o "outro" e conhecendo-o, quando, na realidade, estão dialogando com eles mesmos, conhecendo a si mesmos. Por isso, o que falam ou pensam do outro se relaciona muito mais com o que são do que com o que o outro é.

OS PENSAMENTOS ESSENCIAIS

Os pensamentos essenciais são os pensamentos inconscientes que dão origem aos conscientes, ou seja, aos dialéticos e aos antidialéticos. Se os pensamentos conscientes são virtuais, portanto, destituídos de realidade, quem é que os forma? São os pensamentos essenciais. Uma vez que eles sofrem um processo de leitura virtual, eles dão origem a um dos mais fan­tásticos fenômenos da ciência: aos pensamentos conscientes.
Os pensamentos essenciais recebem esse nome porque se constituem da essência intrínseca da energia psíquica. Portanto, diferentemente dos pensamentos dialéticos e antidialéticos, que são de natureza virtual, eles são de natureza real, são constituídos de matrizes de códigos de energia psíquica. Só podemos investigá-los indiretamente através da pesquisa empírica aberta.
Hoje, talvez, já tenhamos pensado nos compromissos que teremos ama­nhã ou nos problemas que enfrentamos ontem. O tempo não existe, o amanhã e o ontem são produtos imaginários, virtuais, de nossas mentes. O que é virtual não pode ser produzido por si mesmo, pois é desprovido de realidade; como, então, produzimos os pensamentos imaginários? Na reali­dade, eles foram produzidos porque fizemos uma leitura da memória, gera­mos os pensamentos essenciais, que são sistemas de códigos "reais" de energia psíquica. Esses sistemas de códigos sofreram uma leitura virtual que, por sua vez, gerou os fantásticos pensamentos imaginários sobre os problemas de ontem e de amanhã.
Os pensamentos essenciais são produzidos através da leitura da história intrapsíquica realizada pelos fenômenos da autochecagem, do autofluxo, da âncora da memória e pelo eu. Toda vez que a memória é lida, ocorre a formação das matrizes dos pensamentos essenciais.
É um erro científico achar que os pensamentos dialéticos e antidialéticos sejam formados diretamente da leitura da memória. A leitura da memória não é simplesmente um resgate de informações, mas uma organização des­sas informações, e essa organização não é virtual, mas essencial, real. Por­tanto, as matrizes dos pensamentos essenciais, que são de natureza essen­cial, é que são formadas através das milhares de leituras da memória reali­zadas diariamente.
Comentei que as experiências psíquicas (idéias, raciocínios analíticos, angústia existencial, ansiedade, insegurança etc.) e as informações psíqui­cas (símbolos lingüísticos, símbolos visuais, nomes, números etc.) são arqui­vadas como sofisticados sistemas de códigos fisico-químicos na memória, que chamo de representação psicossemântica (RPS). A leitura das RPSs geram as matrizes dos códigos dos pensamentos essenciais históricos.
A leitura das RPSs, que representam as informações simples (os núme­ros de telefone, endereço residencial etc.) e os nomes (de pessoas, livros, animais etc.) contidas na memória de uso contínuo, gera matrizes de pensa­mentos essenciais que representam com determinada fidelidade os siste­mas de códigos fisico-químicos das RPSs, as quais, por sua vez, represen­tam com mais fidelidade as informações do passado que deram origem às mesmas. De outro lado, a leitura das RPSs, que representam as experiên­cias psíquicas contidas na memória existencial, não representam com fide­lidade os códigos fisico-químicos das mesmas na memória, pois tal leitura não é uma simples lembrança das experiências do passado, mas, como disse, uma interpretação das mesmas que é influenciada por diversos siste­mas de variáveis intrapsíquicas.
Além disso, a leitura das RPSs que representam as experiências existen­ciais não é apenas uma sofisticada interpretação das mesmas, mas uma nova reorganização das mesmas, gerando complexas e particulares cadeias de matrizes de pensamentos essenciais históricos, que darão origem às com­plexas e particulares experiências emocionais e às complexas e particulares cadeias psicodinâmicas de pensamentos dialéticos e antidialéticos.
As cadeias das matrizes dos pensamentos essenciais não são, portanto, apenas originárias da leitura das RPSs contidas na memória, mas também de rapidíssimas e refinadíssimas manipulações psicodinâmicas inconscien­tes das mesmas. Todos os dias, reconstruímos diversas experiências psíqui­cas ligadas ao nosso passado, tais como um elogio, uma ofensa, as palavras de um amigo, um momento de excitação, uma situação conflitante.
As RPSs que representam essas experiências na memória são sistemas de códigos físico-químicos frios, sem vida intelecto-emocional. A leitura dessas RPSs desencadeia uma interpretação que reorganiza o caos da ener­gia psíquica e dá "cores" e "sabores" intelecto-emocionais a elas. Além disso, a leitura das RPSs são reorganizadas de modo particular, gerando não apenas resgates das experiências psíquicas do passado passíveis de distorções, mas reconstruções pela interpretação que geram novas cadeias das matrizes dos pensamentos essenciais e novas experiências emocionais.
Quando uma mãe perde um filho, as reconstruções pela interpretação das RPSs, ao longo do tempo, que representam psicossemanticamente esse filho na memória, geram cadeias de matrizes de pensamentos essenciais e, conseqüentemente, pensamentos dialéticos e antidialéticos sobre o mesmo, bem como transformações da energia emocional e motivacional. Por isso, ela tem emoções diferentes em momentos em que se lembra do filho.
Se a memória fosse um "baú que armazenasse a energia psíquica" das experiências existenciais, e as recordações não fossem, como afirmei, re­construções pela interpretação das RPSs que representam essas experiên­cias na memória, mas fossem resgates das experiências originais, então, toda vez que essa mãe recordasse a perda do filho, ela teria que sentir o sofrimento vivenciado no momento da consciência da perda do mesmo, nos mesmos níveis, o que, felizmente, não ocorre; caso contrário, as angús­tias existenciais se perpetuariam na mesma intensidade ao longo de toda a trajetória de vida.
A recordação das experiências relativas às perdas, aos elogios, às ofen­sas, aos momentos de hesitação, às reações fóbicas, ao prazer, às frustra­ções psicossociais etc, não apenas são resgates das RPSs, mas reconstru­ções psicodinâmicas que manipulam rapidissimamente essas RPSs, geran­do novas cadeias psicodinâmicas dos pensamentos essenciais, dialéticos e antidialéticos, bem como novas experiências emocionais. Parece que nos­sas recordações nos remetem à reprodução original das experiências psí­quicas do passado; porém, se formos analisar qualitativa e quantitativamente as "arestas psicodinâmicas" das idéias e emoções produzidas nessas recor­dações, verificaremos que elas, freqüentemente, são micro ou macrodistintas.
As reconstruções pela interpretação priorizam o processo evolutivo da personalidade e da história psicossocial, que, por sua vez, rompe com a reprodução idêntica e paralisante das experiências psíquicas do passado. A personalidade humana e a história psicossocial evoluem não apenas pela determinação consciente do "eu", mas também por processos intrapsíquicos inevitáveis.
As reconstruções pela interpretação das experiências passadas produ­zem inevitáveis micro ou macrotraições da interpretação que promovem a revolução das idéias e o desenvolvimento psicossocial do homem, estabele­cendo um dos mais importantes princípios da evolução da personalidade humana e das sociedades como um todo.
A personalidade humana e as sociedades evoluem, não apenas porque o homem é capaz de realizar uma produção de conhecimento científico e socioeducacional com coerência e lógica, mas também porque a fonte que gera essa produção é sustentada por processos que ultrapassam os limites da lógica. Até na física e nas demais ciências naturais a produção de conhe­cimento é sustentada por processos que ultrapassam os limites da lógica. Essa é uma das áreas mais importantes da teoria da interpretação; por isso ela deveria ser incorporada por todas as teorias.
As matrizes dos pensamentos essenciais produzidas pelos fenômenos da mente nem sempre sofrem ação do fenômeno responsável por realizar o processo de leitura virtual e, conseqüentemente, nem sempre geram pensa­mentos dialéticos e antidialéticos. Embora muitas dessas matrizes não so­fram uma leitura virtual consciente, elas geram reações emocionais, instin­tivas e reações motoras (musculares) inconscientes. As teorias do "condi­cionamento" e de "estímulo-resposta" que dão suporte teórico às psicoterapias comportamentais e cognitivas, embora desconheçam os processos de construção dos pensamentos, estão ligadas invariavelmente à construção, à práxis e ao registro contínuo das matrizes de pensamentos essenciais na memória.
Os fenômenos inconscientes que lêem a história intrapsíquica produ­zem continuamente inúmeras cadeias psicodinâmicas das matrizes dos pen­samentos essenciais, que geram diariamente tanto uma revolução das idéias dialéticas e antidialéticas como centenas ou milhares de reações emocio­nais, reações instintivas e movimentos musculares que não são apreendidos conscientemente.
As matrizes dos pensamentos essenciais têm de produzir diversos siste­mas de relação lógica para financiar o desenvolvimento dos processos de construção dos pensamentos e da consciência existencial.
Sem a existência dos sistemas de relações lógicas produzidas pelas matrizes dos pensamentos essenciais, não seria possível organizar as cadei­as psicodinâmicas dos pensamentos e produzir idéias, análises, inferências, sínteses, reconstrução da interpretação do passado, e relacioná-las com o mundo extrapsíquico, intrapsíquico e com a história intrapsíquica.
A dialética dos conceitos, das idéias, não é produzida pela contrapartida da negação. Pensei durante anos que a contrapartida da negação produzis­se os conceitos e definições dos fenômenos e objetos que contemplamos. Eu pensava que um objeto, tal como um sofá, distinto de milhares de ou­tras coisas, ou seja, de uma casa, de um astro, de um caderno, de uma janela, era definido pela contrapartida da negação, gerando os conceitos, as idéias. Porém, na medida em que pesquisei os sistemas de relações dos pensamentos essenciais, percebi que são eles que desencadeiam o finan­ciamento dialético das idéias, produzem as diretrizes lógicas dos pensa­mentos, dos conceitos, das definições. Destacarei, no momento, três im­portantes sistemas de relação produzidos pelas matrizes dos pensamentos essenciais.
Primeiro, as matrizes dos pensamentos essenciais têm de manter um sistema de relação com os códigos físico-químicos do cérebro captados pelo sistema sensorial e, por extensão, elas têm de manter um sistema de relação com os estímulos extrapsíquicos contidos no meio ambiente, tais como os fenômenos físicos, o comportamento humano, o comportamento dos animais.
Sem esse sistema de relação, não seria possível fazer uma ponte de ligação entre os complexos estímulos extrapsíquicos, que se constituem de milhares ou milhões de detalhes visuais, sonoros, táteis, gustativos, e as matrizes dos pensamentos essenciais. Sem a ponte de ligação entre as ma­trizes de pensamentos essenciais históricos e os sistemas de códigos dos estímulos extrapsíquicos não seria possível produzir pensamentos dialéticos e antidialéticos capazes de gerar uma consciência existencial sobre o mun­do extrapsíquico, não seria possível identificar e discriminar os estímulos contidos nesse mundo.
Segundo, as matrizes dos pensamentos essenciais têm de manter um sistema de relação com as RPSs arquivadas na memória, ou seja, com as representações psicossemânticas das experiências e das informações psí­quicas contidas na história intrapsíquica. Sem esse sistema de relação, não seria possível identificar na memória do córtex cerebral um estímulo extra­psíquico (elogio, ofensa, rejeição, apoio etc.) e nem um estímulo intrapsíquico (reações fóbicas, prazer, angústia existencial, idéias).
A ponte de ligação entre as matrizes dos pensamentos essenciais histó­ricos e os sistemas de códigos físico-químicos dos estímulos extrapsíquicos, comentada no "primeiro sistema de relação", passa invariavelmente pela mediação desse segundo sistema de relação. Os sistemas de relações entre as matrizes dos pensamentos essenciais e as RPSs arquivadas na memória financiam a ponte de ligação entre essas matrizes e os sistemas de códigos físico-químicos. Sem esses sistemas de relação, o mundo extrapsiquico e a nossa história intrapsíquica não teriam conexão. Não teríamos consciência do mundo; estaríamos mergulhados num indescritível vácuo da inconsciência existencial.
Terceiro, as matrizes de pensamentos essenciais têm de manter um sistema de relação com o processo de leitura virtual que produz as cadeias psicodinâmicas dos pensamentos dialéticos e antidialéticos. Sem esse siste­ma de relação, não seria possível haver uma relacionalidade entre os pen­samentos dialéticos e antidialéticos e os fenômenos físicos, o comportamen­to das pessoas e todos os elementos do mundo extrapsiquico. Não seria possível nem mesmo haver uma consciência antidialética sobre as emoções que vivenciamos no passado e uma consciência dialética sobre as inúmeras idéias, raciocínios analíticos, intempéries existenciais, relações interpessoais etc, também vivenciadas no passado.
Sem os sistemas de relação das matrizes dos pensamentos essenciais com os estímulos extrapsíquicos, com a história intrapsíquica e com o pro­cesso de leitura virtual que formam as cadeias psicodinâmicas dos pensa­mentos dialéticos e antidialéticos, não seria possível produzir os processos de construção dos pensamentos e da consciência existencial. Com isso, não haveria a construção da consciência do mundo intrapsíquico e do mundo extrapsiquico. Identificamos as expressões faciais das pessoas e percebe­mos que elas estão tristes, alegres, apreensivas. Como temos segurança nes­ta identificação? Através do sistema de relação lógica entre o estímulo físi­co e as etapas do processo de construção de pensamentos.
O eu, ao produzir as cadeias psicodinâmicas das matrizes dos pensa­mentos essenciais, não tem consciência de como se processa essa produ­ção, porque a leitura da memória, o impressionante resgate das informa­ções, em meio a bilhões de opções existentes, e a manipulação psicodinâmica das RPSs são processos realizados inconscientemente. As matrizes de pen­samentos essenciais são produzidas inconscientemente e em milésimos de segundos; depois de serem produzidas, elas sofrem um processo de leitura virtual que gera os pensamentos dialéticos e antidialéticos na esfera da virtualidade, desencadeando a formação da consciência existencial num determinado momento.
Precisamos procurar aprender não apenas a utilizar os pensamentos, mas a compreender os processos de construção dos pensamentos, os fenô­menos e as variáveis que neles atuam, em frações de segundos, para gerar os três tipos fundamentais de pensamentos, e a indescritível e sofisticada consciência existencial. Precisamos ir além da produção de conhecimento explicacionista e psicologista sobre o comportamento humano, e do discur­so teórico superficial sobre o inconsciente, para investigar os processos de construção dos pensamentos, que nascem e se desenvolvem clandestina­mente nos bastidores da psique humana.
Sem investigar os processos de construção da inteligência não compre­enderemos a formação da consciência humana, da identidade psicossocial, nem entenderemos quais são os limites do gerenciamento do eu sobre os pensamentos. Sem tal investigação não compreenderemos também os pa­radoxos que envolvem a única espécie pensante desse planeta. Embora sejamos detentores do espetáculo da inteligência, as cenas de guerras e violação dos direitos humanos macularam as principais páginas de nossa história.
É preciso compreender os fenômenos que estão na base do funciona­mento da mente para enxergarmos por que nos tornamos gigantes na ciên­cia e na tecnologia, mas pequenos no desenvolvimento das funções mais altruístas da inteligência, tais como a tolerância, a solidariedade, a capaci­dade de pensar antes de reagir, de expor e não impor as idéias.


* Realizado no Anhembi, São Paulo, em maio de 2000.

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