sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Sigmund Freud - Conferências introdutórias sobre psicanálise - Parte 1

CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS SOBRE PSICANÁLISE (1916-17 [1915-17])
INTRODUÇÃO DO EDITOR INGLÊS
VORLESUNGEN ZUR EINFÜHRUNG IN DIEPSYCHOANALYSE
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1916 Parte I (em separado), Die Fehlleistungen. Leipzig e Viena: Heller.
1916 Parte II (em separado), Der Traum. Mesmos editores.
1917 Parte III (em separado), Allgemeine Neurosenlehre. Mesmos editores.
1917 Os títulos acima, as três partes em um só volume. Mesmos editores. viii + 545 págs.
1918 2ª ed. (Com índice e inserção de lista de 40 corrigendas.) Mesmos editores. viii + 553 págs.
1920 3ª ed. (Reimpressão corrigida da edição anterior.) Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler
Psychoanalytischer Verlag. viii + 553 págs.
1922 4ª ed. (Reimpressão corrigida da edição anterior.) Mesmos editores. viii + 554 págs. (Também as
Partes II e III em separado, sob os títulos de Vorlesungen über den Traum e Allgemeine Neurosenlehre.)
1922 Ed. de bolso. (Sem índice). Mesmos editores. iv + 495 págs.
1922 Ed. de bolso. (2ª ed., corrigida e com índice.) Mesmos editores. iv + 502 págs.
1924 G.S., 7. 483 págs.
1926 5ª ed. (Reimpressão das G.S.) I.P.V. 483 págs.
1926 Ed. de bolso. (3ª ed.) Mesmos editores.
1930 Ed. em 8 pequenos vols. I P.V. 501 págs.
1933 (Com autorização) Berlim: Kiepenheuer. 524 págs.
1940 G.W., 11, 495 págs.
(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
A General Introduction to Psychoanalysis
1920 Nova Iorque: Boni & Liveright. x + 406 págs. (Tradutor não especificado; Prefácio de G. Stanley
Hall.)
Introductory Lectures on Psycho-Analysis
1922 Londres: Allen & Unwin. 395 págs. (Trad. de Joan Riviere; sem prefácio de Freud; com prefácio de
Ernest Jones.)
1929
2a. ed. (revista). Mesmos editores. 395 págs.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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A General Introduction to Psychoanalysis
1935Nova Iorque: Liveright. 412 págs. (A ed. de Londres com o título da anterior de Nova Iorque. Trad.
de Joan Riviere; com prefácios de Ernest Jones e G. Stanley Hall; incluído o prefácio de Freud).
A presente tradução inglesa é nova e da autoria de James Strachey.
Esta obra teve uma circulação maior do que qualquer outra obra de Freud, com exceção, talvez, de The
Psychopathology of Everyday Life. Também se distingue pela quantidade de erros de impressão nela
existentes. Como ficou assinalado acima, quarenta foram corrigidos na segunda edição; porém havia ainda
muitos mais, e pode ser observado um número considerável de pequenas variações no texto das diversas
edições. A presente tradução inglesa segue o texto dos Gesammelte Werke, que é, de fato, idêntico ao texto
dos Gesammelte Schriften; e somente foram registradas as discordâncias mais importantes das primeiras
versões.
A data real de publicação das três partes não está definida. A Parte I certamente surgiu antes do fim de
julho de 1916, como se verifica por uma referência que a ela se faz em uma carta de Freud a Lou Andreas-
Salomé, de 27 de julho de 1916 (cf. Freud, 1960a). Na mesma carta, ele também fala na Parte II como estando
prestes a aparecer. Uma carta de 18 de dezembro de 1916, que Freud escreveu a Abraham, sugere que, com
efeito, ela apenas apareceu no fim do ano (cf. Freud, 1965a). A Parte III parece ter sido publicada em maio de
1917.
O ano acadêmico da Universidade de Viena se dividia em dois períodos: um período (ou semestre) de
inverno, que ia de outubro a março, e um período de verão, de abril a julho. As conferências publicadas neste
livro foram proferidas por Freud em dois períodos de inverno sucessivos, durante a Primeira Guerra Mundial:
1915-16 e 1916-17. Os relatos mais completos das circunstâncias que conduziram à sua publicação serão
encontrados no segundo volume da biografia escrita por Ernest Jones (1955, pág. 255 e seguintes).
Embora, como o próprio Freud observara em seu prefácio às New Introductory Lectures, sua qualidade
de membro da Universidade de Viena tivesse sido apenas ‘periférica’, desde os tempos de sua indicação como
Privatdozent (Livre Docente da Universidade), em 1885, e como Professor Extraordinarius (Professor
Assistente), em 1902, havia realizado muitos ciclos de conferências na Universidade. Estes ficaram sem
registro, embora alguns relatos dos mesmos possam ser encontrados — por exemplo, os de Hanns Sachs
(1945, pág. 39 e segs.) e Theodor Reik (1942, pág. 19 e segs.), bem como os de Ernest Jones (1953, pág. 375
e segs.). Freud decidiu que a série que começava no outono de 1915 deveria ser a última, e foi por sugestão de
Otto Rank que Freud concordou com sua publicação. Em seu prefácio às New Introductory Lectures, há pouco
citado, Freud nos refere que a primeira metade da série atual, a série inicial, ‘foi improvisada e escrita logo
depois’, e que ‘esboços da segunda metade foram feitos durante as férias do verão intermediário, em Salzburg,
e passados para o papel, palavra por palavra, no inverno seguinte’. Acrescenta que, naquela época, ‘ainda
possuía o dom de uma memória fotográfica’, pois, por mais cuidadosamente que suas conferências pudessem
ter sido preparadas, na realidade, invariavelmente, as proferia de improviso, e geralmente sem anotações.
Existe concordância geral no tocante à sua técnica de dar conferências: que ele nunca era retórico e que seu
tom era sempre o de uma conversação tranqüila e mesmo íntima. Contudo, não se deve supor, por isso, que
houvesse algo de desleixo ou desordem nessas conferências. Elas quase sempre tinham uma forma definida —
início, meio e fim — e podiam, freqüentemente, dar ao ouvinte a impressão de possuírem uma unidade estética.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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Foi mencionado (Reik, 1942, 19) que ele não gostava de dar conferências, no entanto é difícil conciliar
essa afirmação não apenas com a quantidade de conferências que proferiu no decurso de sua vida, mas
também com a quantidade notavelmente elevada de seus trabalhos efetivamente publicados que estão sob a
forma de conferências. Existe, entretanto, uma possível explicação para essa discordância. Um exame mostra
que, entre suas publicações, são predominantemente os trabalhos expositivos que aparecem como
conferências: por exemplo, a conferência inicial sobre ‘The Aetiology of Hysteria’ (1896c), a que surgiu um
pouco depois ‘Sobre a Psicoterapia’ (1905a), assim como, naturalmente, as Cinco Lições, proferidas na
América (1910a), e a presente série. Contudo, além disso, quando empreendeu anos depois uma exposição
das mais recentes evoluções de seus pontos de vista, ele, sem qualquer motivo evidente, mais uma vez as
colocou na forma de conferências e publicou suas New Introductory Lectures (1933a), embora jamais houvesse
qualquer possibilidade de serem dadas à luz como tais. Assim, Freud se socorreu evidentemente das
conferências como método de expor suas opiniões, mas apenas sob uma condição particular: ele devia estar
em vívido contato com seu auditório real ou suposto. Os leitores do presente volume descobrirão como é
constante Freud manter esse contato — quão regularmente ele coloca objeções na boca de seus ouvintes, e
quão freqüentemente existem debates imaginários entre ele e seus ouvintes. Na verdade, ele estendia esse
método de formular suas exposições a alguns de seus trabalhos que absolutamente não são conferências: a
totalidade de The Question of Lay Analysis (1926e) e a maior parte de O Futuro de uma Ilusão (1927c) tomaram
a forma de diálogos entre o autor e um ouvinte que faz críticas. Contrariamente, talvez, a certas noções
errôneas, Freud era inteiramente avesso à exposição de suas opiniões em forma autoritária e dogmática: ‘Não
o direi aos senhores’, ele diz à sua audiência, em uma passagem adiante (pág. 433), ‘mas insistirei em que o
descubram por si mesmos’. As objeções não eram para ser abafadas, mas esclarecidas e examinadas. E isso,
afinal, não era mais que um prolongamento de um aspecto essencial da técnica da própria psicanálise.
As Conferências Introdutórias podem ser verdadeiramente consideradas como um inventário das
conceituações de Freud e da posição da psicanálise na época da Primeira Guerra Mundial. As dissidências de
Adler e Jung já eram história passada, o conceito de narcisismo já tinha alguns anos de vida, o caso clínico do
‘Wolf Man’, que marcou época, tinha sido escrito (com exceção de duas passagens) um ano antes do começo
das conferências, embora não fosse publicado senão mais tarde. E, também, a grande série de artigos
‘metapsicológicos’ sobre a teoria fundamental tinha sido ultimada alguns meses antes, ainda que apenas três
deles tivessem sido publicados. (Mais dois deles surgiram logo após as conferências, porém os sete restantes
desapareceram sem deixar vestígio.) Essas últimas atividades e, sem dúvida, também a realização das
conferências tinham sido facilitadas pela diminuição do trabalho clínico de Freud, imposta pelas condições da
guerra. Parecia haver-se chegado a um divisor de águas, e era como se houvesse chegado a época para uma
pausa. De fato, porém, estavam em preparação idéias novas que deviam vir à luz em Além do Princípio de
Prazer (1920g), Psicologia de Grupo (1921c) e O Ego e o Id (1923b). Em verdade, a linha não deve ser traçada
com tanta exatidão. Por exemplo, já podem ser detectados indícios da noção da ‘compulsão à repetição’ (págs.
292-3), e os começos da análise do ego estão bastante evidentes (págs. 423 e 428-9), ao passo que as
dificuldades referentes aos múltiplos sentidos da palavra ‘inconsciente’ (ver em [1]) preparam o caminho para
uma nova descrição estrutural da mente.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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Em seu prefácio a estas conferências, Freud fala um pouco depreciativamente da falta de novidade em
seu conteúdo. No entanto, ninguém, embora muito tenha lido de literatura psicanalítica, precisa sentir receio de
se entediar com estas conferências, e ainda poderá achar nelas muitas coisas que não se encontrarão em outro
lugar. As discussões sobre ansiedade (Conferência XV) e sobre fantasias primitivas (Conferência XXIV), que
Freud mesmo, no prefácio, aponta como material recente, não são as únicas que ele podia ter mencionado. A
revisão do simbolismo na Conferência X, é, provavelmente, a mais completa que fez. Em nenhuma outra parte
fornece tão claro resumo da formação dos sonhos como nas últimas páginas da Conferência XIV. Sobre as
perversões, não há comentários mais inteligíveis do que aqueles encontrados nas Conferências XX e XXI.
Finalmente, não existe absolutamente qualquer tópico que se iguale à análise dos processos de terapia
psicanalítica, feita na última conferência. E mesmo onde os assuntos pareceriam estar surrados, como o
mecanismo das parapraxias e dos sonhos, a abordagem é feita a partir de direções inesperadas, lançando nova
luz sobre o que poderia ter parecido terreno por demais conhecido. As Conferências Introdutórias seguramente
merecem sua popularidade.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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PREFÁCIO [1917]
O que ao público agora ofereço como uma ‘Introdução à Psicanálise’ não se destina a competir, de
forma alguma, com determinadas descrições gerais desse campo de conhecimento, como aquelas já
existentes, e dentre as quais citam-se, por exemplo: as de Hitschmann (1913), Pfister (1913), Kaplan (1914),
Régis e Hesnard (1914) e Meijer (1915). Este volume é uma reprodução fiel das conferências que proferi [na
Universidade], durante as duas temporadas de inverno de 1915/16 e 1916/17, perante um auditório de médicos
e leigos de ambos os sexos.
Quaisquer peculiaridades deste livro que possam surpreender os leitores são devidas às condições em
que ele se originou. Em minha apresentação não foi possível preservar a tranqüila serenidade de um tratado
científico. Pelo contrário, o conferencista tinha de se empenhar em evitar que a atenção de seu auditório
declinasse durante uma sessão de quase duas horas de duração. As necessidades do momento muitas vezes
tornaram impossível evitar repetições ao tratar de um determinado assunto — poderiam emergir uma vez, por
exemplo, em relação à interpretação de sonhos e, mais tarde, de novo, em relação aos problemas das
neuroses. Também em conseqüência da maneira como o material foi ordenado, alguns tópicos importantes (o
inconsciente, por exemplo) não puderam ser exaustivamente debatidos em um só ponto, mas tiveram de ser
retomados repetidamente e outra vez abandonados, até que surgisse nova oportunidade para acrescentar
alguma informação adicional a respeito.
Aqueles que estão familiarizados com a literatura psicanalítica encontrarão nesta ‘Introdução’ pouca
coisa que não lhes seja conhecida já a partir de outras publicações muito mais detalhadas. Não obstante, a
necessidade de completar e resumir algum tema compeliu o autor, em certos pontos (a etiologia da ansiedade e
as fantasias histéricas), a apresentar material que até então havia retido.
FREUD.
VIENA, primavera de 1917.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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PREFÁCIO DA TRADUÇÃO HEBRAICA [1930]
Estas conferências foram proferidas em 1916 e 1917; proporcionaram uma descrição muito
pormenorizada da posição da jovem ciência naquela época, e continham mais do que seu título indicava.
Proporcionaram não apenas uma introdução à psicanálise, mas abrangeram a maior parte de seu conteúdo
temático. Isso, naturalmente, já não é mais verdade. Nesse meio tempo houve progressos em sua teoria e
importantes acréscimos à mesma, como a divisão da personalidade em ego, superego e id, uma modificação
radical na teoria dos instintos, bem como descobertas referentes à origem da consciência e do sentimento de
culpa. Assim sendo, estas conferências se tornaram em grande parte incompletas; na verdade, somente agora
é que se tornaram realmente ‘introdutórias’. Porém, em outro sentido, mesmo hoje elas não foram suplantadas,
nem se tornaram obsoletas. O que contêm ainda é acreditado e pensado, afora algumas poucas modificações,
nos institutos de formação psicanalítica.
Os leitores de hebraico e especialmente os jovens, ávidos de conhecimento, se defrontarão neste
volume com a psicanálise vestida com o antigo idioma que tem sido despertado para uma vida nova pela
vontade do povo judeu. O autor bem pode imaginar o problema que se propôs seu tradutor. E nem pode
suprimir a dúvida quanto a saber se Moisés e os Profetas teriam julgado inteligíveis estas conferências em
hebraico. Pede, entretanto, aos descendentes deles (entre os quais ele próprio se inclui), a quem este livro se
destina, para que não reajam demasiado prontamente a seus primeiros impulsos de crítica e enfado, rejeitandoo.
A psicanálise revela tantas coisas novas, e, em meio a tudo isso, tantas coisas que contraditam opiniões
tradicionais, e tanto fere sentimentos profundamente arraigados, que não pode deixar de provocar contestação.
O leitor, se deixar em suspenso seu julgamento e permitir que a psicanálise, como um todo, provoque nele sua
impressão, talvez se torne receptivo à convicção de que mesmo essa indesejada novidade é digna de se
conhecer e indispensável para todo aquele que deseja compreender a mente e a vida humana.
VIENA, dezembro de 1930
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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PARTE I - PARAPRAXIAS (1916 [1915])
CONFERÊNCIA I - INTRODUÇÃO
SENHORAS E SENHORES:
Não posso dizer quanto conhecimento sobre psicanálise cada um dos senhores já adquiriu pelas
leituras que fez, ou por ouvir dizer. Mas o título de meu programa — ‘Introdução Elementar à Psicanálise’ —
obriga-me a tratá-los como se nada soubessem e estivessem necessitados de algumas informações
preliminares.
Posso, no entanto, seguramente supor que sabem ser a psicanálise uma forma de executar o
tratamento médico de pacientes neuróticos. E aqui já lhes posso dar um exemplo de como, nessa atividade,
numerosas coisas se passam de forma diferente — e muitas vezes, realmente, de forma oposta — de como
ocorrem em outros campos da prática médica. Quando, em outra situação, apresentamos ao paciente uma
técnica que lhe é nova, de hábito minimizamos os inconvenientes desta e lhe damos confiantes promessas de
êxito do tratamento. Penso estarmos justificados de assim proceder, de vez que desse modo estamos
aumentando a probabilidade de êxito. Quando, porém, tomamos em tratamento analítico um paciente neurótico,
agimos diferentemente. Mostramos-lhe as dificuldades do método, sua longa duração, os esforços e os
sacrifícios que exige; e, quanto a seu êxito, lhe dizemos não nos ser possível prometê-lo com certeza, que
depende de sua própria conduta, de sua compreensão, de sua adaptabilidade e de sua perseverança. Temos
boas razões, naturalmente, para manter essa conduta aparentemente obstinada no erro, como talvez os
senhores virão a verificar mais adiante.
Não se aborreçam, então, se começo por tratá-los da mesma forma como a esses pacientes neuróticos.
Seriamente eu os advirto de que não venham ouvir-me uma segunda vez. Para corroborar esta advertência,
explicarei quão incompleto deve necessariamente ser qualquer conhecimento da psicanálise, e que dificuldades
surgem no caminho dos senhores ao formarem um julgamento próprio a respeito dela. Mostrar-lhes-ei como
toda a tendência de sua educação prévia e todos os seus hábitos de pensamento estão inevitavelmente
propensos a fazer com que se oponham à psicanálise, e quanto teriam de superar, dentro de si mesmos, para
obter o máximo de vantagem dessa natural oposição. Não posso, certamente, predizer quanto entendimento de
psicanálise obterão das informações que lhes dou, contudo posso prometer-lhes isto: que, ouvindo-as
atentamente, não terão aprendido como efetuar uma investigação psicanalítica ou como realizar um tratamento.
No entanto, na hipótese de que um dos senhores não se sentisse satisfeito com um ligeiro conhecimento da
psicanálise, mas estivesse inclinado a entrar em relação permanente com ela, não apenas eu o dissuadiria de
agir assim, como ativamente também o admoestaria para não fazê-lo. Da maneira como estão as coisas, no
momento, tal escolha de profissão arruinaria qualquer possibilidade de obter sucesso em uma universidade, e,
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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se começou na vida como médico clínico, iria encontrar-se numa sociedade que não compreenderia seus
esforços, que o veria com desconfiança e hostilidade e que despejaria sobre ele todos os maus espíritos que
estão à espreita dentro dessa mesma sociedade. E os acontecimentos que acompanham a guerra, que agora
assola a Europa, lhes darão talvez alguma noção de que legiões desses maus espíritos podem existir.
Não obstante, há bom número de pessoas para as quais, a despeito desses inconvenientes, algo que
promete trazer-lhes uma nova parcela de conhecimento tem ainda seu atrativo. Se alguns dos senhores
pertencerem a essa espécie de pessoas, e, malgrado minhas advertências, novamente aqui comparecerem
para minha próxima conferência, serão bem-vindos. Todos, porém, têm o direito de saber da natureza das
dificuldades da psicanálise, às quais aludi.
Iniciarei por aquelas dificuldades vinculadas ao ensino, à formação em psicanálise. Na formação
médica os senhores estão acostumados a ver coisas. Vêem uma preparação anatômica, o precipitado de uma
reação química, a contração de um músculo em conseqüência da estimulação de seus nervos. Depois,
pacientes são demonstrados perante os sentidos dos senhores: os sintomas de suas doenças, as
conseqüências dos processos patológicos e, mesmo, em muitos casos, o agente da doença isolado. Nos
departamentos cirúrgicos, são testemunhas das medidas ativas tomadas para proporcionar socorro aos
pacientes, e os senhores mesmos podem tentar pô-las em execução. Na própria psiquiatria, a demonstração de
pacientes, com suas expressões faciais alteradas, com seu modo de falar e seu comportamento, propicia aos
senhores numerosas observações que lhes deixam profunda impressão. Assim, um professor de curso médico
desempenha em elevado grau o papel de guia e intérprete que os acompanha através de um museu, enquanto
os senhores conseguem um contato direto com os objetos exibidos e se sentem convencidos da existência dos
novos fatos mediante a própria percepção de cada um.
Na psicanálise, ai de nós, tudo é diferente. Nada acontece em um tratamento psicanalítico além de um
intercâmbio de palavras entre o paciente e o analista. O paciente conversa, fala de suas experiências passadas
e de suas impressões atuais, queixa-se, reconhece seus desejos e seus impulsos emocionais. O médico
escuta, procura orientar os processos de pensamento do paciente, exorta, dirige sua atenção em certas
direções, dá-lhe explicações e observa as reações de compreensão ou rejeição que ele, analista, suscita no
paciente. Os desinformados parentes de nossos pacientes, que se impressionam apenas com coisas visíveis e
tangíveis — preferivelmente por ações tais como aquelas vistas no cinema —, jamais deixam de expressar suas
dúvidas quanto a saber se ‘algo não pode ser feito pela doença, que não seja simplesmente falar’. Essa,
naturalmente, é uma linha de pensamento ao mesmo tempo insensata e incoerente. Essas são as mesmas
pessoas que se mostram assim tão seguras de que os pacientes estão ‘simplesmente imaginando’ seus
sintomas. As palavras, originalmente, eram mágicas e até os dias atuais conservaram muito do seu antigo
poder mágico. Por meio de palavras uma pessoa pode tornar outra jubilosamente feliz ou levá-la ao desespero,
por palavras o professor veicula seu conhecimento aos alunos, por palavras o orador conquista seus ouvintes
para si e influencia o julgamento e as decisões deles. Palavras suscitam afetos e são, de modo geral, o meio de
mútua influência entre os homens. Assim, não depreciaremos o uso das palavras na psicoterapia, e nos
agradará ouvir as palavras trocadas entre o analista e seu paciente.
Contudo, nem isso podemos fazer. A conversação em que consiste o tratamento psicanalítico não
admite ouvinte algum; não pode ser demonstrada. Um paciente neurastênico ou histérico pode, naturalmente,
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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como qualquer outro, ser apresentado a estudantes em uma conferência psiquiátrica. Ele fará uma descrição de
suas queixas e de seus sintomas, porém apenas isso. As informações que uma análise requer serão dadas
pelo paciente somente com a condição de que ele tenha uma ligação emocional especial com seu médico; ele
silenciaria tão logo observasse uma só testemunha que ele percebesse estar alheia a essa relação. Isso porque
essas informações dizem respeito àquilo que é mais íntimo em sua vida mental, a tudo aquilo que, como
pessoa socialmente independente, deve ocultar de outras pessoas, e, ademais, a tudo o que, como
personalidade homogênea, não admite para si próprio.
Portanto, os senhores não podem estar presentes, como ouvintes, a um tratamento psicanalítico. Este
pode, apenas, ser-lhes relatado; e, no mais estrito sentido da palavra, é somente de ouvir dizer que chegarão a
conhecer a psicanálise. Como conseqüência do fato de receberem seus conhecimentos em segunda mão, por
assim dizer, os senhores estarão em condições bem incomuns para formar um julgamento. Isto obviamente
dependerá, em grande parte, do quanto de crédito podem dar a seu informante.
Suponhamos, por um momento, que os senhores estivessem ouvindo uma conferência não sobre
psiquiatria, mas sobre história, e que o conferencista lhes estivesse expondo a vida e os feitos militares de
Alexandre Magno. Que fundamentos teriam para acreditar na verdade do que ele referisse? Num primeiro
relance, a situação pareceria ser ainda mais desfavorável do que no caso da psicanálise, pois o professor de
história teve tanta participação nas campanhas de Alexandre quanto os senhores. O psicanalista pelo menos
reporta coisas nas quais ele próprio tomou parte. Porém, na devida oportunidade, chegamos aos elementos
que confirmam aquilo que o historiador lhes disse. Ele poderia remetê-los aos relatos dos escritores da
Antigüidade que, ou foram eles próprios contemporâneos dos eventos em questão, ou, de qualquer forma,
estavam mais próximos dos mesmos — ele poderia remetê-los, digamos, às obras de Diodoro, Plutarco, Arriano
e outros. Poderia colocar à frente dos senhores reproduções de moedas e estátuas do rei, que sobreviveram, e
poderia passar às suas mãos uma fotografia do mosaico de Pompéia representando a batalha de Isso.
Estritamente falando, contudo, todos esses documentos apenas provam que as gerações anteriores já
acreditavam na existência de Alexandre e na realidade de seus feitos, e as críticas dos senhores poderiam
começar novamente nesse ponto. Os senhores descobririam então que nem tudo aquilo que foi relatado sobre
Alexandre merece crédito ou pode ser confirmado em seus detalhes; não obstante, não posso supor que os
senhores viessem a deixar a sala de conferência com dúvidas sobre a realidade de Alexandre Magno. A
decisão dos senhores seria determinada, essencialmente, por duas considerações: primeiro, que o
conferencista não tem qualquer motivo imaginável para garantir-lhes a realidade de algo que ele próprio não
julga ser real, e, em segundo lugar, que todos os livros de história disponíveis descrevem os acontecimentos
em termos aproximadamente semelhantes. Se continuassem a examinar as fontes antigas, teriam em conta os
mesmos fatores — os possíveis motivos dos informantes e a conformidade das testemunhas entre si. O
resultado da pesquisa sem dúvida lhes traria uma confirmação, no caso de Alexandre; no entanto,
provavelmente seria diferente quando se tratasse de personagens como Moisés ou Nemrod. Outras
oportunidades revelarão muito claramente que dúvidas os senhores podem ter a respeito da credibilidade do
seu informante psicanalítico.
Mas os senhores têm o direito de fazer outra pergunta. Se não há verificação objetiva da psicanálise
nem possibilidade de demonstrá-la, como pode absolutamente alguém aprender psicanálise e convencer-se da
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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veracidade de suas afirmações? É verdade que a psicanálise não pode ser aprendida facilmente, e que não são
muitas as pessoas que a tenham aprendido corretamente. Naturalmente, porém, existe um método que se pode
seguir, apesar de tudo. Aprende-se psicanálise em si mesmo, estudando-se a própria personalidade. Isso não é
exatamente a mesma coisa que a chamada auto-observação, porém pode, se necessário, estar nela
subentendido. Existe grande quantidade de fenômenos mentais, muito comuns e amplamente conhecidos, que,
após conseguido um pouco de conhecimento da técnica, podem se tornar objeto de análise na própria pessoa.
Dessa forma, adquire-se o desejado sentimento de convicção da realidade dos processos descritos pela análise
e da correção dos pontos de vista da mesma. Não obstante, há limites definidos ao progresso por meio desse
método. A pessoa progride muito mais se ela própria é analisada por um analista experiente e vivencia os
efeitos da análise em seu próprio eu (self), fazendo uso da oportunidade de assimilar de seu analista a técnica
mais sutil do processo. Esse excelente método é, naturalmente, aplicável apenas a uma única pessoa e jamais
a todo um auditório de estudantes reunidos.
A psicanálise não deve ser acusada de uma segunda dificuldade na relação dos senhores com ela;
devo fazê-los, aos senhores mesmos, responsáveis por isso, senhoras e senhores, pelo menos na medida em
que foram estudantes de medicina. A educação que receberam previamente deu uma direção particular ao
pensar dos senhores que conduz para longe da psicanálise. Foram formados para encontrar uma base
anatômica para as funções do organismo e suas doenças, a fim de explicá-las química e fisicamente e encarálas
do ponto de vista biológico. Nenhuma parte do interesse dos senhores, contudo, tem sido dirigida para a
vida psíquica, onde, afinal, a realização desse organismo maravilhosamente complexo atinge seu ápice. Por
essa razão, as formas psicológicas de pensamento têm permanecido estranhas aos senhores. Cresceram
acostumados a encará-las com suspeita, a negar-lhes a qualidade científica, a abandoná-las em poder de
leigos, poetas, filósofos naturalistas e místicos. Essa limitação é, sem dúvida, prejudicial à sua atividade
médica, pois, como é a regra em todos os relacionamentos humanos, os pacientes dos senhores começam
mostrando-lhes sua façade mental, e temo que sejam obrigados, como punição, a deixar parte da influência
terapêutica que os senhores estão procurando aos praticantes leigos, aos curandeiros e aos místicos, que os
senhores tanto desprezam.
Não ignoro a excusa de que devemos tolerar esse defeito em sua educação. Não existe nenhuma
ciência filosófica auxiliar que possa servir às finalidades médicas dos senhores. Nem a filosofia especulativa,
nem a psicologia descritiva, nem o que é chamado de psicologia experimental (que está estritamente aliada à
fisiologia dos órgãos dos sentidos), tal como são ensinadas nas universidades, estão em condições de dizerlhes
algo de utilizável pertinente à relação entre corpo e mente, ou de lhes proporcionar uma chave para a
compreensão dos possíveis distúrbios das funções mentais. É verdade que a psiquiatria, como parte da
medicina, se empenha em descrever os distúrbios mentais que observa, e em agrupá-los em entidades clínicas;
porém, em momentos favoráveis os próprios psiquiatras duvidam de que suas hipóteses puramente descritivas
mereçam o nome de ciência. Nada se conhece da origem, do mecanismo ou das mútuas relações dos sintomas
dos quais se compõem essas entidades clínicas; ou não há alterações observáveis, no órgão anatômico da
mente, que correspondam a esses sintomas, ou há alterações nada esclarecedoras a respeito deles. Esses
distúrbios mentais apenas são acessíveis à influência terapêutica quando podem ser reconhecidos como efeitos
secundários daquilo que, de outro modo, constitui uma doença orgânica.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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Essa é a lacuna que a psicanálise procura preencher. Procura dar à psiquiatria a base psicológica de
que esta carece. Espera descobrir o terreno comum em cuja base se torne compreensível a conseqüência do
distúrbio físico e mental. Com esse objetivo em vista, a psicanálise deve manter-se livre de toda hipótese que
lhe é estranha, seja de tipo anatômico, químico ou fisiológico, e deve operar inteiramente com idéias auxiliares
puramente psicológicas; e precisamente por essa razão temo que lhes parecerá estranha de início.
Não considerarei os senhores, ou sua educação, ou sua atitude mental, responsáveis pela próxima
dificuldade. Duas das hipóteses da psicanálise são um insulto ao mundo inteiro e têm ganho sua antipatia. Uma
delas encerra uma ofensa a um preconceito intelectual; a outra, a um preconceito estético e moral. Não
devemos desprezar em demasia esses preconceitos; são coisas poderosas, são precipitados da evolução do
homem que foram úteis e, na verdade, essenciais. Sua existência é mantida por forças emocionais, e a luta
contra eles é árdua.
A primeira dessas assertivas impopulares feitas pela psicanálise declara que os processos mentais são,
em si mesmos, inconscientes e que de toda a vida mental apenas determinados atos e partes isoladas são
conscientes. Os senhores sabem que, pelo contrário, temos o hábito de identificar o que é psíquico com o que é
consciente. Consideramos a consciência, sem mais nem menos, como a característica que define o psíquico, e
a psicologia como o estudo dos conteúdos da consciência. Na verdade, parece-nos tão natural os igualar dessa
forma, que qualquer contestação à idéia nos atinge como evidente absurdo. A psicanálise, porém, não pode
evitar o surgimento dessa contradição; não pode aceitar a identidade do consciente com o mental. Ela define o
que é mental, enquanto processos como o sentir, o pensar e o querer, e é obrigada a sustentar que existe o
pensar inconsciente e o desejar não apreendido. Dizendo isso, de saída e inutilmente ela perde a simpatia de
todos os amigos do pensamento científico solene, e incorre abertamente na suspeita de tratar-se de uma
doutrina esotérica, fantástica, ávida de engendrar mistérios e de pescar em águas turvas. Contudo, as senhoras
e os senhores naturalmente não podem compreender, por agora, que direito tenho eu de descrever como
preconceito uma afirmação de natureza tão abstrata como ‘o que é mental é consciente’. E nem podem os
senhores conjecturar que evolução seja essa, que chegou a levar a uma negação do inconsciente — se é que
isso existe — e que vantagem pode ter havido em tal negação. A questão de saber se devemos fazer coincidir
o psíquico com o consciente, ou aumentar a abrangência daquele, soa como uma discussão vazia em torno de
palavras; mas posso assegurar-lhes que a hipótese de existirem processos mentais inconscientes abre o
caminho para uma nova e decisiva orientação no mundo e na ciência.
Os senhores não podem sequer ter qualquer noção de quão íntima é a conexão entre essa primeira
mostra de coragem por parte da psicanálise e a segunda, da qual devo agora falar-lhes. Essa segunda tese,
que a psicanálise apresenta como uma de suas descobertas, é uma afirmação no sentido de que os impulsos
instintuais que apenas podem ser descritos como sexuais, tanto no sentido estrito como no sentido mais amplo
do termo, desempenham na causação das doenças nervosas e mentais um papel extremamente importante e
nunca, até o momento, reconhecido. Ademais, afirma que esses mesmos impulsos sexuais também fornecem
contribuições, que não podem ser subestimadas, às mais elevadas criações culturais, artísticas e sociais do
espírito humano.
Em minha experiência, a antipatia que se volta contra esse resultado da pesquisa psicanalítica é a mais
importante fonte de resistência que ela encontrou. Gostariam de ouvir como explicamos esse fato? Acreditamos
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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que a civilização foi criada sob a pressão das exigências da vida, à custa da satisfação dos instintos; e
acreditamos que a civilização, em grande parte, está sendo constantemente criada de novo, de vez que cada
pessoa, assim que ingressa na sociedade humana, repete esse sacrifício da satisfação instintual em benefício
de toda a comunidade. Entre as forças instintuais que têm esse destino, os impulsos sexuais desempenham
uma parte importante, nesse processo eles são sublimados — isto é, são desviados de suas finalidades sexuais
e dirigidos a outras, socialmente mais elevadas e não mais sexuais. Esse arranjo, contudo, é instável; os
instintos sexuais são imperfeitamente subjugados e, no caso de cada indivíduo que se supõe juntar-se ao
trabalho da civilização, há um risco de seus instintos sexuais se rebelarem contra essa destinação. A sociedade
acredita não existir maior ameaça que se possa levantar contra sua civilização do que a possibilidade de os
instintos sexuais serem liberados e retornarem às suas finalidades originais. Por esse motivo, a sociedade não
quer ser lembrada dessa parte precária de seus alicerces. Não tem interesse em reconhecer a força dos
instintos sexuais, nem interesse pela demonstração da importância da vida sexual para o indivíduo. Ao
contrário, tendo em vista um fim educativo, tem-se empenhado em desviar a atenção de todo esse campo de
idéias. É por isso que não tolerará esse resultado da pesquisa psicanalítica, e nitidamente prefere qualificá-lo
como algo esteticamente repulsivo e moralmente repreensível, ou como algo perigoso. Entretanto, as objeções
dessa espécie são ineficazes contra aquilo que se ergueu como produto objetivo de um exemplo de trabalho
científico; se a contestação se fizer em público, então deve ser expressa novamente, em termos intelectuais.
Ora, é inerente à natureza humana ter uma tendência a considerar como falsa uma coisa de que não gosta e,
ademais, é fácil encontrar argumentos contra ela. Assim, a sociedade transforma o desagradável em falso.
Rebate as verdades da psicanálise com argumentos lógicos e concretos; estes, porém, surgem de fontes
emocionais, e ela mantém essas objeções na forma de preconceitos, opondo-se a toda tentativa de as
contestar.
Nós, porém, senhoras e senhores, podemos afirmar que, ao expor esta controvertida tese, não temos
em vista qualquer objetivo tendencioso. Desejamos simplesmente dar expressão a um assunto que acreditamos
ter demonstrado mediante nossos conscienciosos trabalhos. Afirmamos também o direito de rejeitar sem
restrição qualquer interferência motivada em considerações práticas, no trabalho científico, mesmo antes de
nos termos perguntado se o medo, que procura impor-nos essas considerações, é justificado ou não.
Essas, pois, são algumas das dificuldades que se erguem contra o interesse dos senhores pela
psicanálise. São, talvez, mais que suficientes para um começo. Porém, se puderem vencer a impressão que
lhes causam, prosseguiremos.
CONFERÊNCIA II - PARAPRAXIAS
SENHORAS E SENHORES:
Não começaremos com postulados, e sim com uma investigação. Escolhamos como tema
determinados fenômenos muito comuns e muito conhecidos, os quais, porém, têm sido muito pouco
examinados e, de vez que podem ser observados em qualquer pessoa sadia, nada têm a ver com doenças.
São o que se conhece como ‘parapraxias’, às quais todos estão sujeitos. Pode acontecer, por exemplo, que
uma pessoa que tenciona dizer algo venha a usar, em vez de uma palavra, outra palavra (um lapso de língua
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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[Versprechen]), ou possa fazer a mesma coisa escrevendo, podendo, ou não, perceber o que fez. Ou uma
pessoa pode ler algo, seja impresso ou manuscrito, diferentemente do que na realidade está diante de seus
olhos (um lapso de leitura [Verlesen]), ou ouvir errado algo que lhe foi dito (um lapso de audição [Verhören] ) —
na hipótese, naturalmente, de não haver qualquer perturbação orgânica de sua capacidade auditiva. Outro
grupo desses fenômenos tem como sua base o esquecimento [Vergessen] — não, no entanto, um
esquecimento permanente, mas apenas um esquecimento temporário. Assim, uma pessoa pode ser incapaz de
se lembrar de uma palavra que conhece, apesar de tudo, e que reconhece de imediato, ou pode esquecer de
executar uma intenção, embora dela se lembre mais tarde, tendo-a esquecido apenas naquele determinado
momento. Em um terceiro grupo o caráter temporário está ausente — por exemplo, no caso de extravio
[Verlegen], quando a pessoa colocou uma coisa em algum lugar e não consegue encontrá-la novamente, ou no
caso precisamente igual de perda [Verlieren]. Aqui temos um esquecimento que tratamos diferentemente de
outras formas de esquecimento, um caso em que ficamos surpresos ou aborrecidos em vez de considerá-lo
compreensível. Além de tudo isso, há determinadas espécies de erros [Irrtümer], nos quais o caráter temporário
está presente mais uma vez: pois, no caso destes, por um certo espaço de tempo acreditamos saber algo que,
antes ou depois desse período, na realidade não sabemos. E existem numerosos outros fenômenos
semelhantes, conhecidos por diversos nomes.
Todas essas são ocorrências cuja afinidade interna recíproca é expressa pelo fato de [em alemão] sua
designação começar com a sílaba ‘ver‘. Quase todas carecem de importância, na maioria são muito transitórias
e são destituídas de muita importância na vida humana. Apenas raramente, como no caso da perda de um
objeto, um fenômeno desses assume certo grau de importância prática. Também por esse motivo chamam
pouco a atenção, fazem surgir nada mais que tênues emoções, e assim por diante.
É para esses fenômenos, também, que agora proponho chamar a atenção dos senhores. Porém, irão
protestar com certo enfado: ‘Há tantos problemas ingentes no amplo universo, assim como dentro dos estreitos
limites de nossas mentes, tantas maravilhas no campo dos distúrbios mentais, que exigem e merecem
elucidação, que parece realmente injustificado investir trabalho e interesse em tais trivialidades. Se o senhor
puder fazer-nos compreender por que uma pessoa com olhos e ouvidos sãos pode ver e ouvir, em plena luz do
dia, coisas que não se encontram ali; por que outra pessoa subitamente pensa estar sendo perseguida pelas
pessoas das quais foi, até então, muito amiga, ou apresenta os mais engenhosos argumentos em apoio de
suas crenças delirantes, que qualquer criança poderia ver que são disparatadas, então deveríamos ter algum
apreço pela psicanálise. Entretanto, se ela não pode fazer mais que nos pedir para considerarmos por que um
orador, num banquete, emprega uma palavra em vez de outra, ou por que uma dona de casa extraviou suas
chaves, e futilidades semelhantes, então saberemos como empregar melhor nosso tempo e interesse.’
Eu responderia: Paciência, senhoras e senhores! Penso que suas críticas perderam o rumo. É verdade
que a psicanálise não pode vangloriar-se de jamais haver-se ocupado de trivialidades. Pelo contrário, o material
para sua observação é geralmente proporcionado pelos acontecimentos banais, postos de lado pelas demais
ciências como sendo bastante insignificantes — o refugo, poderíamos dizer, do mundo dos fenômenos. Porém,
não estão os senhores fazendo confusão, em suas críticas, entre a vastidão dos problemas e a evidência que
aponta para eles? Não existem coisas muito importantes que, sob determinadas condições e em determinadas
épocas, só se podem revelar por indicações bastante débeis? Eu não encontraria dificuldade para fornecer-lhes
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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diversos exemplos de tais situações. Se o senhor, por exemplo, é um homem jovem, não será a partir de
pequenos indícios que concluirá haver conquistado os favores de uma jovem? Esperaria uma expressa
declaração de amor, ou um abraço apaixonado? Ou não seria suficiente um olhar, que outras pessoas mal
perceberiam, um ligeiro movimento, o prolongamento, por um segundo, da pressão de sua mão? E se fosse um
detetive empenhado em localizar um assassino, esperaria achar que o assassino deixou para trás sua
fotografia, no local do crime, com seu endereço assinalado? Ou não teria necessariamente de ficar satisfeito
com vestígios fracos e obscuros da pessoa que estivesse procurando? Assim sendo, não subestimemos os
pequenos indícios; com sua ajuda podemos obter êxito ao seguirmos a pista de algo maior. Ademais, penso,
como os senhores, que os grandes problemas do universo e da ciência são aqueles que mais exigem nosso
interesse. É, porém, muito raro alguém manter a expressa intenção de se devotar à pesquisa deste ou daquele
grande problema. Fica-se então sem poder saber qual o primeiro passo a dar. É mais promissor, no trabalho
científico, atacar o que quer que esteja imediatamente à nossa frente e ofereça uma oportunidade à pesquisa.
Agindo dessa forma, realmente com afinco e sem preconceito ou sem prevenções, e tendo-se sorte, então,
desde que tudo se relaciona com tudo, inclusive as pequenas coisas com as grandes, pode-se, mesmo partindo
de um trabalho despretensioso, ter acesso ao estudo dos grandes problemas. É isso que eu devia dizer, a fim
de manter o interesse dos senhores quando tratamos dessas trivialidades tão evidentes como o são as
parapraxias de pessoas sãs.
Peçamos, agora, auxílio a alguém que nada saiba de psicanálise, e perguntemos-lhe como explica
essas ocorrências. Sua primeira resposta certamente será: ‘Ora, não há o que explicar: não passam de
pequenos acontecimentos ao acaso.’ O que o amigo quer dizer com isso? Estará afirmando existirem
ocorrências, embora pequenas, que escapam à concatenação universal dos fatos — ocorrências que tanto
poderia haver como não haver? Se alguém comete uma infração desse tipo no determinismo dos eventos
naturais em um só ponto, significa que atirou fora toda a Weltanschauung da ciência. A própria Weltanschauung
da religião, podemos lembrar-lhe, se comporta de maneira mais coerente, porque dá explícita garantia de que
nenhum pardal cai do telhado sem a vontade de Deus. Penso que nosso amigo hesitará em tirar a conclusão
lógica dessa primeira resposta; mudará de opinião e dirá que, afinal, quando vir a estudar essas coisas, poderá
encontrar explicações para elas. O que está em questão são pequenas falhas no funcionamento, imperfeições
na atividade mental, cujos determinantes podem ser especificados. Um homem que em geral consegue falar
corretamente, pode cometer um lapso de língua (1) se está ligeiramente indisposto e cansado, (2) se está
excitado e ( 3 ) se está excessivamente ocupado com outras coisas. É fácil comprovar essas afirmações. Os
lapsos de língua realmente acontecem com especial freqüência quando se está cansado, quando se tem dor de
cabeça ou quando se está ameaçado de enxaqueca. Nas mesmas circunstâncias, os nomes próprios são
esquecidos com facilidade. Algumas pessoas estão acostumadas a reconhecer a aproximação de um ataque
de enxaqueca quando nomes próprios lhes escapam dessa forma . Quando estamos excitados, também,
amiúde cometemos erros com palavras — assim como com coisas, e segue-se um ‘ato descuidado’. Intenções
são esquecidas e numerosos outros atos não premeditados se tornam perceptíveis se estamos distraídos —
isto é, propriamente falando, se estamos concentrados em alguma coisa. Um conhecido exemplo de tal
distração é o professor em Fliegende Blätter, que perde seu guarda-chuva e pega o chapéu errado porque está
pensando nos problemas que terá de abordar no livro seguinte. Todos nós podemos recordar, de nossa própria
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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experiência, exemplos de como nos é possível esquecer intenções que tivemos e promessas que fizemos, por
termos nesse entremeio passado por alguma experiência absorvente.
Tal coisa soa bastante razoável e parece não ser passível de contradição, embora possa afigurar-se
não muito interessante, talvez, e não ser o que esperávamos. Vejamos mais de perto essas explicações sobre
parapraxias. As supostas precondições para a ocorrência desses fenômenos não são todas da mesma espécie.
Estar doente e ter distúrbios de circulação fornecem um motivo fisiológico de deterioração do funcionamento
normal; a excitação, a fadiga e a distração são fatores de outra espécie que poderiam ser descritos como
psicofisiológicos. Esses últimos comportam fácil tradução para a teoria. Tanto a fadiga como a distração e,
talvez, também a excitação geral realizam uma divisão da atenção, que pode resultar em que seja dirigida
atenção insuficiente para a função em apreço. Nesse caso, a função pode ser perturbada com especial
facilidade ou executada com descuido. Uma ligeira doença ou mudanças no suprimento sangüíneo ao órgão
nervoso central podem ter o mesmo efeito, influenciando de modo similar o fator determinante, a divisão da
atenção. Em todos esses casos, portanto, seria uma questão de efeito de um distúrbio da atenção, de causas
orgânicas ou físicas.
Isso parece não prometer muito ao nosso interesse psicanalítico. Poderíamos sentir-nos tentados a
abandonar o tema. Se, no entanto, examinarmos as observações mais atentamente, o que vemos não se
harmoniza inteiramente com essa teoria da atenção das parapraxias, ou, pelo menos, naturalmente não se
regula por ela. Descobrimos que as parapraxias desse tipo e o esquecimento dessa espécie ocorrem em
pessoas que não estão fatigadas ou distraídas ou excitadas, mas que estão, sob todos os aspectos, em seu
estado normal — a menos que decidamos atribuir ex post facto às pessoas em questão, puramente por conta
de suas parapraxias, uma excitação que, entretanto, elas mesmas não comportam. Nem pode, simplesmente,
tratar-se do caso de uma função ser garantida através de um incremento da atenção dirigida a ela, e ser
comprometida se essa atenção é reduzida. Há grande número de ações efetuadas de forma puramente
automática, com muito pouca atenção, não obstante com total segurança. Um caminhante, que mal sabe aonde
está indo, mantém-se no caminho certo, malgrado isso, e pára em seu destino sem se haver perdido
[vergangen]. Ora, em todos os casos, isso é como uma regra. Um exímio pianista toca as teclas certas, sem
pensar. Pode naturalmente cometer um erro ocasional; porém, se o tocar automático aumentasse o risco de
errar, esse risco seria máximo para um virtuose, cuja forma de tocar, em conseqüência de prolongada prática,
se tornou inteiramente automática. Sabemos, pelo contrário, que muitas ações são efetuadas com um grau de
precisão muito especial se não são objeto de um nível especialmente elevado de atenção, e que o infortúnio de
uma parapraxia está fadado a ocorrer precisamente quando se atribui importância especial ao funcionamento
correto, portanto deveras sem que houvesse distração da atenção necessária. Poder-se-ia argüir que isso é o
resultado da ‘excitação’, porém é difícil enxergar por que a excitação não deveria, inversamente, aumentar a
atenção dirigida para aquilo que tão intensamente é desejado. Se, por um lapso de língua, alguém diz o oposto
do que pretende, em um importante discurso ou comunicação oral, dificilmente isso pode ser explicado pela
teoria psicofisiológica ou da atenção.
Existem, ademais, numerosos pequenos fenômenos secundários no caso das parapraxias, os quais
não compreendemos e a cujo respeito as explicações dadas até agora não trouxeram nenhuma luz. Por
exemplo, se temporariamente esquecemos um nome, aborrecemo-nos com isso, fazemos tudo para recordá-lo
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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e não podemos nos resignar. Por que, nesses casos, é tão extremamente raro lograrmos orientar nossa
atenção, pois enfim estamos ansiosos por fazê-lo, à palavra que (como dizemos) está ‘na ponta da língua’ e
que reconhecemos de pronto quando é dita para nós? Ou ainda: há casos em que as parapraxias se
multiplicam, formam cadeias e se substituem umas às outras. Numa primeira ocasião alguém perdeu um
compromisso. Na ocasião seguinte, quando se decidiu firmemente não esquecer desta vez, verifica-se que se
faz anotação da hora errada. Ou tenta-se chegar, por vias indiretas, a uma palavra esquecida, e nisso escapa
uma segunda palavra que poderia ter ajudado a encontrar a primeira. Procurando-se por essa segunda palavra,
uma terceira desaparece, e assim por diante. Como bem se sabe, o mesmo acontece com os erros de
impressão, que devem ser considerados as parapraxias do compositor. Um teimoso erro de impressão dessa
espécie, segundo se conta, certa vez esgueirou-se para dentro de um jornal social-democrata. A notícia que
dava de uma cerimônia incluía as palavras: ‘Entre os que estavam presentes, podia-se notar Sua Alteza o
Kornprinz.‘ No dia seguinte, fez-se uma tentativa de correção. O jornal pedia desculpas e dizia: ‘Devíamos,
naturalmente, ter dito “o Knorprinz”.’ Em tais casos, as pessoas falam de um ‘demônio dos erros de impressão’
ou um ‘demônio da composição tipográfica’ — expressões que, pelo menos, vão além de qualquer teoria
psicofisiológica dos erros de impressão.
Talvez lhes seja também conhecido o fato de ser possível provocar lapsos de língua, produzi-los,
digamos assim, por sugestão. Uma anedota ilustra esse fato. Tinha sido confiado a um estreante dos palcos o
importante papel, em Die Jungfrau von Orleans [de Schiller], do mensageiro que anuncia ao rei de ‘der
Connétable schickt sein Schwert zurück [o Condestável devolve sua espada]’. Um primeiro ator divertia-se,
durante os ensaios, com induzir repetidamente o nervoso jovem a dizer, em vez das palavras do texto: ‘der
Komfortabel schickt sein Pferd zurück [o cocheiro devolve seu cavalo]’. Conseguiu seu intento: o desventurado
principiante realmente fez sua estréia na representação com a versão corrompida, apesar de haver sido
admoestado de não fazê-lo, ou, talvez, porque tenha sido admoestado.
Nenhuma luz é lançada sobre esses pequenos aspectos das parapraxias com a teoria da falta de
atenção. Porém, não significa necessariamente que a teoria seja errônea, em face dessa explicação; ela
simplesmente pode estar carecendo de algo, de algum acréscimo, para que venha a ser completamente
satisfatória. Contudo, algumas das parapraxias também podem ser consideradas por outro prisma.
Tomemos os lapsos de língua como o tipo de parapraxia mais adequado a nossos propósitos —
embora pudéssemos igualmente ter escolhido lapsos de escrita ou lapsos de leitura. Devemos ter em mente
que, até aqui, apenas perguntamos quando — sob que condições — as pessoas cometem lapsos de língua, e
apenas para essa pergunta tivemos uma resposta. Poderíamos, porém, dirigir nosso interesse para outro
aspecto e indagar por que razão o erro ocorreu dessa determinada forma e não de outra; e poderíamos
considerar o que é que emerge no lapso propriamente dito. Os senhores observarão que, enquanto essa
pergunta não for respondida e nada for respondido e nada for elucidado sobre o lapso, o fenômeno permanece
como evento casual, do ponto de vista psicológico, embora dele se tenha dado uma explicação fisiológica. Se
eu cometesse um lapso de língua, poderia obviamente fazê-lo em número infinito de formas, a palavra certa
poderia ser substituída por alguma palavra entre milhares de outras, ser distorcida em incontáveis direções
diferentes. Existe, pois, algo que, no caso particular, me compele a cometer o lapso de uma determinada forma;
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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ou isso continua sendo uma questão de acaso, de escolha arbitrária, e se trata, talvez, de uma pergunta a que
não se pode dar qualquer resposta sensata?
Dois escritores, Meringer e Mayer (um, filólogo, o outro, psiquiatra), de fato tentaram, em 1895, atacar o
problema das parapraxias por esse ângulo. Coligiram exemplos e começaram por abordá-los de maneira
puramente descritiva. Isso, naturalmente, até aqui não oferece nenhuma explicação, embora possa preparar o
caminho para alguma. Distinguem os diversos tipos de distorções que o lapso impõe ao discurso pretendido,
como ‘transposições’, ‘pré-sonâncias [antecipações]’, ‘pós-sonâncias [perseverações]’, ‘fusões (contaminações)’
e ‘substituições’. Eu lhes darei alguns exemplos desses principais grupos propostos pelos autores. Um exemplo
de transposição seria dizer ‘a Milo de Vênus‘ em vez de ‘a Vênus de Milo’ (transposição da ordem das
palavras); um exemplo de pré-sonância [antecipação] seria: ‘es war mir auf der Schwest… auf der Brust so
schwer’; e uma pós-sonância [perseveração] seria exemplificada pelo conhecido brinde que saiu errado: ‘Ich
fordere Sie auf, auf das Wohl unseres Chefs aufzustossen’ [em vez de ‘anzustossen’]. Essas três formas de
lapso de língua não são propriamente comuns. Os senhores encontrarão exemplos muito mais numerosos, nos
quais o lapso resulta de contração ou fusão. Assim, por exemplo, um cavalheiro dirige-se a uma senhora na rua
com as seguintes palavras: ‘Se me permite, senhora, gostaria de a begleit-digen.‘ A palavra composta que se
juntou a ‘begleiten [acompanhar]’ evidentemente escondeu em si ‘beleidigen [insultar]’. (Diga-se de passagem,
o jovem provavelmente não teve muito êxito com a senhora.) Como exemplo de substituição, Meringer e Mayer
citam o caso de alguém que diz: ‘Ich gebe die Präparate in den Briefkasten’ em vez de ‘Brütkasten’.
A explicação em que esses autores tentaram basear sua coleção de exemplos, é especialmente
inadequada. Acreditam que os sons e as sílabas de uma palavra têm uma ‘valência’ determinada, e que a
inervação de um elemento de alta valência pode exercer uma influência perturbadora em outro de menor
valência. Com isso, estão evidentemente se baseando nos raros casos de pré-sonância e pós-sonância; essas
preferências de uns sons a outros (se é que de fato existem) podem não ter absolutamente qualquer relação
com outros casos de lapsos de língua. Afinal, os lapsos de língua mais comuns ocorrem quando, em vez de
dizermos uma palavra, dizemos uma outra muito semelhante; e essa semelhança é, para muitos, explicação
suficiente de tais lapsos. Por exemplo, um professor declarou em sua aula inaugural: ‘Não estou ‘geneigt
[inclinado]’ (em vez de ‘geeignet [qualificado]’) a valorizar os serviços de meu mui estimado predecessor.’ Ou
então, outro professor observava: ‘No caso dos órgãos genitais femininos, apesar de muitas Versuchungen
[tentações] — me desculpem, Versuche [tentativas] ….’
O tipo mais comum e, ao mesmo tempo, mais notável de lapsos de língua, no entanto, são aqueles em
que se diz justamente o oposto do que se pretendia dizer. Aqui, naturalmente, estamos muito longe de relações
entre sons e os efeitos de semelhança; e, em vez disso, podemos apelar para o fato de que os contrários têm
um forte parentesco conceitual uns com os outros e mantêm entre si uma associação psicológica especialmente
próxima. Há exemplos históricos de tais ocorrências. Um presidente da câmara dos deputados de nosso
parlamento certa vez abriu a sessão com as palavras: ‘Senhores, observo que está presente a totalidade dos
membros, e por isso declaro a sessão encerrada.’
Qualquer outra associação conhecida pode atuar da mesma forma insidiosa, como um contrário, e
emergir em circunstâncias bastante inadequadas. Assim, conta-se que, por ocasião de uma celebração em
honra do casamento de um filho de Hermann von Helmholtz com uma filha de Werner von Siemens, o
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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conhecido inventor e industrial, a incumbência de saudar à felicidade do jovem par coube ao famoso fisiologista
Du Bois-Reymond. Sem dúvida, este fez um discurso brilhante, porém encerrou com as palavras: ‘Portanto,
longa vida à nova firma Siemens e Haeske!’ Essa era, naturalmente, a denominação da antiga firma. A
justaposição dos dois nomes deve ter sido tão familiar a um berlinense como Fortnum e Mason o seria a um
londrino.
Devemos, portanto, incluir entre as causas das parapraxias não apenas relações entre sons e
semelhança verbal, como também a influência das associações de palavras. Isso, porém, não é tudo. Em
numerosos casos, parece impossível explicar um lapso de língua, a não ser que levemos em conta algo que
tinha sido dito, ou mesmo simplesmente pensado, em uma frase anterior. De novo temos aqui um caso de
perseveração, como aqueles em que insistia Meringer, porém de origem mais remota. Devo confessar que
sinto, na totalidade, como se estivéssemos mais longe do que nunca de compreender os lapsos de língua.
Não obstante, espero não estar equivocado ao dizer que, durante essa última pesquisa, todos nós
tivemos uma nova impressão desses exemplos de lapsos de língua, e que pode valer a pena considerar um
pouco mais detidamente essa impressão. Examinamos as condições sob as quais em geral os lapsos de língua
ocorrem, e, depois, as influências que determinam o tipo de distorção produzida pelo lapso. Até agora, no
entanto, não dedicamos nada de nossa atenção ao produto do lapso considerado em si mesmo, sem referência
à sua origem. Se decidimos fazê-lo, não podemos deixar de encontrar, no final, coragem para dizer que, em
alguns exemplos, aquilo que resulta do lapso de língua tem um sentido próprio. O que queremos dizer com ‘tem
um sentido’? Que o produto do lapso de língua pode, talvez, ele próprio ter o direito de ser considerado como
ato psíquico inteiramente válido, que persegue um objetivo próprio, como uma afirmação que tem seu conteúdo
e seu significado. Até aqui temos sempre falado em ‘parapraxias [atos falhos]’, porém agora é como se às
vezes o ato falho fosse, ele mesmo, um ato bastante normal, que simplesmente tomou o lugar de outro, que era
o ato que se esperava ou desejava.
O fato de a parapraxia ter um sentido próprio parece, em determinados casos, evidente e inequívoco.
Quando o presidente da câmara dos deputados, com suas primeiras palavras, encerrou a sessão em vez de
abri-la, sentimo-nos inclinados, em vista de nosso conhecimento das circunstâncias em que o lapso de língua
ocorreu, a reconhecer que a parapraxia tem um sentido. O presidente não esperava nada de bom da sessão e
ficaria satisfeito se pudesse dar-lhe um fim imediato. Não temos qualquer dificuldade em chamar a atenção para
o sentido desse lapso de língua, ou, por outras palavras, de interpretá-lo. Ou, então suponhamos que uma
mulher diga a outra, em tom de aparente admiração: ‘Esse lindo chapéu novo, suponho que você mesma o
aufgepatzt [palavra não existente, em lugar de aufgeputzt (enfeitou)], não?’ Ora, não existe decoro científico
que possa impedir-nos de ver por trás desse lapso de língua as palavras: ‘Esse chapéu é uma Patzerei [droga].’
Ou, noutro caso, contam-nos que uma senhora, conhecida por seus modos enérgicos, certa ocasião observava:
‘Meu marido perguntou a seu médico qual dieta devia seguir; mas o médico lhe disse que não precisava de
dieta: ele podia comer e beber o que eu quero.’ Também nesse caso o lapso de língua tem seu inconfundível
outro lado: estava expressando um programa coerentemente planejado.
Se viesse a acontecer, senhoras e senhores, que tivessem um sentido não apenas alguns exemplos de
lapsos de língua e de parapraxias em geral, mas considerável número deles, o sentido das parapraxias, do qual
até agora nada ouvimos, se tornaria seu aspecto mais importante e deslocaria qualquer outra consideração
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para um plano secundário. Poderíamos, então, pôr de lado todos os fatores fisiológicos e psicofisiológicos e
dedicar-nos à investigação exclusivamente psicológica do sentido — isto é, da significação ou do propósito —
das parapraxias. Por conseguinte, nos ocuparemos em testar essa hipótese em grande número de
observações.
Antes, porém, de levar a cabo essa intenção, gostaria de convidá-los a seguir-me ao longo de outra
pista. Repetidamente tem acontecido haver um escritor criativo feito uso de um lapso de língua ou de alguma
outra parapraxia como meio de produzir um efeito pleno de imaginação. Esse fato isoladamente deve
demonstrar-nos que ele considera a parapraxia — o lapso de língua, por exemplo — como possuidora de um
sentido, de vez que a produziu deliberadamente. Pois o que sucedeu não foi o autor ter cometido um lapso de
escrita acidental e, assim, permitido o uso do mesmo por um de seus personagens, na qualidade de lapso de
língua; ele tenciona trazer algo à nossa atenção mediante o lapso de língua, e podemos indagar sobre que algo
é esse, se talvez queira sugerir que o personagem em questão esteja distraído e fatigado, ou esteja prestes a
ter um ataque de enxaqueca. Se o autor emprega o lapso como se este tivesse um sentido, nós, naturalmente,
não temos vontade de exagerar a importância disso. Afinal, um lapso poderia realmente não ter sentido, ser um
evento psíquico casual ou poderia ter um sentido apenas em casos bastante raros; contudo, ainda assim o
autor teria o direito de intelectualizá-lo fornecendo a ele um sentido, a fim de empregá-lo segundo suas
finalidades próprias. E não seria de surpreender se tivéssemos mais a aprender sobre lapsos de língua com
escritores criativos, do que com filólogos e psiquiatras.
Um exemplo desse tipo pode ser encontrado em Wallenstein (Piccolomini Ato I, Cena 5), [de Schiller].
Na cena anterior, Max Piccolomini esposou ardentemente a causa do Duque [de Wallenstein] e esteve
descrevendo apaixonadamente os benefícios da paz, dos quais se tornou cônscio no decurso de uma viagem
enquanto acompanhava a filha de Wallenstein ao campo. Quando ele deixa o palco, seu pai [Octavio] e
Questenbergs, o emissário da Corte, estão mergulhados em consternação. A Cena 5 continua:
QUESTENBERG Ai de mim! e continua assim?Como, amigo! deixamo-lo partirNeste delírio — deixá-lo
partir?Não chamá-lo de volta imediatamente,[não abrirSeus olhos, sem perda de tempo?
OCTAVIO (saindo de uma meditação profunda)
Ele vem de abrir meus olhos,E enxergo mais do que me apraz.
QUEST. Que é isso?
OCT. Amaldiçoem essa viagem!
QUEST. Mas, por quê? Que se passa?
OCT. Vem, vamos juntos, amigos! Preciso seguirA execrável rota, imediatamente. Meus olhosAgora
estão abertos, e devo usá-los. Vem!(Atrai Q. e o leva consigo.)
QUEST. Que está havendo? Aonde vais, então!?
OCT. Até ela…
QUEST. Até —
OCT. (corrigindo-se.) Até o Duque. Vem, partamos.[Conforme a tradução inglesa de Coleridge.]
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
21
Otávio quis dizer ‘até ele’, ao Duque. Comete, porém, um lapso de língua e, dizendo ‘até lá’ ao menos
revela a nós que reconheceu claramente a influência que o jovem guerreiro causou em um entusiasta da paz.
Um exemplo ainda mais impressionante foi descoberto por Otto Rank [1910a] em Shakespeare. Está
em O Mercador de Veneza, na famosa cena em que o venturoso amante escolhe entre os três cofres… e talvez
o melhor é ler para os senhores a breve descrição de Rank:
‘Um lapso de língua ocorre em O Mercador de Veneza, de Shakespeare (Ato III, Cena 2) e é, do ponto
de vista dramático, causado de maneira extremamente sutil e empregado com técnica brilhante. Semelhante ao
lapso existente em Wallenstein, para o qual Freud chamou a atenção, mostra que os dramaturgos possuem
uma clara compreensão do mecanismo e do significado desse tipo de parapraxia, e supõem que o mesmo seja
verdadeiro para sua platéia. Pórcia, que, por vontade de seu pai, teve de escolher um marido por sorteio,
escapou, até então, de todos os seus indesejados pretendentes por um feliz acaso. Tendo enfim encontrado em
Bassanio o pretendente de sua preferência, tem motivos para temer que também ele venha a escolher o cofre
errado. Ela desejaria muito dizer-lhe que, mesmo assim, ele poderia ter certeza de seu amor; porém isso lhe é
vedado em virtude do juramento. Nesse conflito íntimo, o poeta faz com que ela diga ao pretendente preferido:
Por favor, não vos apresseis; esperai um ou dois dias antes de consultar a sorte, pois, se escolherdes
mal, perco vossa companhia; assim, pois, aguardai um pouco. Alguma coisa me diz (mas não é o amor) que
não quereria perder-vos… Eu poderia ensinar-vos como escolher bem; mas, então, seria perjura e não o serei
jamais. Podeis, pois, fracassar; porém, se fracassardes, far-me-eis deplorar não haver cometido o pecado de
perjúrio. Malditos sejam vossos olhos!Encantaram-me e partiram-me em duas partes: uma é vossa e outra é
meia vossa; quero dizer, minha; mas, sendo minha, é vossa e, desse modo, sou toda vossa.
A coisa da qual ela desejava dar a ele apenas um indício muito sutil, porque devia escondê-la dele de
qualquer maneira, ou seja, que ela, mesmo antes de ele fazer a escolha, era inteiramente dele e o amava — é
precisamente isso que o poeta, com uma maravilhosa sensibilidade psicológica, faz irromper abertamente em
seu lapso de língua; e, com essa solução artística, logra aliviar tanto a incerteza intolerável do amante como o
suspense do compreensivo auditório diante do resultado de sua escolha.’
Observem também com que habilidade Pórcia, no fim, reconcilia as duas afirmações contidas em seu
lapso de língua, como resolve a contradição entre elas e como, finalmente, mostra ser o lapso o que estava
correto:
‘Mas, sendo minha, é vossae desse modo, sou toda vossa.’
Ocasionalmente tem acontecido que um pensador, cuja atividade se situa fora da medicina, haja
revelado, por algo que falou, o sentido de uma parapraxia, e se tenha antecipado a nossos esforços de explicála.
Os senhores, todos, ouviram falar no espirituoso satirista Lichtenberg (1742-99), de quem Goethe disse:
‘Onde ele faz uma pilhéria, se esconde um problema.’ Às vezes, a pilhéria também traz à luz a solução do
problema. Nos Witzige und Satirische Einfälle [Witty and Satirical Thoughts, 1853], de Lichtenberg, encontramos
o seguinte: ‘Ele tanto leu Homero, que sempre lia “Agamemnon” em vez de “angenommen [suposto]”.’ Aqui
temos toda a teoria dos lapsos de leitura.
Na próxima vez precisamos ver se podemos concordar com esses escritores em suas opiniões.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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CONFERÊNCIA III - PARAPRAXIAS (continuação)
SENHORAS E SENHORES:
Chegamos, na última vez, à idéia de considerar as parapraxias não em relação à desejada função que
elas perturbavam, mas à sua própria descrição; e tivemos a impressão de que, em casos especiais, pareciam
revelar um sentido próprio. Refletimos então que, se pudesse ser obtida a confirmação, em uma escala mais
ampla, de que as parapraxias têm um sentido, seu sentido logo ficaria mais interessante que a investigação das
circunstâncias em que ocorrem. Vamos, mais uma vez, chegar a um acordo sobre o que se deve entender por
‘sentido’ de processo psíquico. Queremos dizer com isso tão-somente a intenção à qual serve e sua posição em
uma continuidade psíquica. Na maioria de nossas investigações podemos substituir ‘sentido’ por ‘intenção’ ou
‘propósito’. Tratava-se, então, simplesmente de uma ilusão enganadora ou de uma exaltação poética das
parapraxias quando pensamos reconhecer nelas uma intenção?
Continuaremos a tomar lapsos de língua como nossos exemplos. Se agora examinarmos atentamente
numerosas observações desse tipo, encontraremos categorias completas de casos em que a intenção, o
sentido, do lapso é inteiramente visível. Antes de tudo existem aqueles nos quais o que se pretendia é
substituído por seu contrário. O presidente da câmara dos deputados [ver em [1]] disse, em seu discurso de
abertura: ‘Declaro a sessão encerrada.’ Isso não é nada ambíguo. O sentido e intenção de seu lapso era
encerrar a sessão. ‘Er sagt es ja selbst” é o que estamos tentados a citar: é apenas uma questão de aceitar
suas palavras. Não me interrompam neste ponto, objetando que isso é impossível, que sabemos que ele não
queria encerrar a sessão e sim abri-la, e que ele mesmo, a quem nós reconhecemos como a única suprema
corte de apelação, poderia confirmar o fato de que queria abri-la. Os senhores estão se esquecendo de que
fizemos o acordo de começarmos considerando as parapraxias no que concerne à sua própria descrição; sua
relação com a intenção, que elas perturbaram, não será discutida senão mais adiante. De outro modo, os
senhores serão culpados de um erro de lógica, simplesmente por fugirem do problema ora em exame — por
algo que é chamado em inglês ‘begging the question’.
Em outros casos, nos quais o lapso não expressa o exato contrário, não obstante um sentido oposto
pode ser expresso por ele. ‘Não estou geneigt [inclinado] a valorizar os serviços de meu predecessor [ver em
[1]]. Geneigt não é o contrário de geeignet [qualificado], mas exprime claramente algo que contrasta nitidamente
com a situação na qual o discurso devia ser feito.
Já em outros casos o lapso de língua apenas acrescenta um segundo sentido àquele que se pretendia.
A frase então soa como uma contração, uma abreviação ou condensação de diversas frases. Assim, quando a
enérgica senhora dizia: ‘Ele pode comer e beber o que eu quero’ [ver em [1]], é bem como se ela tivesse dito:
‘Ele pode comer e beber o que ele quer; mas o que ele tem a ver com querer? Eu é que quero em vez dele.’
Um lapso de língua muitas vezes dá a impressão de ser uma abreviação desse tipo. Por exemplo, um professor
de anatomia, ao fim de uma conferência sobre as cavidades nasais, perguntou se seu auditório havia
compreendido o que ele disse, e após geral assentimento prosseguiu: ‘Dificilmente posso acreditar nisso, pois,
mesmo em uma cidade com milhões de habitantes, aqueles que entendem das cavidades nasais podem ser
contados em um dedo… desculpem-me, nos dedos de uma mão.’ A frase abreviada também possui um sentido
— a saber, que existe apenas uma pessoa que delas entende.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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Contrastando com esses grupos de casos, nos quais a parapraxia por si mesma revela seu sentido,
existem outros em que a parapraxia não produz nada que tenha algum sentido próprio, e que, por conseguinte,
contrariam nitidamente nossas expectativas. Se alguém deturpa um nome próprio através de um lapso de
língua ou agrupa uma série anormal de sons, esses eventos muito comuns, isoladamente considerados,
parecem dar uma resposta negativa à nossa pergunta sobre se todas as parapraxias têm alguma espécie de
sentido. Um exame mais detido desses exemplos, porém, mostra que essas distorções são facilmente
compreendidas e que absolutamente não existe diferença tão grande entre esses casos mais obscuros e os
anteriores, mais claros.
Um homem, a quem se perguntou a respeito da saúde de seu cavalo, respondeu: ‘Bem, ele draut [uma
palavra sem sentido] … ele dauert [vai durar] mais um mês, talvez.’ Quando lhe foi perguntando o que
realmente quis dizer, explicou haver pensado que isso era uma ‘traurige [triste] história’. A combinação de
‘dauert‘ e ‘traurig‘ produziu ‘draut‘.
Outro homem, falando de uns acontecimentos que condenava, prosseguiu: ‘Mas então, os fatos vieram
a Vorschwein [palavra não existente, em vez de Vorschein (luz)]….’ Respondendo a indagações, confirmou o
fato de que havia considerado essas ocorrências ‘Schweinereien‘ [‘repugnantes’, literalmente ‘porcarias’].
‘Vorschein‘ e ‘Schweinereien‘ combinaram-se para produzir a estranha palavra ‘Vorschwein‘.
Por certo recordam-se do caso do jovem senhor que perguntou à senhora desconhecida se ele a podia
‘begleitdigen‘ [ver em [1]]. Aventuramo-nos a dividir esta forma verbal em ‘begleiten [acompanhar]’ e ‘beleidigen
[insultar]’ e nos sentimos muito certos dessa interpretação, sem precisarmos de qualquer confirmação. Os
senhores verão, a partir desses exemplos, que mesmo esses casos mais obscuros de lapsos de língua podem
ser explicados por uma convergência, uma ‘interferência‘ recíproca entre duas elocuções desejadas; as
diferenças entre esses casos de lapsos surgem meramente do fato de, em algumas ocasiões, uma intenção
tomar completamente o lugar da outra (uma substitui a outra), como nos lapsos de língua que exprimem o
contrário; ao passo que, em outras ocasiões, uma intenção se satisfaz distorcendo ou modificando a outra, de
modo que se produzem estruturas compostas, que fazem sentido, em maior ou menor grau, por sua própria
conta.
Parecemos agora haver desvendado o segredo de grande número de lapsos de língua. Se retivermos
na memória essa descoberta, seremos capazes de compreender também outros grupos que até agora se
constituíram em enigma para nós. Nos casos de distorção de nomes, por exemplo, não podemos supor que se
trate sempre de uma questão de competição entre dois nomes semelhantes, mas diferentes. Não é difícil, no
entanto, entrever a segunda intenção. A distorção de um nome ocorre, muito freqüentemente, sem haver lapsos
de língua; procura dar ao nome um tom ofensivo ou fazê-lo soar como algo inferior, e é um costume conhecido
(ou mau costume) destinado a insultar, que as pessoas civilizadas cedo aprendem a abandonar, porém relutam
em abandonar. Muitas vezes ainda é permitida como brincadeira, embora brincadeira pouco digna. Como
exemplo notório e deselegante dessa forma de distorcer nomes, posso mencionar que, nos dias atuais [da
Primeira Guerra Mundial], o nome do presidente da República Francesa, Poincaré, foi transformado em
‘Schweinskarré‘. Portanto, é plausível supor que a mesma intenção insultuosa esteja presente nesses lapsos de
língua e procure encontrar expressão na distorção de um nome. Explicações semelhantes acodem ao espírito,
na mesma ordem de coisas, quando se trata de certos exemplos de lapsos de língua com efeitos cômicos ou
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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absurdos. ‘Eu os convido a arrotar [aufzustossen] à saúde de nosso Chefe [ver em [1]].’ Aqui, uma atmosfera de
cerimônia é inesperadamente perturbada pela intromissão de uma palavra que evoca uma idéia condenável, e,
à maneira de certas frases insultuosas e ofensivas, mal podemos evitar a suspeita de que uma intenção
procurava encontrar expressão e estava em violenta contradição com as palavras ostensivamente respeitosas.
O que o lapso de língua parece ter estado dizendo era mais ou menos isto: ‘Não acreditem! Isso não é a sério.
Pouco me importa esse sujeito!’ Quase a mesma coisa se aplica a lapsos de língua que transformam palavras
inocentes em outras, indecentes ou obscenas. Assim, ‘Apopos‘ em vez de ‘à propos‘, ou ‘Eischeissweibchen‘
por ‘Eiweissscheibchen‘.Muitas pessoas, como sabemos, tiram alguma satisfação de um costume como esse
de distorcer deliberadamente palavras inocentes em obscenas; tais distorções são vistas como engraçadas, e
ao ouvirmos uma delas devemos, de fato, primeiro indagar do interlocutor se a disse intencionalmente, como
brincadeira, ou se ela ocorreu como lapso de língua.
Bem, está parecendo como se tivéssemos resolvido o problema das parapraxias, e com bem pouca
dificuldade! Não são eventos casuais, porém atos mentais sérios; têm um sentido; surgem da ação concorrente
— ou, talvez, da ação de mútua oposição — de duas intenções diferentes. Agora, contudo, vejo também que os
senhores estão se preparando para apresentar-me uma avalanche de perguntas e de dúvidas, que terão de ser
respondidas e abordadas antes de podermos apreciar esse primeiro resultado de nosso trabalho. Certamente
não tenho qualquer desejo de forçar os senhores a decisões apressadas. Vamos tomá-las na devida ordem,
uma após outra e dedicar-lhes uma tranqüila atenção.
O que é que os senhores desejam perguntar-me? Penso eu que essa explicação se aplica a todas as
parapraxias ou apenas a determinado número delas? Pode este mesmo ponto de vista ser estendido aos
muitos outros tipos de parapraxias, aos lapsos de leitura, aos lapsos de escrita, ao esquecimento, aos atos
descuidados, aos extravios, e assim por diante? Em vista da natureza psíquica das parapraxias, que
significação resta aos fatores de fadiga, excitação, distração e interferência na atenção? E mais, é claro que
das duas intenções rivalizantes de uma parapraxia uma delas sempre está manifesta, porém a outra, nem
sempre. Que fazemos, então, para descobrir essa outra? E, se pensamos tê-la descoberto, como provamos que
se trata não apenas de uma intenção provável, mas da única que é a correta para o caso? Existe algo mais que
desejam perguntar-me? Se não, vou prosseguir. Os senhores se lembrarão de que não damos muito valor às
parapraxias em si mesmas e tudo o que queremos é aprender, partindo de seu estudo, algo que possa resultar
em benefício da psicanálise. Por conseguinte, eu lhes apresento esta questão. Que intenções ou que
propósitos são esses, capazes de perturbar outros dessa maneira? E quais são as relações entre as intenções
que perturbam e as intenções que são perturbadas? Logo, o problema não é resolvido, a menos que
recomecemos nosso trabalho.
Assim, pois, em primeiro lugar, é essa a explicação para todos os casos de lapsos de língua? Estou
muito inclinado a pensar que sim e meu motivo é que, sempre ao se investigar um exemplo de lapso de língua,
surge uma explicação desse tipo. No entanto, realmente também não há maneira de provar que um lapso de
língua não possa ocorrer sem esse mecanismo. Pode ser assim; mas, teoricamente, é uma questão sem
interesse para nós, de vez que permanecem as conclusões que desejamos tirar para nossa introdução à
psicanálise, embora — este não é certamente o caso — nossa opinião seja válida apenas para uma minoria
dos casos de lapsos de língua. À questão seguinte — saber se podemos estender a outros tipos de parapraxias
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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nosso ponto de vista — responderei de antemão com um ‘sim’. Os senhores serão capazes de se convencer
disso ao virmos examinar exemplos de lapsos de escrita, de atos descuidados, e outros mais. Por motivos
técnicos, porém, sugiro que adiemos essa tarefa até havermos abordado os lapsos de língua de forma ainda
mais completa.
Exige-se uma resposta mais detalhada à pergunta sobre que significação resta aos fatores postos em
evidência pelos autores mencionados — distúrbios da circulação, fadiga, excitação, distração e a teoria da
perturbação da atenção — se aceitamos o mecanismo psíquico dos lapsos de língua que descrevemos.
Observem que não estamos negando esses fatores. Em geral não é muito comum a psicanálise negar algo que
outras pessoas afirmam; via de regra, ela apenas acrescenta algo novo — embora, sem dúvida, vez e outra
sucede esse algo, que até então foi negligenciado e é agora apresentado como um acréscimo novo, ser de fato
a essência do assunto. A influência das condições fisiológicas sobre a produção dos lapsos de língua mediante
uma ligeira doença, distúrbios da circulação ou estados de exaustão deve ser reconhecida de imediato; a
experiência cotidiana e pessoal os convencerá disso. Mas, que pouca coisa elas explicam! Antes de tudo, elas
não são precondições necessárias das parapraxias. Lapsos de língua ocorrem, com a mesma possibilidade, em
perfeita saúde e em estado normal. Esses fatores somáticos, portanto, apenas servem para facilitar e favorecer
o especial mecanismo mental dos lapsos de língua. Certa vez usei de uma analogia para descrever essa
relação, e vou repeti-la aqui, porquanto posso supor não haver outra melhor que a substitua. Suponhamos que,
numa noite escura, eu fosse a um local ermo e ali fosse atacado por um meliante, que carregasse com meu
relógio e minha carteira. Como não visse claramente o rosto do ladrão, faria minha queixa no posto policial mais
próximo, com as palavras: ‘Isolamento e escuridão roubaram meus pertences.’ O funcionário da polícia poderia
então dizer-me: ‘Pelo que o senhor diz, parece estar adotando injustificadamente uma opinião extremamente
esquemática. Seria melhor apresentar os fatos assim: “Valendo-se da escuridão e favorecido pelo isolamento
do lugar, um ladrão desconhecido roubou os pertences do senhor.” Em seu caso, me parece que a tarefa
principal é que devemos encontrar o ladrão. Talvez, então, sejamos capazes de recuperar o produto do roubo.’
Esses fatores psicofisiológicos como a excitação, a distração e os distúrbios da atenção muito pouco
nos vão ajudar com vistas a uma explicação. Eles são apenas frases vazias, são biombos atrás dos quais não
devemos nos sentir impedidos de lançar um olhar. A pergunta deveria ser: o que foi causado pela excitação,
pela distração especial da atenção? Ademais, devemos reconhecer a importância da influência dos sons, da
semelhança das palavras e das associações habituais suscitadas pelas palavras. Estas facilitam os lapsos de
língua por apontarem os caminhos que esses lapsos podem tomar. Contudo, se tenho um caminho aberto
diante de mim, esse fato automaticamente decide que eu o tomaria? Preciso de um motivo a mais, antes de me
resolver por ele e, além disso, de uma força que me impulsione pelo caminho. Assim, essas relações de sons e
palavras constituem também, do mesmo modo como as condições somáticas, exclusivamente coisas que
favorecem os lapsos de língua e não podem proporcionar a verdadeira explicação para eles. Considerem
apenas isso: em uma imensa quantidade de casos meu falar não é perturbado pela circunstância de as
palavras, que estou usando, lembrarem outras com som semelhante, de serem intimamente vinculadas a seus
contrários, ou de associações correntes delas derivarem. E talvez pudéssemos encontrar uma saída
acompanhando o filósofo Wundt, quando diz que os lapsos de língua surgem se, em conseqüência de exaustão
física, a tendência a associar prevalece sobre aquilo que a pessoa tenciona dizer. Seria muito convincente se
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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não fosse contrariado pela experiência, que mostra que numa série de casos os fatores somáticos facilitadores
dos lapsos de língua estão ausentes, e que em outra série de casos os fatores associativos, que os facilitam,
estão igualmente ausentes.
Entretanto, estou particularmente interessado em sua pergunta seguinte: Como se descobrem as duas
intenções que se interferem mutuamente? Os senhores provavelmente não percebem como é importante a
pergunta. Uma das duas intenções, aquela que é perturbada, naturalmente é inequívoca: a pessoa que comete
o lapso de língua conhece-a e a admite. É somente a outra, a intenção que perturba, que pode dar origem à
dúvida e à hesitação. Ora, já temos visto, e sem dúvida os senhores não o esqueceram, que em numerosos
casos essa outra intenção é igualmente evidente. É indicada pelo efeito do lapso, bastando que tenhamos a
coragem de reconhecer nesse efeito uma validade própria. Seja o caso do presidente da câmara dos
deputados, cujo lapso de língua disse o contrário do tencionado. E claro que desejava abrir a sessão, porém é
igualmente claro que também desejava encerrá-la. Isso é tão óbvio que não nos deixa nada por interpretar. Nos
outros casos, contudo, nos quais a intenção perturbadora apenas distorce a intenção original sem que ela
mesma consiga completa expressão, como é que, partindo da distorção, chegamos à intenção perturbadora?
Em um primeiro grupo de casos, isso se faz de maneira bastante simples e segura — com efeito, da
mesma maneira como se tem a intenção perturbada. Fazemos o interlocutor dar-nos a informação diretamente.
Depois do lapso de língua, ele prontamente diz as palavras que originalmente pretendia: ‘Draut… não, dauert
[vai durar] mais um mês, talvez.’ [ver em [1]]. Pois bem, exatamente da mesma forma o fazemos dizer qual a
intenção que perturba. ‘Por que’, lhe perguntamos, ‘o senhor disse “draut”?’ Ele responde: ‘Eu queria dizer “É
uma traurige [triste] história”.’ De maneira semelhante, em outro caso, em que o lapso de língua era
‘Vorschwein‘ [ver em [1]], a pessoa confirma o fato de que desejava inicialmente dizer ‘É uma Schweinerei
[porcaria]’, porém se controlou e saiu-se com outro comentário. Aqui, pois, a intenção que distorce fica
estabelecida tão seguramente como aquela que foi distorcida. Minha escolha desses exemplos não foi sem
propósito, de vez que sua origem e sua solução não procedem nem de mim nem de meus seguidores. E em
ambos esses casos medidas ativas de alguma espécie foram necessárias para se chegar à solução. Foi preciso
perguntar ao orador por que cometera o lapso e o que poderia dizer sobre o mesmo. De outro modo, seu lapso
poderia ter-lhe passado despercebido, sem desejar explicá-lo. Quando, porém, foi indagado a respeito, deu a
explicação com a primeira coisa que lhe ocorreu. E agora, por favor, observem que esse pequeno passo
positivo e seu resultado bem-sucedido já são uma psicanálise, e constituem um modelo para todas as
investigações psicanalíticas que empreenderemos daqui por diante.
Serei demais desconfiado, porém, se suspeito que, exatamente no momento em que a psicanálise faz
seu aparecimento perante os senhores, a resistência a ela desperta, simultaneamente? Não se sentem os
senhores inclinados a objetar que a informação dada pela pessoa a quem foi feita a pergunta — a pessoa que
cometeu o lapso de língua — não é totalmente conclusiva? Ela estava naturalmente desejosa, pensam os
senhores, de atender à solicitação de explicar o lapso, e assim disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça e
que parecia capaz de fornecer tal explicação. Isso, porém, não é nenhuma prova de que o lapso realmente
ocorreu dessa maneira. Pode ter sido assim; contudo, também pode ter sucedido de outra forma. E poderia terlhe
ocorrido mais alguma coisa, que seria também apropriada, ou talvez até mesmo mais bem ajustada.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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É estranho quão pouco respeito os senhores, no fundo, têm por um ato psíquico. Imaginem que alguém
tivesse empreendido a análise química de determinada substância e encontrado determinado peso para um de
seus componentes: tantos e tantos miligramas. Determinadas inferências seriam deduzidas desse peso. Ora,
supõem os senhores que alguma vez ocorreria a um químico criticar essas inferências com base no fato de que
a substância isolada poderia igualmente ter tido algum outro peso? Todos se curvarão ante o fato de que o
peso era esse e nenhum outro, e confiantemente tirarão daí suas ulteriores conclusões. No entanto, quando os
senhores se defrontam com o fato psíquico de que determinada coisa ocorreu à mente da pessoa interrogada,
não querem admitir a validade do fato: alguma outra coisa poderia ter-lhe ocorrido! Os senhores acalentam a
ilusão de haver uma coisa como liberdade psíquica e não querem desistir dela. Lamento dizer que discordo
categoricamente dos senhores a este respeito.
Perante isso irão interromper-se, porém apenas para retomar sua resistência em outro ponto. E
prosseguirão: ‘Constitui técnica especial da psicanálise, segundo entendemos, tomarem análise as próprias
pessoas a fim de obter a solução de seus problemas. [ver em [1], adiante.] Agora tomemos um novo exemplo:
aquele em que um orador, convocando a um brinde de homenagem numa ocasião de cerimônia, convidou seus
ouvintes a arrotar [aufzustossen] à saúde do chefe [ver em [1]].O senhor diz [ver em [1] e [2]] que a intenção
perturbadora, nesse caso, era uma intenção de insultar: era essa que estava opondo-se à expressão de
respeito do orador. É, contudo, mera interpretação da parte do senhor, baseada em observações não
relacionadas com o lapso de língua. Se, nesse exemplo, o senhor interrogasse a pessoa responsável pelo
lapso, ela não confirmaria a idéia do senhor, de que ela tencionava um insulto; ao contrário, ela repudiaria isso
energicamente. Por que, em face desse claro desmentido, não abandona sua improvável interpretação?’
Sim. Os senhores encontraram um argumento poderoso desta vez. Posso imaginar o desconhecido
proponente do brinde. Provavelmente é subordinado do chefe do departamento, a quem está sendo feita a
homenagem — talvez ele mesmo já seja professor-assistente, um homem jovem, com excelentes projetos de
vida. Procuro forçá-lo a admitir que ele pode, não obstante, ter tido uma sensação de que nele havia algo se
opondo ao brinde em honra do chefe. Entretanto, isso me põe em maus lençóis. Ele fica impaciente e, de
repente, irrompe: ‘Pare de querer me interrogar, se não, vou ficar grosseiro. O senhor vai arruinar toda a minha
carreira com suas suspeitas. Apenas falei “aufstossen [arrotar]” em vez de “anstossen [brindar]”, porque antes
disse “auf” duas vezes na mesma frase. É o que Meringer chama de perseveração e não há nada mais para ser
interpretado nisso. Está entendendo? Basta!‘ — Hum! Que reação surpreendente — uma negação realmente
enérgica. Vejo que não há nada mais a tratar com o homem. Porém, também constato que ele mostra intenso
interesse pessoal em insistir em que sua parapraxia não tem um sentido. Os senhores também podem sentir
que existe algo de errado em ele ser assim tão rude com uma indagação puramente teórica. Entretanto
pensarão, depois de tudo dito e feito: ele deve saber o que quis e o que não quis dizer.
Mas, será que sabe mesmo? Talvez seja essa ainda a questão.
Agora, porém, julgam que me têm à mercê dos senhores. ‘Então essa é sua técnica’, ouço-os dizer.
‘Quando alguém que cometeu um lapso de língua diz alguma coisa a respeito, que satisfaz ao senhor, o senhor
o declara autoridade decisiva e final no assunto. “É ele mesmo quem diz! [ver em [1]]”. Quando o que ele diz
não se ajusta ao livro do senhor, então tudo quanto o senhor diz é que ele não tem importância — não há
necessidade de acreditar nele.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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Isso é bastante verdadeiro. Mas posso trazer-lhes um exemplo semelhante, no qual ocorre o mesmo
espantoso evento. Quando alguém, acusado de um delito, confessa ao juiz sua ação, o juiz acredita em sua
confissão; porém, se nega, o juiz não acredita nele. Se fosse de outra forma, não haveria aplicação de justiça, e
apesar de erros ocasionais devemos convir em que o sistema funciona.
‘O senhor é um juiz, então? E uma pessoa que cometeu um lapso de língua é trazida à sua presença
sob acusação? Quer dizer que cometer um lapso de língua é um delito, não é?’
Talvez não precisemos rejeitar a comparação. Eu, contudo, pedir-lhes-ia observarem que profundas
diferenças de opinião atingimos após uma pequena investigação do que pareciam ser esses inocentes
problemas concernentes às parapraxias — diferenças que, no momento, não vemos como atenuar. Proponho
uma conciliação provisória, com base na analogia entre juiz e réu. Penso que os senhores convirão comigo em
que não pode haver dúvida de que a parapraxia tenha um sentido, se a própria pessoa o admite. Em troca, eu
vou convir em que não podemos chegar a uma prova direta do suspeito sentido, se a pessoa nos recusa
informações, e também, naturalmente, se não está em condições de nos fornecer as informações. Portanto,
como no caso da aplicação da justiça, somos obrigados a voltar-nos para a prova circunstancial, que pode
tornar uma decisão mais fundamentada em alguns casos, e menos, em outros. Nos tribunais de justiça pode ser
necessário, por motivos práticos, considerar um réu culpado com base em provas circunstanciais. Não temos
necessidade disso; nem estamos, contudo, também obrigados a prescindir de provas circunstanciais. Seria um
erro supor que uma ciência consista inteiramente de teses estritamente comprovadas, e seria injusto exigir isso.
Somente uma pessoa inclinada a uma paixão por autoridade fará essa exigência, alguém com um desejo
insaciável de substituir seu catecismo religioso por outro, embora científico. A ciência tem apenas algumas
poucas proposições apodícticas em seu catecismo: o resto são asserções promovidas por ela a um certo grau
de probabilidade. Atualmente, constitui sinal de modo científico de pensamento contentar-se com essas
aproximações da certeza e ser capaz de dedicar-se a um trabalho construtivo mais além, apesar da ausência
de confirmação final.
No entanto, se a pessoa mesma não nos dá a explicação do sentido de uma parapraxia, onde iremos
encontrar os pontos de partida para nossa interpretação — a prova circunstancial? Em diversas direções. Em
primeiro lugar, a partir de analogias com fenômenos outros que não as parapraxias: quando, por exemplo,
afirmamos que distorcer um nome, isso ocorrendo como lapso de língua, tem o mesmo sentido insultuoso que a
deturpação deliberada de um nome. Ademais, também a partir da situação psíquica na qual ocorreu a
parapraxia, do caráter da pessoa que comete a parapraxia e das impressões que a pessoa recebeu antes da
parapraxia e às quais a parapraxia talvez seja uma reação. O que sucede, via de regra, é a interpretação ser
efetuada segundo princípios gerais: começar por onde existe apenas uma suspeita, uma hipótese de
interpretação; e então encontramos uma confirmação ao examinarmos a situação psíquica. Às vezes, temos de
esperar também por eventos subseqüentes (que, de certa maneira, se anunciaram pela parapraxia) antes de
nossa suspeita ser confirmada.
Não posso facilmente dar-lhes ilustrações desse aspecto se me limito ao campo dos lapsos de língua,
embora nele mesmo se possa encontrar alguns bons exemplos. O jovem senhor que queria ‘begleitdigen‘ uma
senhora [ver em [1]] certamente era uma personalidade tímida. A mulher, cujo marido podia comer e beber o
que ela quisesse [ver em [1]], é o que eu conheço como uma dessas enérgicas senhoras que mandam em
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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casa. Ou, então, tomemos o seguinte exemplo: Na assembléia geral do “Concordia” um jovem membro fez um
discurso de violenta oposição, no decorrer do qual se referiu à diretoria como ‘Vorschussmitglieder [membros do
empréstimo]’, uma palavra que parece ter sido formada de ‘Vorstand [diretoria]’ e ‘Ausschuss [comissão]’.
Suspeitaremos de que alguma intenção perturbadora estivesse operando nele, trabalhando contra sua violenta
oposição, baseada em algo referente a um empréstimo. E com efeito, soubemos de nosso informante que o
orador estava constantemente em dificuldades financeiras, e justamente nessa época se havia inscrito para um
empréstimo. A intenção perturbadora podia, por conseguinte, ser substituída pelo pensamento: ‘Modere sua
posição, estas são as mesmas pessoas que irão aprovar seu empréstimo.’
Contudo, tenho condições de dar-lhes um extenso conjunto de provas circunstanciais desse tipo se me
desloco para o vasto campo das outras parapraxias.
Se alguém esquece um nome próprio que lhe é normalmente familiar, ou se, malgrado todos os seus
esforços, acha difícil lembrá-lo, é plausível supor que tenha algo contra a pessoa que usa o nome, de modo que
prefere não pensar nela. Considerem, por exemplo, o que aprendemos sobre a situação psíquica em que
ocorreu a parapraxia, nos casos que agora examinaremos:
‘Herr Y. apaixonou-se por uma senhora, porém não teve sucesso, e logo depois ela se casou com Herr
X. Depois disso, Herr Y., apesar de ter conhecido Herr X. por muito tempo e mesmo ter assuntos de negócios
com ele, esquecia seu nome repetidamente, de forma que por diversas vezes tinha de perguntar a outras
pessoas qual era o nome, quando precisava corresponder-se com Herr X.’ Herr Y. evidentemente nada queria
saber de seu rival mais afortunado: ‘jamais pensar sobre sua existência.’
Ou esse outro: Uma senhora indagou a seu médico sobre notícias de uma conhecida de ambos, porém
mencionou-a por seu nome de solteira. Ela havia esquecido o nome de casada de sua amiga. Admitiu, depois,
que ficara muito desgostosa com o casamento e se antipatizava com o marido de sua amiga.
Teremos muito a dizer sobre esquecimento de nomes em outros contextos [ver em [1] e seg., adiante];
no momento interessa-nos principalmente a situação psíquica na qual ocorre o esquecimento.
O esquecimento de intenções pode geralmente ser atribuído a uma corrente oposta de pensamento,
que reluta em executar a intenção. Essa opinião, porém, não é sustentada apenas por nós, psicanalistas; é
opinião geral, aceita por todos em sua vida diária e negada somente quando se torna teoria. Um protetor que dá
a seu protégé a desculpa de haver esquecido seu pedido, não precisa justificar-se. O protégé logo pensa: Não
significa nada para ele; é verdade que prometeu, mas na realidade não quer fazê-lo. Por essa razão o
esquecimento é interdito em certas circunstâncias da vida comum; a diferença entre a opinião popular e a
opinião psicanalítica acerca dessas parapraxias parece haver desaparecido. Imaginem a dona da casa
recebendo seu convidado com as palavras: ‘O quê? O senhor veio hoje? Esqueci-me totalmente de havê-lo
convidado para hoje.’ Ou imaginem um jovem senhor confessando a sua noiva que ele se esqueceu de
comparecer ao último encontro. Ele certamente não o confessará; preferirá inventar de improviso os mais
improváveis obstáculos que o impediram de comparecer a tempo e que, depois, o impossibilitaram de avisá-la.
Todos sabemos, também, que na vida militar a desculpa de se haver esquecido algo, em nada ajuda, e não
constitui proteção contra punição; e certamente todos sentimos que essa conduta se justifica. Aqui de repente
todos se unem no pensar que uma determinada parapraxia tem um sentido e no saber que sentido é esse. Por
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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que não são suficientemente coerentes para estender seu conhecimento às outras parapraxias e admiti-las
plenamente? Para essa pergunta existe, naturalmente, também uma resposta.
Visto como os leigos têm tão poucas dúvidas sobre o sentido do esquecimento de intenções, os
senhores não ficarão nada surpresos ao encontrarem escritores empregando essa espécie de parapraxia no
mesmo sentido. Qualquer um dos senhores que tenha visto ou lido Caesar and Cleopatra, de Bernard Shaw, se
lembrará de que, na última cena, César, ao deixar o Egito, é perseguido pela idéia de que há alguma coisa mais
que tencionara fazer, porém esqueceu. No fim, vem-se a saber o que era: esquecera-se de dizer adeus a
Cleópatra. O dramaturgo, mediante esse pequeno expediente engenhoso, procura atribuir ao grande César a
superioridade que, na realidade, ele não possui e que jamais desejou. Fontes históricas lhes contarão que
César fez Cleópatra acompanhá-lo a Roma, que ela vivia lá com seu pequeno Caesarion quando César foi
assassinado, e que ela logo depois fugiu da cidade.
Casos de esquecimento de uma intenção em geral são tão claros que não servem muito a nosso
objetivo obter a partir da situação psíquica uma prova circunstancial do sentido de uma parapraxia. Voltemonos,
portanto, para um tipo de parapraxia especialmente ambíguo e obscuro: a perda e o extravio. Os senhores
não terão dúvida em achar inacreditável que nós próprios podemos desempenhar um papel intencional em
coisa tão freqüente como o é o doloroso acidente de perder algo. Existem, contudo, numerosas observações
semelhantes à que se segue. Um jovem senhor perdeu um lápis de grande valor estimativo para ele. No dia
anterior recebera uma carta de seu cunhado, a qual terminava com estas palavras: ‘Não tenho atualmente nem
disposição nem tempo para encorajá-lo em sua futilidade e preguiça.’ O lápis, de fato, lhe fora dado pelo
mesmo cunhado. Sem essa coincidência não poderíamos, naturalmente, ter afirmado que, nessa perda, um
papel foi desempenhado pela intenção de se desfazer do objeto. Casos semelhantes são muito comuns.
Perdemos um objeto se nos desentendemos com a pessoa de quem o ganhamos e não queremos nos lembrar
dela; ou, então, se não gostamos mais do objeto em si mesmo e queremos uma desculpa para conseguir um
outro melhor em seu lugar. A mesma intenção dirigida contra um objeto também, naturalmente, pode ter um
desempenho nos casos de deixar cair, de quebrar e de destruir coisas. Podemos considerar obra do acaso
quando uma criança em idade escolar, imediatamente antes do aniversário, estraga ou despedaça algum de
seus pertences pessoais como sua mochila ou seu relógio?
Sequer qualquer um que já tenha sofrido suficientes vezes o tormento de não poder encontrar algo
guardado por ele mesmo, se sentirá inclinado a acreditar que existe um objetivo em extraviar coisas. Não são
nada raros os casos em que as circunstâncias concomitantes do extravio indicam uma intenção de se desfazer,
temporária ou permanentemente, do objeto.
O que se segue talvez seja o melhor exemplo de tal situação. Um homem ainda bem jovem contou-me
o seguinte caso: ‘Há alguns anos havia desentendimentos entre mim e minha esposa. Achava-a muito fria, e
embora de bom grado reconhecesse suas excelentes qualidades, convivíamos sem quaisquer sentimentos
ternos. Um dia. voltando de uma caminhada, deu-me um livro que havia comprado porque pensou que me
interessaria. Agradeci-lhe esse gesto de “atenção”, prometi ler o livro e o pus de parte. Depois disso jamais
consegui encontrá-lo. Passaram-se meses, durante os quais casualmente eu me lembrava do livro perdido e
fazia vãs tentativas de encontrá-lo. Uns seis meses mais tarde minha querida mãe, que não morava conosco,
caiu doente. Minha esposa deixou a casa para ir cuidar de sua sogra. A condição da paciente agravou-se e deu
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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à minha mulher uma oportunidade de revelar o melhor lado de si mesma. Uma noite, eu regressava a casa
cheio de entusiasmo e gratidão pelo que minha esposa tinha realizado. Aproximei-me de minha escrivaninha, e,
sem qualquer intenção definida, embora com uma espécie de certeza de sonâmbulo, abri uma das gavetas. Ali,
bem à vista, encontrei o livro que há muito eu extraviara. Com a extinção do motivo o extravio do objeto também
cessou.
Senhoras e senhores, poderia multiplicar indefinidamente essa coleção de exemplos; mas não o farei,
aqui. De qualquer forma os senhores encontrarão uma profusão de material para estudo das parapraxias em
Psychopathology of Everyday Life (publicado pela primeira vez em 1901). Todos esses exemplos conduzem ao
mesmo resultado: indicam a probabilidade de as parapraxias terem um sentido, e mostram aos senhores como
esse sentido é descoberto ou confirmado pelas circunstâncias concomitantes. Hoje serei mais breve, pois
adotamos o objetivo limitado de usar o estudo desses fenômenos como auxílio para uma preparação à
psicanálise. Há apenas dois grupos de observações nos quais preciso adentrar-me mais completamente neste
ponto: as parapraxias acumuladas e combinadas e a confirmação de nossas interpretações por acontecimentos
subseqüentes.
As parapraxias acumuladas e combinadas são, sem dúvida, a fina flor de sua espécie. Se estivéssemos
apenas interessados em provar que as parapraxias têm um sentido, nos teríamos limitado a elas logo de saída,
de vez que em seu caso o sentido é inconfundível até mesmo para um pobre de espírito e se impõe ao
julgamento mais crítico. Um acúmulo desses fenômenos revela uma persistência que quase nunca constitui
característica de eventos casuais, a qual, porém, se ajusta muito bem a algo intencional. Finalmente, a
permutabilidade recíproca entre diferentes espécies de parapraxias demonstra que coisa na parapraxia é
importante e característica: não é sua forma nem o método que empregam, mas sim o propósito a que servem,
possível de se atingir das mais variadas formas. Por essa razão, fornecer-lhes-ei um exemplo de esquecimento
repetido. Ernest Jones [1911, 483] conta-nos que, por motivo que ele desconhece, certa vez deixou por vários
dias uma carta sobre sua escrivaninha. Por fim decidiu expedi-la; a carta, porém, retornou a ele pelo Dead
Letter Office pois havia se esquecido de sobrescritá-la. Depois de colocado o endereço levou-a ao correio, mas
desta vez ela não tinha selo. Então, por fim, foi obrigado a admitir sua completa relutância em enviar a carta.
Em outro caso um ato descuidado aparece combinado com um exemplo de extravio. Uma senhora
viajou para Roma com seu cunhado, que era um artista famoso. O visitante foi recebido com grandes honras
pela comunidade alemã de Roma e, entre outros presentes, deram-lhe uma antiga medalha de ouro. A senhora
ficou agastada porque seu cunhado não apreciou suficientemente o valioso objeto. Quando regressava a sua
casa (o lugar onde estava, em Roma, ficou ocupado por sua irmã), ao desfazer as malas ela descobriu que
havia trazido a medalha consigo; como, ela não sabia. Imediatamente enviou a seu cunhado uma carta com a
notícia informando que no dia seguinte devolveria para Roma o objeto que levara consigo. Porém no dia
imediato a medalha foi extraviada de forma tão astuta que não pôde ser encontrada e remetida; e foi nesse
ponto que a senhora começou a compreender o significado de sua distração: ela queria guardar o objeto para si
mesma.
Já lhes dei um exemplo de combinação de um esquecimento com um erro, o caso de alguém que se
esquece de um compromisso e, numa segunda ocasião, aparece na hora errada, tendo antes decidido
firmemente não esquecê-lo desta vez [ver em [1]]. Um caso exatamente semelhante foi-me referido, de sua
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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própria experiência, por um amigo que possui interesses literários e científicos. ‘Há alguns anos’, contou-me,
‘permiti que me elegessem para a diretoria de certa sociedade literária, pois pensava que a organização algum
dia pudesse ser capaz de me ajudar a ter minha peça produzida; e embora sem muito interesse, participei
regularmente das reuniões que se realizavam todas as sextas-feiras. Há poucos meses deram-me a promessa
de uma produção no teatro de F.; e, desde então, tenho me esquecido regularmente das reuniões da
sociedade. Ao ler seu livro sobre o assunto senti-me envergonhado de minha negligência. Reprovei-me com a
idéia de que distanciar-me era uma conduta indigna de minha parte, de vez que agora eu não estava
precisando mais dessas pessoas, e resolvi a qualquer custo não me esquecer da próxima sexta-feira. Persisti
em lembrar-me dessa resolução até quando a pus em execução e parei diante da porta da sala onde as
reuniões se realizavam. Para minha surpresa, estava fechada; a reunião havia terminado. Eu havia realmente
cometido um engano quanto ao dia; era sábado!’
Seria adequado acrescentar outros exemplos semelhantes. Devo prosseguir, contudo, e mostrar-lhes
num relance os casos em que nossa interpretação tem de esperar pelo futuro para ser confirmada. A condição
dominante nesses casos, como se verificará, é que a situação psíquica presente nos é desconhecida ou
inacessível a nossas pesquisas. Nossa interpretação, por conseguinte, não é mais que uma suspeita à qual nós
próprios não atribuímos muita importância. Mais tarde, no entanto, sucede algo que nos revela quão acertada
fora nossa interpretação. Certa vez fui hóspede de um jovem casal recém-casado e ouvi a jovem senhora
descrever, com risos, sua última experiência. No dia após o regresso da lua-de-mel, convidara sua irmã solteira
para acompanhá-la às compras, como costumava fazer, enquanto seu marido ia para o trabalho. De repente,
reparou em um cavalheiro no outro lado da rua, e, cutucando sua irmã, exclamou: ‘Olha, aí vai Herr L.’ Ela se
havia esquecido de que esse cavalheiro era seu marido há algumas semanas. Estremeci quando ouvi a
história, contudo não ousei tirar uma conclusão. O pequeno incidente só acudiu à minha memória alguns anos
depois, quando o casamento havia chegado a um triste fim.
Maeder conta-nos de uma senhora que, na véspera de suas núpcias, se esquecera de provar o vestido
de casamento e, para desespero de seu costureiro, apenas se lembrou quando já era tarde, à noite.
Correlaciona essa negligência com o fato de que ela em breve se divorciava de seu marido. Conheço uma
senhora, atualmente divorciada de seu marido, a qual, ao tratar de assuntos de dinheiro, freqüentemente
assinava documentos com seu nome de solteira, muitos anos antes de o reassumir de fato. — Sei de outras
mulheres que perderam suas alianças de casamento durante a lua-de-mel, e também que a história de seus
casamentos conferiu um sentido ao acidente. — E agora, eis mais um exemplo evidente, porém com um final
mais feliz. Conta-se essa história de um famoso químico alemão, cujo casamento não se realizou porque ele se
esqueceu da hora da cerimônia nupcial, tendo ido ao laboratório em vez de ir à igreja. Foi muito prudente por se
haver contentado com uma só tentativa; morreu em avançada idade, solteiro.
Talvez possa ter ocorrido aos senhores a idéia de que, nesses exemplos, as parapraxias assumiram o
lugar dos presságios ou dos augúrios dos antigos. E, com efeito, alguns presságios nada mais eram que
parapraxias, como, por exemplo, quando alguém tropeçava ou caía. Outros, é verdade, tinham o caráter de
acontecimentos objetivos e não de atos subjetivos. Os senhores, contudo, dificilmente acreditariam quão difícil,
às vezes, é decidir se determinado evento pertence a um ou a outro grupo. Um ato muito amiúde sabe como se
disfarçar como uma experiência passiva.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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Aqueles dentre nós que podem recordar uma experiência de vida comparativamente longa,
provavelmente admitirão que nos teríamos poupado muitos desapontamentos e surpresas dolorosas se
tivéssemos encontrado coragem e determinação para interpretar como augúrios pequenas parapraxias
experimentadas em nossos contatos humanos, e para fazer uso delas como indícios de intenções que ainda
estavam ocultas. Via de regra, não ousamos fazê-lo; isso nos levaria a sentir-nos como se, após uma jornada
através da ciência, estivéssemos ficando supersticiosos novamente. Nem todos os augúrios se realizam e os
senhores compreenderão, a partir de nossas teorias, que nem todos precisam realizar-se.
CONFERÊNCIA IV - PARAPRAXIAS (conclusão)
SENHORAS E SENHORES:
Podemos considerar como resultado de nossos esforços até agora desenvolvidos e como base de
nossas ulteriores investigações o fato de as parapraxias terem um sentido. Permitam-me mais uma vez insistir
em que não estou afirmando — para nossos objetivos não há necessidade de fazê-lo — que toda parapraxia
que ocorre individualmente tem um sentido, embora eu pense que provavelmente seja esse o caso. Já nos
satisfaz mostrarmos esse sentido em um número relativamente freqüente de diferentes formas de parapraxias.
Ademais, a esse respeito as diferentes formas aqui mencionadas se comportam de modo diverso. Casos de
lapsos de língua e de lapsos de escrita, e outros, podem ocorrer mediante uma causa puramente fisiológica.
Não posso acreditar que isso ocorra nos tipos que dependem de esquecimento (esquecimento de nomes ou de
intenções, extravios, etc.). É muito provável haver casos de perda que podem ser considerados como nãointencionados.
De um modo geral, é verdade que apenas uma parcela dos erros que ocorrem na vida comum,
pode ser julgada segundo nosso ponto de vista. Os senhores devem ter em mente essas limitações quando, de
ora em diante, dermos por estabelecido o fato de que as parapraxias são atos psíquicos e surgem de mútua
interferência entre duas intenções.
Esse é o primeiro produto da psicanálise. A psicologia, até o momento atual, nada sabia da existência
dessas interferências recíprocas ou da possibilidade de que pudessem resultar em tais fenômenos. Ampliamos
consideravelmente o mundo dos fenômenos psíquicos e conquistamos para a psicologia fenômenos que
anteriormente não eram nele incluídos.
Façamos uma pausa mais detida sobre a afirmação de que as parapraxias são ‘atos psíquicos’. Será
que isso envolve uma coisa além daquilo que já dissemos: que elas possuem um sentido? Penso que não.
Penso, antes, que a afirmação anterior [de que são atos psíquicos] é mais indefinida e mais facilmente passível
de compreensão errônea. Tudo o que é observável na vida mental pode ocasionalmente ser descrito como
fenômeno mental. A questão, nesse caso, é saber se o fenômeno mental específico teve origem imediata em
influências somáticas, orgânicas e materiais — e, assim, sua investigação não fará parte da psicologia — ou se
ele, em primeira instância, deriva de outros processos mentais, em alguma parte além daquela onde começa a
série das influências orgânicas. É essa última situação que temos em vista quando descrevemos um fenômeno
como processo mental, sendo por isso mais adequado encerrar nossa afirmação desta forma: ‘o fenômeno tem
um sentido’. Por ‘sentido’ entendemos ‘significação’, ‘intenção’, ‘propósito’ e ‘posição em um contexto psíquico
contínuo’. [ver em [1]]
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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Existem inúmeros outros fenômenos muito semelhantes às parapraxias; para eles, porém, esse nome
não mais se ajusta. Nós os denominamos ações casuais e ações sintomáticas. Estas possuem igualmente a
peculiaridade de não ter motivo, serem insignificantes e não importantes; contudo, têm um acréscimo,
explicitamente o de serem desnecessárias. Distinguem-se das parapraxias porque lhes falta uma segunda
intenção capaz de lhes fazer oposição e de ser perturbada por elas. Por outro lado, elas se confundem
insensivelmente com os gestos e movimentos que consideramos expressões das emoções. Essas ações
casuais incluem toda classe de manipulações com nossas roupas ou com partes de nosso corpo ou com
objetos ao nosso alcance, executadas como que por brincadeira e aparentemente sem finalidade, e incluem,
ademais, a omissão dessas manipulações; ou, além disso, melodias que murmuramos para nós mesmos.
Penso que todos esses fenômenos têm um sentido e podem ser interpretados da mesma forma como as
parapraxias, que eles são pequenas indicações de processos mentais mais importantes e atos psíquicos
inteiramente válidos. Não me proponho, contudo, demorar-me sobre essa recente expansão do campo dos
fenômenos mentais; voltarei às parapraxias, em relação às quais importantes problemas para a psicanálise
podem ser equacionados com muito maior clareza.
Talvez sejam essas as questões mais interessantes que levantamos a respeito das parapraxias e que
ainda não foram respondidas. Dissemos serem as parapraxias o produto de mútua interferência entre duas
intenções diferentes, das quais uma pode ser chamada de intenção perturbada e a outra, intenção
perturbadora. As intenções perturbadas não ensejam outras questões, porém no que se refere às intenções
perturbadoras gostaríamos de saber: em primeiro lugar, que espécie de intenções são essas capazes de
perturbar outras, e, em segundo lugar, qual é a relação das intenções perturbadoras com as perturbadas?
Se me permitem, mais uma vez tomarei lapsos de língua como representantes da classe inteira, e
responderei à segunda questão antes de responder à primeira.
Em um lapso de língua a intenção perturbadora pode, em seu conteúdo, custar relacionada à intenção
perturbada, caso em que ela a contradiz, corrige ou suplementa. Ou então — caso esse mais obscuro e mais
interessante — o conteúdo da intenção perturbadora pode não ter nada a ver com o conteúdo da intenção
perturbada.
Não teremos qualquer dificuldade em encontrar provas da relação citada em primeiro lugar, em
exemplos que já conhecemos e em outros parecidos. Em quase todos os casos nos quais um lapso de língua
inverte o sentido, a intenção perturbadora expressa o contrário da intenção perturbada, e a parapraxia
representa um conflito entre duas tendências incompatíveis. ‘Declaro aberta a sessão, porém preferiria que já
estivesse encerrada’ é o sentido do lapso de língua do presidente [ver em [1]]. Uma revista política, acusada de
corrupção, se defende em um artigo cujo clímax deveria ter sido: ‘Nossos leitores serão testemunhas do fato de
que sempre agimos da maneira mais desinteressada, pelo bem da comunidade.’ O editor a quem fora confiada
a preparação do artigo, porém, escreveu ‘da maneira mais interesseira‘. Quer dizer, ele estava pensando: ‘Isso
é o que estou obrigado a escrever; porém, tenho idéias diferentes.’ Um membro do parlamento [alemão], que
insistia em que se devia dizer a verdade ao imperador ‘rückhaltlos [sem reservas]’, evidentemente ouviu uma
voz interior, sobressaltada com sua ousadia e, por um lapso de língua, mudou a palavra para ‘rückgratlos [sem
espinha dorsal, sem coragem]’.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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Nos exemplos já conhecidos dos senhores, os quais dão uma impressão de serem contrações ou
abreviações, o que temos diante de nós são correções, acréscimos ou continuações, por meio dos quais uma
segunda intenção se faz sentir ao lado da primeira. ‘Os fatos vieram a Vorschein [a luz] — melhor dizer de uma
vez: eram Schweinereien [porcarias]; pois bem, então os fatos vieram a Vorschwein [ver em [1]].’ ‘Os que
entendem disso podem ser contados nos dedos de uma mão — não, existe realmente apenas uma pessoa que
entende disso: portanto, pode ser contada em um só dedo [ver em [1]].’ Ou: ‘Meu marido pode comer e beber o
que quer. Mas, como sabem, eu não me submeto à sua vontade em nada, absolutamente; então: ele pode
comer e beber o que eu quero [ver em [1]].’ Em todos esses casos o lapso de língua surge, pois, do conteúdo
da própria intenção perturbada ou está em conexão com ela.
A outra espécie de relação entre as duas intenções mutuamente interferentes parece enigmática. Se a
intenção perturbadora não tem nada a ver com a intenção perturbada, de onde pode ter-se originado e por que
se faz notar como uma perturbação nesse determinado ponto? A observação, que por si só é capaz de dar-nos
a resposta para isso, mostra que a perturbação surge de uma seqüência de idéias que pouco antes se apossou
da pessoa referida, e produz esse efeito subseqüente havendo ou não já sido expressa no discurso. Portanto,
na realidade deve ser descrita como uma perseveração, embora não necessariamente como a perseveração
das palavras faladas. Também nesse caso está presente um elo associativo entre as intenções perturbadora e
perturbada, porém não é situado em seu conteúdo, e sim construído artificialmente, muitas vezes através de
vias associativas extremamente tortuosas.Aqui está um exemplo simples desse aspecto, derivado de minha
própria experiência. Certa vez encontrei nas aprazíveis Dolomitas duas senhoras vienenses vestidas em trajes
de passeio. Acompanhei-as parte do caminho e conversamos sobre as delícias e, também, as atribulações de
passar um feriado daquela maneira. Uma das senhoras admitiu que passar assim o dia tinha como
conseqüência uma boa dose de desconforto. ‘Certamente, não é de todo agradável’, dizia, ‘quando se esteve o
dia inteiro perambulando ao sol e transpirando até pela blusa e a camisa.’ Nesta frase, ela teve de vencer uma
leve hesitação em determinado ponto. E prosseguiu: ‘Mas então, quando se vai “nach Hose” e se pode
mudar….’ Esse lapso de língua não foi analisado, contudo espero que possam compreendê-lo facilmente. A
intenção da senhora fora obviamente a de dar uma lista mais completa de suas roupas: blusa, camisa e Hose
[calças]. Razões de decoro levaram-na a omitir qualquer menção às ‘Hose‘. Porém na frase seguinte, com seu
conteúdo bastante independente, a palavra não dita emergiu como uma distorção da outra de som semelhante,
‘nach Hause [para casa]’.
Agora, porém, podemos voltar à questão principal, que por muito tempo adiamos: que espécie de
intenções são essas, que encontram expressão nessa forma incomum como perturbadoras de outras
intenções? Bem, evidentemente elas são de espécies muito diferentes, entre as quais devemos procurar o fator
comum. Com isso em mente, se examinarmos determinado número de exemplos, esses logo se enquadrarão
em três grupos. O primeiro grupo contém aqueles casos nos quais a intenção perturbadora é do conhecimento
de quem fala e, além disso, foi por este percebida antes de cometer o lapso de língua. Assim, no lapso do
‘Vorschwein‘ [ver em [1]] a pessoa que falava admitiu não somente haver feito o julgamento ‘Schweinereien’/’
sobre os fatos em questão, mas também admitiu que tivera a intenção, da qual depois recuou, de expressar seu
julgamento em palavras. Um segundo grupo é formado por outros casos nos quais a intenção perturbadora é
igualmente reconhecida como tal pela pessoa que fala; porém, nestes casos, a pessoa não se apercebia de
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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que a intenção estava atuando dentro dela tão logo acabou de cometer o lapso. Desse modo, ela aceita nossa
interpretação de seu lapso; ainda assim, permanece surpresa com o mesmo. Exemplos desse tipo de atitude
talvez possam ser encontrados em outras espécies de parapraxias, mais facilmente do que nos lapsos de
língua. Em um terceiro grupo, a interpretação da intenção perturbadora é vigorosamente rejeitada por aquele
que incorreu no lapso; não apenas nega que essa intenção estava atuante nele antes de cometer o lapso, mas
procura sustentar a afirmação de que tal intenção lhe é inteiramente estranha. Recordam-se do exemplo do
‘arroto’ [ver em [1] e [2]] e da vigorosa contestação que me foi apresentada pelo orador, pelo fato de eu revelar
sua intenção perturbadora. Como os senhores sabem, até agora, em nossas opiniões, ainda não chegamos a
um acordo a respeito desses casos. Eu não daria maior importância à contestação formulada pelo proponente
do brinde e persistiria serenamente em minha interpretação, ao passo que os senhores; suponho, ainda
afetados pelo protesto daqueles, levantam a questão de saber se não deveríamos desistir de interpretar
parapraxias dessa espécie e considerá-las como atos puramente fisiológicos, no sentido pré-analítico. Bem
posso imaginar que coisa os intimida. Minha interpretação abriga a hipótese de que, quando uma pessoa fala,
podem ser expressas intenções das quais ela própria nada sabe e que eu, contudo, posso inferir a partir de
provas circunstanciais. Os senhores se detêm ao arrostar essa hipótese nova e momentosa. Posso entender
isso e lhes dou razão nesse ponto. No entanto, uma coisa é certa. Se os senhores querem aplicar
coerentemente a compreensão das parapraxias, confirmada por tantos exemplos, terão de se decidir a aceitar a
estranha hipótese que mencionei. Caso não possam fazê-lo, mais uma vez precisarão abandonar o
entendimento das parapraxias, que os senhores vêm de adquirir.
Consideremos, por um momento, que coisa é essa que une os três grupos, o que é aquilo que os três
mecanismos dos lapsos de língua têm em comum. Isso, felizmente, é um fato inequívoco. Nos dois primeiros
grupos, a intenção perturbadora é reconhecida pela pessoa que comete o lapso; ademais, no primeiro grupo
essa intenção se revela imediatamente antes do lapso. Porém, em ambos os casos, ela é repelida. O orador
decide não expressá-la verbalmente e, após isso, ocorre o lapso de língua: após isso, quer dizer, que a
intenção, que foi repelida, é expressa em palavras, contra a vontade de quem fala, seja alterando a expressão
da intenção permitida, seja confundindo-se com essa expressão, ou realmente tomando seu lugar. Este é, pois,
o mecanismo do lapso de língua.
Em minha opinião, posso fazer com que aquilo que acontece no terceiro grupo se harmonize
completamente com o mecanismo que descrevi. Apenas tenho de supor ser o diferente grau em que a intenção
é repelida, aquilo que distingue esses três grupos um dos outros. No primeiro grupo a intenção existe e se faz
notar antes de o orador expressá-la; só então é rejeitada; e faz sua desforra no lapso de língua. No segundo
grupo a rejeição vai além: a intenção já deixou de ser perceptível antes de a pessoa expressá-la no lapso. De
modo muito estranho, isso absolutamente não impede que ela tenha sua parte na causa do lapso. Essa
conduta, porém, nos facilita a explicação do que acontece no terceiro grupo. Eu me aventuraria a supor que
uma intenção também possa conseguir expressar-se em uma parapraxia quando foi repelida e não foi
percebida durante um tempo considerável, talvez por um tempo muito longo: e pode, por essa razão, ser
negada francamente pelo orador. Conquanto os senhores ponham de lado o problema do terceiro grupo, não
podem deixar de concluir, a partir das observações que fizemos nos outros casos, que a supressão da intenção
de alguém que fala, de dizer algo, é a condição indispensável para que ocorra um lapso de língua.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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Agora podemos pretender havermos feito maiores progressos em nossa compreensão das parapraxias.
Sabemos não apenas que elas são atos mentais nos quais podemos detectar sentido e intenção, sabemos não
apenas que acontecem por mútua interferência entre duas intenções diferentes; porém, além disso, sabemos
que uma dessas intenções deve ter sido, de alguma forma, coagida a não ser posta em execução antes de
poder manifestar-se como uma perturbação da outra intenção. Deve ter sido perturbada, antes de poder ser um
elemento perturbador. Isso não significa, naturalmente, que já tenhamos conseguido uma completa explicação
dos fenômenos que denominamos parapraxias. Vemos aflorarem imediatamente novas interrogações, e
geralmente suspeitamos que, quanto mais se estende nossa compreensão, mais ocasiões haverá para
surgirem novas questões. Podemos perguntar, por exemplo, da razão por que as coisas não poderiam ser mais
simples. Se o propósito é repelir determinada intenção, em vez de colocá-la em execução, o ato de repelir
deveria ser bem-sucedido, de modo que a intenção absolutamente não se manifestasse; ou, por outro lado, a
repulsa poderia falhar, de forma que a intenção que devia ter sido repelida se manifestaria completamente. As
parapraxias, porém, são o resultado de um acordo: constituem um meio-êxito e um meio-fracasso para cada
uma das duas intenções; a intenção que está sendo desafiada não é completamente suprimida, salvo em casos
especiais, nem é levada a cabo em sua íntegra. Podemos concluir que determinadas condições especiais
devem prevalecer para que uma interferência ou ajuste desse tipo aconteçam; no entanto, não podemos formar
nenhuma idéia sobre que condições são essas. E não penso que poderíamos descobrir esses fatores
desconhecidos penetrando mais a fundo no estudo das parapraxias. Será necessário, isto sim, examinar
primeiramente outras regiões obscuras da vida mental: somente a partir das analogias que aí obtivermos,
encontraremos a coragem de estabelecer as hipóteses necessárias para lançar uma luz mais penetrante sobre
as parapraxias. E acrescento mais uma coisa. Trabalhar com base em pequenos indícios, como
constantemente temos o hábito de fazer nessa área, tem seus próprios perigos. Existe uma doença mental, a
‘paranóia combinatória’, na qual a exploração de pequenos indícios como esses é levada a graus ilimitados; e,
naturalmente, não pretendo afirmar que as conclusões construídas sobre tais fundamentos sejam
invariavelmente corretas. Podemos tão-somente nos precaver desses riscos pela ampla base de nossas
observações, pela repetição de impressões semelhantes originárias das mais variadas esferas da vida mental.
Nesse ponto, portanto, vamos abandonar a análise das parapraxias. Existe, contudo, mais um ponto
para o qual chamaria a atenção dos senhores. Eu lhes pediria que fixassem na memória, como um modelo, a
maneira como temos tratado esses fenômenos. Os senhores podem aprender desse exemplo quais os
objetivos de nossa psicologia. Buscamos não apenas descrever e classificar fenômenos, mas entendê-los como
sinais de uma ação recíproca de forças na mente, como manifestação de intenções com finalidade, trabalhando
concorrentemente ou em oposição recíproca. Interessa-nos uma visão dinâmica dos fenômenos mentais. Em
nossa opinião, os fenômenos que são percebidos devem ceder lugar, em importância, a tendências que são
apenas hipotéticas.
Por conseguinte, não nos aprofundaremos mais nas parapraxias; contudo, ainda podemos realizar um
rápido reconhecimento da extensão dessa área, no decorrer do qual mais uma vez encontramos coisas que já
conhecemos, mas que também revelarão algumas novidades. Nesse reconhecimento, manterei a divisão em
três grupos que propus inicialmente: lapsos de língua reunidos, com suas formas cognatas (lapsos de escrita,
lapsos de leitura e lapsos de audição); esquecimento, subdividido segundo os objetos de esquecimento (nomes
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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próprios, palavras estrangeiras, intenções e impressões); e atos descuidados, extravio e perda. Os erros, no
aspecto que nos interessa, situam-se, em parte, entre os esquecimentos e, em parte, nos atos descuidados.
Já abordamos bastante detalhadamente os lapsos de língua, contudo existem mais alguns pontos a
acrescentar. Os lapsos de língua são acompanhados por determinados fenômenos emocionais menores, não
de todo destituídos de interesse. Ninguém aprecia cometer lapsos de língua e assiduamente deixamos de ouvir
nossos próprios lapsos, embora jamais deixemos de ouvir os de outras pessoas. Os lapsos de língua também
são, em certo sentido, contagiosos; absolutamente não é fácil falar sobre lapsos de língua sem cometer alguns
lapsos de língua próprios. As formas mais triviais desses lapsos, precisamente aquelas não consignadas a
projetar uma luz especial sobre os processos mentais ocultos, possuem razões que, não obstante, não são
difíceis de discernir. Por exemplo, se alguém pronunciou com emissão breve uma vogal longa, em virtude de
um distúrbio que afeta a palavra por uma ou outra razão, logo após pronunciará como longa uma vogal
subseqüente breve, cometendo assim um novo lapso de língua para compensar o anterior. Da mesma forma,
se a pessoa pronuncia um ditongo incorreta e descuidadamente (por exemplo, pronunciar um ‘eu‘ ou ‘i como
‘ei‘), procurará compensar isso trocando um ‘ei‘ subseqüente por um ‘eu‘ ou ‘oi‘. Aqui, o fator decisivo parece
ser uma consideração para com a impressão causada nos ouvintes; estes não deveriam supor que, para o
orador, é indiferente a maneira como trata sua língua-mãe. A segunda distorção, a que compensa a primeira,
realmente tem o propósito de dirigir a atenção do ouvinte para a primeira e de lhe assegurar que o orador
também a percebeu. Os lapsos de língua mais comuns, simples e triviais são contrações e antecipações [ver
em [1] e [2]] ocorrentes em partes insignificantes do falar. Por exemplo, em uma frase um tanto longa pode-se
cometer um lapso de língua que antecipa a última palavra do que se pretende dizer. Isso causa uma impressão
de impaciência por ver terminada a frase, e em geral constitui evidência de uma certa antipatia contra o ato de
comunicar a frase, ou contra o todo do comentário que se está fazendo. Chegamos, assim, a casos marginais
em que as diferenças entre a opinião psicanalítica a respeito de lapsos de língua e a opinião fisiológica comum
se fundem uma na outra. É de supor que, nestes casos, esteja presente um propósito de perturbar a intenção
do discurso, porém tal propósito apenas consegue fazer notar sua presença e não aquilo a que ele próprio visa.
A perturbação que ele produz se faz então segundo certas influências fonéticas ou atrações associativas; pode
ser considerada resultado de a atenção ter sido desviada da intenção do discurso. Contudo, nem essa
perturbação da atenção nem as tendências à associação que se tornaram atuantes, atingem a essência do
processo. Este, apesar de tudo, se mantém como a indicação da existência de uma intenção que é
perturbadora da intenção do discurso, embora a natureza dessa intenção perturbadora não possa ser avaliada
a partir de suas conseqüências, conforme é possível fazê-lo em todos os casos de lapsos de língua mais bem
definidos.
Os lapsos de escrita, aos quais passaremos agora, são tão afins dos lapsos de língua, que nada de
novo podemos esperar deles. Talvez possamos acrescentar algum pequeno ponto adicional. Os pequenos
lapsos de escrita, extremamente comuns, contrações e antecipações de palavras que deveriam vir depois
(especialmente de palavras do fim de frases) indicam, mais uma vez, um desprazer geral de escrever e
impaciência por ver o trabalho terminado. Determinados produtos mais marcantes de lapsos de escrita
possibilitam reconhecer a natureza e o objetivo da intenção perturbadora. Ao encontrar um lapso de escrita em
uma carta, sabe-se geralmente que havia algo de diferente com seu autor, porém não se pode sempre
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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descobrir o que se passava com ele. Um lapso de escrita passa despercebido da pessoa responsável, com a
mesma freqüência com que sucede com os lapsos de língua. A seguinte observação é digna de nota. Como
sabemos, há pessoas que tem o hábito de reler todas as cartas que escrevem, antes de enviá-las. Outras, não,
via de regra; porém, quando excepcionalmente o fazem, sempre encontram alguns lapsos de escrita que
chamam a atenção e que elas podem corrigir, então. Como se explica isso? É como se essas pessoas
soubessem que haviam cometido um erro ao escrever a carta. Podemos realmente acreditar nesse fato?
Um problema interessante diz respeito à importância prática dos lapsos de escrita. Os senhores
certamente podem recordar o caso de um assassino, H., que encontrou os meios de obter de instituições
científicas culturas de bactérias patogênicas altamente perigosas, apresentando-se como bacteriologista. Usou,
então, essas culturas com a finalidade de se desfazer de suas ligações próximas através desse método
moderníssimo. Ora, certa ocasião esse homem se queixou aos diretores de um desses institutos que as
culturas a ele enviadas eram ineficazes; porém cometeu um lapso de escrita e, em vez de escrever ‘em meus
experimentos com camundongos ou porquinhos-da-índia’, escreveu muito claramente‘em meus experimentos
com homens’. Os cientistas do instituto ficaram chocados com o lapso, contudo, pelo que sei, daí não tiraram
qualquer conclusão. Pois bem, o que pensam os senhores? Não deveriam os cientistas, pelo contrário, ter
tomado o lapso de escrita como uma confissão e iniciado uma investigação que teria posto um fim imediato às
atividades do assassino? Por ignorarem nossas opiniões sobre parapraxias, não foram responsáveis, nesse
caso, por uma omissão de importância prática? Ora, penso que um lapso de escrita como esse deveras me
pareceria muito suspeito; porém algo de grande importância se opõe a que seja qualificado como confissão. O
assunto não é tão simples assim. O lapso certamente era uma prova circunstancial; mas não era suficiente, por
si mesmo, para dar início a uma investigação. É verdade que o lapso de escrita disse que ele estava ocupado
com idéias de infectar pessoas, entretanto não tornou possível decidir se essas idéias deveriam ser tomadas
como clara intenção de causar dano ou como uma fantasia sem importância prática. É mesmo possível que um
homem que tivesse cometido um lapso como esse, teria todas as justificativas objetivas para negar a fantasia, e
a repudiaria como algo inteiramente estranho para ele. Os senhores compreenderão ainda melhor essas
possibilidades quando, mais adiante, viermos a considerar a diferença entre realidade psíquica e material.
Assim, esse é mais um exemplo de parapraxia que adquire importância a partir de eventos subseqüentes [ver
em [1] e seg., acima.]
Com os lapsos de leitura chegamos a uma situação psíquica que difere sensivelmente daquela
encontrada em lapsos de língua ou em lapsos de escrita. Aqui, uma das duas intenções em mútua competição
é substituída por uma estimulação sensorial e, talvez por isso, resiste menos. O que a pessoa vai ler não é um
derivado de sua própria vida mental, como algo que se propõe escrever. Em grande número de casos, portanto,
um lapso de leitura consiste em uma substituição completa. Substitui-se por outra a palavra que deve ser lida,
sem haver necessariamente qualquer conexão de conteúdo entre o texto e o produto do lapso de leitura, o qual
depende, via de regra, de semelhança verbal. O melhor exemplo desse grupo é o de Lichtenberg, ‘Agamemnon‘
por ‘angenommen‘ [ver em [1], acima]. Se quisermos descobrir a intenção perturbadora que produziu o lapso de
leitura, devemos deixar inteiramente de lado o texto que foi lido erroneamente, e podemos começar a
investigação analítica com duas perguntas: qual é a primeira associação ao produto do lapso de leitura? e em
que situação ocorreu o lapso de leitura? Às vezes o conhecimento dessa situação é, por si só, suficiente para
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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explicar o lapso de leitura. Por exemplo, um homem, sob a pressão de uma necessidade urgente, vagava por
uma cidade estranha quando viu a palavra ‘Closet-House‘ numa grande tabuleta, no primeiro andar de um
prédio. Mal teve tempo suficiente para se surpreender com o fato de a tabuleta estar colocada tão alta, quando
descobriu que, estritamente falando, o que devia ter lido era ‘Corset-House‘. Em outros casos, um lapso de
leitura, precisamente do tipo que é muito independente do conteúdo do texto, requer uma análise detalhada,
impossível de se efetuar sem a prática da técnica de psicanálise e sem seu apoio. Como regra, entretanto, não
é tão árduo encontrar a explicação para um lapso de leitura: a palavra substituída imediatamente revela, como
no exemplo Agamemnon, o círculo de idéias do qual surgiu a perturbação. Na atual época de guerra, por
exemplo, é coisa muito comum os nomes de cidades e de generais, e de termos militares, que estão
constantemente zumbindo à nossa volta, serem lidos onde quer que nossos olhos encontrem palavras
semelhantes. Tudo aquilo que nos interessa e nos preocupa se põe no lugar do que é estranho e ainda
destituído de interesse. Imagens residuais de pensamentos [anteriores] perturbam novas percepções.
Com os lapsos de leitura, também, não faltam os casos de outra espécie, nos quais o texto daquilo que
se lê desperta por si mesmo a intenção perturbadora, a qual de imediato o transforma em seu contrário. O que
devíamos ler era alguma coisa de indesejado, e a análise nos convencerá de que um intenso desejo de rejeitar
o que estávamos lendo deve ter sido responsável por sua alteração.
Nos casos mais freqüentes de lapsos de leitura, que mencionamos no início, inexistiam os dois fatores
aos quais consignamos um importante papel no mecanismo das parapraxias: o conflito entre dois propósitos, e
a repulsa a um deles, que faz sua represália produzindo a parapraxia. Não que algo em contrário ocorra no
lapso de leitura. A proeminência da idéia que leva ao lapso de leitura é, contudo, muito mais perceptível do que
a repulsa que essa idéia pode ter percebido previamente.
São esses dois fatores os que encontramos com mais evidência nas diferentes situações em que
ocorrem parapraxias de esquecimento. O esquecimento de intenções é bem livre de ambigüidades, como já
vimos [ver em [1]], sua interpretação não é objeto de controvérsias, nem mesmo por parte de leigos. O
propósito que perturba a intenção é, em todos os casos, uma contra-intenção, uma relutância; e tudo o que nos
resta saber a seu respeito é por que ele não se expressou em alguma forma diversa e menos disfarçada. No
entanto, a presença dessa contravontade é inquestionável. Vez e outra também conseguimos entrever algo dos
motivos que compelem essa contravontade a ocultar-se; agindo subrepticiamente por intermédio da parapraxia,
ela sempre atinge seu objetivo, ao passo que seria seguramente repudiada se emergisse como franca
oposição. Se alguma importante modificação na situação psíquica se realiza entre a formação da intenção e
sua execução, em conseqüência do que não mais existe a cogitação de executar a intenção, então o
esquecimento da intenção se exclui da categoria das parapraxias. Já não parece mais estranho havê-la
esquecido e nos apercebemos de que teria sido desnecessário lembrarmo-nos dessa intenção; depois disso ela
se extingue em forma permanente ou temporária. O esquecimento de uma intenção somente pode ser
denominado parapraxia quando não pudermos acreditar que a intenção tenha sido interrompida desse último
modo.
Os casos de esquecimento de uma intenção geralmente são tão uniformes e tão evidentes que, por
essa mesma razão não interessam à nossa investigação. Assim mesmo, existem dois pontos em que algo de
novo podemos aprender a partir de um estudo dessas parapraxias O esquecimento de uma intenção — isto é a
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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omissão de executá-la — revela, como dissemos, uma contravontade que lhe é hostil. Sem dúvida, esse fato
procede; nossas investigações, porém, mostram que a contravontade pode ser de dois tipos: direto e indireto. O
que dou a entender com este último é ilustrado mais adequadamente com um ou dois exemplos. Se um
benfeitor se esquece de interceder junto a uma terceira pessoa em benefício de seu protégé, isso pode
acontecer porque não está realmente muito interessado no protégé e, portanto, não tem grande desejo de falar
em benefício deste. De qualquer forma, é esse o modo como o protégé entenderá o esquecimento de seu
protetor [ver em [1]]. Contudo, as coisas podem ser mais complexas. No protetor a contravontade, opondo-se à
execução da intenção, pode ter outra origem e pode ser voltada em direção a um ponto bem diferente. Pode
não ter nada a ver com o protégé, mas, talvez, pode ser dirigida contra a terceira pessoa junto a quem a
recomendação devia ter sido feita. Assim, a partir disso os senhores mais uma vez verificam [ver em [1]] as
dúvidas que se erguem como obstáculo a uma aplicação prática de nossas interpretações. Apesar da
interpretação correta do esquecimento, o protégé corre o risco de ser demasiado desconfiado e de fazer grave
injustiça ao seu protetor. Ou, suponhamos que alguém se esqueça de um compromisso que prometeu manter
com alguma outra pessoa; a razão mais freqüente para isso será, sem dúvida, uma franca rejeição ao encontro
com essa pessoa. Contudo, em um caso assim a análise poderia demonstrar que a intenção perturbadora não
se referiu a essa pessoa, mas estava dirigida contra o lugar planejado para o encontro, e foi evitado por conta
de uma lembrança desagradável referente ao lugar. Ou, ainda, se alguém se esquece de pôr uma carta no
correio, o contrapropósito pode basear-se no conteúdo da carta; de modo algum, porém, se exclui a hipótese de
a carta poder ser inocente em si mesma e poder apenas estar sujeita ao contrapropósito, de vez que algo
referente a ela faz lembrar uma outra carta, escrita em alguma ocasião anterior, que ofereceu à contravontade
um ponto direto de ataque. Pode-se dizer, portanto, que aqui a contravontade foi transferida da carta anterior
que a justificou, à carta atual, em relação à qual não havia motivos de preocupação. Os senhores verificam,
então, que devemos ser moderados e previdentes ao aplicar nossas interpretações, e isso se justifica: as coisas
que são psicologicamente equivalentes podem, na prática, ter grande variedade de significados.
Fenômenos como esses últimos podem parecer muito inusitados para os senhores, e, talvez, se
inclinarão a supor que uma contravontade indireta já indica tratar-se de um processo patológico. Posso
assegurar-lhes, contudo, que ela ocorre também dentro dos limites do que é normal e sadio. Ademais, não
devem me interpretar mal. Estou longe de admitir que nossas interpretações analíticas sejam indignas de
confiança. As ambigüidades no esquecimento de intenções, que venho mencionando, existem apenas
enquanto não tenhamos feito uma análise do caso e apenas quando fazemos nossas interpretações com base
em nossas hipóteses gerais. Se efetuarmos uma análise na pessoa em questão, invariavelmente descobrimos
com suficiente certeza se a contravontade é direta ou que outra origem possa ter.
O segundo ponto que tenho em mente [ver em [1]] é o seguinte: Se em uma grande maioria de casos
encontramos confirmação do fato de que o esquecimento de uma intenção remonta a uma contravontade,
podemos ousar estender a solução a um outro grupo de casos nos quais a pessoa em análise não confirma, e
sim nega, a contravontade que inferimos. Tomem como exemplo disso eventos tão extremamente comuns
como esquecer de devolver livros que se tomaram emprestados, ou de pagar contas ou dívidas. Com a pessoa
em questão nos aventuraremos a insistir em que nela existe uma intenção de conservar consigo os livros e de
não pagar as dívidas; a pessoa negará essa situação, porém não será capaz de fornecer qualquer outra
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explicação para sua conduta. Com isso, prosseguiremos dizendo-lhe que tem essa intenção, mas sem nada
saber da mesma, embora para nós isso seja suficiente, porquanto nos revela a presença da intenção que
origina nela o esquecimento. A pessoa pode repetir-nos que deveras se esqueceu. Agora reconhecerão a
situação como uma tal em que nós mesmos anteriormente nos encontramos [ver em [1] e [2]]. Se quisermos
prosseguir com nossas interpretações das parapraxias — tão freqüentemente comprovadas como acertadas —
até uma conclusão coerente, somos compelidos à inevitável hipótese de que nas pessoas existem propósitos
capazes de se tornar atuantes sem que elas saibam da existência deles. Isto, contudo, nos leva a contrariarmos
todas as opiniões dominantes tanto na vida comum como na psicologia.
O esquecimento de nomes próprios e de nomes estrangeiros, tanto como o de palavras estrangeiras,
pode semelhantemente ser rastreado até uma contra-intenção, que se volta, direta ou indiretamente, contra o
nome em questão. Já lhes apresentei diversos exemplos de aversão direta [ver em [1] e [2]]. A causação
indireta é, contudo, particularmente freqüente nesses casos e em geral apenas pode ser estabelecida por meio
de análises cuidadosas. Por exemplo, durante a guerra atual, que nos obrigou a abandonar tantos dos nossos
divertimentos anteriores, nossa capacidade de recordar nomes sofreu muito em conseqüência das mais
estranhas associações. Há pouco tempo atrás verifiquei que eu era incapaz de reproduzir o nome de Bisenz,
pacata cidade da Morávia; e a análise demonstrou que aquilo que era responsável pelo fato não era nenhuma
hostilidade direta contra ela, senão sua similitude, no som, com o nome do Palazzo Bisenzi, em Orvieto, que
tive o prazer de visitar repetidas vezes no passado. Aqui, pela primeira vez, descobrimos nessa razão de se
opor à recordação de um nome, um princípio que depois irá revelar sua enorme importância na causação dos
sintomas neuróticos: a memória tem aversão por recordar tudo que está em conexão com sentimentos de
desprazer e com a reprodução daquilo que renova o desprazer. Essa intenção de evitar o desprazer, emergente
da lembrança ou de outros atos psíquicos, essa fuga psíquica do desprazer, pode ser reconhecida como a
causa atuante fundamental não apenas do esquecimento de nomes, mas também de muitas outras
parapraxias, como as omissões, os erros, e assim por diante.O esquecimento de nomes, entretanto, parece ser
sobremodo facilitado psicofisiologicamente e, por esse motivo, há casos em que não se pode confirmar a
interferência de um motivo de desprazer. Se alguém tem determinada tendência para esquecer nomes, a
investigação analítica mostrará que os nomes lhe fogem não apenas porque em si não os aprecia ou porque lhe
lembram algo desagradável; porém, também porque nesse caso o nome pertence a outro círculo de
associações com as quais a pessoa está mais intimamente relacionada. O nome está, digamos, ali ancorado e
se mantém fora de contato com outras associações que foram momentaneamente ativadas. Se os senhores se
recordarem dos truques mnemotécnicos verificarão, com certa surpresa, que as mesmas cadeias associativas,
deliberadamente estabelecidas para evitar que nomes sejam esquecidos, também podem nos levar a esquecêlos.
O mais notável exemplo desse fato é o que se refere aos nomes próprios de pessoas, os quais
naturalmente possuem importância psíquica bastante diferente para diferentes pessoas. Para ilustrá-lo,
tomemos um primeiro nome, como Teodoro. Para alguns dos senhores ele não terá qualquer significação
especial; para outro, será o nome de seu pai, do irmão ou de um amigo, ou seu próprio nome. Assim, a
experiência analítica lhes mostrará que a primeira dessas pessoas não corre nenhum risco de se esquecer de
que algum estranho usa esse nome, ao passo que as outras terão constantemente a tendência de negar a
estranhos um nome que lhes parece reservado a ligações íntimas. Ora, se os senhores considerarem que essa
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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inibição associativa pode coincidir com a atuação do princípio de desprazer e, ademais, com um mecanismo
indireto, estarão em condições de formar uma idéia adequada das complexidades existentes na causação do
esquecimento temporário de um nome. Uma análise apropriada irá, porém, desemaranhar-lhes uma dessas
meadas.
O esquecimento de impressões e de experiências demonstra, de forma muito mais clara e exclusiva do
que o esquecimento de nomes, a atuação da intenção de manter coisas desagradáveis fora da memória.
Naturalmente nem toda a área desse tipo de esquecimento se situa dentro da categoria das parapraxias, mas
apenas casos tais como aqueles que, medidos pelo padrão de nossa experiência habitual, nos parecem
admiráveis e inexplicáveis: por exemplo, quando o esquecimento atinge impressões que são muito recentes ou
importantes, ou quando a lembrança perdida abre uma brecha naquilo que é, por seu lado, uma bemmemorizada
cadeia de acontecimentos. Por que e de que modo somos capazes de esquecer em geral, e entre
outras coisas esquecer experiências que certamente deixaram em nós uma impressão mais profunda, tal como
os acontecimentos dos anos mais remotos de nossa infância — isso constitui outro problema no qual querer
evitar impulsos desagradáveis desempenha determinado papel, e, contudo, está longe de constituir a
explicação completa. É fato inequívoco que as impressões desagradáveis são facilmente esquecidas. Diversos
psicólogos o observaram, e o grande Darwin se impressionava tanto com isso, que tornou ‘regra de ouro’ anotar
com cuidado especial quaisquer observações que parecessem desfavoráveis à sua teoria, de vez que se havia
convencido de que precisamente elas não permaneceriam em sua memória.
Uma pessoa que pela primeira vez ouve falar nesse princípio do afastamento de lembranças
desagradáveis por meio do esquecimento, raramente deixa de objetar que, pelo contrário, em sua experiência
as coisas aflitivas são especialmente difíceis de esquecer e insistem em retornar, contra sua vontade, a fim de
atormentá-la: lembranças, por exemplo, de insultos e humilhações. Isso também é um fato verídico, contudo a
objeção não procede. É importante e oportuno começar a levar em conta o fato de que a vida mental é a arena
e o campo de batalha de intenções que se opõem reciprocamente ou, para dizê-lo de modo não-dinâmico, que
se constitui de contradições e de pares de contrários. A prova da existência de determinado propósito não é
argumento contra a existência de um propósito oposto; há lugar para ambos. É apenas uma questão de saber
como se colocam esses contrários, um em relação ao outro, e que efeitos são produzidos por um e por outro.
Perda e extravio são de particular interesse para nós devido aos vários significados que podem ter —
isto é, devido à multiplicidade das intenções que podem se servir dessas parapraxias. Todos os casos têm em
comum o fato de ter existido um desejo de perder algo; diferem quanto à origem e quanto ao objetivo desse
desejo. Perdemos uma coisa quando está gasta, quando pretendemos substituí-la por outra melhor, quando
não gostamos mais dela, quando ela procedeu de alguém com quem não estamos nos relacionando bem, ou
quando a adquirimos em circunstâncias que não desejamos mais rememorar. [ver em [1] e [2].] Deixar cair,
danificar ou quebrar um objeto podem servir à mesma finalidade. Na esfera da vida social, segundo se diz, a
experiência demonstrou que as crianças indesejadas e ilegítimas são muito mais frágeis do que aquelas
concebidas legitimamente. Não é necessário atingir a crua técnica das criadeiras profissionais de crianças; para
chegar a tal resultado, determinada dose de negligência no trato com as crianças deve ser suficiente. A
preservação de coisas pode estar sujeita às mesmas influências que o cuidado com as crianças.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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No entanto, as coisas podem ser condenadas a serem perdidas sem que seu valor tenha sofrido
qualquer diminuição — isto é, quando há uma intenção de sacrificar algo ao Destino, a fim de se proteger de
uma outra perda que se teme. A análise nos revela que entre nós ainda é muito comum exorcizar o Destino
dessa maneira; e, assim, nossa perda muitas vezes é um sacrifício voluntário. Da mesma forma, a perda
também pode servir à intenção de desafio ou autopunição. Para resumir, são incontáveis as mais remotas
razões para a intenção de se desfazer de uma coisa por meio de sua perda.
Os atos descuidados, assim como outros erros, muitas vezes são usados para satisfazer desejos que
uma pessoa deveria negar existirem em si própria. Neles a intenção se dissimula em um auspicioso acidente.
Por exemplo, como aconteceu a um de meus amigos, um homem pode ser obrigado, obviamente contra sua
vontade, a viajar de trem para visitar alguém perto da cidade em que vive, e em uma estação onde deve fazer
baldeação então pode, por engano, embarcar num trem que o leva de volta ao local de onde veio. Ou alguém,
numa viagem, pode estar desejoso de fazer uma parada em uma estação intermediária, porém estar impedido
de fazê-lo devido a outras obrigações, podendo, assim, negligenciar ou perder uma conexão de modo que, em
última análise, é obrigado a interromper sua viagem da maneira como queria. Ou o que sucedeu a um de meus
pacientes: eu lhe havia proibido telefonar à moça de quem estava apaixonado, e quando quis telefonar para
mim, pediu o número errado ‘por engano’ ou ‘enquanto estava pensando em alguma outra coisa’, e de repente
se viu com o número do telefone da moça. Um bom exemplo de descuido cabal com repercussão prática é
proporcionado pela observação feita por um engenheiro em seu relato dos fatos que antecederam um caso de
danos materiais:
‘Há algum tempo atrás eu trabalhava com diversos estudantes no laboratório da escola técnica, numa
série de complexas experiências sobre elasticidade, um trabalho que tínhamos assumido voluntariamente e,
contudo, começava a exigir mais tempo de que prevíramos. Um dia, quando retornava ao laboratório com meu
amigo F., este comentou como o aborrecia perder tanto tempo justamente naquele dia, quando tinha tantas
outras coisas para fazer em casa. Não pude deixar de concordar com ele e, com algum gracejo, referindo-me a
um acidente na semana anterior, acrescentei: “Esperemos que a máquina falhe novamente, pois assim
poderemos parar com o trabalho e ir para casa cedo.”
‘Ao distribuir o trabalho, sucedeu que a F. coube a regulagem da válvula da prensa; isto é, estava
incumbido de abrir cuidadosamente a válvula para deixar o fluido sob pressão sair lentamente do acumulador
para o cilindro da prensa hidráulica. O homem que conduzia a experiência colocou-se junto ao manômetro e,
quando se atingiu a pressão correta, ordenou em voz alta: “Pare!” À palavra de comando, F. agarrou a válvula e
torceu-a com toda a força — para a esquerda! (Todas as válvulas, sem exceção, fecham-se girando para a
direita.) Isso fez com que a pressão total do acumulador passasse subitamente para a prensa, um esforço para
o qual não estavam destinados os canos de ligação, de forma que um desses canos imediatamente explodiu —
um acidente bastante inócuo para a máquina, porém suficiente para nos obrigar a suspender o trabalho por
esse dia e irmos para casa.
‘O surpreendente, aliás, é que, quando estávamos discutindo o caso algum tempo depois, meu amigo
F. não tinha a mínima recordação de meu comentário, que eu recordava fielmente.’
Isso pode levar os senhores a suspeitar de que não é apenas um inocente acaso que transforma as
mãos de nossas empregadas domésticas em perigosos inimigos de nossos objetos de casa. E os senhores
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também podem se perguntar se é obra do acaso quando as pessoas se machucam e arriscam sua própria
segurança. Essas são noções cuja validade os senhores, surgindo a ocasião, podem se dedicar a comprovar
analisando suas próprias observações.
Senhoras e senhores, isso está longe de ser tudo quanto se poderia dizer a respeito de parapraxias.
Muita coisa resta a examinar e discutir. Fico, contudo, satisfeito se nossa discussão do assunto, até aqui, de
certa forma agitou suas opiniões anteriores e os deixou um tanto mais preparados para aceitar outras, novas.
Contento-me, de resto, com deixá-los defrontando-se com uma situação não esclarecida. Não podemos
estabelecer nossas doutrinas a partir de um estudo das parapraxias, e não estamos obrigados a extrair nossas
provas a partir apenas desse material. O grande valor das parapraxias para os objetivos que almejamos,
consiste no fato de serem fenômenos muito comuns que, além de tudo, podem ser observados com facilidade
em cada um, e ocorrer sem absolutamente implicar em doença. Existe apenas uma das questões dos senhores,
não respondida, a qual eu, antes de terminar, gostaria de verbalizar. Conforme verificamos em muitos
exemplos, se as pessoas chegam tão próximo de uma compreensão das parapraxias e tão amiúde se
comportam como se apreendessem seu sentido, de que modo lhes é possível, não obstante, classificar esses
fenômenos como sendo em geral eventos casuais, sem sentido nem significado, e poder opor-se tão
vigorosamente à elucidação psicanalítica dessas mesmas parapraxias?
Os senhores têm razão. Esse é um fato notável e exige uma explicação. No entanto, não lhes darei tal
explicação. Em vez disso, eu os levarei gradualmente a áreas de conhecimento a partir das quais a explicação
irá se impor aos senhores, sem qualquer contribuição de minha parte.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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PARTE II - SONHOS(1916 [1915-16])
CONFERÊNCIA V - DIFICULDADES E ABORDAGENS INICIAIS
SENHORAS E SENHORES:
Um dia descobriu-se que os sintomas patológicos de determinados pacientes neuróticos têm um
sentido. Nessa descoberta fundamentou-se o método psicanalítico de tratamento. Acontecia que no decurso
desse tratamento os pacientes, em vez de apresentar seus sintomas, apresentavam sonhos. Com isso, surgiu a
suspeita de que também os sonhos teriam um sentido.
Não seguiremos, contudo, esse caminho histórico, e sim prosseguiremos na direção oposta.
Demonstraremos o sentido dos sonhos como forma de preparação para o estudo das neuroses. Essa inversão
se justifica, de vez que o estudo dos sonhos não apenas é a melhor preparação para o estudo nas neuroses,
como também porque os sonhos, por si mesmos, são um sintoma neurótico que nos oferece, ademais, a
inestimável vantagem de ocorrer em todas as pessoas sadias. Na verdade, supondo-se que todos os seres
humanos fossem normais contanto que sonhassem, nós, partindo de seus sonhos, poderíamos chegar a quase
todas as descobertas a que nos levou a investigação das neuroses.
Os sonhos, portanto, se tornaram tema de pesquisa psicanalítica: mais uma vez fenômenos comuns
aos quais se tem atribuído pouco valor, e aparentemente sem nenhum uso prático — como as parapraxias, com
as quais na realidade têm em comum o fato de ocorrerem em pessoas sadias. Afora isso, porém, as condições
para nosso trabalho são aqui bem menos favoráveis. As parapraxias simplesmente tinham sido negligenciadas
pela ciência, pouca atenção lhes havia sido dada; contudo, pelo menos não havia nenhum prejuízo em alguém
se interessar por elas. ‘Sem dúvida’, dir-se-ia, ‘há coisas mais importantes. Alguma coisa no entanto talvez
possa resultar daí.’ Ademais, alguém se interessar por sonhos não é apenas pouco prático e desnecessário; é
positivamente ignominioso. Traz consigo a reprovação geral de não ser científico e desperta a suspeita de uma
inclinação pessoal pelo misticismo. Imaginem um profissional da medicina dedicando-se a sonhos, quando há
tantas coisas mais sérias, mesmo na neuropatologia e na psiquiatria: tumores da dimensão de maçãs
comprimindo o órgão da mente, hemorragias, inflamação crônica, onde, em todos, as alterações dos tecidos
podem ser demonstrados ao microscópio! Não, os sonhos são excessivamente triviais e indignos de ser objeto
de pesquisa.
E existe algo mais que, por sua própria natureza, frustra os requisitos da pesquisa exata. Ao investigar
os sonhos, nem mesmo se está seguro do objeto da pesquisa que se faz. Um delírio, por exemplo, apresentase
de forma inequívoca e com seus contornos definidos. ‘Eu sou o imperador da China’, diz o paciente, sem
qualquer dissimulação. Mas, sonhos? Via de regra, não se pode fazer nenhum relato de sonhos. Se alguém faz
um relato de um sonho, existe alguma garantia de que seu relato foi correto, ou, pelo contrário, não poderia ter
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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alterado seu relato à medida que o fazia e ter sido compelido a inventar algum acréscimo para compensar a
obscuridade de suas recordações? A maioria dos sonhos não pode absolutamente ser lembrada e é esquecida,
salvo pequenos fragmentos. E de que modo a interpretação de material desse tipo pode servir como base de
uma psicologia científica ou como método de tratar pacientes?
Um excesso de críticas pode despertar nossas suspeitas. Essas objeções aos sonhos como objeto de
pesquisa obviamente foram longe demais. Já tratamos da questão da não-importância em relação às
parapraxias [ver [1] e seg.]. Dissemos que as grandes coisas podem ser reveladas através de pequenos
indícios. No que concerne à sua indefinição — esta é uma característica dos sonhos, como outra qualquer: não
podemos estabelecer para as coisas quais as características que devem ter. Aliás, também existem sonhos
claros e distintos. Ademais, há outros assuntos de pesquisa psiquiátrica que padecem da mesma característica
de indefinição — em muitos casos, por exemplo, as obsessões, e estas têm, em última análise, sido abordadas
por psiquiatras respeitáveis e conceituados. Recordo-me do último desses casos que encontrei em minha
atividade médica. Era uma paciente que se apresentou com estas palavras: ‘Tenho uma espécie de sentimento
como se eu tivesse ferido ou desejasse ferir uma criatura viva — uma criança? — não, mais como se fosse um
cachorro —, como se a tivesse jogado de uma ponte, ou alguma outra coisa.’ Podemos conseguir superar a
deficiência da incerteza ao relembrar sonhos, se decidimos que deve ser considerado como sonho seu tudo
aquilo que nos relata a pessoa que sonhou, sem levar em conta o que possa ter esquecido ou tenha alterado
ao recordá-lo. E, finalmente, nem mesmo se pode continuar afirmando tão indiscriminadamente que os sonhos
são coisas sem importância. Sabemos, por nossa própria experiência, que o estado de ânimo em que uma
pessoa acorda de um sonho pode perdurar o dia inteiro; os médicos têm observado casos nos quais uma
doença mental começou com um sonho e nos quais persistiu um delírio originário de um sonho; têm sido
relatados casos de personagens históricos que, em resposta a sonhos, se aventuraram a importantes
empreendimentos. Podemos, pois, indagar qual deve ser a verdadeira origem do desprezo no qual são
mantidos os sonhos nos círculos científicos.
Acredito que se trata de uma reação contra a supervalorização dos sonhos em épocas antigas. A
reconstrução do passado, como sabemos, é tarefa nada fácil, contudo podemos supor com certeza (se é que
posso expressá-lo como brincadeira) que há três mil anos ou mais nossos ancestrais já tinham sonhos como os
nossos. Até onde sabemos, todos os povos da Antigüidade atribuíram grande importância aos sonhos e
pensavam que estes podiam ser usados para fins práticos. Deduziram a partir deles sinais para ler o futuro e
neles procuravam os augúrios. Para os gregos e para outros povos orientais pode ter havido época em que as
campanhas militares sem interpretadores de sonhos pareciam tão impossíveis, como nos dias atuais pareceria
impossível uma campanha sem reconhecimento aéreo. Quando Alexandre Magno iniciou suas conquistas, seu
séquito incluía os mais famosos interpretadores de sonhos. A cidade de Tiro, que naquele tempo ainda se
erguia sobre uma ilha, ofereceu ao rei tão dura resistência que ele pensou na possibilidade de levantar o cerco.
Então, uma noite, ele teve um sonho em que um sábio parecia dançar em triunfo; e quando o relatou a seus
interpretadores de sonhos, estes o informaram de que o sonho predizia sua conquista da cidade. Ordenou um
assalto e capturou Tiro. Entre os etruscos e os romanos estavam em uso outros métodos de prever o futuro;
porém, durante todo o período helênico-romano, a interpretação de sonhos era praticada e altamente
conceituada. Da literatura que trata do assunto, o principal trabalho pelo menos sobreviveu: o livro de
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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Artemidoro de Daldis, que provavelmente viveu durante o período do imperador Adriano. Não sei dizer-lhes
como aconteceu que, depois disso, a arte de interpretar sonhos sofreu um declínio e os sonhos caíram em
descrédito. A difusão da instrução não pode ter tido muita coisa a ver com isso, porquanto muitas coisas mais
absurdas do que a interpretação de sonhos da Antigüidade foram ciosamente preservadas nas trevas da Idade
Média. Resta o fato de que o interesse pelos sonhos caiu gradualmente ao nível de superstição e pôde
sobreviver apenas entre as classes não instruídas. O abuso final da interpretação de sonhos foi atingido em
nossos dias com tentativas de descobrir, a partir dos sonhos, os números destinados a serem premiados no
jogo do loto. Por outro lado, a ciência exata de hoje repetidamente se ocupou de sonhos, mas sempre com o
único objetivo de aplicar a eles suas teorias fisiológicas. Os médicos, naturalmente, consideraram os sonhos
como atos não-psíquicos, como a expressão, na vida mental, de estímulos somáticos. Binz (1878, [35])
enunciou que os sonhos são ‘processos somáticos, que em todos os casos são inúteis e, em muitos casos,
positivamente patológicos, em relação aos quais a alma do universo e a imortalidade são tão excelsamente
superiores como o céu azul sobre um areal plano infestado de ervas’. Maury [1878, 50] compara os sonhos aos
desordenados movimentos da dança de São Vito, em contraste com os movimentos coordenados de um
homem sadio. Consoante velha analogia, os conteúdos de um sonho são semelhantes aos sons produzidos
quando ‘os dez dedos de um homem que nada sabe de música vagueiam sobre as teclas de um piano’
[Strümpell, 1877, 84].
Interpretar significa achar um sentido oculto em algo; naturalmente, não haverá como fazê-lo, se
adotarmos essa última opinião sobre a função dos sonhos. Reparem na descrição dos sonhos feita por Wundt
[1874], Jodl [1896] e outros filósofos mais recentes. Eles se contentam com enumerar os aspectos em que a
vida onírica difere do pensamento desperto, sempre num sentido que deprecia os sonhos — enfatizando o fato
de que as associações se rompem, que a faculdade de criticar deixa de funcionar, que todo o conhecimento é
eliminado, bem como outros sinais de diminuição do funcionamento. A única contribuição de valor aos
conhecimentos sobre sonhos, que temos a agradecer às ciências exatas, refere-se ao efeito produzido no
conteúdo dos sonhos pelo impacto de estímulos somáticos durante o sono. Um autor norueguês, recentemente
falecido, J. Mourly Vold, publicou dois alentados volumes de pesquisas experimentais sobre sonhos (edição
alemã, 1910 e 1912), que se dedicam quase que exclusivamente às conseqüências das alterações na postura
dos membros. Foram-nos recomendados como modelos de pesquisa exata sobre sonhos. Os senhores podem
imaginar o que diria a ciência exata, se soubesse que desejamos fazer uma tentativa de descobrir o sentido dos
sonhos? Talvez ela já o tenha dito. Porém não nos deixaremos atemorizar com isso. Se foi possível às
parapraxias ter um sentido, os sonhos podem ter algum, também; e, em muitos e muitos casos, as parapraxias
têm um sentido que à ciência exata passou despercebido. Assim, abracemos o preconceito dos antigos e do
povo e sigamos as pegadas dos interpretadores de sonhos da Antigüidade.
Devemos começar por encontrar nossos propósitos na tarefa à nossa frente e fazer um reconhecimento
geral do campo dos sonhos. Então, o que é um sonho? É difícil responder em uma só frase. Porém não
tentaremos uma definição, quando só basta que se chame a atenção para algo que é conhecido de todos.
Devemos, entretanto, pôr em evidência o aspecto essencial dos sonhos. Este, onde é que se pode encontrá-lo,
porém? São tão grandes as diferenças dentro do âmbito em que se inscreve nosso assunto — diferenças em
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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todas as direções. O aspecto essencial provavelmente será algo que podemos apontar como sendo comum a
todos os sonhos.
A primeira coisa que é comum a todos os sonhos pareceria ser, naturalmente, o fato de que estamos
dormindo durante os sonhos. O sonhar é, evidentemente, vida mental durante o sono — algo que tem certas
semelhanças com a vida mental desperta, mas que, por outro lado, se distingue dela por grandes diferenças.
Essa era, há muito tempo, a definição de Aristóteles. Talvez existam ainda conexões mais estreitas entre
sonhos e sono. Podemos ser acordados por um sonho; muito freqüentemente temos um sonho quando
acordamos espontaneamente ou quando somos tirados, à força, do sono. Assim, os sonhos parecem ser um
estado intermediário entre o sono e a vigília. De modo que nossa atenção se volta para o sono. Bem, então, o
que é o sono?
Esse é um problema fisiológico sobre o qual ainda existe muita controvérsia. Quanto a esse respeito
não podemos chegar a qualquer conclusão; penso, porém, que devemos tentar descrever as características
psicológicas do sono. O sono é um estado no qual não desejo saber de nada do mundo externo, um estado no
qual retirei do mundo externo meu interesse. Ponho-me a dormir retraindo-me do mundo externo e mantendo
afastados de mim seus estímulos. Também vou dormir quando estou fatigado dele. De modo que, quando vou
dormir, digo ao mundo externo: ‘Deixe-me em paz; quero dormir.’ As crianças, ao contrário, dizem: ‘Eu não vou
dormir agora; não estou cansado e quero ter mais algumas experiências.’ A finalidade biológica do sono parece
ser, portanto, a recuperação, e sua característica psicológica a suspensão do interesse pelo mundo. Nossa
relação com o mundo, ao qual viemos tão a contragosto, parece incluir também nossa impossibilidade de tolerálo
ininterruptamente. Assim, de tempos em tempos nos retiramos para o estado de pré-mundo, para a
existência dentro do útero. A todo custo conseguimos para nós mesmos condições muito parecidas com
aquelas que então possuímos: calor, escuridão e ausência de estímulos. Alguns de nós se embrulham
formando densa bola e, para dormir, assumem uma postura muito parecida com a que ocupavam no útero.
Parece que o mundo não possui completamente sequer mesmo aqueles dentre nós que são adultos, mas
apenas até os dois terços; um terço de nós ainda é como se não fora nascido. Cada vez que acordamos, pela
manhã, é como que um novo nascimento. Com efeito, ao falar em nosso estado, após o sono, dizemos que nos
sentimos como se tivéssemos acabado de nascer. (Ao dizer isso, aliás, estamos demonstrando o que
provavelmente é uma suposição muito falsa acerca das sensações gerais de uma criança recém-nascida, que
parece, ao contrário, se sentir provavelmente muito sem conforto.) Falamos também do nascer como ‘ver pela
primeira vez a luz do dia’.
Se é isso o sono, os sonhos possivelmente não fazem parte do seu programa, parecendo, ao contrário,
ser um indesejável acréscimo ao sono. Também, ao nosso ver, um sono sem sonhos é o melhor, o único
apropriado. Não deveria existir qualquer atividade mental no sono; se este começa a ficar inquieto, é por que
não conseguimos atingir o estado fetal de repouso: não fomos inteiramente capazes de evitar os
remanescentes da atividade mental. Os sonhos consistiriam nesses remanescentes. Contudo, se fosse assim,
realmente pareceria não haver necessidade de os sonhos terem algum sentido. Com as parapraxias era
diferente; elas, afinal, eram atividades durante a vida desperta. Se, porém, estou dormindo e cessei minha
atividade mental completamente, e simplesmente não consegui suprimir alguns resíduos dessa atividade, então
não há necessidade alguma de esses resíduos terem algum sentido. Nem sequer posso fazer uso de um tal
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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sentido, de vez que o restante de minha vida mental está dormindo. Assim, realmente só pode tratar-se de uma
questão de reações, à maneira de ‘repuxões’, dos fenômenos mentais como resultado direto de um estímulo
somático. Por conseguinte, os sonhos seriam remanescentes da atividade mental desperta, perturbadores do
sonho, e faríamos bem em decidir abandonar de vez o assunto, por ser inadequado à psicanálise.
No entanto, ainda que os sonhos fossem supérfluos, eles existem e podemos tentar explicar sua
existência. Por que a vida mental não consegue dormir? Provavelmente porque existe algo que não quer
conceder paz à mente. Os estímulos incidem sobre a mente e ela deve reagir a eles. Um sonho, pois, é a
maneira como a mente reage aos estímulos que a atingem no estado de sono. E nisso vemos uma via de
acesso à compreensão dos sonhos. Podemos tomar diferentes sonhos e tentar descobrir qual o estímulo que
procurou perturbar o sono, e contra o qual a reação foi um sonho. Nosso exame da primeira coisa que é comum
a todos os sonhos, parece ter-nos levado até esse ponto.
Existe algo mais que é comum a todos eles? Sim, algo que é inconfundível, porém muito mais difícil de
apreender e descrever. Os processos mentais no sono têm um caráter bastante diferente daqueles que se
realizam em vigília. Nos sonhos experimentamos toda sorte de coisas e acreditamos nelas, ao passo que, não
obstante, nada experimentamos, exceto talvez o estímulo perturbador isolado. Nós o experimentamos
predominantemente sob a forma de imagens visuais; sentimentos também podem estar presentes, assim como
pensamentos que nisso se entrelaçam. Os outros sentidos também podem experimentar algo; porém, mesmo
assim, se trata principalmente de uma questão de imagens. Parte da dificuldade de fornecer uma descrição dos
sonhos se deve ao fato de termos de traduzir essas imagens em palavras. ‘Eu poderia desenhá-lo’, diz-nos
muitas vezes uma pessoa que sonhou, ‘mas não sei como dizê-lo.’ Não se trata, porém, de uma atividade
mental reduzida, como a de uma pessoa oligofrênica comparada com a de um gênio: é qualitativamente
diferente, embora seja difícil dizer onde está a diferença. G. T. Fechner [1860] certa vez exprimiu a suspeita de
que o cenário da ação dos sonhos (na mente) fosse diferente daquele da vida ideativa desperta. Conquanto
não o compreendamos e não saibamos o que fazer disso, na verdade reproduz a impressão de estranheza que
a maioria dos sonhos nos causa. A comparação entre a atividade do sonho e os efeitos de uma mão nãomusical
no piano [ver em [1]] não nos auxilia nesse ponto. O piano, afinal de contas, responde com as mesmas
notas, embora não com melodias, quando suas teclas são tocadas ao acaso. Guardemos cuidadosamente na
memória essa segunda coisa comum a todos os sonhos, embora possamos não tê-la compreendido.
Existem mais outras coisas comuns a eles? Não posso descobrir nenhuma; não posso ver senão
diferenças, em todos os aspectos: em sua duração aparente, assim como em sua clareza; na quantidade de
afeto que os acompanha, na possibilidade de retê-los na memória, e assim por diante. Essa variedade não é
realmente o que poderíamos esperar encontrar em uma simples reação defensiva a um estímulo, algo
mecanicamente imposto, uma coisa vazia, como os repuxões da dança de São Vito. No que concerne às
dimensões dos sonhos, alguns são muito curtos e compreendem apenas uma única imagem, ou umas poucas
imagens, um único pensamento, ou mesmo uma única palavra; outros são extraordinariamente ricos em seu
conteúdo, apresentam novelas inteiras e parecem durar longo tempo. Há sonhos tão claros como a experiência
vigil, tão claros que, bastante tempo após havermos acordado, não percebemos que eram sonhos; e outros
existem que são indescritivelmente obscuros, vagos e borrados. Na realidade, em um mesmo sonho partes
muito definidas podem se alternar com outras de uma vaguidade que mal se pode discernir. Há sonhos
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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inteiramente plenos de sentido ou, pelo menos, coerentes, humorísticos mesmo, ou fantasticamente belos;
outros, ademais, são confusos, imbecis por assim dizer, absurdos, muitas vezes positivamente loucos. Há
sonhos que nos deixam praticamente frios e outros em que se manifestam afetos de todos os tipos —
sofrimento a ponto de fazer chorar, ansiedade a ponto de nos acordar, surpresa, encantamento, etc. Os sonhos
são, de hábito, esquecidos facilmente, após o despertar, ou podem perdurar através do dia, lembrados mais e
mais indistintamente até o fim do dia; outros, ainda — por exemplo, sonhos da infância —, são tão bem
preservados que, trinta anos após, permanecem na memória como se fossem experiência recente. Os sonhos,
à semelhança de pessoas, podem aparecer somente em uma única ocasião para nunca mais, ou retornar na
mesma aparência não modificada ou com pequenas dessemelhanças. Em suma, esse fragmento da vida
mental durante a noite tem um imenso repertório à sua disposição; é capaz, de fato, de tudo aquilo que a mente
cria no período diurno — e, contudo, jamais é a mesma coisa.
Poderíamos tentar explicar essas muitas variações dos sonhos supondo que correspondem a diferentes
fases intermediárias entre o sono e a vigília, graus diferentes de sono incompleto. Está bem, mas se assim
fosse, o valor, o conteúdo e a clareza de um produto onírico — e também a consciência de se tratar de um
sonho — teriam de crescer naqueles sonhos em que a mente estava próxima do despertar; e não seria possível
uma parte clara e racional de sonho ser seguida imediatamente de outra que é obscura e não tem sentido, e
esta, por sua vez, ser acompanhada de outra parte de boa qualidade. A mente, por certo, não poderia modificar
a profundidade de seu sono assim tão rapidamente. Logo, essa explicação não nos auxilia; não há como sair da
dificuldade.
Por agora, deixaremos de lado o ‘sentido’ dos sonhos e tentaremos chegar a uma melhor compreensão
dos mesmos a partir daquilo que verificamos terem eles em comum. Inferimos da relação entre os sonhos e o
estado de sono que os sonhos são a reação a um estímulo que perturba o sono. Aprendemos que esse é
também o único ponto no qual a psicologia experimental exata pode vir em nosso auxílio: fornece-nos provas
de que os estímulos que incidem durante o sono fazem seu aparecimento nos sonhos. Muitas investigações
desse tipo foram realizadas, sendo as mais recentes as de Mourly Vold, que já mencionei [ver em [1] e [2]]; e
cada um de nós, sem dúvida, tem estado em condições de confirmar estes achados, a partir de observações
pessoais. Selecionarei algumas das primeiras experiências. Maury [1878] realizou algumas experiências
consigo próprio. Foi-lhe dado para cheirar um pouco de água de colônia, durante o sono. Sonhou que estava no
Cairo, na loja de Johann Maria Farina, e houve mais algumas aventuras absurdas. Em outra ocasião, deram-lhe
um leve beliscão no pescoço; sonhou que lhe era aplicado um cataplasma de mostarda e sonhou com um
médico que o havia tratado quando era criança. Ou ainda, pingaram uma gota d’água em sua testa; estava na
Itália, transpirava violentamente e bebia vinho branco de Orvieto.
O notável nesses sonhos produzidos experimentalmente será talvez mais visível ainda em outra série
de sonhos produzidos por estímulos. São três sonhos relatados por um observador inteligente, Hildebrandt
[1875], todos eles reações à campainha de um despertador:
‘Sonhei, então, que certa manhã de primavera eu saía a passeio e vagava pelos verdes campos até
chegar a uma aldeia próxima, onde vi os aldeões, em suas melhores roupas, com seus livros de cânticos
debaixo do braço, reunindo-se na igreja. Evidente! Era domingo e o culto do início da manhã logo estaria
começando. Decidi assistir ao culto, mas, antes, eu estava um tanto acalorado de caminhar, entrei no cemitério
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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que circundava a igreja, para refrescar. Enquanto lia algumas das lápides dos túmulos, ouvi o sineiro subindo a
torre da igreja e, lá no alto, via agora o pequeno sino da aldeia, que logo daria o sinal para o início das
devoções. Por um momento eu o vi pendente ali, sem movimento, depois começou a balançar, e subitamente
seu repicar começou a soar claro e penetrante — tão claro e penetrante que pôs fim ao meu sono. Porém, o
que estava soando era o despertador.
‘Aqui está outro exemplo. Era um dia claro de inverno e as ruas estavam cobertas de espessa camada
de neve. Eu tinha decidido comparecer a uma festa, em viagem de trenó; contudo, tive de esperar por longo
tempo até virem me dizer que o trenó estava à porta. E então se seguiram os preparativos para embarcar — a
manta de pele estendida, o abrigo para os pés já colocado — e, por fim, estava sentado em meu lugar. Ainda
assim, o momento da partida foi retardado, até que um puxão nas rédeas deu o sinal aos cavalos. De imediato
partiram e, em sacudidas violentas, os cincerros do trenó romperam seu tilintar conhecido — deveras com tal
violência que, num momento, a teia do meu sonho se havia rompido. E, uma vez mais, era apenas o som
estridente do despertador.
‘E agora, um terceiro exemplo. Via uma empregada doméstica, com várias dúzias de pratos empilhados
uns sobre os outros, andando pelo corredor que dava para a sala de jantar. A pilha de louça em seus braços
me pareceu estar prestes a perder o equilíbrio. “Cuidado”, exclamei eu, “senão você vai deixar cair tudo.”
Seguiu-se devidamente a inevitável resposta: ela estava acostumada àquela espécie de tarefa, e assim por
diante. E, entrementes, meu olhar ansioso seguia a figura que avançava. Então — justamente como eu
esperava — ela tropeçou na soleira e a frágil louça escapuliu e, numa verdadeira sinfonia de ruídos, espatifouse
em mil pedaços no chão. Mas, o barulho prosseguiu sem cessar, e logo não pareceu mais o ruído
característico do espatifar de louças, transformando-se no som de uma campainha — e este som, como o meu
eu (self) desperto agora percebia, era apenas o despertador desempenhando sua tarefa.’
Esses são sonhos muito bonitos, inteiramente plenos de sentido e pelo menos não tão incoerentes
como costumam ser os sonhos. Não estou fazendo objeção a eles, a esse respeito. O que eles têm em comum
é a situação, em cada caso, terminar com um barulho que, quando o sonhador acorda, é reconhecido como
sendo causado pelo despertador. Assim, vemos aqui como se produz um sonho; aprendemos, porém, algo
mais que isso. O sonho não reconhece o despertador — e sequer este aparece no sonho — mas substitui o
ruído do despertador por outro; interpreta o estímulo que está pondo fim ao sono, contudo o interpreta de forma
diferente em cada uma das vezes. Por que faz isso? Não há resposta; parece questão de capricho.
Compreender o sonho significaria poder dizer por que esse determinado ruído, e não outro, foi escolhido para
interpretar o estímulo proveniente do despertador. Objeção análoga podemos fazer às experiências de Maury:
podemos verificar bem claramente que o estímulo incidente aparece no sonho: porém, por que teve de tomar
essa forma particular, isso não nos é dito, e não parece em absoluto ser devido à natureza do estímulo que
perturbou o sono. Nas experiências de Maury geralmente aparece também uma série de outros materiais dos
sonhos, que se juntam ao efeito direto do estímulo — por exemplo, as aventuras absurdas no sonho da água de
colônia —, que não podem encontrar explicação.
E agora considerem que os sonhos do despertar oferecem a melhor oportunidade de estabelecer a
influência dos estímulos externos perturbadores do sono. Em muitos outros casos será mais difícil. Nem todos
os sonhos nos levam a acordar, e se na manhã seguinte nos lembramos de um sonho da noite anterior, como
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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iremos descobrir um estímulo perturbador que talvez possa ter-nos causado um impacto durante a noite? Certa
vez consegui identificar um estímulo sonoro desse tipo, de modo retrospectivo, naturalmente, porém, apenas
devido a circunstâncias especiais. Acordei, certa manhã, em uma localidade das montanhas do Tirol, sabendo
que havia tido um sonho em que o papa havia morrido. Não pude explicar a mim mesmo o sonho; entretanto,
mais tarde minha esposa me perguntou se eu tinha ouvido o tremendo barulho do repicar dos sinos, pela
manhã, que irrompera de todas as igrejas e capelas. Não, eu nada tinha ouvido, meu sono é mais resistente
que o dela; mas, graças à sua informação, eu compreendi meu sonho. Quantas vezes estímulos dessa espécie
podem provocar sonhos em uma pessoa que dorme, sem que esta venha a saber deles depois? Talvez muito
freqüentemente, mas talvez não. Se os estímulos não podem mais ser identificados, não podemos nos
convencer de sua existência. E, em todo caso, mudamos nossa opinião com relação à importância dos
estímulos externos que perturbam o sono, pois aprendemos que podem explicar apenas uma pequena parte do
sonho e não o total da reação onírica.
Não há necessidade para, em virtude disso, abandonar de todo essa teoria. Ademais, ela pode ser
ampliada. Obviamente não importa saber o que é que perturba o sono ou leva a mente a sonhar. Como não
pode, invariavelmente, tratar-se de estímulo sensorial vindo de fora, pode haver, em substituição, o que se
chama de estímulo somático, que surge dos órgãos internos. Essa é uma idéia muito plausível e concorda com
a muito popular opinião sobre a origem dos sonhos: ‘os sonhos vêm da indigestão’, dizem as pessoas
freqüentemente. Infelizmente, aqui também devemos suspeitar muitas vezes que existem casos em que um
estímulo somático atuado sobre uma pessoa em sono, durante a noite, não mais se manifesta após o despertar
e, portanto, não se pode provar que tenha ocorrido. Não desprezaremos, porém, o sem números de claras
experiências que apóiam a origem dos sonhos em estímulos somáticos. Em geral, não pode haver dúvida de
que as condições dos órgãos internos possam influenciar os sonhos. A relação entre o conteúdo de alguns
sonhos e uma bexiga muito cheia ou um estado de excitação dos órgãos genitais é tão simples que não pode
causar mal-entendidos. Esses casos evidentes levam a outros, nos quais o conteúdo dos sonhos dá origem à
justificada suspeita de que houve um impacto causado por estímulos somáticos, porque no conteúdo existe
algo que pode ser visto como uma superelaboração atuante, uma representação ou interpretação de tais
estímulos. Scherner (1861), que realizou pesquisas com sonhos, argumentava com vigor especial a favor da
derivação dos sonhos a partir de estímulos orgânicos e apresentava alguns bons exemplos pertinentes. Por
exemplo, em um sonho ele viu ‘duas fileiras de rapazes elegantes, com lindos cabelos e pele delicada,
enfrentando-se em formação de combate, fazendo uma investida, atacando uma à outra e, após, retirando-se e
voltando novamente à posição anterior, em seguida começando toda a manobra mais uma vez’. Sua
interpretação dessas duas fileiras de rapazes como sendo dentes é plausível em si mesma e parece
inteiramente confirmada quando sabemos que, após essa cena do sonho, a pessoa arrancou de sua mandíbula
um comprido dente. Identicamente a interpretação de ‘corredores longos, estreitos e ventosos’, como derivados
de um estímulo intestinal, parece válida e confirma a asserção de Scherner de que os sonhos procuram
sobretudo representar o órgão que emite o estímulo por objetos que se lhes assemelham.
Por conseguinte, devemos estar preparados para admitir que os estímulos internos podem
desempenhar nos sonhos o mesmo papel que os externos. Qualquer estimativa acerca de sua importância
infelizmente é passível das mesmas objeções. Em numerosos casos uma interpretação que aponte para um
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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estímulo somático é incerta e improvável. Não são todos os sonhos, mas apenas determinado número deles,
que dão lugar a uma suspeita de que os estímulos orgânicos internos tivessem parte na origem deles. E, por
fim, os estímulos somáticos internos são, como os estímulos sensoriais externos, tão pouco capazes de explicar
mais aspectos de um sonho do que aquilo que neste corresponde a uma reação direta ao estímulo. Continua
obscuro saber de onde vem o restante do sonho.
Observemos, no entanto, uma peculiaridade da vida onírica que vem à luz neste estudo dos efeitos dos
estímulos. Os sonhos não fazem simplesmente reproduzir o estímulo; eles o vertem, fazem alusões a ele, o
incluem em algum contexto, o substituem por alguma outra coisa. Esse é um aspecto da elaboração onírica que
não pode deixar de nos interessar, porque pode, talvez, nos aproximar mais da essência dos sonhos. Quando
uma pessoa constrói algo em conseqüência de um estímulo, o estímulo não necessita, por isso, levar a cabo
todo o trabalho. O Macbeth de Shakespeare, por exemplo, foi uma pièce d’occasion composta para celebrar a
elevação ao trono do rei que foi o primeiro a unir as coroas dos três reinos. Essa ocasião histórica imediata,
porém, abrangeria todo o conteúdo da tragédia? Explica todas as suas grandezas e os seus enigmas? Pode ser
que os estímulos externos e internos, também, atingindo a pessoa em sono, sejam apenas provocadores do
sonho e, por conseguinte, nada nos revelem de sua essência.
A segunda coisa comum aos sonhos, sua peculiaridade psíquica [ver em [1] e seg.], é, por um lado,
difícil de compreender e, por outro, não nos oferece ponto de partida para ulterior investigação. Nos sonhos, via
de regra, experimentamos coisas sob formas visuais. Podem os estímulos esclarecer algo a esse respeito? O
que experimentamos é realmente o estímulo? Nesse caso, porém, por que a experiência é visual, se é apenas
em casos muito raros que a estimulação óptica provoca o sonho? Ou, se sonhamos palavras faladas, poderá
ser demonstrado que durante o sonho uma conversação, ou algum ruído que lhe seja semelhante, teve acesso
aos nossos ouvidos? Eu me aventuraria a desprezar essa possibilidade, decisivamente.
Se não podemos progredir com aquilo que é comum aos sonhos, vejamos se nos é possível valer-nos
das diferenças. Naturalmente os sonhos muitas vezes são sem sentido, confusos e absurdos; contudo, também
existem os sonhos plenos de sentido, práticos e sensatos. Verifiquemos se os últimos, os que são plenos de
sentido, podem elucidar aqueles carentes de sentido. Aqui está o último sonho sensato que me foi relatado. Foi
sonhado por um jovem: ‘Fui dar um passeio pela Kärntnerstrasse, encontrei ali Herr X. e estive com ele por
certo tempo. Depois, entrei num restaurante. Duas senhoras e um cavalheiro chegaram e se sentaram à minha
mesa. Aborreci-me com isso, inicialmente, e não queria olhar para eles. Então, olhei realmente e constatei que
eram muito amáveis.’ A pessoa que teve esse sonho comentou, a propósito, que na tarde anterior ao sonho de
fato passara pela Kärntnerstrasse, que é o caminho que geralmente segue, e que ali encontrara Herr X. A outra
parte do sonho não era uma recordação direta e apenas tinha alguma semelhança com determinada
experiência de uma época consideravelmente anterior. E aqui está outro sonho trivial, desta vez o sonho de
uma senhora: ‘O marido dela lhe perguntou: “Você não acha que devemos mandar afinar o piano?” E ela
replicou: “Não vale a pena; de qualquer maneira, os martelos precisam de recondicionamento.” Este sonho
repetia, sem muita modificação, uma conversação mantida entre ela e seu marido no dia anterior ao sonho. O
que entendemos desses dois sonhos sensatos? Nada, senão que contêm repetições extraídas da vida diária,
ou coisas a esta vinculadas. Já seria alguma coisa se dos sonhos em geral se pudesse dizer algo semelhante.
Esse, porém, não é o caso; aplica-se apenas a uma minoria e, na maioria dos sonhos, não existe sinal de uma
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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conexão com o dia anterior; com isso, se elucidam os sonhos sem sentido e absurdos. Apenas mostra que
encontramos, sem esperar, uma nova tarefa. Desejamos não apenas saber o que um sonho diz, mas, se ele
fala claramente, como o faz nesses exemplos, também queremos saber por que e com que finalidade esse
material corriqueiro, experimentado tão recentemente, foi repetido no sonho.
Penso que, como eu, os senhores devem estar cansados de prosseguir com investigações como as
que estivemos fazendo até aqui. Todo o interesse por um problema é evidentemente insuficiente, a menos que
se conheça bem uma via de abordagem que leve à sua solução. Ainda não encontramos um tal caminho. A
psicologia experimental nada nos proporciona, salvo algumas informações muito valiosas sobre a importância
dos estímulos como incentivadores do sonhar. Da filosofia nada podemos esperar, exceto que uma vez mais
nos salientará orgulhosamente a inferioridade intelectual do objeto de nosso estudo. Também não temos desejo
algum de tomar qualquer coisa emprestada das ciências ocultas. A história e a opinião popular nos dizem que
os sonhos têm um sentido e um significado: que eles perscrutam o futuro — o que é difícil de aceitar e
certamente impossível de provar. Assim, nosso esforço inicial nos deixa em completa incerteza.
Inesperadamente nos chega a indicação de uma direção em que até agora não havíamos olhado: O
uso idiomático, que não é algo casual, porém constitui o precipitado de antigas descobertas, embora, para
estarmos seguros, não deva ser empregado descuidadamente — portanto nossa linguagem está familiarizada
com coisas que levam o estranho nome de ‘devaneios’. Os devaneios são fantasias (produtos da imaginação):
são fenômenos muito generalizados, observáveis mais uma vez tanto nas pessoas sadias como nas doentes, e
são facilmente acessíveis ao estudo em nossa própria mente. A coisa mais notável a respeito dessas estruturas
imaginárias é que lhes foi dado o nome de ‘devaneios’, de vez que nelas não há qualquer traço dos dois
elementos comuns aos sonhos [ver em [1] e segs.]. Sua relação com o sono já é negada em seu próprio nome;
e no concernente à segunda coisa comum aos sonhos, nelas não experimentamos nem alucinamos algo, mas
imaginamos alguma coisa, sabemos que estamos tendo uma fantasia, não vemos, mas pensamos. Esses
devaneios surgem no período pré-púbere, freqüentemente ainda na parte final da infância; persistem até a
maturidade ser alcançada e, então, ou são abandonados ou mantidos até o fim da vida. O conteúdo dessas
fantasias é dominado por um motivo muito inteligível. São cenas e eventos em que as necessidades egoísticas
de ambição e poder da pessoa, ou seus desejos eróticos, encontram satisfação. Em homens jovens as
fantasias ambiciosas são as mais proeminentes; nas mulheres, cuja ambição se dirige ao êxito no amor, as
fantasias é que o são. Também nos homens, contudo, as necessidades eróticas estão muito freqüentemente
presentes nos bastidores: todos os seus feitos heróicos e seus êxitos parecem ter como único alvo a admiração
e o favor das mulheres. Em outros aspectos esses devaneios são de tipos muito diferentes e passam por
vicissitudes modificadoras. Todos eles, cada qual por sua vez, ou são abandonados após pouco tempo e
substituídos por outros novos, ou mantidos, tecidos em longas histórias e adaptados às modificações que
surgem nas circunstâncias da vida da pessoa. Eles se acomodam aos tempos, por assim dizer, e recebem uma
‘marca da época’ que testemunha a influência da nova situação. São a matéria-prima da produção poética, pois
o escritor criativo usa seus devaneios com determinadas remodelações, disfarces e omissões, para construir as
situações que introduz em seus contos, novelas ou peças. O herói dos devaneios é sempre a própria pessoa,
seja diretamente, seja por uma óbvia identificação com alguma outra pessoa.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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Talvez os devaneios atribuam seu nome ao fato de terem a mesma relação com a realidade — para
indicar que seu conteúdo é para ser considerado não menos irreal do que o dos sonhos. No entanto, talvez
partilhem esse nome por causa de alguma característica psíquica dos sonhos que ainda nos é desconhecida,
alguma característica que estamos investigando. Também é possível que estejamos laborando em considerável
erro ao tentarmos fazer uso dessa semelhança de nome como algo significativo. Somente mais tarde será
possível elucidar esse aspecto.
CONFERÊNCIA VI - PREMISSAS E TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO
SENHORAS E SENHORES:
Aquilo de que necessitamos, então, é um novo caminho, um método que nos possibilitará estabelecer
um início na investigação dos sonhos. Apresento-lhes uma hipótese razoável. Consideremos como premissa,
desse ponto em diante, que os sonhos não são fenômenos somáticos mas psíquicos. Os senhores sabem o
que isso significa; contudo, o que justifica que façamos essa hipótese? Nada: mas também nada há a impedirnos
de fazê-lo. Esta é a situação: se os sonhos são fenômenos somáticos, não têm interesse para nós, podem
apenas nos interessar na hipótese de serem fenômenos mentais. Trabalharemos com a hipótese de que
realmente o são, para ver o que daí se origina. O resultado de nosso trabalho decidirá se devemos manter essa
hipótese e se podemos tratá-la, por sua vez, como dado comprovado. Entretanto, a que realmente queremos
chegar? Que objetivo nosso trabalho está buscando? Desejamos algo que é buscado em todo trabalho
científico — compreender os fenômenos, estabelecer uma correlação entre os mesmos e, como fim último,
aumentar, se possível, nosso poder sobre esses fenômenos.Nesse consenso, prosseguimos com nosso
trabalho baseados na hipótese de que os sonhos são fenômenos psíquicos. Nesse caso, são produtos e
comunicações da pessoa que sonha, porém comunicações que nada nos dizem, que não entendemos. Pois
bem, o que fazem os senhores se Ihes comunico algo ininteligível? Os senhores me farão perguntas, não é
mesmo? Por que não faríamos a mesma coisa com a pessoa que sonhou — questioná-la sobre o que seu
sonho significa?
Como se recordam, certa vez nos encontramos na mesma situação, anteriormente. Quando estávamos
investigando determinadas parapraxias — um caso de lapso de língua. Alguém havia dito [ver em [1]]: ‘Então os
fatos vieram a Vorschwein‘ e logo lhe perguntamos — não, felizmente não éramos nós, e sim outras pessoas,
que não tinham absolutamente qualquer conexão com a psicanálise — essas outras pessoas então lhe
perguntaram o que quis dizer com esse comentário ininteligível. E ele prontamente replicou que tinha
pretendido dizer ‘estes fatos eram Schweinereien [repugnantes]’, porém repelira essa intenção em troca da
versão mais suave ‘então os fatos vieram a Vorschein [luz]’. Naquela ocasião [ver em [1] e [2]] assinalei aos
senhores que essa amostra de informação constituía um modelo para toda investigação psicanalítica e agora
compreenderão que a psicanálise segue a técnica de fazer com que as próprias pessoas que estão sendo
examinadas, tanto quanto possível proporcionem a solução de seus enigmas [ver em [1]]. Assim, também é o
próprio sonhador quem deve nos dizer o que seu sonho significa.
No entanto, como sabemos, com os sonhos as coisas não são tão simples. Com as parapraxias
funcionou tudo bem, em numerosos casos; houve, porém, outros em que a pessoa, indagada, nada quis dizer e
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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até mesmo recusou, indignada, a resposta que lhe propusemos. Com os sonhos os casos do primeiro tipo são
muito escassos; o sonhador sempre diz que nada sabe. Não pode rejeitar nossa interpretação, de vez que não
temos nenhuma para lhe apresentar. Devemos, então, desistir de nossa tentativa? Como ele nada sabe e nós
nada sabemos, e uma terceira pessoa poderia saber menos ainda, parece não haver perspectiva de descobrir a
solução. Nesse caso, se os senhores estão propensos a desistir, desistam da tentativa. Porém, se pensam de
forma diferente, podem continuar acompanhando-me. Porque posso lhes assegurar ser completamente
possível e, na realidade, altamente provável que o sonhador sabe, sim, o que seu sonho significa: apenas não
sabe que sabe, e, por esse motivo, pensa que não sabe.
Os senhores me assinalarão que, mais uma vez, estou introduzindo uma suposição, já a segunda
nesse breve raciocínio, e que, assim fazendo, estou reduzindo enormemente o direito à credibilidade de meu
procedimento: ‘Devido à premissa de que os sonhos são fenômenos psíquicos, e devido a uma nova premissa
de que há coisas mentais em uma pessoa que sabe sem saber que sabe da existência deles…’ e assim por
diante. Sendo assim, basta que se considere a improbabilidade intrínseca de cada uma dessas duas premissas
para se poder tranqüilamente desviar o interesse de qualquer conclusão que se possa basear nelas.
Eu não os trouxe até aqui, senhoras e senhores, para iludi-los ou para ocultar-lhes determinadas
coisas. Em meu programa, é verdade, anunciei uma série de ‘Conferências Elementares para Servir como
Introdução à Psicanálise’, contudo, aquilo que eu tinha em mente não era nada nos moldes de uma
apresentação in usum Delphini, que lhes daria uma versão agradável, com todas as dificuldades
cuidadosamente escamoteadas, com as lacunas preenchidas e as dúvidas explicadas favoravelmente, de
forma que os senhores pudessem crer, com a mente despreocupada, que tinham aprendido algo novo. Não,
justamente pelo motivo de os senhores serem principiantes, quis mostrar-lhes a nossa ciência como ela é, com
suas asperezas e dificuldades, suas exigências e hesitações. Pois sei que o mesmo se passa com todas as
ciências e possivelmente não pode ser de outra forma, especialmente em seus começos. Sei também que, em
geral, o ensino se dá ao trabalho de se notabilizar pelo fato de encobrir, de quem aprende, essas dificuldades e
imperfeições. Com a psicanálise, porém, isso não vai acontecer. De modo que formulei duas premissas, uma
dentro da outra; e se alguém acha tudo isso muito laborioso e muito inseguro, ou se alguém está habituado a
certezas mais garantidas e a deduções mais elegantes, não deve prosseguir conosco. Penso, no entanto, que
absolutamente não deveria se meter com os problemas psicológicos, porquanto é de se temer que em breve
achará intransitáveis os caminhos precisos e seguros que escolheu para seguir. E uma ciência que tem algo a
oferecer, não tem necessidade de cortejar ouvintes e adeptos. Suas descobertas não podem deixar de angariar
adesões; e ela pode esperar até que essas descobertas tenham feito com que as atenções se voltassem para
ela.
Para aqueles que gostariam de prosseguir com esse tema, porém, posso afiançar que minhas duas
hipóteses não são equivalentes. A primeira, a de que os sonhos são fenômenos psíquicos, é a premissa que
procuramos demonstrar pelo resultado de nosso trabalho; a segunda já foi demonstrada em outra área de
conhecimento, e eu simplesmente estou me aventurando a transportá-la dessa área para nossos próprios
problemas.
Onde, pois, em que campo, se pôde encontrar a prova de que existe algum conhecimento do qual a
pessoa interessada, apesar de tudo, nada sabe, conforme estamos propondo supor a respeito dos sonhos? Em
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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última análise, este seria um fato estranho, surpreendente, um fato que viria alterar nossa visão da vida mental
e que não teria por que se manter escondido: um fato, aliás, que se neutraliza na sua própria denominação e
que, não obstante, pretende ser algo de real — uma contradição em termos. Pois bem, ele não se esconde.
Não é falta sua se as pessoas nada sabem a seu respeito ou não lhe prestam suficiente atenção. Também não
somos nós que devemos ser acusados de permitir que esses problemas psicológicos sejam deixados a cargo
de pessoas que se mantêm distanciadas de todas as observações e experiências decisivas para a questão.
A comprovação foi encontrada no campo dos fenômenos hipnóticos. Quando, em 1889, tomei parte nas
demonstrações extraordinariamente impressionantes feitas por Liébault e Bernheim, em Nancy,
testemunhei a seguinte experiência, entre outras. Quando um homem era colocado em estado de
sonambulismo, era levado a experimentar toda espécie de coisas, em forma alucinatória, e, depois, era
despertado; de início parecia nada saber do que acontecera durante seu sono hipnótico. Bernheim então lhe
pedia, sem rodeios, para relatar o que lhe havia acontecido sob hipnose. O homem afirmava que não conseguia
lembrar-se de nada. Bernheim, porém, se mantinha firme, pressionava-o para falar, insistia em que o homem
sabia e devia recordar. E eis que o homem era tomado de incerteza, começava a refletir e recordava de forma
indistinta uma das experiências que lhe tinham sido sugeridas, e depois outra parte, e a memória se tornava
cada vez mais clara e mais completa e finalmente vinha à luz, sem falha. Como, no entanto, posteriormente o
homem sabia o que lhe acontecera durante a experiência, e como ninguém lhe havia comunicado nada nesse
meio tempo, achamos acertado concluir que ele também antes sabia. Simplesmente lhe era inacessível; ele
não sabia que sabia, e pensava que não sabia. Ou seja, a situação era exatamente igual àquela que
suspeitamos existir naquele nosso sonhador.
Suponho que os senhores se surpreendam com que esse fato tenha sido estabelecido, e me
perguntarão: ‘Por que o senhor deixou de apresentar essa prova anteriormente, em conexão com as
parapraxias, quando terminamos por atribuir a um homem que cometera um lapso de língua uma intenção de
dizer coisas das quais nada sabia e que negava? Se uma pessoa pensa que não sabe nada sobre experiências
cuja lembrança, ainda assim, está dentro dela, já não é mais tão improvável ela não saber nada de outros
processos mentais dentro de si. Esse certamente seria para nós um argumento de peso, e nos teria auxiliado a
compreender as parapraxias.’ Naturalmente eu poderia tê-lo apresentado antes, porém reservei-o para outro
lugar onde é mais necessário. As parapraxias, em parte, se explicavam por si mesmas, e, em parte, nos
deixavam a impressão de que, para preservar a continuidade dos fenômenos em questão, seria prudente supor
a existência de processos mentais dos quais a pessoa nada sabe. No caso dos sonhos, somos compelidos a
introduzir explicações provenientes de outro lugar e, ademais disso, espero que, no caso dos mesmos, os
senhores acharão mais fácil aceitar que eu transporte para cá explicações provenientes da hipnose. O estado
no qual uma parapraxia ocorre, não pode deixar de se lhes afigurar normal; não possui qualquer semelhança
com o estado hipnótico. Por outro lado, existe um parentesco evidente entre o estado hipnótico e o estado de
sonho, que constitui uma condição necessária do sonho. A hipnose, na verdade, é descrita como um sono
artificial. À pessoa que estamos hipnotizando pedimos que durma, e as sugestões que fazemos são
comparáveis aos sonhos do sono natural. As situações psíquicas nos dois casos são realmente análogas. No
sono natural retiramos nosso interesse de todo o mundo externo; e no sono hipnótico também o retiramos do
mundo inteiro, porém com exceção apenas da pessoa que nos hipnotizou e com a qual permanecemos em
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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contato. Diga-se de passagem, o sono de uma mãe cuidando de seu filho, permanecendo em contato com o
mesmo e podendo ser acordada apenas por ele, é um equivalente normal do sono hipnótico. Assim, não seria
tão fora de propósito transpor a situação da hipnose para a do sono natural. Não é inteiramente absurda a
suposição de que também no sonhador esteja presente algum conhecimento a respeito de seus sonhos,
embora esse conhecimento lhe seja inacessível a ponto de não acreditar no mesmo. Observe-se que, nesse
ponto, se abre uma terceira frente de abordagem ao estudo dos sonhos: vimos a dos estímulos que perturbam
o sono, a dos devaneios e, agora, temos a dos sonhos sugeridos do estado hipnótico.
Talvez possamos agora retornar à nossa tarefa com renovada confiança. É, pois, provável que o
sonhador tenha noção do que sonhou; a única questão é saber como tornar-lhe possível descobrir o
conhecimento que tem e o comunicar a nós. Não lhe exigimos dizer-nos abertamente o sentido de seu sonho,
porém será capaz de encontrar a origem, o círculo de pensamentos e de interesses do qual surgiu tal sonho.
Os senhores se recordam de que, no caso das parapraxias, perguntou-se ao homem como ele havia chegado à
palavra equivocada ‘Vorschwein‘, e a primeira coisa que lhe ocorreu deu-nos a explicação. Nossa técnica, no
que se refere aos sonhos, portanto é muito simples e copiada desse exemplo. Também aqui perguntaremos a
quem sonhou de que modo chegou ao sonho e, da mesma forma, seu primeiro comentário pode ser
considerado uma explicação. Com isso deixamos de lado o problema da distinção entre o fato de o sonhador
pensar e o de não pensar que sabe algo, e tratamos ambos os casos como um só e mesmo caso.
Essa técnica certamente é muito simples, porém temo que desencadeará a mais viva oposição dos
senhores. Haverão de dizer: ‘Mais uma hipótese! a terceira! E a mais improvável de todas! Se pergunto à
pessoa que sonhou o que é que lhe ocorre em relação ao sonho, de que modo precisamente a primeira coisa
que lhe ocorre pode nos dar a explicação que esperamos? Ora, pode não lhe ocorrer absolutamente nada, ou
sabe lá o que lhe pode ocorrer. Não consigo ver em que se baseia uma expectativa desse tipo. Isso realmente
é mostrar demasiada confiança na divina providência, em um ponto em que seria apropriado, isto sim, um maior
exercício da faculdade crítica. Ademais, um sonho não é somente uma palavra errada; consiste em numerosos
elementos. Assim sendo, que associação de idéias devemos seguir?’Os senhores estão corretos em todos os
pontos de menor importância. Um sonho difere de um lapso de língua, entre outras coisas, pela multiplicidade
de seus elementos. Nossa técnica deve levar isso em consideração. Portanto lhes sugiro dividirmos o sonho em
seus elementos e iniciarmos uma pesquisa à parte, de cada elemento; ao fazermos isso, a analogia com um
lapso de língua se estabelece. Os senhores também têm razão ao pensar que aquele que sonhou, quando
interrogado sobre os diversos elementos do sonho separados uns dos outros, pode responder que nada lhe
ocorre. Há alguns exemplos nos quais deixamos passar essa resposta, e mais adiante os senhores saberão
que exemplos são esses [ver em [1]]; coisa muito estranha, são exemplos nos quais idéias definidas podem
ocorrer em nós mesmos. Porém, em geral, se quem sonhou afirma que nada lhe ocorre, contestamos; nós o
pressionamos, insistimos em que algo deve ocorrer-lhe — e tornamos a ter razão. Produzirá uma idéia —
qualquer idéia, é-nos indiferente qual seja. O sonhador nos dará determinadas informações, que podem ser
descritas como ‘históricas’ com especial facilidade. Ele pode dizer: ‘Isso é algo que aconteceu ontem’ (como foi
o caso em nossos dois sonhos ‘de verdade’ [ver em [1] e [2]], ou: ‘Isso me lembra algo que aconteceu há pouco
tempo’ — e dessa maneira descobriremos que os sonhos se referem a impressões do dia anterior, ou dos dois
últimos dias, muito mais freqüentemente do que de início imaginávamos [loc. cit.]. E, finalmente, também
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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recordará, a partir do sonho, acontecimentos de épocas ainda mais anteriores, e até mesmo, talvez, de um
passado muito remoto.
No seu ponto principal, contudo, os senhores se enganam. Se pensam ser arbitrário supor que a
primeira coisa que ocorre ao sonhador forçosamente deva nos revelar aquilo que estamos procurando, nos
levar até a meta de nossa procura; se pensam que aquilo que lhe vem à mente poderia ser qualquer outra coisa
deste mundo e poderia não ter qualquer relação com o que procuramos; e que ao esperar alguma coisa
diferente estou apenas exibindo minha confiança na providência divina — então os senhores estão cometendo
um grande equívoco. Uma vez, anteriormente [ver em [1]], arrisquei-me a dizer-lhes que os senhores acalentam
uma fé, profundamente arraigada, em acontecimentos psíquicos não-determinados e no livre-arbítrio; que isso,
porém, é bastante anticientífico e deve ceder lugar à necessidade de um determinismo cujo princípio se
estende à vida mental. Peço que respeitem o fato de que aquilo foi o que veio à mente do homem, e não outra
coisa. No entanto, não estou opondo uma fé a outra. Pode-se demonstrar que a idéia referida pelo homem não
era arbitrária, nem indeterminável, nem isenta de relação com aquilo que procurávamos. Na realidade, há não
muito tempo constatei — posso dizer que sem atribuir muita importância ao fato — que a psicologia
experimental também havia obtido provas nesse sentido.
Tendo em vista a importância do assunto, solicitarei dos senhores especial atenção. Ao pedir a alguém
dizer-me o que lhe vem à mente em resposta a um determinado elemento do sonho, estou lhe pedindo que se
entregue à associação livre, enquanto mantém na mente uma idéia como ponto de partida. Isso exige uma
atitude especial da atenção, bastante diferente da reflexão, e que exclui esta. Algumas pessoas conseguem
essa atitude com facilidade; outras, quando tentam consegui-la, mostram um grau de inabilidade incrivelmente
elevado. Existe, no entanto, um grau maior de liberdade de associação: quer dizer, posso eliminar a exigência
de manter na memória uma idéia inicial e tão-somente estabelecer a modalidade ou tipo de associação que
quero — posso, por exemplo, exigir da pessoa em experiência que deixe vir à mente um nome próprio ou um
número, livremente. Aquilo que então lhe ocorre presumivelmente seria ainda mais casual e mais imprevisível
do que com nossa técnica anterior. Pode ser demonstrado, porém, que é sempre algo estritamente determinado
por importantes atitudes internas da mente, desconhecidas de nós no momento em que atuam — tão pouco
conhecidas como as intenções perturbadoras das parapraxias e as intenções causadoras das ações casuais
[ver em [1]].
Eu e muitos outros depois de mim fizemos repetidamente essas experiências com nomes e com
números pensados ao acaso, e alguns desses experimentos foram publicados. Nessas experiências o
procedimento consiste em fornecer uma série de associações ao nome que emergiu; essas associações
subseqüentes, em decorrência, não são mais inteiramente livres, porém possuem um vínculo, assim como
existe vínculo entre as associações e os elementos dos sonhos. Continua-se com esse procedimento até que
se considere esgotado o estímulo para associar. Entretanto, com isso já terá sido esclarecido tanto o motivo
como o significado da escolha casual do nome. Essas experiências sempre conduzem ao mesmo resultado;
relatos referentes a elas freqüentemente abrangem copioso material e exigem amplas elucidações. As
associações com números escolhidos ao acaso são, talvez, as mais convincentes; elas fluem tão rapidamente e
avançam com tão incrível certeza em direção a um objetivo oculto, que o efeito é realmente surpreendente.
Apresentarei aos senhores um exemplo de uma dessas análises de um nome, de vez que lidar com isso exige
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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uma quantidade de material convenientemente pequena.No decurso do tratamento de um jovem tive ocasião de
discutir esse assunto e mencionei a tese de que, apesar de uma escolha aparentemente casual, é impossível
pensar em um nome ao acaso que não venha a se revelar como rigorosamente determinado pelas
circunstâncias imediatas, pelas características da pessoa em experiência e por sua situação no momento. De
vez que ele se encontrava cético, sugeri-lhe que deveria fazer consigo mesmo uma experiência desse tipo, na
hora. Eu sabia que ele mantinha relações particularmente numerosas, de todo tipo, com mulheres casadas e
com moças, e assim pensei que ele teria à sua disposição uma escolha especialmente ampla se fosse o caso
de lhe pedir que escolhesse o nome de uma mulher. Concordou em fazer a experiência. Para minha surpresa,
ou melhor, talvez, para sua surpresa, não fui assoberbado por nenhuma avalanche de nomes femininos;
permaneceu calado por um momento e então admitiu que apenas um nome lhe tinha vindo à cabeça e nenhum
outro além deste: ‘Albina’. — Que coisa curiosa! Mas o que significa esse nome para o senhor? Quantas
‘Albinas’ o senhor conhece? — É estranho dizê-lo, ele não conhecia nenhuma mulher chamada ‘Albina’, e nada
mais lhe ocorreu junto com o nome. Dessa forma, podia-se pensar que a análise havia fracassado. Mas não,
absolutamente: já estava completa e outras associações não eram necessárias. O homem tinha uma pele
excepcionalmente alva e, em conversação durante o tratamento, muitas vezes eu o chamara de albino, por
brincadeira. Por essa época estávamos tratando de determinar os componentes femininos de sua constituição.
Assim, era ele mesmo essa ‘Albina’, a mulher que mais lhe interessava no momento.
Do mesmo modo, pode-se constatar que as melodias que acodem à mente de uma pessoa de modo
inesperado são determinadas por uma seqüência de idéias à qual pertencem, e têm o direito de atarefar a
mente, sem que haja consciência de sua atividade. É fácil, nesses casos, demonstrar que a relação com a
melodia é baseada em sua letra ou em sua origem. Contudo, devo ter o cuidado de não estender essa
asserção a pessoas realmente ligadas à música; sucede que com elas não tive qualquer experiência. Pode ser
que para essas pessoas o conteúdo musical da melodia é que decide seu surgimento. O primeiro caso é
certamente o mais comum. Por exemplo, conheço um jovem que se sentiu durante algum tempo realmente
perseguido pela melodia (aliás, uma melodia maravilhosa ) da canção de Páris [de Offenbach] La belle Hélène,
até que, em sua análise, ele teve sua atenção voltada para uma rivalidade em torno de sua pessoa e em
benefício seu, uma rivalidade entre uma ‘Ida’ e uma ‘Helena’.Se então as coisas que vêm à mente de uma
pessoa assim tão livremente, são de tal maneira determinadas e formam parte de um todo inter-relacionado,
sem dúvida estamos agindo acertadamente ao concluir que não podem ser menos determinadas aquelas
coisas que Ihe acodem à mente com apenas um vínculo — ou seja, o vínculo delas com a idéia que serve como
seu ponto de partida. A investigação realmente mostra que, afora o vínculo que lhe fornecemos com a idéia
inicial, essas associações são dependentes também de grupos de idéias e de interesses intensamente
emocionais, os ‘complexos’, cuja participação não é conhecida no momento — ou seja, é inconsciente.A
ocorrência de idéias com vínculos dessa espécie tem sido objeto de pesquisas experimentais muito elucidativas
que desempenharam um papel notável na história da psicanálise. A escola de Wundt introduziu o que
conhecemos como experiências de associação, nas quais se diz à pessoa uma palavra-estímulo e a pessoa
tem de responder a ela tão rapidamente quanto lhe é possível, com qualquer reação que lhe ocorra. Nesse
caso, é possível estudar o intervalo de tempo que se passa entre o estímulo e a reação, a natureza das
respostas dadas como reação, os possíveis erros quando a experiência é repetida mais tarde, e assim por
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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diante. A escola de Zurique, liderada por Bleuler e Jung, encontrou explicação para as reações que se
sucediam na experiência de associação, fazendo as pessoas em experiência elucidarem suas reações por meio
de associações subseqüentes, no caso de essas reações terem mostrado aspectos marcantes. Constatou-se
então que essas reações marcantes eram determinadas de forma muito definida pelos complexos da pessoa.
Assim, Bleuler e Jung estabeleceram a primeira ponte entre a psicologia experimental e a psicanálise.Tendo
aprendido tantas coisas, os senhores poderão dizer: ‘Agora reconhecemos que os pensamentos que livremente
acodem à mente de uma pessoa são determinados, e não arbitrários, como supunhamos. Admitimos que isso
seja verdadeiro também para os pensamentos que ocorrem como resposta aos elementos dos sonhos. Não é
nisso, porém, que estamos interessados. O senhor assevera que aquilo que vem à mente do sonhador, como
resposta ao elemento onírico, é determinado pelo fundamento psíquico (desconhecido para nós) daquele
elemento em particular. Isso não nos parece estar provado. Esperamos, isto sim, que o que ocorre ao sonhador
como resposta ao elemento onírico, venha a se revelar como sendo determinado por um dos complexos de
quem sonhou; contudo, de que nos serve isso? Não nos leva a uma compreensão dos sonhos e sim, tal como a
experiência de associação, ao conhecimento desses ditos complexos. Mas, o que têm eles a ver com os
sonhos?’
Os senhores têm razão, porém estão negligenciando um fator. Ademais, é precisamente devido a esse
fator que não escolhi a experiência de associação como ponto de partida desta exposição. Nessa experiência, o
único determinante da reação, isto é, a palavra-estímulo, é arbitrariamente escolhida por nós. Aqui, a reação é
intermediária entre a palavra-estímulo e o complexo despertado na pessoa. Nos sonhos, a palavra-estímulo é
substituída por algo que propriamente deriva da vida mental da pessoa, de fontes que lhe são desconhecidas,
podendo este algo, por conseguinte, ser facilmente um verdadeiro ‘derivado de um complexo’. Logo, não é
exatamente fantástico supor que as demais associações vinculadas aos elementos oníricos serão determinadas
pelo mesmo complexo que o do próprio elemento, e supor que conduzirão à sua descoberta.
Permitam-me mostrar-lhes com outro exemplo que os fatos são como esperamos. O esquecimento de
nomes próprios é realmente um excelente modelo do que acontece na análise de sonhos; a diferença está
apenas em que os eventos compartilhados entre duas pessoas na análise de sonhos estão combinados em
uma só pessoa nas parapraxias. Se esqueço temporariamente um nome, mesmo assim sinto em mim alguma
certeza de o saber — uma certeza a que, no caso da pessoa que sonhou, somente chegamos pelo caminho
indireto da experiência de Bernheim [ver em [1]]. O nome que esqueci, embora o saiba, não é acessível para
mim. A experiência em breve me ensina que nada adianta pensar nele, por mais que me esforce. Em lugar do
nome esquecido, porém, sempre posso recordar um ou vários nomes substitutos. É somente depois de
espontaneamente ter-me ocorrido um nome substituto desse tipo, que se torna óbvio a semelhança dessa
situação com a da interpretação do sonho. Como esse nome substituto, também o elemento onírico não é a
verdadeira coisa em si, porém tão-somente está em lugar de alguma outra coisa — da coisa original que
desconheço e devo descobrir mediante a análise do sonho. Mais uma vez, a única diferença é que, no caso do
esquecimento de um nome, reconheço sem hesitação o substituto como algo não-original, ao passo que, no
caso do elemento onírico, chegamos a essa constatação com mais dificuldade. Pois bem, no caso do
esquecimento de um nome existe também um método pelo qual podemos partir do substituto e chegar à coisa
inconsciente original, o nome esquecido. Dirigindo minha atenção para os nomes substitutos e permitindo que,
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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em resposta a estes, outras idéias me advenham, obtenho o nome esquecido através de rodeios mais ou
menos longos; ao ocorrer isso, verifico que tanto o nome substituto espontâneo como os nomes que recordei,
estão correlacionados com o nome esquecido e foram por ele determinados.Descreverei para os senhores uma
análise desse tipo. Certo dia verifiquei que não conseguia recordar o nome do pequeno país da Riviera cuja
capital é Monte Carlo. Foi muito cansativo, porém a coisa se passou assim. Concentrei tudo quanto sabia a
respeito desse país. Pensei no Príncipe Alberto, da Casa de Lusignan, nos seus casamentos, em sua
dedicação às pesquisas em alto-mar, e tudo o mais que pude reunir; mas foi inútil. Desisti, assim, da reflexão e
deixei que me ocorressem nomes substitutos em vez do nome esquecido. Vieram rapidamente: a própria Monte
Carlo, Piemonte, Albânia, Montevidéu, Colico. Nessa série chamou-me a atenção primeiramente Albânia, logo
substituída por Montenegro, sem dúvida por causa do contraste entre branco e negro. Então constatei que
quatro desses nomes substitutos continham a mesma sílaba ‘mon’ e com isso, subitamente, eu tinha a palavra
esquecida e exclamei em voz alta: ‘Mônaco!’ Os nomes substitutos, assim, realmente haviam surgido do nome
esquecido: os quatro primeiros provinham de sua primeira sílaba, ao passo que o último reproduzia sua
estrutura silábica e sua última sílaba inteira. Ademais, consegui descobrir com bastante facilidade o que me
privara temporariamente desse nome. Mônaco é também a palavra italiana para Munique; e foi essa cidade que
exerceu a influência inibitória.
Não há dúvida de que esse é um bom exemplo, porém é simples demais. Em outros casos, teria sido
necessário recordar extensas seqüências de idéias em resposta ao primeiro nome substituto, e então a
analogia com a análise de sonhos teria sido mais clara. Tive experiências também desse tipo. Certa ocasião,
um estrangeiro convidou-me para tomar vinho italiano em sua companhia; porém, quando estávamos no
restaurante, sucedeu não lembrar-se ele do nome do vinho que desejava pedir em virtude das recordações
muito agradáveis que tinha desse vinho. A partir de numerosas idéias substitutas de diferentes espécies que
acudiam à sua memória, em lugar do nome esquecido, pude concluir que pensamentos a respeito de algo com
o nome Hedwig o tinham feito esquecer o nome. E ele não apenas confirmou o fato de que provara desse
vinho, pela primeira vez, quando estava em companhia de alguém com esse nome, como também, auxiliado
pela descoberta, se lembrou do nome do vinho. Presentemente ele estava sendo feliz no casamento e aquele
nome, Hedwig, pertencia a uma época anterior que não desejava recordar.
Sendo possível no caso de esquecimento de um nome, também na interpretação de sonhos deve ser
possível prosseguir, a partir do substituto, ao longo da cadeia de associações ligada a ele e dessa forma obter
acesso à coisa original que está sendo mantida oculta. Do exemplo do nome esquecido podemos concluir que
as associações com o elemento onírico serão determinadas tanto pelo elemento onírico como pela coisa
original inconsciente que está por trás deste. Sendo assim, parece que aduzimos alguma fundamentação para
nossa técnica.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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CONFERÊNCIA VII - O CONTEÚDO MANIFESTO DOS SONHOS E OSPENSAMENTOS ONÍRICOS
LATENTES
SENHORAS E SENHORES:
Como vêem, nosso estudo das parapraxias não foi improfícuo. Graças a nossos esforços com elas,
sujeitos a duas premissas que lhes expliquei, conseguimos duas coisas: uma concepção da natureza dos
elementos oníricos e uma técnica para interpretar sonhos. A concepção dos elementos oníricos nos diz serem
eles coisas não-originais [ver em [1]], substitutos de alguma outra coisa desconhecida do sonhador (como a
intenção de uma parapraxia), substitutos de algo cujo conhecimento está presente em quem sonhou, que lhe é,
porém, inacessível. Temos a esperança de que será possível aplicar a mesma concepção a sonhos inteiros
constituídos de tais elementos. Nossa técnica baseia-se em usar a associação livre para esses elementos, a fim
de suscitar a emergência de outras estruturas substitutivas que nos possibilitarão atingir aquilo que se oculta de
nossos olhos.Proponho, agora, que devemos introduzir uma modificação em nossa nomenclatura, o que nos
dará maior liberdade de movimentos. Em vez de falar em ‘oculto’, ‘inacessível’ ou ‘não-genuíno’, adotemos a
descrição correta e digamos ‘inacessível para a consciência do sonhador’ ou ‘inconsciente‘. Com isso quero
dizer tão-somente aquilo que pode acudir ao espírito dos senhores quando pensam em uma palavra que lhes
escapou, ou na intenção perturbadora de uma parapraxia — ou seja, quero dizer apenas ‘inconsciente no
momento‘. Contrastando com esse aspecto, naturalmente podemos referir como ‘conscientes‘ os elementos
oníricos propriamente ditos e as idéias substitutivas que, através das associações com estes elementos, são de
surgimento recente. Até aqui essa nomenclatura não envolve qualquer formulação teórica. Não se pode
estabelecer objeção alguma ao uso da palavra ‘inconsciente’ como descrição adequada e de fácil
compreensão.
Se estendemos ao sonho total nossa concepção a respeito de seus elementos isolados, procede que o
sonho como um todo constitui um substituto deformado de alguma. outra coisa, algo inconsciente, e que a
tarefa de interpretar um sonho é descobrir esse material inconsciente. Disso logo resultam, entretanto, três
regras importantes que devemos observar durante o trabalho de interpretação de sonhos.
(1) Não devemos nos preocupar com aquilo que o sonho parece dizer-nos, seja compreensível ou
absurdo, claro ou confuso, de vez que pode não ser o material inconsciente que estamos procurando. (Uma
evidente limitação desta regra forçosamente irá impor-se à nossa consideração, mais adiante [ver em [1]].) (2)
Devemos restringir nosso trabalho à recordação das idéias substitutivas de cada elemento, não devemos refletir
sobre elas, nem considerar se contêm algo importante; e não devemos nos perturbar com o grau de divergência
que elas apresentam em relação ao elemento onírico. (3) Precisamos aguardar até que o material inconsciente
oculto, o qual procuramos, surja com espontaneidade, exatamente como a palavra esquecida ‘Mônaco’ adveio
na experiência que descrevi [ver em [1]].
Agora, também, podemos compreender em que grau é indiferente o fato de muita ou pouca coisa do
sonho ser lembrada, sobretudo se lembrada com precisão ou imprecisão. Pois o sonho recordado não é o
material original e sim um seu substituto deformado, o qual, mediante a rememoração de outras imagens
substitutivas, deve auxiliar-nos a nos aproximarmos do material original, a tornar consciente aquilo que no
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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sonho é inconsciente. Se nossa lembrança foi imprecisa, portanto, causou simplesmente uma deformação a
mais desse substituto — uma deformação que, porém, não se efetuou sem motivo.
O trabalho de interpretar pode ser executado nos sonhos de cada um, ou nos sonhos de outras
pessoas. Na realidade, aprende-se mais consigo mesmo; o processo impõe maior convicção. Se então fizermos
uma tentativa, observaremos que algo se opõe ao nosso trabalho. É verdade que as idéias nos ocorrem;
porém, não permitimos que todas elas sejam levadas em consideração; influências de julgamentos e de
escolhas se fazem sentir. No caso de uma idéia, podemos dizer a nós mesmos: ‘Não, isso não é importante,
não tem cabimento aqui.’ No caso de outra idéia: ‘isso é demasiadamente sem sentido’; e no caso de uma
terceira: ‘isso é totalmente sem importância’. E depois, somos capazes de observar como, com objeções dessa
espécie, podemos encobrir idéias e finalmente rechaçá-las todas juntas, sem exceção, antes mesmo de se
haverem tornado bastante claras. Assim, por um lado nos aferramos muito àquela idéia que constituiu nosso
ponto de partida, o próprio elemento onírico; e, por outro lado, interferimos no resultado das associações livres
ao fazer a escolha. Se não somos nós mesmos enquanto interpretamos o sonho, se tomamos outra pessoa
para que o interprete, adquirimos consciência muito nítida de mais um motivo que alegamos ao fazer essa
seleção indevida, porque às vezes dizemos para nós: ‘Não, essa idéia é excessivamente desagradável; não
quero ou não posso referi-la.’
Essas objeções constituem evidente ameaça ao êxito de nosso trabalho. Delas devemos nos
resguardar, e em nosso próprio caso o fazemos resolvendo não ceder a elas. Estando analisando o sonho de
uma outra pessoa, estabelecemos como regra inviolável a pessoa não ocultar de nós idéia alguma, ainda que
dê origem a uma das quatro objeções — de ser demasiado sem importância, ou sem sentido; ou de ser
irrelevante, ou muito desagradável para ser referida. O sonhador promete obedecer à regra, e a seguir
podemos ter o aborrecimento de verificar como ele cumpre mal o prometido, quando lhe surge a ocasião.
Podemos explicar a nós mesmos o que se passa, de início, supondo que, malgrado a garantia peremptória, ele
ainda não se compenetrou da razão de ser da associação livre; e talvez possamos ter a idéia de primeiro
convencê-lo teoricamente, dando-lhe livros para que leia, ou enviando-o a conferências que o possam converter
em adepto de nossos pontos de vista sobre a associação livre. Contudo, de um erro assim nos manteremos à
distância, basta considerarmos nosso próprio caso; do vigor de nossas convicções dificilmente se pode duvidar,
afinal de contas as mesmas objeções se apresentam a determinadas idéias, e são afastadas apenas
posteriormente — digamos, em segunda instância.Em vez de nos aborrecermos com a desobediência do
sonhador, podemos lucrar com essas experiências aprendendo algo novo a partir delas — algo tanto mais
importante quanto menos esperamos. Percebemos que o trabalho de interpretar sonhos é executado em
presença de uma resistência que a ele se opõe e da qual as objeções críticas constituem manifestações. A
resistência independe da convicção teórica daquele que sonhou. Com efeito, aprendemos ainda mais.
Descobrimos que uma objeção crítica desse tipo jamais chega a mostrar-se justificada. Ao contrário, as idéias
que as pessoas tentam suprimir dessa maneira invariavelmente se revelam as mais importantes e decisivas em
nossa busca de material inconsciente. Na realidade equivale a uma marca distintiva uma idéia acompanhar-se
de uma objeção desse tipo.
A referida resistência é algo inteiramente novo: um fenômeno que encontramos calmamente em relação
a nossas premissas [ver em [1] e seg.]; porém, um fenômeno que não se incluía entre as mesmas. O
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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aparecimento desse novo fator em nossos cálculos nos alcança como determinada surpresa não de todo
agradável. Logo suspeitamos que ela não irá tornar mais fácil nosso trabalho. Poderia desorientar-nos a ponto
de abandonarmos nosso completo interesse pelos sonhos: algo tão sem importância como um sonho e, como
se não bastasse, todas essas dificuldades, em lugar de uma única técnica simples, sem rodeios! Em
compensação, porém, as dificuldades podem precisamente agir como estímulo e fazer-nos suspeitar que o
trabalho valerá a pena. Regularmente deparamos com a resistência ao tentarmos abrir caminho desde o
substituto, que é o elemento onírico, até o material inconsciente oculto por trás dele. Podemos, assim, concluir
que deve haver algo importante escondido por trás do substituto. Se não, para que servem as dificuldades que
tentam manter em vigor o ocultamento? Se uma criança recusa abrir sua mão fechada, para mostrar o que tem
escondido, podemos nos sentir seguros de que se trata de algo equívoco — algo que ela não devia ter.
No momento em que introduzimos nos fatos em questão a idéia dinâmica de uma resistência, devemos
simultaneamente refletir ser esse fator algo que varia em quantidade. Podem existir resistências maiores e
menores, e estamos preparados para encontrar essas diferenças revelando-se também durante nosso trabalho.
Talvez sejamos capazes de vincular essa experiência com outra que também encontramos durante o trabalho
da interpretação de sonhos: às vezes, apenas uma única resposta, ou não mais do que algumas, são
requeridas para nos conduzirem desde o elemento onírico até o material inconsciente que nele se oculta, ao
passo que em outras ocasiões, para se realizar isso, são necessárias longas cadeias de associações e a
superação de muitas objeções críticas. Concluiremos que essas diferenças correspondem à variável magnitude
da resistência, e certamente se verá que temos razão. Se a resistência é pequena, o substituto não pode estar
muito distante do material inconsciente; contudo, uma resistência maior significa que o material inconsciente
está muito distorcido e que será longo o caminho que se estende desde o substituto ao material inconsciente.
Talvez, agora, seja o momento de tomarmos um sonho e tentar aplicar-lhe nossa técnica, a fim de
verificar se nossas expectativas se confirmam. Sim; no entanto, que sonho devemos escolher para essa
finalidade? Os senhores não podem imaginar como julgo difícil decidir; nem sequer posso esclarecer a natureza
de minhas dificuldades. Evidentemente deve haver sonhos que, em seu conjunto, foram sujeitos apenas a uma
pequena deformação, e o melhor plano seria começar por eles. Entretanto, que sonhos foram menos
deformados? Os inteligíveis e não confusos, dos quais já lhes apresentei dois exemplos [ver em [1] e [2]]? Isso
nos faria perder o rumo. A investigação mostra que tais sonhos foram sujeitos a um extraordinário grau de
deformação. Se, entretanto, eu devesse não levar em conta exigências especiais e selecionasse um sonho a
esmo, os senhores provavelmente ficariam muito desapontados. Talvez tivéssemos de observar ou gravar
tamanha profusão de idéias, em resposta aos elementos oníricos isolados, que seríamos incapazes de
estabelecer uma visão de conjunto do trabalho. Se tomamos nota por escrito de um sonho e então anotamos
todas as idéias que emergem como resposta a ele, podemos verificar que essas idéias são muitas vezes mais
longas do que o texto do sonho. O melhor plano, portanto, pareceria ser o de escolher alguns sonhos curtos
para análise, quando cada um dos quais pelo menos nos dirá algo ou confirmará algum ponto. Decidiremos,
assim, seguir esse rumo, a menos que a experiência talvez nos mostre onde realmente podemos encontrar
sonhos que foram apenas ligeiramente deformados. No entanto, posso pensar em alguma outra coisa que nos
tornará as coisas mais fáceis: algo, ademais, que está em nossa trajetória. Em vez de começarmos por
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
67
interpretar sonhos completos, nos restringiremos a alguns elementos oníricos e descobriremos, em determinado
número de exemplos, como esses podem ser explicados mediante aplicação de nossa técnica.
(a) Uma senhora referiu que, quando criança, sonhava muito freqüentemente que Deus usava na
cabeça um chapéu de três bicos feito de papel. O que os senhores podem fazer com esse caso, sem o auxílio
daquela que sonhou? Parece totalmente disparatado. Deixa, porém, de ser absurdo quando ouvirmos da
senhora que ela costumava usar na cabeça um chapéu desse tipo, às refeições, quando era criança, porque
nunca podia resistir ao desejo de dar olhadas furtivas aos pratos dos irmãos e irmãs para ver se eles não
tinham ganho porções maiores que a sua. Assim, o chapéu se destinava a funcionar como um par de óculos de
proteção. Isso, aliás, era uma parte das informações referentes à sua história [ver em [1] e [2] e seg.], e foi
fornecida sem qualquer dificuldade. A interpretação desse elemento e, ao mesmo tempo, de todo esse breve
sonho foi feita com o auxílio de mais uma idéia que lhe ocorreu: ‘Quando ouvi dizer que Deus era onisciente e
via tudo’, disse, ‘o sonho só pode significar que eu sabia tudo e via tudo, mesmo que procurassem me impedir.’
Parece que este exemplo é simples demais.(b) Uma paciente, que se mostrava cética neste respeito, teve um
longo sonho, no decorrer do qual algumas pessoas Ihe falavam acerca de meu livro sobre chistes [1905c] e o
elogiavam muito. Então surgiu algo referente a um ‘canal’, talvez um outro livro que mencionava um canal, ou
então alguma coisa com canal… ela não sabia … era tudo tão indistinto.Sem dúvida os senhores tenderão a
esperar que o elemento ‘canal’, de vez que já era tão indistinto, seria inacessível à interpretação. Têm razão em
suspeitar de uma dificuldade; porém a dificuldade não resulta da indistinção: tanto a dificuldade como a
indistinção se originam de outra causa. Nada ocorreu a essa paciente em relação a ‘canal’, e eu obviamente
não pude elucidá-lo. Pouco tempo depois — para dizer a verdade, no dia seguinte — disse-me que havia
pensado em alguma coisa que podia ter algo a ver com o fato. Era, sim, um chiste — um chiste que tinha
ouvido. No vapor entre Dover e Calais, um conhecido autor entabulou conversação com um inglês. Este
aproveitou a ocasião para citar a frase: ‘Du sublime au ridicule il n’y a qu’un pas. [Do sublime ao ridículo não vai
mais que um passo.]’ ‘Sim’, respondeu o autor, ‘le Pas de Calais‘ — querendo dizer que havia pensado que a
França era sublime e a Inglaterra, ridícula. Porém o Pas de Calais é um canal — o Canal Inglês [Na verdade, os
Estreitos de Dover.]. Os senhores me perguntarão se penso que isso tinha algo a ver com o sonho. Penso que
sim, certamente; e dá a solução do elemento enigmático do sonho. Poderão duvidar de que esse chiste, já
antes de ocorrer o sonho, estava presente na qualidade de pensamento inconsciente, oculto por trás do
elemento ‘canal’? Podem os senhores supor que foi introduzido como invenção subseqüente? A associação
revelou o ceticismo que jaz oculto na admiração ostensiva da paciente; e sua resistência contra a revelação
desse fato era sem dúvida a causa comum tanto de sua demora em fornecer a associação, como da indistinção
do elemento onírico em referência. Considerem a relação entre o elemento onírico e seu terreno inconsciente:
era como se fosse um fragmento desse terreno, uma alusão ao mesmo, tendo-se tornado ininteligível ao ser
isolado.(c) Como parte de um sonho um tanto longo, um paciente sonhou que diversos membros de sua família
estavam sentados em volta de uma mesa de formato especial, etc. Ocorreu-lhe, em relação à mesa, que ele
tinha visto um móvel desse tipo quando visitava determinada família. Seus pensamentos continuaram revelando
que havia um relacionamento peculiar entre pai e filho, nessa família; e logo acrescentou que o mesmo se
passava, de fato, nas relações entre ele próprio e seu pai. Assim, a mesa passou a fazer parte do sonho a fim
de assinalar esse paralelo.O sonhador há muito se havia familiarizado com os requisitos da interpretação de
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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sonhos. Outras pessoas talvez pudessem fazer objeções a que detalhes tão triviais, como o formato de uma
mesa, se tornassem objeto de investigação. Na realidade, porém, não consideramos que algo seja casual ou
indiferente em um sonho, e esperamos obter informações precisamente a partir da explicação desses detalhes
triviais e despropositados. Os senhores talvez também se sintam surpresos com o fato de que o pensamento de
que ‘a mesma coisa era verdadeira para nós e para eles’ deveria ter sido expresso, em especial, pela escolha
da forma da mesa [Tisch]. Isso, contudo, também se aclara quando os senhores se dão conta de que o nome
da família em questão era Tischler [literalmente, ‘marceneiro’]. Ao fazer seus parentes se sentarem a essa
Tisch, ele estava dizendo que também eles eram Tischlers. Aliás, os senhores observarão quão inevitavelmente
se é levado a ser indiscreto ao referir essas interpretações de sonhos. E perceberão que essa é uma das
dificuldades a que aludi na escolha dos exemplos. Poderia facilmente ter escolhido um outro exemplo em lugar
deste, provavelmente; porém, eu apenas teria evitado tal indiscrição e iria cometer uma outra.Parece haver
chegado o momento para eu introduzir dois termos que poderíamos ter empregado há muito tempo.
Descreveremos como conteúdo manifesto do sonho aquilo que a pessoa que sonhou realmente nos conta; e o
material oculto, que esperamos encontrar acompanhando idéias que lhe acodem à mente, chamaremos de
pensamentos oníricos latentes. Desse modo, consideramos aqui as relações entre o conteúdo manifesto do
sonho e os pensamentos oníricos latentes conforme se mostrou nesses exemplos. Essas relações podem ser
de muitas espécies diferentes. Nos exemplos (a) e (b) o elemento manifesto também é um constituinte dos
pensamentos latentes, embora sendo apenas uma pequena parte deles. Uma pequena porção da grande e
complexa estrutura psíquica dos pensamentos oníricos inconscientes também conseguiu ter acesso ao sonho
manifesto — um fragmento desses pensamentos ou, em outros casos, uma alusão aos mesmos, uma
manchete, por assim dizer, ou uma abreviação em estilo telegráfico. É atribuição do trabalho de interpretação
reunir esses fragmentos ou essa alusão para completar um todo — o que foi conseguido de modo
especialmente preciso no caso do exemplo (b). Assim, uma forma da deformação que constitui a elaboração
onírica é a substituição por um fragmento ou uma alusão. No exemplo (c) pode-se observar outro tipo de
relação, além deste; e a encontramos expressa em forma ainda mais pura e clara nos exemplos que se
seguem.
(d) O sonhador estava puxando uma mulher (determinada mulher, conhecida sua) de detrás de uma
cama. Ele mesmo encontrou o significado desse elemento onírico, partindo da primeira idéia que lhe ocorreu.
Significava que estava manifestando sua preferência por essa mulher.(e) Outro homem sonhou que seu irmão
estava numa caixa [Kasten]. Em sua primeira resposta, ‘Kasten‘ foi substituída por ‘Schrank‘ [armário], e a
segunda deu a interpretação: seu irmão estava se restringindo [‘schränkt sich ein’].(f) O sonhador subia ao
cume de uma montanha de onde se descortinava uma paisagem extraordinariamente ampla. Este sonho
parece bastante racional e os senhores poderiam supor que não há o que interpretar nele, e que tudo quanto
temos a fazer é interrogar sobre qual lembrança deu origem ao sonho e a razão de essa lembrança ter sido
despertada. Enganar-se-iam porém. Verificou-se que este sonho estava carecendo de uma interpretação, tanto
quanto qualquer outro mais confuso. Pois não foi de nenhuma escalada de montanha que o homem se
recordou; na realidade, pensou em um conhecido seu, editor de uma ‘Rundschau‘. que tratava de nossas
relações com as mais distantes regiões da Terra. Assim, o pensamento onírico latente era uma identificação
desse homem com o ‘Rundschauer‘.Aqui temos um novo tipo de relação entre os elementos oníricos manifesto
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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e latente. O primeiro não é bem uma deformação do último, e sim uma representação deste, um retrato plástico,
e seu ponto de partida se localiza nas palavras. Contudo, precisamente por esse motivo ele é, mais uma vez,
uma deformação, porquanto de há muito temos esquecido de que imagem concreta a palavra se originou e, por
conseguinte, deixamos de reconhecê-la quando substituída pela imagem. Quando os senhores consideram que
o sonho manifesto é constituído predominantemente de imagens visuais e, mais raramente, de pensamentos e
palavras, podem imaginar que importância se atribui a esse tipo de relação na construção dos sonhos. Os
senhores também verão que assim, em face de um grande número de pensamentos abstratos, se torna
possível criar quadros que funcionem como substitutos desses pensamentos no sonho manifesto, ao passo que
simultaneamente se ajustam à finalidade de ocultar. Essa é a técnica das conhecidas figuras enigmáticas. Por
que possuem essas figuras aparência de serem brincadeiras, é um problema especial com o qual não
precisamos nos envolver, por enquanto.Existe um quarto tipo de relação entre os elementos manifesto e
latente, que devo continuar mantendo em segredo dos senhores até que cheguemos à sua palavra-chave ao
tecermos considerações sobre a técnica. Mesmo assim não terei apresentado uma lista completa; porém, serve
às nossas finalidades. Os senhores se sentem agora com coragem suficiente para se aventurarem a interpretar
um sonho inteiro? Façamos a experiência, para verificar se estamos bem equipados para a tarefa.
Naturalmente não selecionarei um dos mais obscuros; mesmo assim, será um sonho que fornecerá um quadro
muito aproximado dos atributos de um sonho.Pois bem, vamos ao caso. Uma senhora que, embora ainda
jovem, estava casada há muitos anos, teve o seguinte sonho: Ela estava no teatro com seu marido. Um lado da
primeira fila de cadeiras estava completamente vazio. Seu marido lhe disse que Elise L. e seu noivo também
tinham pretendido ir, porém só poderiam conseguir lugares ruins — três por 1 florim e 50 kreuzers — e
naturalmente não poderiam adquiri-los. Ela pensou que não teria sido realmente nenhum prejuízo se tivessem
conseguido.A primeira coisa que essa senhora nos referiu foi que a causa precipitante do sonho residia em uma
alusão do seu conteúdo manifesto. Seu marido realmente lhe havia falado que Elise L., que era
aproximadamente da mesma idade dela, há pouco havia contratado casamento. O sonho era uma resposta a
essa informação. Já sabemos [ver em [1]] ser fácil, no caso de muitos sonhos, assinalar uma causa
desencadeante como essa do dia anterior, e que a pessoa que sonhou muitas vezes é capaz de estabelecê-la
para nós sem qualquer dificuldade. Essa senhora, no presente caso, colocou à nossa disposição informações
semelhantes para outros elementos do sonho manifesto, também. — De onde veio o detalhe referente a estar
vazio um dos lados das cadeiras? Era alusão a um evento real da semana anterior. Ela havia planejado ir
assistir a determinada peça e por isso havia comprado seus ingressos com antecedência — com tanta
antecedência, que teve de pagar uma taxa de reserva. Quando foram ao teatro, acabaram verificando que a
pressa dela era bastante desnecessária, de vez que uma parte das cadeiras da primeira fila estava quase
vazia. Teria sido suficiente a antecipação de comprar os ingressos se os tivesse adquirido no dia em que
realmente se realizava a representação. Seu marido não deixou de gracejar com ela por ter tido tanta pressa.
— Qual era a origem do 1 florim e 50 kreuzers? Surgiu de uma relação bem diferente, que nada tinha a ver com
a anterior, mas que também aludia a algumas informações do dia anterior. Sua cunhada recebera de presente
150 florins de seu marido e tinha tido muita pressa — a tola — de correr a uma joalheria e trocar o dinheiro por
uma peça de bijuteria. — De onde veio o ‘três’? Ela não conseguia pensar em nada referente a isso, até que
levamos em conta a idéia de que Elise L., sua amiga, que noivara recentemente, era só três meses mais nova
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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que ela, embora ela própria estivesse casada há dez anos, aproximadamente. — E a idéia absurda de adquirir
três ingressos para apenas duas pessoas? Ela nada tinha a dizer quanto a isso, e não quis referir mais
nenhuma idéia ou informação.
De qualquer modo, porém, ela nos havia fornecido tanto material nessas poucas associações, que foi
possível, a partir destas, entrever os pensamentos oníricos latentes. Não pode deixar de chamar-nos a atenção
o fato de ocorrerem períodos de tempo em diversos pontos das informações que nos deu sobre o sonho, e
esses pontos proporcionam um denominador comum das diferentes partes do material. Ela adquiriu os
ingressos para o teatro cedo demais, comprou-os superapressadamente, tendo de pagar mais do que o
necessário; assim, também sua cunhada estivera com pressa de levar seu dinheiro à joalheria e com ele
comprar bijuteria, como se, de outra maneira, fosse perdê-lo. Se, além do ‘cedo demais’ e do ‘com pressa’ que
nos chamaram a atenção, tomamos em consideração a causa desencadeante do sonho — a notícia de que sua
amiga, embora somente três meses mais nova do que ela, tinha, não obstante, conseguido um excelente
marido — e a crítica a sua cunhada, expressa na idéia de que era absurdo ela estar com tanta pressa, então se
nos apresenta quase espontaneamente a seguinte construção dos pensamentos oníricos latentes, dos quais o
sonho manifesto é um substituto acentuadamente deformado:
‘Realmente, foi absurdo de minha parte ter tanta pressa de casar! Posso ver, pelo exemplo de Elise,
que também eu podia arranjar um marido, mais tarde.’ (Estar com pressa demais foi representado por sua
própria conduta de comprar os ingressos e pela conduta de sua cunhada, de comprar a bijuteria. Ir ver a peça
pareceu um substituto de casar.) Pareceria ser esse o pensamento principal. Talvez possamos ir adiante,
embora com menos certeza, pois a análise não deveria prescindir dos comentários da pessoa que sonhou, nos
seguintes pontos: ‘E eu poderia ter conseguido um, cem vezes melhor, com o dinheiro!’ (150 florins é cem
vezes mais do que 1,50 florim.) No caso de colocarmos seu dote em lugar do dinheiro, significaria que seu
marido foi comprado com o dote dela: a peça de bijuteria, assim como os ingressos ruins, seriam substitutos de
seu marido. Seria ainda mais satisfatório se o elemento real ‘três ingressos’ tivesse algo a ver com seu marido.
[ver adiante, em [1] e [2].] No entanto, até esse ponto ainda não chegamos, por enquanto, em nossa
compreensão do sonho. Descobrimos apenas que o sonho expressa o reduzido valor atribuído por ela a seu
marido e seu pesar por ter casado tão cedo.
Imagino que ficaremos mais surpresos e confusos do que satisfeitos com o resultado dessa primeira
interpretação de sonho. Foi-nos dado demais numa primeira dose — mais do que somos capazes de enfrentar.
Já podemos ver que não esgotaremos as lições dessa interpretação de um sonho. Apressemo-nos a separar
aquilo que podemos reconhecer como novas descobertas firmadas:
Em primeiro lugar, é algo notável a ênfase principal dos pensamentos latentes residir no elemento ‘estar
com pressa demais’; nada disso se pode encontrar no sonho manifesto. Sem a análise, não suspeitaríamos de
que esse fator desempenhasse algum papel. Parece, portanto, que no sonho manifesto é possível estar
ausente aquilo que de fato constitui coisa principal, o centro dos pensamentos inconscientes. Isso significa que
deve ser fundamentalmente modificada a concepção que tivemos do sonho inteiro. Em segundo lugar, no
sonho existe uma combinação absurda: três por 1,50 florim. Detectamos nos pensamentos oníricos a afirmação
de que ‘foi absurdo (casar tão cedo)’. Pode haver dúvida de que idéia ‘foi absurdo’ é representada pela inclusão
de um elemento absurdo no sonho manifesto? E, em terceiro lugar, uma rápida comparação nos mostra que a
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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relação entre os elementos manifesto e latente não é uma relação simples; está longe de ser o caso o fato de
um elemento manifesto sempre estar no lugar de um elemento latente. Antes, o que existe é uma relação de
conjunto entre as duas camadas, dentro da qual um elemento manifesto pode substituir diversos elementos
latentes, ou um elemento latente pode ser substituído por diversos elementos manifestos. [ver adiante em [1].]
No que concerne ao significado do sonho e à atitude da sonhadora para com este, bem poderíamos
classificá-lo de igualmente surpreendente. Realmente, ela concordou com a interpretação, porém estava
assombrada com ela. Não tinha consciência de como era reduzido o valor que atribuía a seu marido; e nem
sabia por que tinha de desvalorizá-lo tanto. Assim, a este respeito muita coisa ainda existe por compreender.
Com efeito, parece-me que ainda não estamos aparelhados para interpretar um sonho, e que primeiro
necessitamos receber mais alguns conhecimentos e preparação.
CONFERÊNCIA VIII - SONHOS DE CRIANÇAS
SENHORAS E SENHORES:
Tenho a impressão de que progredimos depressa demais. Retrocedamos um pouco. Antes de
empreendermos a anterior tentativa de vencer a dificuldade da deformação em sonhos com o auxílio de nossa
técnica, dissemos [ver em [1]] que a melhor forma de proceder nesse caso seria contornar a dificuldade,
atendo-nos a sonhos em que não havia deformação, ou apenas pouca deformação — caso existam tais
sonhos. Uma vez mais isso significará um desvio em relação à evolução histórica de nossas descobertas [ver
em [1]]; porque, na verdade, só após a técnica de interpretação ter sido coerentemente aplicada e os sonhos
deformados terem sido completamente analisados, é que percebemos haver sonhos livres de deformação.Os
sonhos que estamos buscando ocorrem em crianças. São breves, claros, coerentes, fáceis de entender, sem
ambigüidade; não obstante, são sonhos indubitavelmente. Os senhores, porém, não devem supor que todos os
sonhos de crianças sejam desse tipo. A deformação onírica já inicia bem no início da infância, e têm sido
relatados sonhos sonhados por crianças entre 5 e 8 anos que possuem todas as características de sonhos de
idade maior. Entretanto, se os senhores se limitarem à faixa etária entre o início da atividade mental observável
e o quarto ou quinto ano, encontrarão numerosos sonhos portadores das características que se podem
descrever como ‘infantis’, e alguns outros do mesmo tipo em anos posteriores da infância. Na verdade, sob
certas condições, os próprios adultos têm sonhos que em muito se assemelham aos sonhos tipicamente
infantis.Desses sonhos de crianças podemos tirar conclusões, com grande facilidade e certeza, a respeito do
caráter essencial dos sonhos em geral, e podemos esperar que essas conclusões sejam comprovadas como
decisivas e universalmente válidas.(1) Nenhuma análise, nenhuma aplicação de qualquer técnica é necessária
para compreender esses sonhos. Não há necessidade de indagar a uma criança que nos conta seu sonho. No
entanto, há que acrescentar ao sonho alguma parcela de informação proveniente de eventos da vida da
criança. Invariavelmente existe alguma vivência do dia anterior que nos explica o sonho. O sonho é a reação,
durante o sono, da vida mental da criança à experiência que teve no dia precedente.
Tomaremos alguns exemplos, nos quais basearemos nossas demais conclusões.
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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(a) Um menino de 2 anos foi solicitado a entregar a alguém uma cesta de cerejas como presente de
aniversário Obviamente, ele estava muito relutante em fazê-lo, embora lhe houvessem prometido que ganharia
algumas das cerejas. Na manhã seguinte, contou que havia sonhado: ‘O Hermann comeu todas as cerejas!’
(b) Uma menina de 3 anos e 3 meses fez a travessia de um lago, pela primeira vez. No local de
desembarque, não queria deixar o barco e chorava desconsoladamente. A travessia tinha sido curta demais
para ela. Na manhã seguinte anunciou: ‘Noite passada, eu andei no lago.‘ Seguramente podemos acrescentar
que essa travessia tinha durado mais tempo.
(c) Um menino de 5 anos e 3 meses foi levado a uma excursão ao Echerntal, perto de Hallstatt. Tinhalhe
sido dito que Hallstatt ficava no sopé do Dachstein. Tinha mostrado grande interesse por essa montanha.
De onde ele estava, em Aussee, havia uma linda vista da montanha e o Simony Hut, que a encimava, podia ser
reconhecido através de um telescópio. A criança muitas vezes procurava vê-lo através do telescópio — se o
conseguiu, não se sabe. A excursão começou em clima de alegre expectativa. Sempre que uma nova
montanha surgia aos seus olhos, a criança perguntava: ‘É aquele o Dachstein?’ e foi ficando mais e mais
deprimida cada vez que lhe diziam que não. Por fim, ficou completamente calado e se recusou a prosseguir
com o resto do grupo na curta subida da cachoeira; acharam que devia estar exausto. Na manhã seguinte,
porém, com a fisionomia radiante, falou assim: ‘Na noite passada sonhei que nós estávamos no Simony Hut.’
Assim, fora isso que esperava obter da excursão. Não deu outros detalhes, salvo algo que tinha ouvido antes:
‘Você tem que subir a pé, durante seis horas.’Estes três sonhos nos fornecerão todas as informações de que
necessitamos.(2) Como podemos ver, esses sonhos de crianças não são absurdos. São atos mentais
inteligíveis, completamente válidos. Os senhores recordarão o que eu lhes disse da opinião médica a respeito
de sonhos e da analogia com dedos sem experiência musical passeando sobre as teclas de um piano [ver em
[1]]. Não podem deixar de observar quão nitidamente esses sonhos de crianças contradizem tal opinião. De
fato, seria por demais estranho se as crianças pudessem executar atos mentais completos, em seu sono,
enquanto os adultos se contentassem, sob as mesmas condições, com reações que não fossem nada mais que
‘repuxões’. Ademais, temos toda a razão ao pensar que o sono das crianças é mais eficaz e profundo.
(3) Esses sonhos não apresentam qualquer deformação onírica e, por conseguinte, não exigem
nenhuma atividade interpretativa. Neles, o sonho manifesto e o latente coincidem. Assim, a deformação onírica
não faz parte das características essenciais do sonho. Espero que isso alivie os senhores. Porém, quando
examinarmos esses sonhos mais detidamente, reconheceremos, mesmo neles, uma pequena parcela de
deformação onírica, determinada diferença entre o conteúdo manifesto do sonho e os pensamentos oníricos
latentes.
(4) Um sonho de uma criança é uma reação a uma experiência do dia precedente, a qual deixou atrás
de si uma mágoa, um anelo, um desejo que não foi satisfeito. O sonho proporciona uma satisfação direta,
indisfarçada, desse desejo. Recordemos, agora, nossas discussões sobre o papel que desempenham os
estímulos somáticos de fora e de dentro como perturbadores do sono e provocadores dos sonhos [ver em [1] e
segs.]. Nessa conexão vimos a conhecer alguns fatos incontestes, mas, por meio destes, apenas nos
capacitamos a explicar um reduzido número de sonhos. Nesses sonhos de crianças, entretanto, não há nada
que assinale a atuação de estímulos somáticos dessa espécie; nisso não poderíamos estar equivocados, pois
os sonhos são completamente inteligíveis e fáceis de apreender. Porém, isso não significa que devemos
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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abandonar a questão do estímulo na etiologia do sonho. Podemos apenas nos perguntar como pôde acontecer
que, desde o início, esquecessemos que, além dos estímulos somáticos, existem estímulos mentais que
perturbam o sono. Afinal de contas, sabemos que excitações dessa natureza são os principais responsáveis
pela perturbação do sono em um adulto, impedindo-o de estabelecer o estado de espírito requerido para o
adormecer — o interesse em ser retirado do mundo. Ele não deseja interromper a vida; de preferência,
continuaria seu trabalho com as coisas nas quais está interessado, e por essa razão não adormece. No caso de
crianças, portanto, o estímulo mental — o desejo que não foi satisfeito — e é a isso que reagem com o sonho.
(5) Isso nos abre o caminho mais direto para a compreensão da função do sonho. Na medida em que
um sonho é uma reação a um estímulo psíquico, deve equivaler a um manejo do estímulo de maneira tal que
este seja eliminado e o sono possa continuar. Ainda não sabemos como esse manejo do estímulo pelo sonho
se torna possível, dinamicamente; porém, já estamos verificando que os sonhos não são perturbadores do
sono, como erroneamente são denominados, mas guardiães do sono que eliminam as perturbações do sono.
Pensamos que deveríamos dormir melhor se não houvesse sonho, porém nos equivocamos; de fato, sem o
auxílio do sonho, não poderíamos, absolutamente, ter dormido. É devido a isso que dormimos bem ou mal. O
sonho não pode evitar de nos perturbar um pouco, da mesma maneira como um vigia noturno muitas vezes não
pode evitar de fazer um pequeno ruído quando persegue os perturbadores do sossego que procuram acordarnos
com seu barulho.
(6) O que origina um sonho é um desejo, e a satisfação deste desejo constitui o conteúdo do sonho —
esta é uma das características principais dos sonhos. A outra, igualmente constante, é que um sonho não
apenas confere expressão a um pensamento, mas também representa o desejo sendo satisfeito sob a forma de
uma experiência alucinatória. ‘Gostaria de ir ao lago‘ é o desejo que origina o sonho. O conteúdo do sonho
propriamente dito é: ‘Estou indo ao lago.‘ Portanto, mesmo nesses simples sonhos de crianças, há uma
diferença entre o sonho latente e sonho manifesto, há uma distorção do pensamento onírico latente: a
transformação de um pensamento em uma vivência. No processo de interpretar um sonho, essa alteração
necessita, primeiro, ser desfeita. Se tal vier a revelar-se como a característica mais universal dos sonhos, a
parte de sonho que lhes referi anteriormente [ver em [1]] ‘Vi meu irmão em uma caixa [Kasten]’ não deve ser
traduzida como ‘meu irmão está se restringindo [schränkt sich ein]’, e sim como ‘Eu gostaria que meu irmão se
restringisse: meu irmão deve restringir-se.‘ Das duas características gerais dos sonhos, que agora apresentei, a
segunda tem melhor perspectiva de ser aceita sem oposição, do que a primeira. É apenas por meio de
exaustivas investigações que podemos estabelecer o fato de que a origem dos sonhos deve ser sempre um
desejo, não uma preocupação, uma intenção ou uma censura; isso, porém, não afetará a outra característica: a
de que o sonho não faz simplesmente reproduzir esse estímulo, mas remove-o, elimina-o, maneja-o, através de
um tipo de vivência.
(7) Com base nestas características dos sonhos podemos voltar, mais uma vez, a uma comparação
entre sonho e parapraxia. Nesta, distinguimos entre uma intenção perturbadora e uma intenção perturbada [ver
em [1] e segs.], sendo a parapraxia uma conciliação das duas. Um sonho pode se ajustar ao mesmo modelo. A
intenção perturbada só pode ser a de dormir. Podemos substituir a intenção perturbadora pelo estímulo
psíquico, quer dizer, pelo desejo que pressiona por ser manejado, de vez que até o momento não tomamos
conhecimento de nenhum outro estímulo psíquico que perturbe o sono. Também aqui, o sonho é o resultado de
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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uma conciliação. Dorme-se, e, não obstante, se vivencia a remoção de um desejo, satisfaz-se um desejo,
porém, ao mesmo tempo, continua-se a dormir. Ambas as intenções são em parte realizadas e em parte
abandonadas.
(8) Os senhores estarão lembrados de que, em certa passagem [ver em [1] e [2]], tínhamos a
esperança de nos aproximarmos da compreensão dos problemas dos sonhos a partir de determinadas
estruturas imaginativas, muito simples de examinar, conhecidas como ‘devaneios’. Ora, esses devaneios são,
na realidade, satisfações de desejos, satisfações de ambições e de desejos eróticos que nos são bem
conhecidos; porém constituem pensamento, ainda que vividamente imaginado, e jamais são experimentados
sob a forma de alucinações. Das duas principais características dos sonhos, então, a menos constante é aqui
preservada, ao passo que a outra está totalmente ausente, visto depender do estado de sono e não poder
realizar-se no estado de vigília. O uso idiomático, por conseguinte, encerra uma noção do fato de que a
satisfação de desejos é uma característica principal dos sonhos. Diga-se de passagem, se nossa vivência nos
sonhos é apenas um tipo modificado de imaginação que se tornou possível devido às condições do estado de
sono — isto é, um ‘devanear noturno’ — já podemos compreender como o processo de construção de um
sonho pode utilizar o estímulo noturno e proporcionar satisfação, visto que o devaneio também é uma atividade
vinculada à satisfação, e, na verdade, somente é exercido por esse motivo.
Outros usos idiomáticos, contudo, expressam o mesmo sentido. Existem provérbios conhecidos, como
‘Os porcos sonham com bolotas de carvalho e os gansos sonham com milho’ ou ‘Com que sonham as
galinhas? — Com milho.’ Assim, os provérbios descem mais ainda do que nós — abaixo das crianças, até os
animais — e afirmam que o conteúdo dos sonhos é a satisfação de uma necessidade. Numerosas expressões
idiomáticas parecem apontar na mesma direção: ‘lindo como um sonho’, ‘eu nem sonharia uma coisa dessas’,
‘não imaginei isso nem nos meus sonhos mais ousados’. Neste ponto, o uso idiomático está tomando partido,
evidentemente. Tanto que existem também sonhos de ansiedade, e sonhos de conteúdo penoso ou indiferente;
porém o uso idiomático permaneceu indiferente a eles. É verdade que se conhece o que se chama de ‘sonhos
maus’, mas um sonho é, pura e simplesmente, apenas a doce realização de um desejo. E não existe nenhum
provérbio que nos afirme que os porcos e os gansos sonham com sua matança.
É naturalmente inconcebível que a realização de desejos, característica dos sonhos, não tivesse sido
percebida por pessoas que escreveram sobre o assunto. Pelo contrário, muitas vezes foi percebida; contudo, a
ninguém ocorreu a idéia de reconhecer esta característica como sendo universal e transformá-la em ponto
capital da explicação dos sonhos. Bem podemos imaginar o que impediu de fazê-lo; entraremos no assunto
mais adiante.
Mas vejam quantos esclarecimentos obtivemos ao examinarmos sonhos de crianças, e com tão pouco
esforço o conseguimos: as funções dos sonhos, na qualidade de guardiães do sono; sua origem situada em
duas intenções concorrentes, uma das quais, o desejo de dormir, permanece inalterada, ao passo que a outra
luta por satisfazer um estímulo psíquico; a evidência de que os sonhos são atos psíquicos com um sentido;
suas duas principais características: realização de desejos e vivência alucinatória. E, ao descobrir tudo isso,
quase seríamos capazes de esquecer que estávamos comprometidos com a psicanálise. À parte a relação com
as parapraxias, nosso trabalho não leva nenhum sinal especial. Qualquer psicólogo, nada conhecendo dos
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) – Sigmund Freud
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postulados da psicanálise, teria conseguido dar-nos essa explicação dos sonhos de crianças. Por que não o
fez?
Se os sonhos do tipo infantil fossem os únicos, o problema estaria resolvido e nossa tarefa terminada; e
isso sem termos de fazer perguntas àquele que sonhou, sem tocarmos no inconsciente ou recorrermos à
associação livre. É aí, evidentemente, que se situa a continuação de nossa tarefa. Já verificamos repetidamente
que as características que se afirmava serem de validade geral, terminaram aplicando-se apenas a um
determinado tipo e a um determinado número de sonhos. A questão que se nos apresenta, portanto, é saber se
as características gerais que inferimos dos sonhos de crianças possuem uma base mais firme, se elas são
válidas também para sonhos que não são tão transparentemente nítidos e cujo conteúdo manifesto não
apresenta qualquer sinal de estar relacionado a algum desejo, remanescente do dia anterior. É nossa opinião
que esses outros sonhos sofreram uma deformação em profundidade e, por este motivo, não podem ser
avaliados à primeira vista. Também suspeitamos que, para explicar essa deformação, necessitaremos da
técnica psicanalítica, da qual pudemos prescindir quando tratávamos de entender, ainda há pouco, os sonhos
de crianças.
Em todo caso, ainda há uma outra classe de sonhos que se apresentam não-deformados e que, como
os sonhos de crianças, facilmente podem ser reconhecidos como realizações de desejos. Estes são os sonhos
que, em qualquer época da vida, são suscitados por necessidades corporais imperiosas — fome, sede,
necessidade sexual —, isto é, são realizações de desejos sob a forma de reações a estímulos somáticos
internos. Assim, tenho anotado um sonho de uma menina de dezenove meses, que consistia em um cardápio
ao qual se ligava seu próprio nome. ‘Anna F.‘ morangos, morangos silvestres, omelete, pudim!‘ Isso era uma
reação a um dia sem comida, devido a um distúrbio digestivo; este realmente se tinha originado na ingestão da
fruta que apareceu por duas vezes no sonho. A avó da criança — suas idades somadas perfaziam setenta anos
— simultaneamente foi obrigada a privar-se de alimentos por um dia inteiro, devido um distúrbio ocasionado por
um rim flutuante. Ela sonhou, na mesma noite, que havia sido ‘convidada para comer fora’ e que fora regalada
com as mais apetitosas iguarias.
Observações levadas a cabo com prisioneiros que foram forçados a jejuar e com pessoas que
estiveram sujeitas a privações em viagens e explorações, nos ensinam que, sob essas condições, os sonhos
regularmente se centram na satisfação de tais necessidades. Assim, Otto Nordenskjöld (1904, 1, 336 e seg.)
escreve, da seguinte maneira, a respeito dos membros de sua expedição, enquanto atravessavam o inverno na
Antártida: ‘A direção tomada por nossos pensamentos mais íntimos mostrava-se claramente em nossos sonhos,
que nunca foram mais vívidos nem mais numerosos do que nesta época. Mesmo aqueles de nós, que de outro
modo sonhavam apenas de vez em quando, tinham longas histórias para contar, quando chegava a manhã,
ocasião em que trocávamos experiências desse mundo da imaginação. Todos diziam respeito ao mundo
exterior, agora tão distante de nós, embora todas elas muitas vezes estivessem adaptadas a nossas
circunstâncias reais… No entanto, comer e beber eram o ponto central ao redor do qual giravam, no mais das
vezes, os nossos sonhos. Um de nós, que tinha um dom especial para participar de grandes banquetes durante
a noite, se sentia orgulhoso de poder contar, de manhã, que tinha “devorado um jantar de três pratos”. Um outro
sonhava com fumo, com montanhas inteiras de fumo; enquanto isso, um terceiro sonhava com um navio que se
aproximava, de velas enfunadas, em mar aberto. Mas, esse outro sonho, vale a pena repeti-lo. Um carteiro

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